Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 28 de agosto de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Uma estrídula gargalhada, sibilante, de loucura, espocou e Girólamo acordou, fosse porque o leve carro vascolejasse, ameaçando cair, fosse pela penetrante voz da ex-companheira. Suor abundante escorria-lhe pelo rosto coberto de pó. Trémulo, fez que o cocheiro parasse os animais e saltou para aspirar um pouco de ar. A atmosfera pesava, angustiante. O auriga saltou, a seu turno, procurando atender o amo, que empurrou, caminhando em direcção a velha árvore à margem da estrada, para um pouco de renovação, recompondo o íntimo tumultuado pelos acontecimentos do sonho.

   A cidade, à vista, parecia convidar os que se encontravam nas cercarias.

   Ante a preocupação do servo, Girólamo apontou a anteporta da Camollia e a meias palavras pediu que a carruagem vencesse a pequena distância que faltava para atingir a porta de entrada, seguindo em direcção à Fonte Follonica, dentro da cidade, para, depois de refrescante parada, procurar o Bispo, no palácio ao lado da Catedral, em busca de conforto e refazimento.

   No pequeno transcurso, enquanto o veículo vencia as ruas medievais com as suas lajes antigas, mantendo as cortinas descidas, Girólamo procurava tranquilizar-se, de que tudo não passara de um miserável pesadelo, resultante da sua evocação inconsciente dos dramas do solar, quando na Via Cássia olhara a altaneira construção no acume da colina.

   Mais refeito e quase optimista pela chegada a Siena, que o aguardaria com renovada carga de emoções bastardas, achegou-se à fonte generosa, de três arcadas, e refrescou-se, asseando-se ligeiramente, para rumar na direcção de uma hospedaria, sorver um chianti e procurar os amigos, de cuja companhia sentia incontida falta.

   Recebido com galhardia pelos companheiros de dissipações, que logo se reuniram para comemorar a chegada do antigo sócio dos prazeres, Girólamo experimentou indómita felicidade, como se valorizasse, então, o alto prémio da liberdade, que parecia ter perdido mediante o consórcio matrimonial. Repassou mentalmente as noitadas embriagadoras, reflectindo no tempo de que podia dispor, agora que os recursos pecuniários lhe abriram amplas perspectivas de gozo, e, delirante de júbilo, explodiu em imensurável alegria. Era como se prometesse a si mesmo não perder sequer uma gota da rara oportunidade de viver intensamente. O lar, afinal de contas, não lhe representava impedimento. Homem venal, teria razões sobejas de afastamento do Solar di Bicci, reiteradamente, dele fazendo um lugar de repouso entre as viagens que ora se tornariam constantes e alongadas. Conhecia, por notícias que lhe chegavam fascinantes, das glórias que, então, se viviam em Veneza, onde o exótico vinho de Chipre era derramado em festins incessantes, conquanto perdesse a incómoda situação política. As famosas recepções festivas nos palácios venezianos e as aventuras amorosas nas gôndolas românticas entreteciam, nesse rápido momento, as ânsias de novos e redobrados gozos do moço senense. Desde há muito não privava de júbilos tão expressivos. Mesmo no matrimónio – para ele a conquista da nobre Beatriz era apenas um capricho a mais, mediante o qual aumentava as posses, através do comércio afectivo, então em muita voga –, não sentira tão grande ventura. Momentaneamente fascinado pela consorte, dedicara-se algum tempo, não, todavia, o suficiente para fazer-se prender pelos liames imateriais do amor, a cujo culto seu carácter dificilmente se rendia. Apaixonado, perseguia, sôfrego, emoções novas, jamais aquelas derivadas dos sentimentos superiores, únicas que são capazes de lenir os tormentos íntimos e que, à semelhança de linfa refrescante, possuem recursos para matar a sede dos desejos infrenes, desregrados… Via-se mentalmente cercado, no futuro, de mulheres jovens e belas, provocando inveja aos competidores, como se estivesse guindado ao carro do triunfo desmedido, a correr em nuvens róseas de ilusões…

   Foi despertado do devaneio pela bulha agitada dos amigos, que lhe indagaram, ruidosos, o porquê do olhar distante e da expressão da face, enigmática.

   Desculpando-se com as justificativas do cansaço e do calor, escusou-se por ter que se ausentar, informando da necessidade de entrevistar-se com o Bispo, a respeito de negócios urgentes quão inadiáveis.

   Francesco, seu amigo, garboso e pervertido senense, reivindicando o direito de retribuir-lhe a hospedagem de que fora objecto em seu solar, por ocasião das bodas, insistiu e terminou por conseguir trasladá-lo para o Palácio T., na praça do mesmo nome, fronteiro à célebre Igreja de São Cristóvão.

   Sensibilizado, Girólamo aceitou o convite, tendo em vista o que representaria, socialmente, a sua hospedagem no famoso edifício T., e recordou-se da magnitude da construção de estilo gótico rigoroso, em pedra de cantaria trabalhada, com sua fachada em três pisos distintos, esbeltos e nobres, assinalados pelas duas ordens de amplos bifloros.

   O amigo, muito alegre, transferiu sua arca de viagem, enquanto ele seguia ao palácio do Bispo, na Praça do Campo.

   Logo sentiu-se a sós. Sob o mesmo causticante sol do entardecer, Girólamo voltou a experimentar a singular apreensão que o inquietava. Tinha a sensação incomum de que se fazia seguido por malta de inimigos impalpáveis. Acreditando-se ainda perturbado pelo pesadelo de que fora acometido na viagem, tentou retirar da mente as ideias deprimentes, considerando as promessas de ventura com que a ocasião lhe acenava.

