Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Inquietações Primaveris~

Os Meios de Fuga | |

Os primeiros homens da cosmogonia mítica da Grécia Antiga, segundo 
O Banquete de Platão, eram os hermafroditas, criaturas duplas, homens e mulheres ligados pelas costas, que andavam girando na agilidade de suas quatro pernas. 

Constituíam a unidade humana completa, o casal fundido numa unidade biológica de grande potência

Esses seres estranhos foram separados por Zeus num golpe de espada, quando tentavam invadir o Monte Olimpo, subindo em giros rápidos pelas suas encostas, a fim de destronar os deuses e assumir o domínio do Mundo. 

Daí resultou esta humanidade fragmentária a que pertencemos e que hoje pretende repetir a façanha mitológica, invertendo-a

Não querem roubar o fogo do Céu, como Prometeu, mas levar ao Céu o fogo da Terra e com ele incendiar o Cosmos. 

No Jardim das Epérides viviam as Górgoras, mulheres terrivelmente feias e dotadas de misteriosos poderes. Medusa era a principal delas, dotada de uma cabeleira de serpentes. Perseu matou-a e do seu sangue nasceu Pégaso, o cavalo alado que se lançou ao Infinito. 

Esses arquétipos gregos continuam activos na dinâmica do inconsciente colectivo de todos nós, como a impulsionar-nos na conquista do Infinito. Mas esse delírio grego que figurava, como no mito de Pégaso, a dialéctica das transformações espirituais, arrancando do sangue de Medusa o cavalo alado, não desempenha mais esse papel, na aridez do pensamento imediatista em que o mundo se perdeu

A fealdade e a maldade das Górgoras estavam cercadas de flores e esperanças

A cabeleira de Medusa era feita de serpentes, mas o sangue que pulsava em seu coração deu asas a Pégaso

Nós, unidades separadas em metades biológicas que não se encontram nem se fundem, pois desejam apenas o gozo de prazeres efémeros e não a conjugação psico-biológica de alma e corpo, só pensamos no Infinito em termos de finito pragmático.

Os meios de fuga se multiplicaram amesquinhando-se. Não queremos nem mesmo fugir para Passárgada, pois não somos mais os amigos do Rei, como no sonho do poeta. 

A realidade terrena perdeu o encanto das belezas naturais, destruídas pelo vandalismo inconsequente. Nosso anseio de transcendência é apenas horizontal, voltado sistematicamente para a conquista de prestígio social, dinheiro e poder temporal. Nessa linha rasteira de ambições perecíveis, sem nenhum sentido espiritual, fugimos para a negação de nós mesmos e rejeitamos a nossa essência divina, pois nos tornamos realmente indignos dela. 

O homem frustrado de Sartre transformou a morte, o túmulo e os vermes, ou o pó impalpável das incinerações cadavéricas, em sua única herança possível. As palavras alentadoras de Paulo: “Se nós somos filhos, somos, também, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo” soam no vazio, no oco do mundo, que nem eco produz.

Restaram em nossas mãos profanadoras apenas as heranças animais: a violência assassina que é o meio normal de que as feras se servem para afastar obstáculos do seu caminho; a astúcia da serpente para engolir e digerir os adversários mais frágeis; a destruição dos bens alheios em proveito próprio, no vampirismo desenfreado da selva social; a dominação arrogante dos que não dispõem de forças para se defenderem; a mentira, a trapaça, a perfídia de que os próprios selvagens se enojam, e que nós, os civilizados, transformamos na alquimia da canalhice generalizada, em processos subtis de esperteza, que, para vergonha do século e da espécie, consideramos provas de inteligência. Nossos meios de fuga reduzem-se à covardia da fuga a nós mesmos.

“Onde todos andam de rastros – advertiu Ingenieros – ninguém se atreve a andar em pé”. O panorama mundial da actualidade reduziu-se a um espectáculo de rastejamento universal. Porque é preciso viver, acima de tudo viver, pois só os materiais da vida terrena significam alguma coisa nas aspirações terrenas. A existência, em que o homem se afirma pela dignidade da consciência, pelo esforço constante de superação de si mesmo, foi trocada em miúdos, em níqueis inflacionados, pelo viver larvar do dia a dia rotineiro e da subserviência ao desvalor dos que conquistaram os postos de comando na sociedade aviltada. Inteligências robustas e promissoras esvaziam-se na consumação de si mesmas, servindo de maneira humilhante a senhores ocasionais,que podem assegurar-lhes o falso prestígio de salários altos e posições invejadas pela corja rastejante. Todos tremem de medo e pavor ante a perspectiva de referência desairosa proferida por lábios indignos. Todos os sentimentos nobres foram aviltados e os jovens aprendem, a coronhadas e bufos de brutamontes e primatas, que mais vale a boca calada e a cabeça baixa do que o fim estúpido e definitivo nas torturas das prisões infectadas. Porque a única verdade geralmente aceite é a do nada. Se o domínio é da força e da violência, a covardia se transforma em regra de ouro que só os tolos não aceitam. Tudo isso porque se ensinou às gerações sucessivas, através de dois milénios, que o homem não é mais do que pó que em pó se reverterá. Os sonhos do antigo Humanismo foram simples delírios de pensadores esquizofrénicos. A ordem geral, que todos aceitam, é viver para si mesmo e mais ninguém.
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Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 5 Os Meios de Fuga 2 de 2, 9º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

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