ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~
Sob a constrição do horror,
o corpo do jovem gorgoleja
semi-asfixiado, debate-se no pesadelo soez.
Inconsciente-
mente, procura
libertar-se de
tudo aquilo,
arrojando-se porta afora, em
busca do campo crestado,
que os animais vão atravessando em infrene correria. Tão pronto pensa em
fazê-lo, tem a sensação, ainda mais estranha, de que à porta ressuma a presença
do duque di Bicci, com mais feroz
aspecto, a impedir-lhe a evasão. Naquele antigo semblante de austeridade está insculpida, a
fogo, uma face de ódio que aparvalha, e dos olhos, antes amenos, que fitavam
com misericórdia a dor dos infelizes, chispas de violência crepitam, como
labaredas prestes a espraiarem-se em incêndio voraz.
Tentou gritar; a voz, porém, estava estragada na garganta ressequida.
Passaram-lhe pela mente, em estupor, todos os actos, minuciosamente, desde as primeiras articulações macabras, nos refolhos do espírito mesquinho, até a onda de crimes contínuos. Espavorido, o sinistro homicida sentiu-se morrer, desejando perecer, ter aniquilada a consciência. Não conseguia articular palavra.
Foi o senhor di Bicci quem arrebentou a torvação do momento:
– Não fugirás, Girólamo! Não tens mérito para morrer,
evadindo-te à minha justiça. Se é verdade que te não permitirei a vida, não te
concederei a morte. Terás alongada a existência, para penar e pagar, gota a
gota, todo o mal que fizeste e toda a loucura que vitalizas. Somos a tua sombra
e estaremos onde quer que a tua vibração peçonhenta denuncie a ignomínia da tua
passagem. Pensavas que as sombras do crime apagariam as pegadas do criminoso,
na noite do esquecimento? Ignoravas que ninguém tem o direito de matar, desde
que a ninguém é dado o direito de produzir a vida?! Se não te podemos impedir a
consumação dos objectivos macabros, não te permitiremos gozar o fruto na
colheita dos resultados. Não confiando na Justiça de Deus, e sonhando com o
poder da Terra, tornaste-nos teu juiz e teu verdugo, o ódio, o desejo da morte,
ansiarás pela inconsciência – tudo quanto temos desejado para nós mesmos, desde
que te ergueste como destruidor das minhas esperanças – e como não as tivemos
para os meus, por tua culpa, não as fruirás para ti, em razão da mesma culpa…
Como se desejasse imprimir, a ferro em brasa, aquele
encontro na mente do moço pávido, o vingador relanceou o olhar e apanhou
Assunta, num misto de ferocidade e demência, o infeliz duque blasonou:
– Supunhas que a mataste também. Como te enganas com a vida,
usurpador da existência! Desconheces que a destruição da roupa orgânica de
forma alguma extingue o ser, que continua desditoso ou feliz conforme o mereça?
A morte é mais cruel e indevassável
do que a vida. As mais funestas
narrativas não descrevem o que é atravessar as águas do Estige ou sofrer a presença das Parcas *|. Quando Átropos corta o fio da vida, como um rio perdido no infinito. Rebolcam-se em suas águas
lodacentas os que foram vencidos pela desgraça, como eu, atirado que me
encontro no fosso do ódio pelas tuas mãos criminosas, que deceparei, logo mais,
após fazer-te verter baga a baga o suor da desdita que me impuseste. A tua
comparsa – fita-a, reconheces? – sim, é Assunta, a traidora! –, jaz agora sob o
meu guante. Alcancei-a do lado de cá,
logo se libertou da matéria putrescível, na qual pretendeste apagá-la,
silenciando-lhe a cumplicidade. Surpreendida pelo teu punhal sega-vias, não há
palavras nem tintas que possam dizer o que lhe passou pelo infeliz espírito
expulso do corpo, ao império da tua impiedade e cobardia: os lábios selados, a
garganta hirta, os meios de comunicação impossibilitados de articulação e o cérebro
ricocheteado pelo assombroso, desejando bradar toda a alucinação… As dores
sobre-humanas, acompanhadas da surpresa, as amarras físicas vigorosas,
dominadoras, a noite da razão toda feita de incomensurável agonia, não, não as
podes entender, porque a águia desconhece as sensações da pomba estraçalhada
nas suas garras contraídas! Entenderás depois, logo mais, quando começarmos a
fazer justiça, como agora já compreende a víbora que te acompanhou no crime do
meu solar, ajudando-te e hominizando-se ao teu lado. Ninguém soube realmente o
que aconteceu, conforme supunhas. No entanto, eu lá estava, arrastado pela tua
mente odienta, que me exprobrava, arrancando-me do sepulcro onde eu me
encontrava em desalinho, para seguir contigo, estupidificado, pelo corredor
longo, escuro e, inerme, ver-te no assassínio dos meus filhos e Lúcia, indefesos
ante o abutre devorador…
A entidade, desferida, arquejante, babava.
O ódio é semente de destruição, que ressuda tóxico corrosivo
a aniquilar interiormente. Aqueles que são alcançados pelas suas nefandas e
morbíficas destilações de tal forma se impregnam que somente o mergulho em
novas formas carnais consegue diminuir a mortífera emanação. Desenvolvido no
homem, por processo de educação deficitária, desde a mais tenra infância, na
qual se injectam os germes do egoísmo, da prepotência, da vaidade, muito
facilmente medrarão os princípios da ira, que se transforma em rancor, logo
tenham desconsiderados seus propósitos inferiores. Em toda parte, os semens do ódio
se encontram latentes, considerando-se que na Terra, ainda, a força do instinto
predomina sobre as manifestações da inteligência e do sentimento, numa
conspiração formal contra a evolução do ser e sua consequente libertação das
amarras primitivas.
