ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~
Uma estrídula gargalhada, sibilante, de loucura, espocou e
Girólamo acordou, fosse porque o leve carro vascolejasse, ameaçando cair, fosse
pela penetrante voz da ex-companheira. Suor abundante escorria-lhe pelo rosto
coberto de pó. Trémulo, fez que o cocheiro parasse os animais e saltou para
aspirar um pouco de ar. A atmosfera pesava, angustiante. O auriga saltou, a seu
turno, procurando atender o amo, que empurrou, caminhando em direcção a velha
árvore à margem da estrada, para um pouco de renovação, recompondo o íntimo
tumultuado pelos acontecimentos do sonho.
A cidade, à vista, parecia convidar os que se encontravam
nas cercarias.
Ante a preocupação do servo, Girólamo apontou a anteporta da
Camollia e a meias palavras pediu
que a carruagem vencesse a pequena distância que faltava para atingir a porta
de entrada, seguindo em direcção à Fonte Follonica, dentro da cidade, para, depois de refrescante parada, procurar o
Bispo, no palácio ao lado da Catedral, em busca de conforto e refazimento.
No pequeno transcurso, enquanto o veículo vencia as ruas
medievais com as suas lajes antigas, mantendo as cortinas descidas, Girólamo
procurava tranquilizar-se, de que tudo não passara de um miserável pesadelo,
resultante da sua evocação inconsciente dos dramas do solar, quando na Via Cássia olhara a altaneira construção no acume da colina.
Mais refeito e quase optimista pela chegada a Siena, que o
aguardaria com renovada carga de emoções bastardas, achegou-se à fonte
generosa, de três arcadas, e refrescou-se, asseando-se ligeiramente, para rumar
na direcção de uma hospedaria, sorver um chianti
e procurar os amigos, de cuja companhia sentia incontida falta.
Recebido com galhardia pelos companheiros de dissipações, que
logo se reuniram para comemorar a chegada do antigo sócio dos prazeres,
Girólamo experimentou indómita felicidade, como se valorizasse, então, o alto
prémio da liberdade, que parecia ter perdido mediante o consórcio matrimonial.
Repassou mentalmente as noitadas embriagadoras, reflectindo no tempo de que
podia dispor, agora que os recursos pecuniários lhe abriram amplas perspectivas
de gozo, e, delirante de júbilo, explodiu em imensurável alegria. Era como se
prometesse a si mesmo não perder sequer uma gota da rara oportunidade de viver
intensamente. O lar, afinal de contas, não lhe representava impedimento. Homem
venal, teria razões sobejas de afastamento do Solar di Bicci, reiteradamente,
dele fazendo um lugar de repouso entre as viagens que ora se tornariam
constantes e alongadas. Conhecia, por notícias que lhe chegavam fascinantes,
das glórias que, então, se viviam em Veneza, onde o exótico vinho de Chipre era
derramado em festins incessantes, conquanto perdesse a incómoda situação
política. As famosas recepções festivas nos palácios venezianos e as aventuras
amorosas nas gôndolas românticas entreteciam, nesse rápido momento, as ânsias
de novos e redobrados gozos do moço senense. Desde há muito não privava de
júbilos tão expressivos. Mesmo no matrimónio – para ele a conquista da nobre
Beatriz era apenas um capricho a mais, mediante o qual aumentava as posses,
através do comércio afectivo, então em muita voga –, não sentira tão grande
ventura. Momentaneamente fascinado pela consorte, dedicara-se algum tempo, não,
todavia, o suficiente para fazer-se prender pelos liames imateriais do amor, a
cujo culto seu carácter dificilmente se rendia. Apaixonado, perseguia, sôfrego,
emoções novas, jamais aquelas derivadas dos sentimentos superiores, únicas que
são capazes de lenir os tormentos íntimos e que, à semelhança de linfa
refrescante, possuem recursos para matar a sede dos desejos infrenes,
desregrados… Via-se mentalmente cercado, no futuro, de mulheres jovens e belas,
provocando inveja aos competidores, como se estivesse guindado ao carro do
triunfo desmedido, a correr em nuvens róseas de ilusões…
Foi despertado do devaneio pela bulha agitada dos amigos,
que lhe indagaram, ruidosos, o porquê do olhar distante e da expressão da face,
enigmática.
Desculpando-se com as justificativas do cansaço e do calor,
escusou-se por ter que se ausentar, informando da necessidade de entrevistar-se
com o Bispo, a respeito de negócios urgentes quão inadiáveis.
Francesco, seu amigo, garboso e pervertido senense,
reivindicando o direito de retribuir-lhe a hospedagem de que fora objecto em
seu solar, por ocasião das bodas, insistiu e terminou por conseguir trasladá-lo
para o Palácio T., na praça do mesmo nome, fronteiro à célebre Igreja de São
Cristóvão.
Sensibilizado, Girólamo aceitou o convite, tendo em vista o
que representaria, socialmente, a sua hospedagem no famoso edifício T., e
recordou-se da magnitude da construção de estilo gótico rigoroso, em pedra de
cantaria trabalhada, com sua fachada em três pisos distintos, esbeltos e nobres,
assinalados pelas duas ordens de amplos bifloros.
O amigo, muito alegre, transferiu sua arca de viagem,
enquanto ele seguia ao palácio do Bispo, na Praça do Campo.
Logo sentiu-se a sós. Sob o mesmo causticante sol do
entardecer, Girólamo voltou a experimentar a singular apreensão que o
inquietava. Tinha a sensação incomum de que se fazia seguido por malta de
inimigos impalpáveis. Acreditando-se ainda perturbado pelo pesadelo de que fora
acometido na viagem, tentou retirar da mente as ideias deprimentes,
considerando as promessas de ventura com que a ocasião lhe acenava.
