Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a | providência

   A Providência é a solicitude de Deus para com as suas criaturas. Deus está em todo o lado, vê tudo, preside a tudo, mesmo às mais pequenas coisas: é nisto que consiste a acção providencial.

«Como é que Deus, tão grande, tão poderoso, tão superior a tudo, se pode imiscuir nos pormenores ínfimos, preocupar-se com os mais pequenos actos e os mais pequenos pensamentos de cada indivíduo? É esta a questão que o incrédulo levanta, de onde conclui que, ao admitir a existência de Deus, a sua acção não deve estender-se senão às leis gerais do Universo; que o Universo funciona eternamente em virtude destas leis a que cada criatura está submetida na sua esfera de actividade, sem que seja necessário o concurso incessante da Providência.»

   No estado actual de inferioridade, os homens só dificilmente podem compreender Deus infinito, porque eles próprios são restringidos e limitados; é por isso que o imaginam restringido e limitado como eles; imaginam-no como um ser circunscrito e constroem-lhe uma imagem à sua imagem. Os nossos quadros que o representam com traços humanos não contribuem pouco para manter este erro no espírito das massas, que adoram nele a forma mais do que o pensamento. É para a grande maioria um soberano poderoso num trono inacessível, perdido na imensidão dos céus, e, porque as faculdades e as suas percepções são limitadas, não percebem que Deus possa e se digne intervir directamente nas pequenas coisas.

   Na situação de impotência em que o homem se encontra para perceber a essência da Divindade, só pode ter uma ideia aproximada com a ajuda de comparações necessariamente muito imperfeitas, mas que podem pelo menos mostrar-lhe a possibilidade do que, à primeira impressão, lhe parece impossível.

   Suponhamos um fluido suficientemente subtil para penetrar todos os corpos; este fluido, não sendo inteligente, age mecanicamente através das forças materiais. Mas, se supusermos esse fluido dotado de inteligência, de faculdades perceptivas e sensitivas, ele agirá já não cegamente mas com discernimento, com vontade e liberdade; ele verá, ouvirá e sentirá.

   As propriedades do fluido do perespírito podem dar-nos uma ideia. Ele em si não é inteligente, dado que é matéria, mas é o veículo do pensamento, das sensações e das percepções do Espírito.

   O fluído do perespírito não é o pensamento do Espírito, mas o agente intermediário deste pensamento: como é ele que o transmite, está de certa maneira impregnado dele e, dada a nossa impossibilidade de o isolar, parece fazer um só com o fluido, tal como o som parece fazer um só com o ar, de maneira a podermos, por assim dizer, materializa-lo. Tal como dizemos que o ar se torna sonoro, poderíamos, tomando o efeito pela causa, dizer que o fluido se torna inteligente.

   Quer seja assim ou não o pensamento de Deus, isto é, quer aja directamente ou por intermédio de um fluido para facilidade da nossa inteligência, representemo-lo sob a forma concreta de um fluido inteligente preenchendo o Universo infinito, penetrando todas as partes da Criação: toda a natureza está mergulhada no fluido divino; ora, devido ao princípio de que as partes de um todo são da mesma natureza, possuem as mesmas propriedades que o todo, se nos podemos exprimir assim. Possuindo o pensamento os atributos essenciais da Divindade e estando este fluido em todo o lado, tudo está submetido à sua acção inteligente, à sua providência, à sua solicitude; nem um ser, por muito ínfimo que o julguemos, deixa de estar de algum modo saturado dele. Estamos assim constantemente na presença da Divindade; não podemos esconder do seu olhar nem uma só das nossas acções; o nosso pensamento está em constante contacto com o pensamento dele e é com razão que dizemos que Deus lê no mais recôndito do nosso coração. Estamos nele tal como ele está em nós, segundo o dizer do Cristo.

   Para estender a sua solicitude a todos as criaturas, Deus não tem portanto necessidade de descer o seu olhar do alto da imensidade; as nossas orações, para serem ouvidas por ele, não precisam de atravessar o espaço nem de serem ditas em voz tonitruante porque, constantemente a nosso lado os nossos pensamentos repercutem-se nele. Os nossos pensamentos são como o som de um sino que faz vibrar todas as moléculas do ar ambiente.

   Longe de nós a ideia de materializar a Divindade; a imagem dum fluido universal inteligente não passa evidentemente de uma comparação, mas própria para dar uma ideia mais correcta de Deus que os quadros que o representam sob a figura humana; tem por objectivo fazer entender a possibilidade de Deus estar em todo o lado e ocupar-se de tudo.

   Temos constantemente debaixo dos olhos um exemplo que nos pode dar uma ideia da maneira como a vontade de Deus se pode exercer sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, consequentemente, como as impressões mais subtis da nossa alma chegam até ele. Foi retirado duma instrução dada por um Espírito a este respeito.

«O homem é um mundo cujo dirigente é o Espírito e o corpo o princípio dirigido. Neste universo, o corpo representará uma criação em que o Espírito será Deus (percebereis que não se pode tratar aqui mais que de uma analogia e não de uma identidade). Os membros deste corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os seus músculos, os seus nervos, as suas articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim podemos dizer, localizadas num sítio especial do corpo; apesar de o número das suas partes constituintes, de natureza tão variada e tão diferente, ser considerável, não oferecer no entanto dúvidas a ninguém que não pode produzir movimentos, que uma qualquer impressão não pode dar-se num sítio particular sem que o Espírito tenha disso consciência. Há sensações diversas em vários sítios simultaneamente? O espírito sente-as todas, percebe-as, analisa-as, atribui a cada uma a sua causa e o seu lugar de acção por intermédio do fluido do perespírito.

»Um fenómeno análogo dá-se entre a Criação de Deus. Deus está em todo o lado no corpo; como os elementos da Criação estão em contacto com ele, tal como todas as células do corpo humano estão em contacto imediato com o ser espiritual; não há portanto razão nenhuma para que fenómenos da mesma ordem não se reproduzam da mesma maneira, num e noutro caso.

»Um membro agita-se: o Espírito sente; uma criatura pensa: Deus sabe-o. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em movimento: o Espírito sente cada manifestação, distingue-a e localiza-a. As diferentes criações agitam-se, pensam, agem de forma diversa e Deus sabe tudo o que se passa, atribuindo a cada uma o que lhe é particular.

»Podemos deduzir daqui igualmente a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre todos os seres de um mundo e, enfim, entre as criações e o criador.»

                                                                                                           Quinemant, Sociedade Espírita de Paris, 1867


   Percebemos o efeito já é muito; do efeito passamos à causa e avaliamos a sua dimensão pela dimensão do efeito; mas a sua essência íntima escapa-nos, tal como a da causa de uma quantidade de fenómenos. Conhecemos os efeitos da electricidade, do calor, da luz, da gravitação; calculamo-los e, no entanto, ignoramos a natureza íntima do princípio que os produz. Será então mais racional negar o princípio divino porque não o compreendemos?

   Nada impede que se admita, para o princípio da inteligência soberana, um centro de acção, um fogo principal irradiante sem parar, inundando o Universo com os seus eflúvios, tal como o Sol com a sua luz. Mas onde fica essa fogueira? É o que ninguém sabe dizer. É provável que não esteja fixado num ponto determinado, como não o está a sua acção, e que percorra constantemente as regiões do espaço sem barreiras. Se simples Espíritos têm o dom da ubiquidade, esta faculdade, em Deus, não deve ter limites. Enchendo Deus o Universo, poder-se-ia ainda admitir como hipótese que esta fogueira não tenha necessidade de se deslocar e que se forme em todos os pontos onde a soberana vontade considere propositado produzi-la; daí podermos dizer que está em todo o lado e em lado nenhum.

   Perante estes problemas insondáveis, a nossa razão deve tornar-se humilde. Deus existe; não podemos duvidar; é infinitamente justo e bom: é a sua essência; a sua solicitude estende-se a tudo: compreendemo-lo; só pode portanto querer o nosso bem e é por isso que devemos ter confiança nele: é isto o essencial. Quanto ao resto, esperemos até sermos dignos de o compreender.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus – A Providência (de 20 a 30) 17º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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