Enquanto predomina a natureza animal, em detrimento da
natureza espiritual, o homem se aventura na posse indébita dos valores transitórios
e promove a guerra, exteriorizando os princípios selvagens que ainda estão no
seu ser. A impiedade se manifesta desde cedo, nele, mediante a indiferença pela
dor do próximo e, se por acaso é convocado à justiça para sancionar os
criminosos, em defesa dos cidadãos probos e correctos, aplica a lei não como
correctivo e processo de reeducação, porém, na forma de punição e vingança,
como se a Justiça fosse exclusivamente punitiva e não processo rectificador de
educação e disciplina, em que o amor deve preponderar. A violência medra porque
encontra reciprocidade na atmosfera moral das criaturas. Quantas vezes, ante as
calamidades, as tragédias ou as injustiças de que alguns são alvo, cidadãos
pacatos se rebelam, dando vazão a sentimentos que já não se aceitam sequer nos bárbaros?!
Quantas pessoas de siso e educação se revelam vândalos, desde que estejam a sós
ou se acumpliciem em malta, instigados por nómadas que lhes açulam as
manifestações primárias?! Por essa razão, a paixão de qualquer natureza deve
ser motivo de disciplina pelo homem de bem. Nem a indiferença ante a aflição do
próximo, nem a exacerbação pelo sofrimento injusto. Moderação é a medida
preventiva para os estados que a patologia, nos estudos psicológicos, examina
como capítulo básico da degenerescência do homem. Quando rutilarem as morigerantes
lições do Cordeiro, na Terra, o ódio e seus sequazes baterão em retirada, dando
lugar ao clima de amor por Ele preconizado e vivido até à cruz.
Ante o torvo semblante do acusador, Girólamo respirava com
dificuldade, açoitado pelos tropéis das lembranças sinistras, que retornavam à
mente sobressaltada. Longe, porém, de arrepender-se ou justificar-se,
sintonizava com o ódio que o pai adoptivo destilava, sentindo-se
impossibilitado de selar-lhe os lábios em definitivo. De compleição moral pusilânime,
não tinha coragem de enfrentar a vítima, acostumado aos ardis criminosos nos
quais sempre se escondia. Por mais que desejasse libertar-se da constrição da
cena, não conseguia senão afundar-se ainda mais na angústia maceradora do
momento.
– Sei o que pensas, miserável! – vociferou, soturno e frio, o
adversário. – Ouço-te por processo que ignoro. Tua mente fala na minha e sei o
que desejarias perpetrar para silenciar-me, como tens feito com os infelizes
que tentam obstaculizar-te o avanço desregrado. É, porém, inútil. Não me
atingirás. Eu, sim, tenho-te nas mãos e te esganarei lentamente, como fizeste
aos meus, asfixiando-os com frieza calculada… Mas, ainda não acabei. Ouvirás agora
a tua parceira. Ela está do meu lado. Recebi-a depois da morte e submeti-a a
mim, considerando o ódio que agora também ela te devota. Escuta-a, bandido,
para que nunca mais esqueças…
Assunta, conquanto tivesse o aspecto de górgona, por
momentos lívida, por instantes rubra, escancarou a boca macilenta e, vencida
por dorida agonia, doestou:
– Por que me destroçaste a vida, quando a juventude me
sorria, infeliz?! Não te fui cômpar dócil e maleável, deixando-me arrastar à
hediondez do crime sob tua inspiração? Ao dar-te meu corpo, não selei contigo o
pacto de vida ou morte, oferecendo-te, também, minha alma, que ambos atiramos
na desgraça em que ora padeço?! Dá-me uma só razão para o homicídio que
perpetraste contra mim. Silenciar-me a voz, apagando-me da tua presença? Inditoso
e venal assassino. Eu te lamento, porque não te posso perdoar. Na tua sanha e
desfaçatez, ignoras Deus ou te supões maior do que Ele, para tomares nas tuas mãos
as vidas e destroçá-las, como se fossem brinquedos de que te podes utilizar
caprichosamente, para logo após arrojá-los no abandono do abismo?... E eu que
tanto te amei!
Lágrimas de fogo escorriam abundantemente pelo rosto
congestionado da facínora, colhida na rede da própria trama. Convulsiva, no
entanto, vociferou:
– Todo o amor que nutria por ti agora me consome em fornalha
de ódio vivo. O duque colheu-me e
vinga-se em mim. Rouba-me energias, vampiriza-me, deixando-me somente parcas
forças, para que eu as tome de ti, vampirizando-te, também, já que estamos tão
vinculados, a fim de passá-las a ele… Nada sabes da morte, corretor da destruição. Locupletam-se aqui, em hediondos conúbios, os desventurados como nós. Fazes parte,
já, dos que aqui se encontram, não
obstante ainda estejas fora destes sítios. Experimentarás o exaurir das
energias, o deperecer inevitável, e depois… depois estaremos esperando por ti,
vinculados uns aos outros pelos crimes que nos igualam. Girólamo, Girólamo, porquê?...
/…
*| Parcas – As parcas eram figuras da Mitologia que
representavam três divindades dos Infernos, senhoras das vidas das criaturas,
cuja trama fiavam. Cloto representava o nascimento, segundo a roca, Láquesis
fazia que girasse o fuso e Átropos cortava o fio, fazendo extinguir a vida.
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 2 de 5) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura
de Edgar Maxence)
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