Um Discurso Palingenésico para Materialistas e Ateus ~
Depois de um jantar oferecido por Victor Hugo a amigos seus,
foi ele convidado a expor os seus pensamentos. Entre os comensais
encontravam-se ateus, agnósticos e materialistas, mas, apesar disto o
poeta derramou o perfume poético e filosófico de suas ideias espirituais. Como
sempre as suas asas de águia se abriram por cima de todos e de sua boca
brotaram os mais excelsos conceitos, que foram reconhecidos pelo ilustre poeta Arsenio Houssaye (i).
O autor de Os Miseráveis respondeu assim ao convite:
"Quem pode dizer-nos que eu não volte a encontrar-me
nos séculos futuros? Shakespeare escreveu:
'A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez'. Poderia ter dito pela
milésima vez. Porque não há século pelo qual eu não veja passar a minha sombra.
"Vós não acreditais nas personalidades moventes,
quer dizer, nas reencarnações, com o pretexto de que não recordais nada de
vossas existências passadas, mas como as lembranças dos séculos desvanecidos
poderiam estar impressas em vós quando não vos recordais nada das mil e uma
cenas de vossa vida presente? Desde 1802 hei-de ter tido em mim dez Victor
Hugo! Creis vós que me lembro de todas as acções e de todos os seus
pensamentos?
"Quando houver atravessado o túmulo para voltar a
encontrar outra luz, todos esses Victor Hugo me serão um pouco estranhos, mas
esta será sempre a mesma alma!
"Sinto em mim toda uma vida nova, toda uma vida futura;
sou como a selva que muitas vezes foi derrubada; os jovens rebentos são cada
vez mais fortes e vivazes. Eu subo, subo, subo até ao infinito. Tudo é radiante à
minha frente, a terra me dá a sua seiva generosa, mas o céu me ilumina com o
reflexo dos mundos entrevistos.
"Dizeis vós que a alma é a expressão das forças
corporais: por que então a minha alma é mais luminosa quando as forças
corporais irão já me abandonar? O inverno está sobre a minha cabeça, a
primavera está na minha alma; aspiro aqui nesta hora às lilases e às rosas como
se tivesse vinte anos. À medida que me aproximo da velhice, melhor escuto em
meu redor as imortais sinfonias dos mundos que me chamam. É
maravilhoso e sensível. É um conto de fadas, mas é uma história.
''Faz meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em
verso, história e filosofia, drama, novela, legendas, sátira, ode, canção; de
tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que
é meu. Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: ''terminei a
minha jornada!" e não "terminei a minha vida". A minha jornada
recomeçará no outro dia, de manhã. O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma
avenida, que se fecha no crepúsculo e volta a abrir-se na aurora.
"Se eu não perco um minuto é porque amo este mundo
como a uma pátria, porque a verdade me atormenta, como atormentou Voltaire, esse deus humano. A
minha obra não é mais do que um começo; meu monumento apenas saiu da terra;
quisera eu vê-lo subir ainda; subir sempre. A sede de infinito prova o
infinito. Que dizeis vós, senhores ateus?
"Escuta-me. O homem não é mais do que um exemplar de
Deus infinitamente pequeno, a edição em 32 do in-fólio gigantesco, mas o mesmo
livro. Glória inaudita para o homem! Eu sou o homem, eu, uma partícula
invisível, uma gota no oceano, um grão de areia na praia. Contudo, pequeno que
sou, sinto-me deus porque também desenvolvo o caos que está em mim. Eu
faço livros – quer dizer, sonhos – que são os mundos. Oh!
falo sem orgulho porque já não tenho mais vaidade que a formiga que edificou a
Babilónia, nem vaidade como o menor dos pássaros, que canta no coro universal.
"Eu não sou nada. Jaz aqui Victor Hugo, um abismo, um
eco que passa, uma nuvem que foi, uma onda que morre na praia. Eu não sou nada, mas
deixa-me continuar a minha obra começada; deixa-me subir de século em século em
todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as
angústias. Quem vos disse que um dia, depois de milhares de ascensões, não
haveria eu, como todos os homens de boa vontade, conquistado um posto de
ministro no supremo conselho desse adorável tirano que se chama
Deus''.
Como vemos, Victor Hugo falou de personalidades moventes, quer
dizer, de seres dinâmicos que, sobrepujando as trevas do sepulcro, avançam para
o verdadeiro Ser, para a aquisição da soberana personalidade
espiritual. Essas personalidades moventes assinaladas pelo
poeta representam a evolução palingenésica do espírito que, como
vemos, constitui a base de sua obra poética e filosófica.
Reconhece-se ele mesmo uma série de Victor Hugo,
que vem ascendendo através da história espiritual do Ser. A perene evolução do
seu Espírito aproximou-o de Deus até vencer as trevas do nada e da morte. Esta
catarse não foi experimentada por Jean-Paul Sartre e
o existencialismo ateu que ele encabeça, pois só o Espírito como
entidade palingenésica poderá dar ao homem moderno o verdadeiro
existencialismo: a existência baseada nas vidas sucessivas da alma.
