Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


1. O DUQUE DI BICCI DI M.
…/

   Notificado do agravamento da enfermidade do tio, que resultara do funesto acon-tecimento, chegara dias antes, aparentando o desejo de ser útil, planeando, todavia inteirar-se de todas as ocorrências a fim de levar a cabo maldita trama

que lhe inquietava a mente desde o falecimento de Dona Ângela. Desse modo, através da perspicácia de que era capaz, e pelo suborno, conquistou os servos e o notário da cidade, graças à impossibilidade de lucidez do Senhor di Bicci, assumindo responsabilidades e tomando providências com zelo falso, simulando o interesse de que o seu protector recebesse todas as homenagens de que se fazia credor na última jornada, agora encerrada com a desencarnação.

   O clã, que em anos idos restabelecera a grandeza da Toscana, principalmente em Florença, Siena e Pisa, sob as últimas vicissitudes governamentais caíra em desprestígio, desaparecendo quase, paulatinamente. O próprio Senhor di Bicci possuía somente como herdeiros directos os filhos e, depois destes, Girólamo, a quem adotara anos antes. A imensa herdade, no entanto, representava poderosa fortuna e o tesouro da família somava expressivo e elevado valor, por muitos cobiçado.

   Girólamo sabia-se antipático ao nobre benfeitor, que apenas o suportava, financiando-lhe os estudos em memória da esposa idolatrada. Deserdara-o quase, se considerarmos a hábil maneira como dispusera as suas vontades e posses no testamento.

   Através de ardis bem urdidos, algum tempo antes o rapaz soubera das últimas disposições regulares que o tio introduzira no legado, graças à indiscrição do notário, que era encarregado dos negócios da casa e fora regiamente recompensado para a delação. Desde essa oportunidade, rebelara-se interiormente, nutrido pelo protector inamistosa atitude, que chegava a caracterizar-se pelo ácido do ódio íntimo. Disfarçava-o, é certo, no entanto, sabia-se intolerável. A antipatia, diga-se com justiça, era recíproca. Incapaz de agasalhar sentimentos de gratidão, nutria-se da surda cólera, que conseguia disfarçar com habilidade. Os primos pequeninos, em consequência, eram para o seu espírito, insidioso rivais que necessitavam desaparecer, logo que lhe sorrisse a boa Fotuna…

   A morte do Senhor di Bicci surpreendia-o, portanto, agradavelmente, pois que lhe favorecia pôr em prática o plano já em execução paulatina, que poderia ter o seu desfecho por aqueles dias. Significava-lhe o ambicioso ensejo do poder.

   Desde que a tia desencarnada, maliciosamente espalhara que o recolhimento do Senhor duque se devia aos encantos de Lúcia, a dama de companhia da Senhora Ângela, que no vigor dos trinta anos repelia continuamente os candidatos ao matrimónio, dizendo-se fiel servidora da prole Bicci di M. O próprio duque várias vezes lhe conseguira excelentes candidatos, que foram sumariamente recusados. Como gratidão a tão elevado devotamento, dizia-se, fora contemplada no testamento com soma vultosa, porém, o favor através de outros favores menos dignos, asseverava o jovem.

   A calúnia, cavilosamente preparada, espalhava-se entre as pessoas levianas, tendo-se em vista a sua procedência, e não mais à boca pequena se falava da donzela e do seu amo, desmoralizando-o vilmente.

   A calúnia possui o miraculoso elixir de agradar aos frívolos, sendo a arma poderosa dos cobardes, com duração de pequeno porte, todavia.

   Muitos sussurravam que Lúcia substituíra a senhora do palácio, embora a altivez e sobriedade da moça que, por imposição do duque e graças à sua ascendência moral, dirigia, compreensivelmente, os empregados e os lacaios sujeitos ao seu amádigo. Atarefada, desdobrando-se entre os deveres para com o senhor que a respeitava, as crianças que muito a amavam e os serviçais, não dispunha de tempo para as frivolidades em voga nem os mexericos que lhe chegavam ao conhecimento, embora tais notícias a mortificassem interiormente. Estranha e poderosa afeição ligava-a aos membros do solar. Pelo amo e seus filhos experimentava profunda dedicação e por isso tentava preencher, mediante a bondade e o dever rectamente cumprido, a lacuna decorrente do desaparecimento da senhora.

   Esguia, morena e grácil, de cabeleira negra e abundante, era o espécime perfeito descendente dos antigos etruscos que um dia dominaram aquelas terras e em cujo dialecto conseguia expressar-se. Delicada, inspirava confiança e, sensível, tranquilizava com a sua presença formosa.

   Nos últimos tempos, nas noites em que a insónia a vencia, deixava-se mergulhar em profundos cismares, interrogando os céus estrelados, como que dominada por presságios atormentadores. Nessas oportunidades, parecia vislumbrar, à meia claridade dos círios que iluminavam o quarto em que dormia com as crianças, ou entre os prateados raios da lua plena, a figura soberana da duquesa, que se lhe afigurava mais bela, mais encantadora. Embora o esplendor da face da senhora, notava-lhe uma expressão de melancolia no sorriso sereno, conquanto triste, que esta lhe endereçava.

   Nesses momentos, dominada por ignotos receios, ajoelhava-se aos pés do Crucificado, que havia preso à parede da alcova, e procedia aos recitativos memorizados a que se acostumara, suplicando protecção, aspirando amparo, vindo a tranquilizar-se somente depois de muitas aflições interiores.

   Identificando em Girólamo estranha antipatia, sabia-o responsável pelas infâmias e pressentia, quando o moço se acercava do burgo, sombrios prenúncios constrangedores. Afável, tratava-o com respeito e discrição, aparentando ignorar-lhe as acusações descabidas, quanto injustas.

   Dom Giovanni, por sua vez, recebia-o de raro em raro, evitando com delicadeza sua presença, por lhe parecer esta perniciosa aos filhos, embora o moço tivesse completado apenas vinte e dois anos. Era como se macabro conciliábulo de estranhos sentimentos constrangesse as pessoas ante o atormentado e leviano rapaz.
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 1. O DUQUE DI BICCI DI M. (fragmento 2 de 3) psicografia de DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L' âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

Sem comentários: