Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (IV)

         A noite sobrepairou ao dia morno e quando as estrelas fulguravam no zimbório azul-escuro a cidade, ardendo em tochas resinosas e lampiões de candeeiros, fez-se deslumbrante. Luminárias especiais adornavam da Praça do Campo à fortaleza, mantendo luminosa a rota dos convidados álacres ao baile, insopitavelmente aguardado. A movimentação na via de acesso fazia-se ruidosa e gentes curiosas se amontoavam nas cercanias da estrada e no grande pátio-jardim de acesso ao palácio, em algazarra crescente.

  As carruagens brilhavam nos vernizes novos e os cocheiros, em trajes de gala, exibiam o luxo dos seus amos embriagados pela febre dos sentidos. Paggi, em veludo carmesim e verde, ostentando as insígnias da família, espalhavam-se pelas escadas da entrada que davam assomo ao amplo salão, adornado de flores e tecidos custosos que lhe escorriam pelas paredes em festoni, combinados a guirlandas aromatizadas. Músicos florentinos e senenses, especialmente contratados, enchiam o ar de melodias. Os anfitriões recebiam os convidados deslumbrando-os com o excessivo poder económico de que ainda desfrutavam. Roupas especialmente confeccionadas em Florença destacavam tecidos de fina tecedura, ajaezados de pedras preciosas, e as jóias femininas encontravam relevo nos adereços, pulseiras, argolas e colares que eram exibidos pelos famosos Duques. Meia-máscara, de veludo e aigrette, disfarçava a beleza sedutora da Duquesa. Plumas esvoaçantes, sobre o cabelo artisticamente penteado, completavam-lhe a fantasia de Manhã. O esposo, em broccatello dourado, ostentava um jaleco de musselina de seda sobre a camisa de amplas mangas “bouffants”, fazendo sobressair o colar precioso de esmeraldas adornadas de diamantes raros; tinha as costas guardadas por longa capa de seda trabalhada sobre broccatello prateado, que se erguia dos ombros em leque de pedrarias. As calças, justas e curtas, prendiam as meias longas através de uma jarretière veludosa, em laço delicado. Os sapatos de verniz, com fivela ampla, de prata, completavam-lhe a indumentária. Uma parrucca empoada dava-lhe o toque final, contrastando com a meia-máscara de couro trabalhado. Representava o Dia.

  O capitoso vinho de Chipre, os tintos e brancos, os chianti e licores, o champanhe fino, em abundância, corriam de pipas espalhadas por toda a parte, sobre o rico buffet, artisticamente decorado e ostentando jarras em prata lavrada, multiplicavam-se os tradicionais repastos: crostini, panzanella, scriccioli, castagnaccio, frittelle, peci; aqui e ali os famosos doces: panforte, ricciarelli, berricuocoli. Servos trajados em livrée desfilavam conduzindo bandejas de prata com frutos secos, aves defumadas ou com taças de cristal florentino e veneziano, de variadas cores, atendendo aos pares que voluteavam pelos salões ou que aspiravam o puro ar da noite constelada.

  As melodias embriagantes falavam de sensualidade e prazer, combinadas às emoções que davam curso a desgovernos cujas consequências, sempre imprevisíveis, arrastavam a loucuras e à insensatez de toda a espécie.

  Quando o coche em estilo rococó, pertencente a Francesco, os conduziu a ele, à esposa e Girólamo, este, dominado pelas expectativas amplas de embriagues de gozo, tinha os olhos faiscantes. Cobiçava introduzir-se naquele reduto, onde era detestado, e, espicaçado pela inveja aos poderosos, esperava ter, agora, oportunidade de dar vazão à omnímoda ganância.

  Indubitavelmente, o moço senense era garboso e possuía aplomb fascinante. Os seus olhos coruscantes, negros e grandes, faziam-se guarnecer por longos cílios escuros, com sobrancelhas espessas e bem traçadas adornando-lhe a face morena e máscula, o que lhe dava um aspecto de ser mitológico, possuidor de grande força magnética, que atraía, qual mel as formigas, os espíritos torturados pela lubricidade dos desejos carnais. No coche, forrado interiormente de cetim, cada um aspirava a maior soma de liberdade, para usufruir de gozos mais violentos e arrebatadores. Lucrécia, ferida nos sentimentos feminis, esperava espicaçar o ciúme em Girólamo, flertando com outros convivas; Francesco, igualmente ávido de efervescências emocionais, fustigava-se pensando como libertar-se da esposa, e Girólamo, desimpedido, cobiçava o mais amplo quinhão da noitada de extravagância e desregramento. Assim, logo se adentraram, justificaram-se uns aos outros, procurando cada qual a sintonia do prazer mais apetecível.

  A festa transbordava alegria e se desdobrava envolvente…

  O baile deveria ser interrompido a meio, para apresentação de um espectáculo buffo, com teatro ligeiro e de contorcionismo, facultando recreio e descanso aos convidados.