Frente ao nada, Victor Hugo proclamou a vida eterna; frente
ao túmulo, aceitou a revelação mediúnica dos Espíritos, cuja valorização
filosófica e religiosa se encontra na obra ''O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec.
De facto, o poeta das grandes iluminações espirituais era
espírita porque não pôde ser um espiritualista sem bases reais nem mediúnicas.
Foi espírita porque comprovou que a morte não aniquila o homem, cujo espírito
imortal e divino é quem rege os processos do mundo material. Sentiu a presença
dos mortos como uma protecção e inspiração que eleva e transforma a condição
humana. Rebateu o mundo estático e fixo para aceitar a filosofia da vida
universal, concebendo que almas e mundos se enlaçam dialécticamente à causa da
lei da reencarnação a que tudo está submetido.
Victor Hugo foi o gigante da visões cósmicas, o poeta dos
salmos e odes que igualaram as mais belas páginas dos profetas bíblicos. Tinha
no seu espírito a poesia e o saber da filosofia espírita. Sentiu de forma
ampla os postulados da ciência da alma em relação com a ciência do céu. Foi
assim que compreendeu que o ser passa de um mundo a outro mediante vidas e
mortes sucessivas, para se transformar num colaborador do Plano Divino.
Do pensamento filosófico e poético de Victor Hugo se deduz
que não haverá autêntico espiritualismo sem as bases mediúnicas do
Espiritismo. Toda a verdadeira concepção espiritualista deverá assentar-se
sobre a concepção revelada pelo génio espiritual e religioso do mundo
invisível. Para o poeta, as manifestações mediúnicas não eram o resultado de
sombras larvais, de resíduos psíquicos do ser nem de sedutores demónios. As
manifestações, para Victor Hugo, eram mensagens dos mundos imateriais
destinadas a penetrar na natureza humana para iluminá-la pelo amor e pela
beleza.
No seu país, outro génio poético das vidas sucessivas foi Alfonso de Lamartine,
que cantou a concepção da reencarnação da alma. A história espiritual que anima
os seus dois livros - A queda de um anjo e Jocelyn -
está entretecida pelo amor entre dois seres que se buscam através dos tempos.
Lamartine, na sua obra Uma viagem ao Oriente, revela as
reminiscências palingenésicas de passado distante. Disse assim num dos seus
capítulos: "Quando visitei a Judeia, não tinha nas mãos nem a Bíblia nem
mapas, nada que me servisse de indicação de lugares, sequer uma pessoa capaz de
me dar o nome actual dos lugares nem o antigo dos vales e montanhas. Apesar
disso, reconheci imediatamente o Vale de Terebinto e o campo de batalha de
Saul. Quando fomos ao convento, os padres me confirmaram a exactidão de
minhas previsões. Os meus companheiros ficaram admirados e apenas davam crédito
a isso.
"Em Sephora, designei com o dedo e mencionei pelo nome
uma colina coroada por um castelo arruinado, como o provável lugar do
nascimento de Maria. No dia
seguinte, ao pé de uma montanha árida, reconheci o túmulo dos macabeus, no que disse a
verdade sem o saber. Exceptuando os vales do Líbano, não tenho encontrado na
Judeia um lugar, uma coisa que não fosse para mim como uma recordação.
"Temos vivido, pois, duas vezes ou mil? Nossa memória
não é quiçá mais que uma imagem adormecida, que o sopro de Deus faz
reanimar" (ii). Victor Hugo e Alfonso de Lamartine coincidem
nesta concepção palingenésica do ser. Ambos sentiam ''misteriosos
estremecimentos'' ao encontrarem-se frente a ruínas antigas; percebiam como a
sombra de "outra sombra" se projectava sobre o presente. De facto,
estes génios da gaia ciência somente pela ideia da pré-existência das almas
puderam alcançar tão alto nível lírico e religioso. Isto nos mostra que a
criação poética voltará às suas verdadeiras fontes quando o poeta se reconhecer
como um ser que nasce, morre e renasce. Em suma, a poesia palingenésica
será o que despertará a alma encarnada de seu sono terreno e que lhe fará
recordar as suas vidas anteriores entretecidas de misteriosas longitudes
espirituais.
/...
(i) Suzanne Misset-Hopes: Presença de Victor Hugo, Ed Amoure Vie, Bugnolet (Sense,
França). N. do Autor.
(ii) Citado por Petit de
Juleville em sua Histoire de la literature française, t. VII. N. do
Autor.
Humberto
Mariotti, Victor Hugo Espírita, UM DISCURSO PALINGENÉSICO PARA
MATERIALISTAS E ATEUS, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca,
pintura de Anne-Louis
GIRODET-TRIOSON)
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