Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 7 de agosto de 2011

A sobrevivência de uma parte do ser

“  Desde que o céu védico foi concebido qual morada divina habitável pelo ser humano, posta se achou a questão de se saber como poderia o homem “elevar-se tão alto” e como, dotado de faculdades restritas, seria “capaz de viver uma vida celeste sem fim”. Fora possível que o corpo humano, tão fortemente ligado à terra, levantando voo, tornado leve como uma nuvem, atravessasse o espaço para ir ter, por si mesmo, à maravilhosa cidade dos deuses? Necessário seria que um milagre se produzisse. Ora, esse milagre jamais visivelmente se produziu. Dar-se-ia, então, que a morada divina ainda estivesse sem habitantes? A não ser mediante um prodígio, que corpo físico pode perder o seu próprio peso? Desse mistério, desse pensamento vago, nasceu, de certo modo, a preocupação positiva dos destinos da matéria após a morte, da sobrevivência de uma parte do ser. Essa a mais antiga explicação que se conhece daquele misterioso além.

   Abatido pela morte, o corpo humano se desfaz por inteiro nos elementos que participaram da sua formação. Os raios do olhar, matéria luminosa, o Sol os reabsorve; a respiração, tomada aos ares, a estes volve; o sangue, seiva universal, vai vivificar as plantas; os músculos e os ossos, reduzidos a pó, tornam-se húmus. “O olho volta para o Sol; o respiro volta para Vayú; o céu e a terra recebem o que lhes é devido; as águas e as plantas retomam as partes do corpo humano que lhes pertencem.” O cadáver do homem se dispersa. As matérias que compunham o corpo vivo, privadas do calor vital, restituídas ao Grande Todo, servirão à formação de outros corpos. Nada se perdeu, nada o céu tomou para si.”

   Entretanto, o ária que morreu santamente receberá a sua recompensa: elevar-se-á às alturas inacessíveis; gozará da sua glorificação. Como será isso? Assim: a pele nada mais é do que o invólucro do corpo e, quando Agni, o deus quente,  abandona o moribundo, respeita o invólucro corpóreo, pele e músculos. As carnes, debaixo da pele, são apenas matérias espessas, grosseiras, que constituem segundo envoltório destinado ao trabalho, sujeito a funções determinadas. Sob esse duplo envoltório, da pele e do corpo, há o homem verdadeiro, o homem puro, o homem propriamente dito, emanação divina, susceptível de voltar para os deuses, como o raio de luz volta para o Sol, a respiração para o ar, a carne para a terra. Depois da morte, essa alma, revestida de um novo corpo, luminosa névoa resplandecente, de forma brilhante, “cujo próprio brilho a furta à fraca visão dos vivos”, é transportada à morada divina.

   Se o deus ficou satisfeito com as oferendas do ária morto, vem, ele próprio, dar-lhe o “invólucro luminoso” com que a alma será transportada. Um hino exprime sumariamente a mesma ideia, sob a forma de uma prece:

   “Desdobra, ó Deus, os teus esplendores e dá assim ao morto o novo corpo em que a alma será transportada, segundo a tua vontade.” 


GABRIEL DELANNE in A Alma é Imortal, Primeira parte A observação, Capítulo I Golpe de vista histórico – As crenças antigas (3 de 5)

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