Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Primeira narrativa – I
 
Resurrectio præteriti
(a
ressurreição
do
passado)

…/


   Quœrens – A palestra que ora inauguro convosco, meu caro mestre, traz à memória os diálogos de Platão sobre a imortalidade da alma; e igual a Fedro que o solicitava a seu mestre, Sócrates, no próprio dia em que este devia beber a cicuta – para obedecer à iníqua sentença dos Atenienses –, eu vos pergunto, ó vós, que haveis transposto o termo fatal, que diferença essencial distingue a alma do corpo, de vez que este perece, enquanto que a primeira não morre jamais?

   Lúmen – Não darei a essa questão uma resposta metafísica, qual a de Sócrates, nem uma solução dogmática, qual a dos teólogos, mas uma resposta científica, porque vós, tal qual eu, dais valor somente aos factos constatados pelos métodos positivos. Ora, pode-se distinguir no ser humano três princípios diferentes, ainda que reunidos:
1ª: o corpo material; 2ª: o corpo astral; 3ª: a alma.
Menciono-os nessa ordem para seguir o método a posteriori. O corpo material é uma associação de moléculas, formadas elas próprias de agrupamentos de átomos. Os átomos são inertes, passivos, governados pela força, e entram no organismo pela respiração e pelos alimentos, renovam incessantemente os tecidos, são substituídos por outros e, eliminados, vão pertencer a outros corpos. Em alguns meses, o corpo humano é totalmente renovado, e nem no sangue, nem na carne, nem no cérebro, nem nos ossos resta mais um único dos átomos que constituíam o todo alguns meses antes.

   Por intermédio da atmosfera, principalmente, os átomos viajam sem cessar de um para outro corpo. A molécula de ferro é sempre a mesma, quer esteja incorporada ao sangue que pulsa sob a têmpora de um homem ilustre, quer pertença a um vil fragmento enferrujado. A molécula de oxigênio é idêntica, brilhe no olhar amoroso da noiva, ou, reunida ao hidrogênio, projecte sua flama em um dos mil luzeiros das noites parisienses, ou, ainda, tombe em gota de água do alto das nuvens. Os corpos actualmente vivos são formados da cinza dos mortos e, se todos os mortos ressuscitassem, faltariam aos vindos por último muitos fragmentos pertencentes aos primeiros. E, durante a vida mesmo, numerosas mudanças ocorrem, entre amigos e inimigos, entre homens, animais, plantas, trocas que causariam singular espanto ao olhar analisador. Quanto respirais, comeis ou bebeis, já foi respirado, bebido ou comido milhares de vezes. Tal é o corpo: um complexo de moléculas materiais que se renovam constantemente.

   O corpo astral é, por assim dizer, imaterial, etéreo, fluídico. É por ele que o Espírito está associado ao corpo material; é o envelope da alma, a substância física do Espírito.

   Pela energia vital a alma grupa as moléculas, seguindo certa forma, e constitui os organismos.

   A força rege os átomos passivos – incapazes de se conduzirem eles próprios, inertes; a força os chama, faz que lhe obedeçam, toma-os, coloca-os, dispõe todos conforme certas regras e forma esses corpos tão maravilhosamente organizados que o anatomista e o fisiologista contemplam. Os átomos são permanentes; a força vital não. Os átomos não têm idade; a força vital nasce, envelhece, morre. Um octogenário não é mais idoso do que o jovem de quatro lustros. Porquê? Os átomos que o constituem estão, naquele, apenas há alguns meses e, além disso, não são nem velhos, nem novos; analisados, os elementos constitutivos do seu corpo não têm idade. O que envelheceu, pois, no octogenário? A sua energia vital, a qual outra coisa não é que uma transformação da energia do Universo, e esgotada no corpo. A vida se transmite pela geração. Ela mantém o corpo instintivamente sem ter consciência dela própria: tem um começo e um fim; é uma força física inconsciente, organizadora e conservadora do corpo.

   A alma é um ser intelectual, pensante, imaterial na essência. O mundo das idéias, no qual vive, não é o mundo de matéria: não tem idade, nem envelhece; não muda em um mês ou dois, igual ao corpo, pois, decorridos ano, lustro, decénio, sentimos que conservamos a nossa identidade, que o nosso eu permanece. De outro modo, se a alma não existisse, se a faculdade de pensar fosse função do cérebro, não poderíamos continuar a dizer que temos um corpo: este seria o corpo que teríamos na ocasião. Além disso, de período em período, nossa consciência mudaria, não possuiríamos mais a certeza, nem mesmo o sentimento da nossa identidade, e não seríamos mais responsáveis pelas resoluções segregadas pelas moléculas que haviam passado por nosso cérebro muitas dezenas de meses antes. A alma não é a força vital, pois esta é mensurável, transmite-se por geração, não tem consciência intrínseca, nasce, aumenta, declina e morre – estados diametralmente opostos aos da alma, imaterial, imensurável, intransmissível, consciente. O desenvolvimento da força vital pode ser representado geometricamente por um fuso que inche insensivelmente até ao meio e depois decresça até anular-se na outra extremidade. No meio da vida, a alma não desincha (se se pode usar a comparação) para diminuir em forma de fuso e ter um fim, mas continua a abertura da sua parábola, lançada no Infinito. Além disso, o modo de existência da alma é essencialmente diverso do da vida. É um modo espiritual. O sentimento do justo ou do injusto, do verdadeiro ou do falso, do bom ou do mau; o estudo, as matemáticas, a análise, a síntese, a contemplação, a admiração, o amor, o afecto ou a antipatia, a estima ou o desprezo, em uma palavra, as preocupações da alma, quaisquer que sejam, pertencem à ordem intelectual e moral, que os átomos e as forças físicas não podem conhecer, e que existe tão verdadeiramente quanto a ordem material. Jamais o trabalho químico ou mecânico das células cerebrais, por mais subtil que se suponha, poderia dar em resultado um julgamento intelectual, por exemplo, concluir que 4 multiplicado por 4 é igual a 16 ou que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos rectos.

   Esses elementos da entidade humana são encontrados no conjunto do Universo:
   1º –      os átomos, os mundos materiais, inertes, passivos;
   2º –      as forças físicas, activas, que regem os mundos e que se transformam umas nas outras;
   3º –      Deus, o Espírito eterno e infinito, organizador intelectual das leis matemáticas às quais as forças obedecem… ser incognoscível, no qual residem os princípios supremos do verdadeiro, do belo e do bem.

   A alma é ligada ao corpo material pelo corpo astral, intermediário, que ela conserva depois da morte. Quando a vida se extingue a alma se separa naturalmente do organismo e cessa qualquer relação imediata com o Espaço e o Tempo, pois não tem densidade alguma, nem peso. Depois da morte ela se encontra desprendida do corpo e permanece maior ou menor interregno na atmosfera. Relativamente livre, a alma pode deslocar-se facilmente e, às vezes, projectar-se mesmo a imensas distâncias, com a rapidez do pensamento. Sabeis que do Sol à Terra, ou desta aos planetas, a gravitação se transmite quase instantaneamente com uma velocidade maior do que a da luz. A transmissão da alma, mônada-psíquica, no Espaço, é da mesma ordem. Assim, estamos no céu, imediatamente depois da morte, de igual modo que o havíamos estado, aliás, durante todo o período da existência. Somente não temos mais o peso que nos prende ao planeta. Acrescentarei, todavia, que a alma demora algum tempo para desprender-se do organismo nervoso e, por vezes, permanece muitos dias, meses mesmo, magneticamente ligada ao antigo corpo que não deseja abandonar. Não raro, conserva, por largo período, seu organismo fluídico, além de que, dotada de faculdades especiais, pode transportar-se rapidamente de um ponto a outro do Espaço.
/...

CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Primeira narrativa – I. 2º fragmento global da obra (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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