   Todo o casario de Siena resplandecia ao sol. Os telhados de barro vermelho cozido, as casas serpenteantes entre as ruas tortuosas, subindo e descendo as colinas, com o Duomo, em mármore branco e negro, em destaque, no alto, os loendros arrebentados em flor e perfume, os ciprestes resinosos sempre verdes e altaneiros, os edifícios apoiados uns aos outros e os arcos sobre as ruas estreitas, pavimentadas de velhas lajes, largas e gastas, em simetria harmoniosa, tudo falava ao cérebro turbilhonado do rapaz que a pintura citadina era um presente que não podia desprezar. Tentando sorrir e possuir a cidade formosa que lhe surgia como dádiva espontânea, avançou na direcção da praça, antegozando o encontro com o mentor religioso, que certamente lhe acalmaria as inquietações, dando-lhe a bênção confessional. Naturalmente que se recordara de trazer para o Pastor a dádiva da sua generosidade – ou o suborno para a cumplicidade demorada?! –, como testemunho de fidelidade e afeição.

   Ao aproximar-se da porta central do palácio, Girólamo sofreu um estremecimento. Todas as suas carnes e músculos foram, subitamente, sacudidos por vibração poderosa, que o fez fremir. De inopino, o suor gotejou-lhe na testa, na face, e as mãos se lhe fizeram frias. Pareceu-lhe escutar, não saberia dizer se dentro ou fora da consciência, agudo grito blasfemo e acusador: “Assassino, assassino!” Conquanto desejasse manter-se rijo, veio-lhe um vágado ligeiro, que por pouco não o arrojou ao solo. Tentando dominar-se, apoiou-se à porta de carvalho antigo, lavrada, até recompor-se, e avançou sobre o piso de mármore embutido. O peito se lhe fez ardente, e incontrolável tremor pôs-se a agitá-lo. Que poderoso trauma lhe ocasionara o pesadelo da Via Cássia! – reflectia. – Talvez, em saindo dali, procurasse um ervanário para algumas duchas e, possivelmente, fazer uso de qualquer poderosa infusão calmante. Ante a ideia fascinante, pareceu-lhe aquietar o espírito.

   Anunciado pelo porteiro ao secretário de Sua Eminência Reverendíssima, Girólamo foi recebido gentilmente pelo clérigo, em sua biblioteca renascentista, ricamente decorada. Lá dentro, o ar era agradável e a sala de amplas proporções, atapetada, luxuosa, e isso funcionou como refazimento para o atormentado viajante. Depois de apresentar a sua espórtula à Cúria, através do seu representante, Girólamo foi colocado à vontade e astutamente inquirido. Como se ainda estivesse possuído pelo terror das lembranças que lhe não abandonavam a mente, o rapaz resolveu, com habilidade, informar-se de alguns pontos de fé religiosa, que o mantinham em dúvida. Dessa forma, sem maiores delongas, esclareceu ao amigo as suas dificuldades religiosas, ante os sucessivos acontecimentos insólitos que o haviam surpreendido e o deixado inquieto. Dentre os pontos básicos dos seus contínuos estados de espírito, um deles merecia destaque: o que dizia respeito à volta dos mortos para perseguir os vivos.

   O sacerdote, pouco interessado no destino das almas e amaciado pela vida de excessivo conforto que desfrutava, pouco afeito às meditações superiores da vida espiritual e aclimatado às evasivas filosóficas e aos velhos chavões distantes do raciocínio iluminativo e racional, sorriu displicente e inquiriu, por sua vez:

   – Crê, você, meu filho, que os mortos retornam ao teatro dos homens para os perseguir? Não sabe, graças à Santa Madre Igreja, que a crença supersticiosa em tais ideias é blasfémia e que os que cultivam esses pensamentos pagãos são tidos como bruxos e feiticeiros?

   Fez uma pausa de efeito e, indiferente às inquietações do pupilo, acrescentou:

   – Posso afirmar-lhe que ninguém retorna, após a morte. Os demónios, muitas vezes, para tentarem os que se encontram na graça do Senhor, assumem formas humanas e disputam com os anjos as almas dos que ainda se encontram na Terra, limitados nas paredes do corpo.

   – No entanto, Excelência – retrucou o jovem –, pensando que os emissários de Belzebu perturbem com os seus vastos recursos os que desejam a trilha do bem. Não me refiro a mim, porque reconheço, desde há muito, encontrar-me um tanto fora da paz interior. Todavia, parece-me…

   Impedindo-o de prosseguir na exteriorização do pensamento, o sacerdote, que desejava encerrar a entrevista, esclareceu, jovial:

   – Deixe, meu filho, para os estudiosos e exegetas esses problemas da fé. Retire-os de sua cabeça e trate de distrair-se.

   Estendendo-lhe a mão, apresentou ao moço, uma única vez interessado no importante problema do espírito, o anel para o ósculo e, com a habilidade de diplomata que era, encerrou o encontro.

   Mais disposto, o rapaz osculou a jóia, despedindo-se efectivamente, prometendo visitá-lo noutra oportunidade e, abençoado através do formalismo inoperante e inútil, demandou a praça ensolarada, em pleno entardecer.
/…


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 3 de 5 texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

Sem comentários: