Os Meios de Fuga | |
Os primeiros homens da cosmogonia mítica da Grécia Antiga,
segundo
O Banquete de Platão, eram os
hermafroditas, criaturas duplas, homens e mulheres ligados pelas costas, que
andavam girando na agilidade de suas quatro pernas.
Constituíam a unidade
humana completa, o casal fundido numa unidade biológica de grande potência.
Esses seres estranhos foram separados por Zeus num golpe de espada, quando
tentavam invadir o Monte Olimpo, subindo em giros rápidos pelas suas encostas,
a fim de destronar os deuses e assumir o domínio do Mundo.
Daí resultou esta
humanidade fragmentária a que pertencemos e que hoje pretende repetir a façanha
mitológica, invertendo-a.
Não querem roubar o fogo do Céu, como Prometeu, mas levar
ao Céu o fogo da Terra e com ele incendiar o Cosmos.
No Jardim das Epérides
viviam as Górgoras, mulheres terrivelmente feias e dotadas de misteriosos
poderes. Medusa era a principal delas, dotada de uma cabeleira de serpentes.
Perseu matou-a e do seu sangue nasceu Pégaso, o cavalo alado que se lançou ao
Infinito.
Esses arquétipos gregos continuam activos na dinâmica do inconsciente
colectivo de todos nós, como a impulsionar-nos na conquista do Infinito. Mas
esse delírio grego que figurava, como no mito de Pégaso, a dialéctica das
transformações espirituais, arrancando do sangue de Medusa o cavalo alado, não
desempenha mais esse papel, na aridez do pensamento imediatista em que o mundo
se perdeu.
A fealdade e a maldade das Górgoras estavam cercadas de flores e
esperanças.
A cabeleira de Medusa era feita de serpentes, mas o sangue que
pulsava em seu coração deu asas a Pégaso.
Nós, unidades separadas em metades
biológicas que não se encontram nem se fundem, pois desejam apenas o gozo de
prazeres efémeros e não a conjugação psico-biológica de alma e corpo, só
pensamos no Infinito em termos de finito pragmático.
Os meios de fuga se multiplicaram amesquinhando-se. Não
queremos nem mesmo fugir para Passárgada, pois não somos mais os amigos do Rei,
como no sonho do poeta.
A realidade terrena perdeu o encanto das belezas
naturais, destruídas pelo vandalismo inconsequente. Nosso anseio de
transcendência é apenas horizontal, voltado sistematicamente para a conquista
de prestígio social, dinheiro e poder temporal. Nessa linha rasteira de
ambições perecíveis, sem nenhum sentido espiritual, fugimos para a negação de
nós mesmos e rejeitamos a nossa essência divina, pois nos tornamos realmente
indignos dela.
O homem frustrado de Sartre transformou a morte, o túmulo e os vermes,
ou o pó impalpável das incinerações cadavéricas, em sua única herança possível.
As palavras alentadoras de Paulo: “Se nós somos filhos, somos, também, herdeiros
de Deus e co-herdeiros de Cristo” soam no vazio, no oco do mundo, que nem eco
produz.
Restaram em nossas mãos profanadoras apenas as heranças
animais: a violência assassina que é o meio normal de que as feras se servem
para afastar obstáculos do seu caminho; a astúcia da serpente para engolir e
digerir os adversários mais frágeis; a destruição dos bens alheios em proveito
próprio, no vampirismo desenfreado da selva social; a dominação arrogante dos
que não dispõem de forças para se defenderem; a mentira, a trapaça, a perfídia
de que os próprios selvagens se enojam, e que nós, os civilizados, transformamos
na alquimia da canalhice generalizada, em processos subtis de esperteza, que,
para vergonha do século e da espécie, consideramos provas de inteligência.
Nossos meios de fuga reduzem-se à covardia da fuga a nós mesmos.
“Onde todos andam de rastros – advertiu Ingenieros – ninguém
se atreve a andar em pé”. O panorama mundial da actualidade reduziu-se a um
espectáculo de rastejamento universal. Porque é preciso viver, acima de tudo
viver, pois só os materiais da vida terrena significam alguma coisa nas
aspirações terrenas. A existência, em
que o homem se afirma pela dignidade da consciência, pelo esforço constante de
superação de si mesmo, foi trocada em miúdos, em níqueis inflacionados, pelo
viver larvar do dia a dia rotineiro e da subserviência ao desvalor dos que
conquistaram os postos de comando na sociedade aviltada. Inteligências robustas
e promissoras esvaziam-se na consumação de si mesmas, servindo de maneira
humilhante a senhores ocasionais,que podem assegurar-lhes o falso prestígio de salários
altos e posições invejadas pela corja rastejante. Todos tremem de medo
e pavor ante a perspectiva de referência desairosa proferida por lábios
indignos. Todos os sentimentos nobres foram aviltados e os jovens aprendem, a coronhadas e bufos de brutamontes e primatas, que mais vale a boca calada e a
cabeça baixa do que o fim estúpido e definitivo nas torturas das prisões
infectadas. Porque a única verdade geralmente aceite é a do nada. Se o domínio
é da força e da violência, a covardia se transforma em regra de ouro que só os
tolos não aceitam. Tudo isso porque se ensinou às gerações sucessivas, através
de dois milénios, que o homem não é mais do que pó que em pó se reverterá. Os
sonhos do antigo Humanismo foram simples delírios de pensadores esquizofrénicos.
A ordem geral, que todos aceitam, é viver para si mesmo e mais ninguém.
/…
Herculano Pires, José – Educação
para a Morte, 5 Os Meios de Fuga 2 de 2, 9º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo,
pintura de William-Adolphe Bouguereau)
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