Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 21 de junho de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (II)

   No Solar di Bicci, a nobre Beatriz lamenta o consorte ausente. Da açoteia da casa vislumbra, os remotos sinais da Siena augusta e querida. Apesar do conforto que a mima, sentindo-se mais uma vez a sós, nessas constantes ausências do marido, deixa-se consumir por ignoto abatimento. Presságio mórbido atormenta-a e, sem poder disfarçar a inquietação, busca o conselho da velha aia que a acompanhou no lar e fora sua predilecta amiga no reduto paterno. Intimamente, espera que o esposo, que supõe em Florença, a negócios, esteja a salvo de qualquer mal e retorne feliz aos seus braços ansiosos.

   Ocorria, porém, infelizmente, que Assunta, nos espaços de tempo em que se via liberta momentaneamente da constrição obsidiante do duque, se refugiava no local em que se fizera comparsa dos hediondos crime, investindo, assim, contra aquela que, de certo modo, supunha ocupar o seu lugar. Sumamente infeliz, o espírito da criminosa assassinada irradiava, com sua presença nefanda, insopitável mal-estar à jovem sensível, que, desconhecendo a tecedura das questões espirituais e desarmada da prece legítima – aquela prece que dulcifica o coração e ilumina o espírito –, recebia as influências perniciosas, intoxicando-se do fluído deletério da malfadada etrusca. Acostumada a um conceito de fé religiosa inoperante, por meio da qual os deveres maiores do crente são resolvidos pelo confessor, a jovem debatia-se na angústia, sofrendo a reacção psíquica da adversária gratuita, que a sitiava inexoravelmente.

   Sem outros recursos de que se pudesse utilizar, senão o amor da velha dama de companhia que a procurava encorajar, dissipando-lhe a apreensão, permanecia aflita.

   – Nesta oportunidade, desde que o meu esposo saiu do lar – relatou a jovem, nervosa –, experimento a desagradável presença de um ser intangível que me espia, raivoso, produzindo-me indizível mal-estar. Nas última horas, venho sofrendo sufocante sensação, parecida à asfixia produzida por mãos invisíveis que me alcançassem…

   Não pôde dominar a emoção. O choro abundante aljofarou-lhe o rosto, em lágrimas quentes.

   – Deve ser o calor, senhora – retrucou a serva, apreensiva –, nestes dias do ano, muito forte. A atmosfera sobrecarregada pelo pó torna-se quase irrespirável. Tudo isso logo passará, menina. Coragem! Quem já a viu assim, em outras épocas?! Façamos juntas um terço, para acalmá-la.

   Fitando a jovem lívia, a ama, a diligente Vitória, notou-lhe o aspecto ofegante, o suor porejante, resolvendo conduzi-la à alcova. Esfregou-lhe substâncias aromáticas e chamando uma outra auxiliar puseram-se ambas a abanar a dama, quase desmaiada. O peito arfava, e, de quando em quando, crispava as mãos, traduzindo tormentoso desespero. Sem saber o que fazer, Vitória recorreu à oração. Erguendo os olhos, cravou-os no Crucifixo preso à parede do dormitório. Como de seu costume, tomou de um terço e tentou a comunhão com o Alto. A mecânica das palavras, articuladas sem qualquer vibração mental, como se valessem mais pela quantidade do que pelo estado de comunicação interior com o Pai, fazia-se uma litania.

   Entrementes, a desencarnada, presa ainda às superstições a que se fixara enquanto no corpo, observando que a oração objectivava expulsá-la, a seu turno foi possuída de pavor e desprendeu-se da vítima, partindo dos sítios, tomada de angústia incoercível.

   Beatriz, logo esteve liberta dos fluidos mefíticos que a venciam, foi acometida de constrangedor cansaço, vindo a dormir.

   O sono de refazimento é sempre uma bênção. Desprende momentaneamente o espírito que, então se renova, recompõe o equilíbrio orgânico e psíquico, estimulando as forças gastas a se refazerem.

   A trama ultriz da perseguição espiritual apertava as teias que cingiam o invigilante criminoso às suas malhas.

   No leito fofo e macio, Girólamo estremece. Parcialmente livre pelo desprendimento através do sono natural, seu espírito reencontra o duque, que o aguarda na Esfera Imortal. Vencido pelo abatimento do cansaço, a princípio não tem noção exacta do que ocorre, naquele estado. Arrastado, porém, pela vítima, tornada sobrestante ímpio, este aflige com os recursos possíveis o desafecto ignóbil. O espírito do senense somente recobra a consciência espiritual após muito esforço, pois que, intoxicado pelos vapores do álcool, ingerido na noite anterior, tem também o espírito embriagado. Vendo-se em frente ao tio, deixa-se acometer por incomparável pavor e tenta evadir-se, sem o conseguir. Fios invisíveis, poderosos, atam-no ao rival que, transformado em sicário desumano, zomba das suas aventuras e dos poucos valores de que podia dispor para a evasão. Sacudido pelo ódio que destila emanação venenosa, o duque arrasta o sobrinho inerme nas suas garras e leva-o às regiões tenebrosas do Mundo espiritual, em cujos redutos experimentava a resultante da loucura que o envilecia…

   O medo é verdugo impiedoso dos que lhe caem nas mãos. Produz vibrações especiais que geram sintonia com outras faixas na mesma dimensão de onda, produzindo o intercâmbio infeliz de forças deprimentes, congestionantes. À semelhança do ódio, aniquila os que o cultivam, desorganizando-os de dentro para fora. Alçapão traiçoeiro, abre-se, desvelando o fundo poço do desespero, que retém demoradamente as vítimas que colhe…