Todo o casario de Siena resplandecia ao sol. Os telhados de
barro vermelho cozido, as casas serpenteantes entre as ruas tortuosas, subindo
e descendo as colinas, com o Duomo,
em mármore branco e negro, em destaque, no alto, os loendros arrebentados em
flor e perfume, os ciprestes resinosos sempre verdes e altaneiros, os edifícios
apoiados uns aos outros e os arcos sobre as ruas estreitas, pavimentadas de
velhas lajes, largas e gastas, em simetria harmoniosa, tudo falava ao cérebro
turbilhonado do rapaz que a pintura citadina era um presente que não podia
desprezar. Tentando sorrir e possuir a cidade formosa que lhe surgia como
dádiva espontânea, avançou na direcção da praça, antegozando o encontro com o
mentor religioso, que certamente lhe acalmaria as inquietações, dando-lhe a
bênção confessional. Naturalmente que se recordara de trazer para o Pastor a dádiva
da sua generosidade – ou o suborno para a cumplicidade demorada?! –, como testemunho
de fidelidade e afeição.
Ao aproximar-se da porta central do palácio, Girólamo sofreu
um estremecimento. Todas as suas carnes e músculos foram, subitamente,
sacudidos por vibração poderosa, que o fez fremir. De inopino, o suor
gotejou-lhe na testa, na face, e as mãos se lhe fizeram frias. Pareceu-lhe
escutar, não saberia dizer se dentro ou fora da consciência, agudo grito
blasfemo e acusador: “Assassino, assassino!” Conquanto desejasse manter-se
rijo, veio-lhe um vágado ligeiro, que por pouco não o arrojou ao solo. Tentando
dominar-se, apoiou-se à porta de carvalho antigo, lavrada, até recompor-se, e
avançou sobre o piso de mármore embutido. O peito se lhe fez ardente, e
incontrolável tremor pôs-se a agitá-lo. Que poderoso trauma lhe ocasionara o pesadelo
da Via Cássia! – reflectia. – Talvez, em saindo dali, procurasse um ervanário
para algumas duchas e, possivelmente, fazer uso de qualquer poderosa infusão
calmante. Ante a ideia fascinante, pareceu-lhe aquietar o espírito.
Anunciado pelo porteiro ao secretário de Sua Eminência
Reverendíssima, Girólamo foi recebido gentilmente pelo clérigo, em sua
biblioteca renascentista, ricamente decorada. Lá dentro, o ar era agradável e a
sala de amplas proporções, atapetada, luxuosa, e isso funcionou como refazimento
para o atormentado viajante. Depois de apresentar a sua espórtula à Cúria,
através do seu representante, Girólamo foi colocado à vontade e astutamente
inquirido. Como se ainda estivesse possuído pelo terror das lembranças que lhe
não abandonavam a mente, o rapaz resolveu, com habilidade, informar-se de
alguns pontos de fé religiosa, que o mantinham em dúvida. Dessa forma, sem
maiores delongas, esclareceu ao amigo as suas dificuldades religiosas, ante os
sucessivos acontecimentos insólitos que o haviam surpreendido e o deixado
inquieto. Dentre os pontos básicos dos seus contínuos estados de espírito, um
deles merecia destaque: o que dizia respeito à volta dos mortos para perseguir os vivos.
O sacerdote, pouco interessado no destino das almas e amaciado
pela vida de excessivo conforto que desfrutava, pouco afeito às meditações
superiores da vida espiritual e aclimatado às evasivas filosóficas e aos velhos
chavões distantes do raciocínio iluminativo e racional, sorriu displicente e
inquiriu, por sua vez:
– Crê, você, meu filho, que os mortos retornam ao teatro dos homens para os perseguir? Não sabe,
graças à Santa Madre Igreja, que a crença supersticiosa em tais ideias é
blasfémia e que os que cultivam esses pensamentos pagãos são tidos como bruxos
e feiticeiros?
Fez uma pausa de efeito e, indiferente às inquietações do
pupilo, acrescentou:
– Posso afirmar-lhe que ninguém retorna, após a morte. Os
demónios, muitas vezes, para tentarem os que se encontram na graça do Senhor,
assumem formas humanas e disputam com os anjos as almas dos que ainda se
encontram na Terra, limitados nas paredes do corpo.
– No entanto, Excelência – retrucou o jovem –, pensando que
os emissários de Belzebu perturbem com os seus vastos recursos os que desejam a
trilha do bem. Não me refiro a mim, porque reconheço, desde há muito,
encontrar-me um tanto fora da paz interior. Todavia, parece-me…
Impedindo-o de prosseguir na exteriorização do pensamento, o
sacerdote, que desejava encerrar a entrevista, esclareceu, jovial:
– Deixe, meu filho, para os estudiosos e exegetas esses
problemas da fé. Retire-os de sua cabeça e trate de distrair-se.
Estendendo-lhe a mão, apresentou ao moço, uma única vez
interessado no importante problema do espírito, o anel para o ósculo e, com a
habilidade de diplomata que era, encerrou o encontro.
Mais disposto, o rapaz osculou a jóia, despedindo-se
efectivamente, prometendo visitá-lo noutra oportunidade e, abençoado através do
formalismo inoperante e inútil, demandou a praça ensolarada, em pleno entardecer.
/…
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 3 de 5 texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura
de Edgar Maxence)
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