Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Sob a constrição do horror, 
o corpo do jovem gorgoleja 
semi-asfixiado, debate-se no pesadelo soez. 
Inconsciente-
mente, procura libertar-se de 
tudo aquilo, 
arrojando-se porta afora, em 
busca do campo crestado, que os animais vão atravessando em infrene correria. Tão pronto pensa em fazê-lo, tem a sensação, ainda mais estranha, de que à porta ressuma a presença do duque di Bicci, com mais feroz aspecto, a impedir-lhe a evasão. Naquele antigo semblante de austeridade está insculpida, a fogo, uma face de ódio que aparvalha, e dos olhos, antes amenos, que fitavam com misericórdia a dor dos infelizes, chispas de violência crepitam, como labaredas prestes a espraiarem-se em incêndio voraz. 

   Tentou gritar; a voz, porém, estava estragada na garganta ressequida.

   Passaram-lhe pela mente, em estupor, todos os actos, minuciosamente, desde as primeiras articulações macabras, nos refolhos do espírito mesquinho, até a onda de crimes contínuos. Espavorido, o sinistro homicida sentiu-se morrer, desejando perecer, ter aniquilada a consciência. Não conseguia articular palavra.

   Foi o senhor di Bicci quem arrebentou a torvação do momento:

   – Não fugirás, Girólamo! Não tens mérito para morrer, evadindo-te à minha justiça. Se é verdade que te não permitirei a vida, não te concederei a morte. Terás alongada a existência, para penar e pagar, gota a gota, todo o mal que fizeste e toda a loucura que vitalizas. Somos a tua sombra e estaremos onde quer que a tua vibração peçonhenta denuncie a ignomínia da tua passagem. Pensavas que as sombras do crime apagariam as pegadas do criminoso, na noite do esquecimento? Ignoravas que ninguém tem o direito de matar, desde que a ninguém é dado o direito de produzir a vida?! Se não te podemos impedir a consumação dos objectivos macabros, não te permitiremos gozar o fruto na colheita dos resultados. Não confiando na Justiça de Deus, e sonhando com o poder da Terra, tornaste-nos teu juiz e teu verdugo, o ódio, o desejo da morte, ansiarás pela inconsciência – tudo quanto temos desejado para nós mesmos, desde que te ergueste como destruidor das minhas esperanças – e como não as tivemos para os meus, por tua culpa, não as fruirás para ti, em razão da mesma culpa…

   Como se desejasse imprimir, a ferro em brasa, aquele encontro na mente do moço pávido, o vingador relanceou o olhar e apanhou Assunta, num misto de ferocidade e demência, o infeliz duque blasonou:

   – Supunhas que a mataste também. Como te enganas com a vida, usurpador da existência! Desconheces que a destruição da roupa orgânica de forma alguma extingue o ser, que continua desditoso ou feliz conforme o mereça? A morte é mais cruel e indevassável do que a vida. As mais funestas narrativas não descrevem o que é atravessar as águas do Estige ou sofrer a presença das Parcas *|. Quando Átropos corta o fio da vida, como um rio perdido no infinito. Rebolcam-se em suas águas lodacentas os que foram vencidos pela desgraça, como eu, atirado que me encontro no fosso do ódio pelas tuas mãos criminosas, que deceparei, logo mais, após fazer-te verter baga a baga o suor da desdita que me impuseste. A tua comparsa – fita-a, reconheces? – sim, é Assunta, a traidora! –, jaz agora sob o meu guante. Alcancei-a do lado de cá, logo se libertou da matéria putrescível, na qual pretendeste apagá-la, silenciando-lhe a cumplicidade. Surpreendida pelo teu punhal sega-vias, não há palavras nem tintas que possam dizer o que lhe passou pelo infeliz espírito expulso do corpo, ao império da tua impiedade e cobardia: os lábios selados, a garganta hirta, os meios de comunicação impossibilitados de articulação e o cérebro ricocheteado pelo assombroso, desejando bradar toda a alucinação… As dores sobre-humanas, acompanhadas da surpresa, as amarras físicas vigorosas, dominadoras, a noite da razão toda feita de incomensurável agonia, não, não as podes entender, porque a águia desconhece as sensações da pomba estraçalhada nas suas garras contraídas! Entenderás depois, logo mais, quando começarmos a fazer justiça, como agora já compreende a víbora que te acompanhou no crime do meu solar, ajudando-te e hominizando-se ao teu lado. Ninguém soube realmente o que aconteceu, conforme supunhas. No entanto, eu lá estava, arrastado pela tua mente odienta, que me exprobrava, arrancando-me do sepulcro onde eu me encontrava em desalinho, para seguir contigo, estupidificado, pelo corredor longo, escuro e, inerme, ver-te no assassínio dos meus filhos e Lúcia, indefesos ante o abutre devorador…

   A entidade, desferida, arquejante, babava.

   O ódio é semente de destruição, que ressuda tóxico corrosivo a aniquilar interiormente. Aqueles que são alcançados pelas suas nefandas e morbíficas destilações de tal forma se impregnam que somente o mergulho em novas formas carnais consegue diminuir a mortífera emanação. Desenvolvido no homem, por processo de educação deficitária, desde a mais tenra infância, na qual se injectam os germes do egoísmo, da prepotência, da vaidade, muito facilmente medrarão os princípios da ira, que se transforma em rancor, logo tenham desconsiderados seus propósitos inferiores. Em toda parte, os semens do ódio se encontram latentes, considerando-se que na Terra, ainda, a força do instinto predomina sobre as manifestações da inteligência e do sentimento, numa conspiração formal contra a evolução do ser e sua consequente libertação das amarras primitivas.

