Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Deus na Natureza~



Introdução

   Destina-se esta obra a representar o estado actual dos nossos conhecimen-tos precisos, sobre a Natureza e o homem.

   A exposição dos últimos resultados a que atingiu a inteligência humana no estudo da Criação é, ao nosso ver, a verdadeira base sobre a qual se há de fundar doravante toda a convicção filosófica e religiosa. Em nome das leis da razão, tão solidamente justificadas pelo progresso contemporâneo e por força dos inelutáveis princípios constituintes da lógica e do método, pareceu-nos que só através das ciências positivas deveremos prosseguir na pesquisa da verdade.

   Se temos, de facto, a ambição de chegar pessoalmente à solução do maior dos problemas; se estamos sôfregos de atingir, por nós mesmos, uma crença na qual encontremos repouso e pábulo de vida; se nos anima, ao demais, o legítimo desejo de transmitir ao próximo a consolação que já encontramos; – não temamos nunca afirmá-lo ser na ciência experimental que devemos procurar os elementos de cognição, só com ela devendo marchar.

   O cepticismo e a dúvida universal imperam no âmago de nossa alma e nosso olhar escrutador, que nenhuma ilusão fascina, vigila na cripta dos nossos pensamentos. Não nos despraz que assim seja. Não lastimemos que Deus não nos houvesse tudo revelado ao criar-nos, dando-nos contudo o direito de discutir. Essa prerrogativa do nosso ser é óptima em si mesma, como condição maior de progresso. Mas, se o cepticismo nos atalaia vigilante, também a necessidade de crença nos atrai.

   Podemos duvidar, certo, sem por isso nos isentarmos do insaciável desejo de conhecer e saber. Uma crença torna-se-nos imprescindível. Os espíritos que se vangloriam de não a possuírem são os mais ameaçados de cair na superstição ou de anular-se na indiferença. O homem tem, por natureza, uma necessidade tão imperiosa de firmar-se numa convicção –, particularmente quanto à existência de um coordenador do mundo e da destinação dos seres – que, quando não encontra uma fé satisfatória, experimenta a necessidade de se demonstrar a si mesmo que esse Deus não existe e busca, então, repousar o espírito no ateísmo e no niilismo.

   Diga-se, também, já não ser a questão que ora nos apaixona, a de sabermos qual a forma do Criador, o carácter da mediação, a influência da graça, nem discutir, tampouco, o valor de argumentos teológicos. A verdadeira questão é saber se Deus existe ou não. Note-se que, em geral, a negativa é patrocinada pelos experimentalistas da ciência positiva, enquanto a afirmativa se ampara nos indivíduos estranhos ao movimento científico.

   Qualquer observador atento pode, ao presente, apreciar no mundo pensante duas tendências diametralmente opostas.

   De um lado, químicos ocupados em tratar e triturar, nos seus laboratórios, os factos materiais da ciência moderna, por lhes extrair a essência e quinta-essência, a declararem que a presença de Deus jamais se manifesta em suas manipulações.

   Doutro lado, teólogos acocorados entre poeirentos manuscritos de bibliotecas góticas compulsando, folheando, interrogando, traduzindo, compilando, citando e recitando versículos dogmáticos, e declarando, com o anjo Rafael, que da pupila esquerda à pupila direita do Padre-Eterno medeiam trinta mil léguas de um milhão de varas, cada qual equivalente a quatro e meia vezes o comprimento da mão.

   Queremos crer que de ambos os lados haja boa fé, que os segundos, como os primeiros, estejam animados do propósito de conhecer a verdade. Pretendem os primeiros representar a Filosofia do século 20, enquanto os segundos guardam, respeitosos, a do século 15. Os primeiros, passam por Deus sem O ver, como o aeronauta que sulca o espaço celeste, enquanto os segundos focalizam um prisma que retrai a imagem, colorindo-a.

   O observador imparcial e independente que procura explicar-lhes suas tendências contrárias, admira-se de os ver obstinados no seu sistema particular e pergunta a si mesmo se será verdadeiramente impossível interrogar, de um modo directo, este vasto Universo e chegar a ver Deus na Natureza.

   Por nós, isentos de qualquer sectarismo, sentimo-nos à vontade em equacionar o problema. Diante do panorama da vida terrestre; no âmbito da Natureza radiosa à luz do Sol, beirando mares bravios ou fontes murmuras; entre paisagens de Outono ou florações de Abril; tanto quanto no silêncio das noites estreladas, temos procurado Deus. A Natureza, interpretada com a Ciência, foi quem no-lo demonstrou num carácter particular. De facto, Ele está nela, visível, como a força íntima de todas as coisas. Temos considerado na Natureza as relações harmónicas que constituem a beleza real do mundo e, na estética das coisas, encontramos a manifestação gloriosa do pensamento supremo.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 1 de 4, 1º fragmento.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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