CAPÍTULO IV
A Bretagne francesa.
Lembranças druídicas |
No curso de minhas frequentes viagens à Bretagne, nas minhas
palestras com a gente do povo, artistas, burgueses, eu pude notar que a noção
das vidas anteriores subsistia no fundo das inteligências, de modo semivelado.
E não seria de outra forma entre os bardos modernos, que representam uma elite
intelectual. Eles não estão exclusivamente inclinados ao passado, mas se
comprazem também em contemplar o futuro.
Eles sonham para a Bretagne uma autonomia semelhante àquela
que goza o País de Gales, com a sua língua, a sua literatura, os seus jornais.
Eles sonham com uma família forte, de costumes mais puros e baseados na
tradição! Eles sonham em uma união estreita com os países de além-mar de origem
céltica, aliados no sentimento de um destino comum.
Eles conservam, no âmago do coração, uma confiança
inalterável nos destinos da raça, no triunfo do Celtismo e de seus princípios
superiores: liberdade, justiça e progresso. É isso que os leva a crer numa missão sagrada, numa função
social regeneradora.
É isso que comunica às suas estrofes esses valores que
fazem, às vezes, vibrar a alma popular. Seu verbo inflamado será suficiente
para sacudir a indiferença e galvanizar as multidões? Não, certamente, porque é
preciso para isso o auxílio poderoso do além, o concurso activo do mundo
invisível.
Notemos que esse movimento de opinião em favor do
regionalismo não é especial para os bardos. Os intelectuais de todas as
classes, de todos os partidos se associam. Eles reclamam essa descentralização
prometida pela Revolução (Francesa) e que não foi ainda realizada. Na Bretagne,
o patriotismo local não é exclusivo; respeitando os liames que a unem
estreitamente à França, ela quer um lugar especial para a pequena pátria na
grande e a manutenção da língua céltica, que é como o “paládio” da raça bretã.
O movimento pancéltico não tem, na Bretagne, o carácter
separatista de que certos críticos o acusaram. É uma pena que no Congresso de
Quimper, em 1924, uma ínfima minoria de congressistas tenha concebido essa vaga
ideia. A divisa geral era: “Franceses em primeiro lugar, bretões depois!”
O objectivo dos dirigentes é o de regenerar a raça por um
idealismo elevado, feito ao mesmo tempo de um Cristianismo depurado e de um
retorno às tradições célticas, em tudo que elas têm de mais nobre e maior. É
nesse sentido que todos os celtistas da França e de outros lugares simpatizam
com esse movimento.
A obra dos bardos bretões apresenta eclipses e
desigualdades; às vezes ela se confina na penumbra dos “gwerz” e dos “gwerziou”
– cantos populares que os obscuros improvisadores vão divulgar, de aldeia em
aldeia, de procissão em procissão –, mas às vezes também ela rompe em estrofes
vibrantes, pela voz deste bardo cego: Yann-ar-Gwenn, que em 1792, nas ruas e
praças de Quimper, reanimava a chama dos entusiasmos patrióticos entre os mais
indiferentes.
Falemos de um contemporâneo, de Quellien, que se dizia
ironicamente “o último dos bardos” e cuja verve, inesgotável, divertia os cafés
literários e as salas de redacção de Paris. Após ter criado os chamados
“jantares célticos”, que reuniam todos os anos os bretões letrados da capital e
dos quais Renan foi o ornamento mais belo, Quellien morreu esmagado por um
auto, deixando uma obra densa, da qual duas peças de teatro, ritmadas no dialecto
do país de Tréguier, chamadas “Annaïk” e “Perrinaïk”, ele esperava representar
na sua querida Bretagne.
Coisa estranha, Quellien parecia ter previsto seu fim trágico,
pois escreveu no prefácio de sua Bretagne
Armoricaine: “Tenho o pressentimento de que as tempestades da vida me
levarão antes do tempo.” Alguns viram, nessa morte acidental, uma punição por
ele ter desencaminhado o Bardismo nos cabarés da colina de Montmartre.
O Sr. H. de la Villemarqué publicou, em 1903, uma colectânea
considerável de poemas e de cantos populares da Baixa-Bretagne que foi objecto
de contestações e de críticas intermináveis; aí se encontram, entretanto,
coisas muito interessantes, de belos ritmos e sugestivas evocações, em outras
palavras, a expressão das alegrias e das dores de um povo inteiro.
Não está na minha ideia lembrar aqui as polémicas ardentes,
originadas a propósito de fraudes literárias atribuídas a certos escritores
celtistas, ainda menos nelas tomar parte. Esses debates e discussões fazem
ressaltar todo o preconceito e o fanatismo que os interesses políticos ou
religiosos podem colocar em jogo para abafar uma grande ideia que os prejudica.
Pouco importa para nosso assunto, por exemplo, que a epopeia
do Rei Arthur e os romances da Távola Redonda tenham sido adornados pela
imaginação. Pouco importa, também, que os manuscritos dos poemas de Ossian
sejam a obra do advogado Macpherson ou que os Srs. Luzel e de la Villemarqué
tenham refeito e ampliado os cantos populares da Bretagne.
Nosso alvo é bem outro. Não se trata, para nós, de fazer a
crítica literária, mas de mostrar toda a beleza e a grandeza da doutrina dos
druidas que se têm diminuído, à vontade. Para isso basta nos elevarmos acima
das contestações, mais alto do que as rivalidades das escolas, para nos
ligarmos aos testemunhos dos historiadores imparciais que viveram na própria
época dos druidas e os conheceram melhor. É o que faremos no desenrolar dos
capítulos seguintes.
É verdade que a lenda de Merlin, o encantador, poderia
chamar a nossa atenção, porque tais pensadores eminentes a consideram como o
poema no qual se reflectem, mais brilhantemente, as qualidades e os defeitos da
alma céltica. Entretanto, um exame atento de tudo o que foi escrito sobre esse
assunto demonstrou-nos que a parte de ficção, ali, é considerável e nós
preferimos deixar ao nosso amigo Gaston Luce, poeta inspirado que preparou
sobre esse tema um drama lírico de grande elevação, o cuidado de lhe fazer realçar
todo o interesse. Nós nos limitaremos a reproduzir estas linhas do célebre
escritor Edouard Schuré, tiradas de seu livro As Grandes Lendas da França (Les Grandes Légendes de France) e nas
quais ele resume “a longa, a heróica luta dos celtas contra o estrangeiro”:
“Arthur torna-se, para toda a Idade Média, o tipo do
cavalheiro perfeito. Desforra na qual os bretões não tinham pensado, mas não
menos gloriosa e fecunda. Quanto a Merlin, ele personifica o génio poético e
profético da raça, e se ele ficou incompreendido na Idade Média, como também
nos tempos modernos, é porque, primeiro, a importância do profeta ultrapassa,
de muito, a do herói; depois porque a lenda de Merlin e todo o Bardismo se
confinam a uma ordem de factos psíquicos onde o espírito moderno somente agora
começa a penetrar.”
/…
LÉON DENIS, O Génio
Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO IV A Bretagne francesa.
Lembranças druídicas 2 de 3, 14º fragmento.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a
guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)
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