   Enquanto predomina a natureza animal, em detrimento da natureza espiritual, o homem se aventura na posse indébita dos valores transitórios e promove a guerra, exteriorizando os princípios selvagens que ainda estão no seu ser. A impiedade se manifesta desde cedo, nele, mediante a indiferença pela dor do próximo e, se por acaso é convocado à justiça para sancionar os criminosos, em defesa dos cidadãos probos e correctos, aplica a lei não como correctivo e processo de reeducação, porém, na forma de punição e vingança, como se a Justiça fosse exclusivamente punitiva e não processo rectificador de educação e disciplina, em que o amor deve preponderar. A violência medra porque encontra reciprocidade na atmosfera moral das criaturas. Quantas vezes, ante as calamidades, as tragédias ou as injustiças de que alguns são alvo, cidadãos pacatos se rebelam, dando vazão a sentimentos que já não se aceitam sequer nos bárbaros?! Quantas pessoas de siso e educação se revelam vândalos, desde que estejam a sós ou se acumpliciem em malta, instigados por nómadas que lhes açulam as manifestações primárias?! Por essa razão, a paixão de qualquer natureza deve ser motivo de disciplina pelo homem de bem. Nem a indiferença ante a aflição do próximo, nem a exacerbação pelo sofrimento injusto. Moderação é a medida preventiva para os estados que a patologia, nos estudos psicológicos, examina como capítulo básico da degenerescência do homem. Quando rutilarem as morigerantes lições do Cordeiro, na Terra, o ódio e seus sequazes baterão em retirada, dando lugar ao clima de amor por Ele preconizado e vivido até à cruz.

   Ante o torvo semblante do acusador, Girólamo respirava com dificuldade, açoitado pelos tropéis das lembranças sinistras, que retornavam à mente sobressaltada. Longe, porém, de arrepender-se ou justificar-se, sintonizava com o ódio que o pai adoptivo destilava, sentindo-se impossibilitado de selar-lhe os lábios em definitivo. De compleição moral pusilânime, não tinha coragem de enfrentar a vítima, acostumado aos ardis criminosos nos quais sempre se escondia. Por mais que desejasse libertar-se da constrição da cena, não conseguia senão afundar-se ainda mais na angústia maceradora do momento.

   – Sei o que pensas, miserável! – vociferou, soturno e frio, o adversário. – Ouço-te por processo que ignoro. Tua mente fala na minha e sei o que desejarias perpetrar para silenciar-me, como tens feito com os infelizes que tentam obstaculizar-te o avanço desregrado. É, porém, inútil. Não me atingirás. Eu, sim, tenho-te nas mãos e te esganarei lentamente, como fizeste aos meus, asfixiando-os com frieza calculada… Mas, ainda não acabei. Ouvirás agora a tua parceira. Ela está do meu lado. Recebi-a depois da morte e submeti-a a mim, considerando o ódio que agora também ela te devota. Escuta-a, bandido, para que nunca mais esqueças…

   Assunta, conquanto tivesse o aspecto de górgona, por momentos lívida, por instantes rubra, escancarou a boca macilenta e, vencida por dorida agonia, doestou:

   – Por que me destroçaste a vida, quando a juventude me sorria, infeliz?! Não te fui cômpar dócil e maleável, deixando-me arrastar à hediondez do crime sob tua inspiração? Ao dar-te meu corpo, não selei contigo o pacto de vida ou morte, oferecendo-te, também, minha alma, que ambos atiramos na desgraça em que ora padeço?! Dá-me uma só razão para o homicídio que perpetraste contra mim. Silenciar-me a voz, apagando-me da tua presença? Inditoso e venal assassino. Eu te lamento, porque não te posso perdoar. Na tua sanha e desfaçatez, ignoras Deus ou te supões maior do que Ele, para tomares nas tuas mãos as vidas e destroçá-las, como se fossem brinquedos de que te podes utilizar caprichosamente, para logo após arrojá-los no abandono do abismo?... E eu que tanto te amei!

   Lágrimas de fogo escorriam abundantemente pelo rosto congestionado da facínora, colhida na rede da própria trama. Convulsiva, no entanto, vociferou:

   – Todo o amor que nutria por ti agora me consome em fornalha de ódio vivo. O duque colheu-me e vinga-se em mim. Rouba-me energias, vampiriza-me, deixando-me somente parcas forças, para que eu as tome de ti, vampirizando-te, também, já que estamos tão vinculados, a fim de passá-las a ele… Nada sabes da morte, corretor da destruição. Locupletam-se aqui, em hediondos conúbios, os desventurados como nós. Fazes parte, já, dos que aqui se encontram, não obstante ainda estejas fora destes sítios. Experimentarás o exaurir das energias, o deperecer inevitável, e depois… depois estaremos esperando por ti, vinculados uns aos outros pelos crimes que nos igualam. Girólamo, Girólamo, porquê?...
/…

*| Parcas – As parcas eram figuras da Mitologia que representavam três divindades dos Infernos, senhoras das vidas das criaturas, cuja trama fiavam. Cloto representava o nascimento, segundo a roca, Láquesis fazia que girasse o fuso e Átropos cortava o fio, fazendo extinguir a vida.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 2 de 5) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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