  Entre as árvores, no parque majestoso, armara-se adredemente um tablado, que, feericamente iluminado, atraía todas as atenções. Música suave, de cordas e pífaros, continuava embalando o ar ameno da noite avançada. Cantores regionais e actores contratados em Milão, Veneza e Florença se exibiam entre aplausos estridentes e gargalhadas que se misturavam às primeiras explosões de ebbrezza (i) chocante, na qual o homem desvela o íntimo primitivo, cerceado pelas convenções sociais e educacionais, desabrindo-se nesses momentos, em que se permitem cenas vandálicas e vulgares.

  Uma das surpresas era constituída pela apresentação de uma jovem cantora popular paduense, que emocionava com a doçura da voz e a fragilidade da aparência. Dizia-se, mesmo, que vários homens se lhe arrojavam aos pés, cobiçando-lhe o amor. No entanto, na sua vida nómada com os zíngaros, que a custodiavam, a ninguém permitira o licor da juventude nem o perfume estonteante do êxtase. Alguns acreditavam que os ciganos a haviam raptado na infância, vingando-se de algum nobre que lhes caíra no desagrado, culminando por amarem-na como filha predilecta da grei. Supunham outros que nascera em Pádua, e tudo eram imaginações, para aureolarem o seu nome de magia. Alguma vida já fora decepada no silêncio da noite e nas armadilhas da impiedade, para deixar livre o caminho da jovem.

  Exibia-se no colorido alegre dos seus trajos, com a cabeça resguardada por panuelo, duas longas tranças negras de cabelo, com fios de ouro, caindo-lhe sobre o colo adornado de colares e trancelim reluzente. Tomando da chitarra ornada de fitas de seda brilhante, assentou-se no centro do proscénio e, ante o natural silêncio que a sua presença modesta e romântica impôs, dedilhando o instrumento harmonioso, começou a cantar. A melodia, que lembrava um gorjeio, balada de amor e tragédia, madrigal de dor e ternura, que traduzia a crueza dos dias que se viviam, dominava em notas vibrantes, para cair de súbito em pianíssimos comovedores.

“Eu era débil rouxinol
Que a fantasia de canto embriagava!
Cantava à luz do dia, ao sol,
O festival de amor que me abrasava…

Ventura infinda me invadia a vida,
A dor em mim era desconhecida.
Sonhei voar contigo, no céu lindo;
Eras um falcão e destroçaste
Minha alegria, a vida me roubaste.

Oh! desgraça, por amar-te tanto!...”

  A melodia chorava a pulcra avezita que o desejo infrene, falcão impiedoso, destruíra. Conquanto estivesse o auditório repleto de pessoas de costumes reprocháveis, a canção da jovem parecia retratar uma visão desconhecida por aqueles seres, acostumados às paixões violentas, conseguindo, pelo inusitado, acalmar-lhes, momentaneamente, a sede da luxúria e do vinho.

  Girólamo, por circunstância óbvia, lembrou-se de Assunta. Pareceu-lhe, no momento, que, no auge da juventude, aos primeiros lances da sedução, conseguira amá-la. Era um amor selvagem, feito de ímpetos e ânsias, mas possivelmente amor. Aliás, ele não sabia o que era o amor, além do fustigar das explosões do desejo. Ignorava o sacrifício e a renúncia, desconhecia a arte de esperar e nunca se permitira ceder, senão para retomar adiante.

  Assunta reapareceu-lhe nas recordações e, por um instante, experimentou lampejos de remorso, como se lamentasse de ter feito o que fez. Como se o frescor da noite e a melodia o humanizassem, deslocou-se psiquicamente do ambiente e voltou à colina de San Miniato, onde trucidara com punhaladas contínuas a infeliz amante. Devaneava, emocionado, quando escutou a gargalhada… Arrepio violento o sacudiu. Despertou estremunhado, ergueu-se e demandou o solar, para sorver amplo bicchiere (ii) de vinho.

  A doce voz continuava modulando o estribilho da canção:

“Oh! aventura di amarti tanto
Triste manigoldo dell’alma mia
Mi rubasti il cielo e l’incanto…”

  Pávido e trémulo, arrebatou um copázio que espumava sobre uma bandeja em exposição e sorveu-o, desesperado. No íntimo, porém, sobrepondo-se ao aturdimento, continuou a escutar a gargalhada sardónica, acompanhada de objurgatórias e impropérios:

  – “Não fugirás, assassino! Assassino! Assa…ssi…no! Ladrão de vidas! FALCÃO destruidor!...”

  Sentindo o peito arfante e o espírito atroado, continuou a beber, buscando fugir da agressão mental, esquecido do baile, da vida, evadindo-se, até que o torpor alcoólico o vitimou desacordado.

  Estabelecera-se, ali, em definitivo, a obsessão.

/...

(i) Ebbrezza – embriaguez.
(ii) Bicchiere – copo próprio para vinho; caneca.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (4 de 4) 25º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de ilustração: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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