Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 23 de dezembro de 2012

Inquietações Primaveris~


A Heróica Pancada (II)

Um cidadão ilustrado, diplomado e doutorado, que aceita ao mesmo tempo os dogmas absurdos de uma igreja e os princípios racionais da Ciência, mostra desconhecer o princípio de contradição, da lógica, em que duas coisas não podem ser, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, ambas verdadeiras. Esse cidadão, por mais honesto que seja, sofre de uma falha mental no seu raciocínio, produzida por interferência de elementos efectivos e exacerbados na sua mundividência. Toda a sua cultura, todos os seus títulos, toda a sua fama nos meios sócio-culturais não podem salvá-lo da condenação intelectual a que se destina e da ingenuidade infantil a que se entrega no plano filosófico. Ou aceitamos a verdade científica demonstrada e provada do nosso tempo, com suas perspectivas abertas para o amanhã, ou nos inscrevemos nas fileiras sem fim dos retrógrados, tentando tapar inutilmente o sol com a peneira.

O amor à verdade é intransigente, porque a verdade é uma só. Os que sustentam o refrão ignorante da verdade de cada um, simplesmente revelam não conhecer a verdade e suas exigências.

A Educação para a Morte só pode basear-se na Verdade Única, provada com exclusão total das verdades fabricadas pelos interesses humanos ou pelo comodismo dos que nada buscam e por isso nada sabem. O homem educado na Verdade não usa as máscaras da mentira convencional nem pode ser um sistemático. A paixão da verdade enjeita toda a mentira e o faz lembrar os versos de Tobias Barreto, aplicando-os ao campo incruento das batalhas pelo Futuro:

Quando se sente bater
no peito heróica pancada,
deixa-se a folha dobrada
enquanto se vai morrer

A intuição desses versos supera as exigências formais da poética para inscrevê-los na realidade viva de uma existência humana voltada para a transcendência. Quando a verdade é ferida, ou simplesmente tocada por dedos impuros, aquele que a ama em termos de razão fecha o livro de seus estudos e pesquisas para morrer por ela, se necessário. Mas, entregando o cadáver à Terra, a que ele de facto pertence, ressuscita em seu corpo espiritual e volta aos estudos subitamente interrompidos. A reencarnação lhe permitirá, até mesmo, retomar na própria Terra, em outro corpo carnal regido pelo seu mesmo corpo espiritual, os trabalhos que nela deixou. A morte não é um esqueleto, com sua caveira de olhos esburacados e um sabre sinistro nos ombros, como a figuraram desenhadores e pintores de outros tempos. Sua imagem real, liricamente cantada pelo poeta Rabindraná Taggore, é a de uma noiva espiritual, coroada de flores, que nos recebe nos portais da Eternidade para as núpcias do Infinito. Aqueles que assim a concebem não a temem nunca, nem desejam precipitar a sua chegada, pois sabem que ela é a mensageira da Sabedoria, que vem nos buscar após o labor fecundo e fiel nos campos da Terra.

“Vem, ó Morte, quando chegar a minha hora, envolver-me em tuas guirlandas floridas” – exclamava Taggore num dos seus poemas-canção, já velho e cansado, mas com seus olhos serenos reflectindo entre as inquietações humanas a luz das estrelas distantes.

Se conseguirmos encarar a morte com essa compreensão e esse lirismo puro, desprovido dos excessos mundanos, saberemos também transmitir aos outros, e especialmente aos que nos amam, a verdadeira Educação para a Morte.

A Verdade, o Amor e a Justiça formam a tríade básica dessa nova forma educacional que pode e deve salvar o mundo de sua perdição na loucura das ambições desmedidas. Essa tríade expulsará da Terra os espantalhos do Ódio, do Medo, da Violência e da Maldade, que fazem o homem retornar constantemente à animalidade primitiva. Então não pensaremos mais em fugir para a Luz e de lá, como júpiteres de opereta, atirarmos para o planeta que nos abrigou no processo evolutivo os raios da nossa ferocidade. A Astronáutica se libertará de suas implicações bélicas e os satélites espiões das grandes potências infernais desaparecerão para sempre. Não somos os herdeiros do Diabo, esse pobre anjo decaído das lendas piedosas, que nos lança na impiedade. Somos filhos e herdeiros de Deus, a Consciência Criadora que não nos edificou para a hipocrisia, mas para a Verdade, a Justiça e o Amor.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, A Heróica Pancada 2 de 2, 11º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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