   Da mesma forma que na Terra enxameiam redutos de sombra e dor, vales imensos de desgraçados que se aglutinam por leis de afinidades, valhacoutos de criminosos que respiram a mesma comunidade de homizio, em vandalismo desregrado, soutos sombrios de marginalizados morais, devesas para os que se refastelam na luxúria e participam dos seus conúbios, encontram-se esparsas, pela Terra e na intimidade das suas furnas, nos lugares pantanosos e desérticos da periferia, comunidades espirituais infelizes, que se rebolcam em estertores agónicos resultantes da infelicidade que elaboraram, produzindo vibrações de peso específico, pelos crimes perpetuados, nos tecidos muito subtis da organização perispiritual. Sofrem, sem consolo; agridem-se, sem termo; esfacelam-se, sem consumar os objectivos; afogam-se em sorvedouros que não cessam de arrastar, sem colimar a inconsciência, o que seria misericordioso; ardem em rescaldos abrasadores, sem fim; ultrajam-se, em desconforto total; fogem para lugar nenhum, sem abandonarem os recintos de miserabilidade em que se entrechocam; atiram-se em despenhadeiros sem fundo, nos quais esperam ir de encontro a lajes que os despedacem, sem consegui-lo; asfixiam-se em fundos fossos de lama… e desejam morrer, morrer no sentido de apagarem a razão, destruírem a consciência, esquecerem que vivem, não logrando êxito. Nenhuma palavra descreve esses verdadeiros Infernos, que a imaginação religiosa limitou, mas que, no entanto, se multiplicam punitivos, aglutinando os acumpliciados com a impiedade e a perversão com os ali refugiados, em alongada desesperação. Quanto mais densa a carga mortífera de fluidos venenosos que hajam expedido, enquanto na Terra, mais se lhes agregam forças pesadas que os chumbam aos centros interiores do planeta, donde dificilmente se poderão libertar, senão quando soa o clarim da Divina Misericórdia e corações compadecidos, na Terra; abrem os braços da maternidade para recolherem esses náufragos das antigas excursões carnais, revestindo-os de novo corpo, onde se refugiam buscando, temporariamente, esquecimento, reconsiderando atitudes através de expiações acerbas, nas quais a doblez e a atrocidade se diluem nas células cerebrais, muitas vezes incapazes de construir o raciocínio, por limitadas, enfermas. Esses excruciados, quando podem desfrutar essa imerecida misericórdia do Pai Amantíssimo, escondem-se em corpos doentes e deformados, reaparecendo amolentados e sem meios de comunicação exterior, emparedados na concessão da matéria para fugirem dos comparsas que os tentam seguir, para darem longo curso a vindictas, vampirizações, conúbios amorosos molestos, açulamento das pungentes penas… Naquelas “trevas exteriores”, reportadas pela palavra do Mestre dos mestres, não penetra a luz da compaixão nem o alívio da caridade; não conhece a linfa que mitiga a sede, nem a côdea do pão que diminui a fome da aflição; estranha-se a piedade e não lucila a fímbria de qualquer claridade fraternal; tudo são dores que a imaginação humana não concebe e penas que nenhuma poesia trágica pode chorar… Incontáveis, são nutridos pelos pensamentos que permutam com a Terra e que de lá retornam, mantendo as fontes mentais dos homens abastecidas pela sua vazão peçonhenta. De lá, fluem subjugações espirituais, crimes que o despeito engendra, assaltos morais que a inveja articula, assacadilhas contra a honra e a esperança, vivificadas pelo egoísmo dos que se desgraçam… Chacinas são elaboradas e pavios de guerra são acesos, pois que, nesses multifários antros, os mais desnaturados e ferozes sobrepõem-se aos outros, criando governos desapiedados, hediondos, onde a justiça da força e da descompaixão aterroriza, esmaga com as patas do poder arbitrário. Dir-se-ia que os que ali se excruciam sofrem ao abandono, esquecidos das Soberanas Leis do Amor… No entanto, “cada um colherá aquilo que haja semeado” – ensinou o Cristo de Deus, o Justo e Manso Amigo dos homens. Escolhido por cada um o tipo de sementeira que melhor lhe compraz, este vê-se compulsoriamente obrigado a colher os frutos da livre eleição. Tais efúgios foram construídos pelas mentes em desalinho dos que chegavam da vida carnal, conduzidos pelo veículo da morte, e que despertavam para a realidade, buscando, então, evadir-se, esconder-se da consciência culpada e gerando vapores densos que os ocultavam, transformando-se em atmosfera própria para os engodos dos enganadores-enganados… Acumpliciados, muitos continuavam, depois da perda do organismo físico, elaborando as comunidades de aflição, por própria responsabilidade dos culpados. Mesmo assim, a vigilância do amor constantemente liberta, socorre e remove os que ali se retemperam para futuras lutas, pois que, em caso contrário, com as doses elevadas das lancinantes cruezas de que se fazem objecto, se pudessem retornar ao convívio dos homens, imediatamente, destruí-las-iam, tal a voragem primitiva de que se tornaram portadores. A Sabedoria Divina os cerceia, unindo-os pelo padrão do mesmo crime, para que entre eles, que se conhecem, praticantes das mesmas abjecções, experimentem o travo do exílio e, posteriormente, lampeje o desejo de tudo esquecer, para recomeçar, credenciando-os, assim, a novas experiências.
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 2 de 4, 23º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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