Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
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   Horas avançadas, Girólamo caminhava pela alcova, agitado, em trajes de dormir.

   O punhal afiado brilhava aos reflexos do luar que por vezes penetrava no quarto, colocado sobre delicada arca de

cânfora trabalhada.

   Pensava, em tumulto íntimo, na agressão que deveria perpetrar e que culminaria no homicídio múltiplo.

   Repentinamente, percebeu-se recordando o pai adoptivo, recém-falecido e surda revolta lhe assomou à mente. Como se se sentisse realizado em poder vingar-se da antipatia natural que ambos nutriam reciprocamente, monologava: “Esta é a hora do meu desforço. Estás morto, miserável! Tudo me pertencerá, logo mais. E agora, Senhor di Bicci di M.?”

   O pensamento em desalinho martelava, repetia, disparava dardos de ódio que buscava o alvo…

   Conquanto a enfermidade o vitimasse com rapidez, o duque sabia que se acercava da porta da Imortalidade. No íntimo, acalentava, quase desejoso, poder dar o grande passo, que o colocaria ao lado da esposa idolatrada. Homem lutador, não cultivara, todavia, os sentimentos da fé, deixando o problema da religião ao sacerdote que mantinha no palácio para cuidar das responsabilidades da alma, como se outrem pudesse responder pelos deveres espirituais que a cada um nos cabe, no cômputo da existência planetária. Ignorando totalmente as realidades espirituais, sentia a desvitalização orgânica e a paralisia cerebral, compreendendo ser a aproximação da morte, vencido de angústia pelo destino dos filhos e de Lúcia, que ficariam a sós, num mundo de ódios e vinganças qual aquele, apesar dos cuidados que tivera na distribuição dos bens.

   Mesmo após estarem paradas as carnes pela morte e ser seu espírito sacudido por diversos delíquios, experimentava sensações estranhas. A morte não lhe dominou o raciocínio. Seria aquilo morrer?! – pensou. Somente, então, recordou-se de que nunca dera atenção a tão importante questão da vida. Acompanhou, sem compreender, o velório, as exéquias, os prantos e a cerimónia final, com os sentidos atordoados, desconexos, observando o que se passava, sem inteirar-se totalmente da realidade. Sim – pensava –, deveria ter morrido, pois que não conseguia comunicar-se com as pessoas presentes, e todos aqueles apetrechos lutuosos traduziam o desaparecimento do senhor da herdade, como era tradição. Ele, porém, continuava a viver, experimentando as dominadoras sensações de sempre. Que era, porém, a morte? Não podia examinar o palpitante assunto naquele instante. A dor visitava-o, a fraqueza que o imobilizara no corpo continuava a sua acção nos departamentos diversos do seu ser, tonturas constantes e frio cortante venciam-no lentamente. Desejou andar, traduzir as aflições do momento, agasalhar-se, e não pôde. Estava ligado aos despojos orgânicos que, sem saber precisar como, conduziram-no ao esquife e ao mausoléu…

   Encontrava-se em agonias longas, com dificuldade respiratória, quando pareceu escutar soturna voz que o chamava com veemência, exercendo, sobre a sua mente, desconhecido poder. Padecimentos mais fortes assaltaram-no, qual se uma chibata habilmente manipulada o açoitasse. Incapaz de compreender quanto se passava, foi subitamente arrastado da capela mortuária, em que jazia o corpo, por estranho sortilégio, aos aposentos de Girólamo e pôde, então, identificar o sobrinho, cujos dentes rilhados pronunciavam-lhe o nome, blasfemando, irado, venal…

   A pobre entidade, ainda esmagada pelas sensações e emoções do túmulo, em recomeço difícil, recordou a surda antipatia que sempre lhe inspirara o moço e, sentindo-se alvo do ódio do ingrato, começou a revidar, desavisado, esquecido da situação nova, quando observou que o jovem se acercou da arca, sacou do punhal reluzente e avançou pelo longo corredor em trevas, na direcção da ampla alcova das crianças e de Lúcia.

   Sentindo-se aniquilar pelo horror que dele se apossava, o Espírito perturbado em si mesmo seguiu-o e, em superlativa amência, acompanhou o trágico desfecho da insanidade.

   Girólamo, tomando um travesseiro de plumas leves, acercou-se do leito de Grazziella e asfixiou-a impiedoso, enquanto a menina, adormecida e impossibilitada de respirar, debatia-se sem forças até a parada total dos movimentos, qual ave fraca e inocente nas garras odientas do abatedor. Concluía a primeira etapa, o homicida repetiu a experiência com as demais crianças, após o que se acercou de Lúcia, dominado por infeliz e desconcertante vindita, apunhalando-a repetidas vezes, enquanto gritava, totalmente louco…

   A jovem nem sequer despertou do torpor que a venceu. Emitiu surdos ruídos e desfaleceu, moribunda, e logo morta, atirada ao solo pelo implacável tirano.

   Aos gritos do moço, os servos acorreram, trazendo archotes, e depararam com a cena funesta, indescritível. O moço, banhado pelo sangue da vítima, apontava-a morta, enquanto bradava:

   – Fui obrigado a matá-la. Surpreendi a infame asfixiando as crianças, meus primos, com o travesseiro, naturalmente para ficar herdeira única. Não resisti, e apunhalei-a quanto pude!

   “Nada há mais que fazer. Está morta; estão todos mortos! A assassina, serpe venenosa que se nutriu do leite que a vitalizou, terminou por picar o seio no qual se alimentava. Vingança, vingança!”

   Ante os brados dos servidores, desesperados, estupidificados, o palácio se transformou imediatamente num pandemónio terrível.

   Girólamo despachou servos na direcção de Siena, para que as autoridades fossem notificadas da tragédia inominável e viessem tomar conta dos acontecimentos chocastes.

   A manhã surgiu na densa neblina, enquanto o palácio do Senhor di Bicci di M. enlutava-se outra vez, no curso da mesma semana, agora sob o estigma de inconcebível catástrofe.

   O Espírito do duque, face ao infortúnio, desfaleceu ali mesmo, no recinto da desgraça, vencido por inexplicável dor.

   Simultaneamente, a sombra augusta da duquesa, em prece, acompanhava, comovida, o desenrolar do drama, buscando receber nos braços os espíritos colhidos ao império da Lei de Causa e Efeito. Acolitada por Emissários do amor, oferecia assistência a Lúcia e aos filhos, que chegavam à vida nova em circunstâncias trágicas, porém libertados dos cruéis liames com a retaguarda. Infelizmente, e porque se vinculasse pelo revide mórbido a Girólamo, não pôde ser amparado com a mesma segurança o duque, dolorosamente esmagado pelas agonias que o desequilibravam.               /...


VICTOR HUGO, Espírito "PÁRIAS EM REDENÇÃO" – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 4 de 4) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’Âme de la Florêt – 1898, pintura de Edgar Maxence)

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