Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 14 de julho de 2012

Narrações do Infinito~



LÚMEN

Segunda narrativa – I

Refluum temporis
(a
maré
vazante
do
tempo)
…/


   Quœrens – Perdoai minha interrupção, mestre, mas aguardei com empenho a ocasião de vos solicitar um esclarecimento sobre ponto particular do ditador. Uma vez que revistes Júlio César, dizei-me, eu vos rogo, se a sua figura se assemelha em verdade à que o imperador Napoleão III, que reina actualmente sobre a Gália, nos dá na grande obra que escreveu sobre a vida do famoso capitão. É verdade que o ditador romano e o general corso têm a mesma cabeça, a mesma fisionomia?

   Lúmen – Sim. A semelhança é notável, tanto quanto a semelhança moral, a ponto de me haver perguntado a mim mesmo se Júlio César e Napoleão Bonaparte não constituem uma só e única personalidade em duas reencarnações diferentes.

   De qualquer modo que seja, retrocedi de Júlio César aos cônsules e aos reis do Lácio, para me deter um instante no rapto das Sabinas, com o que fiquei bastante satisfeito por poder observar directamente esse tipo de costume antigo. A História aformoseou muitas coisas e reconheço que a maior parte dos factos históricos foram totalmente diferentes do que se nos apresentou. Nesse mesmo momento apercebi o rei Candaulo, em Lídia, na cena do banho, que vós conheceis; a invasão do Egipto pelos Etíopes; a república oligárquica de Corinto; a oitava olimpíada da Grécia; e Isaías profetizando na Judéia. Vi construir as pirâmides por levas de escravos, dirigidos por chefes montados em dromedários. As grandes dinastias da Bactriana e da Índia, eu as vi, e a China me mostrou as artes maravilhosas que já possuía antes mesmo do nascimento do mundo ocidental. Tive oportunidade de perquirir a respeito da Atlântida de Platão e constatei efectivamente que as opiniões de Bailly sobre esse continente desaparecido não são destituídas de fundamento. Na Gália só se distinguiam vastas florestas e pântanos; os próprios druidas haviam desaparecido e os selvagens dali muito se pareciam aos que ainda hoje habitam a Oceânia. Era bem a idade da pedra reconstituída pelos arqueólogos modernos. Mais tarde ainda, vi que o número de homens diminuía pouco a pouco e que o domínio da natureza parecia pertencer a uma grande raça de símios, ao urso das cavernas, ao leão, à hiena, ao rinoceronte. Chegou o momento em que me foi impossível distinguir sequer um único homem na superfície do mundo, nem mesmo o menor vestígio da raça humana. Tudo havia desaparecido. Os tremores de terra, os vulcões e os dilúvios pareciam assenhoreados da superfície planetária, não permitindo a presença do homem em meio de tais ruínas.

   Quœrens – Confessar-vos-ei, ó Lúmen, aguardar com impaciência o momento de vossa chegada ao Paraíso terrestre, a fim de saber de que forma se apresenta a criação da raça humana sobre a Terra. Estou até surpreso de não haverdes parecido cogitar de tão importante observação.

   Lúmen – Eu vos relato unicamente quanto vi, meu curioso amigo, e guardar-me-ei bem de substituir os testemunhos dos meus olhos pelas fantasias da imaginação. Ora, não vislumbrei qualquer remoto traço desse Éden tão poeticamente descrito pelas teogonias primitivas. Além disso, seria bem extraordinário que a semelhança do mundo que eu tinha sob os olhos e a Terra chegasse até elas, tanto mais quanto, se o paraíso terrestre tem sua razão de ser no berço da Humanidade, nas graciosas lendas orientais, não vejo em que ele possa ter a mesma razão nos fins da sociedade humana.

   Quœrens – Creio, ao contrário, que seria mais justo supô-lo ligado aos fins do que ao começo, em resultado e recompensa, do que em forma de prelúdio incompreendido, de uma vida de sofrimento. Mas, de vez que não vistes o Éden, não insisto no assunto.

   Lúmen – Chegou, enfim, ao término da observação desse mundo singular, cuja história era precisamente o inverso da vossa, a ocasião de ver animais fantásticos de monstruosidade combatendo-se nas praias de vastos mares. Serpentes gigantes, armadas de patas formidáveis; crocodilos que voavam nos ares, agitando asas orgânicas mais longas que o seu próprio corpo, peixes disformes, cuja goela teria deglutido um touro; aves de rapina travando terríveis batalhas nas ilhas devastadas. Continentes inteiros, cobertos de vastas florestas; árvores de folhagem enorme cresciam umas sobre as outras, vegetais sombrios e severos, porque o reino vegetal ainda não possuía então nem flores, nem frutos. As montanhas vomitavam cascatas inflamadas; os rios tombavam em cataratas; o solo dos campos abria-se em forma de fauces profundas, deglutindo colinas, bosques, ribeiros, árvores, animais. Bem depressa, impossível se me tornou distinguir mesmo a superfície do Globo; um mar universal parecia cobri-lo e o reino vegetal, e assim também o animal, se apagaram lentamente para dar posto a monótonas verduras lavradas de brilhos e fumaças brancas. Era, desde então, um mundo agonizante. Assisti às derradeiras pulsações do seu coração, reveladas por fulvos clarões intermitentes. Pareceu-me depois que chovia simultaneamente sobre a superfície inteira, pois o Sol não iluminava mais que nuvens e goteiras de chuva. O hemisfério oposto ao Sol pareceu-me menos sombrio do que antes e apagadas claridades se deixavam aperceber através das tempestades. Esses clarões ganharam intensidade e se propagaram sobre a esfera total. Amplas fendas apareciam vermelhas, lembrando o ferro em brasa das forjas. E porque o ferro sucessivamente queimado na ardente fornalha se torna vermelho-claro, depois alaranjado, em seguida amarelo, passando a branco e incandescente, assim o mundo passou por todas as fases do aquecimento progressivo. Seu volume aumentou; o movimento de rotação foi mais lento. O globo misterioso ficou semelhante a uma esfera imensa de metal fundido, envolta de vapores minerais. Sob a acção incessante da sua fornalha interior e dos combates elementares dessa estranha química, adquiriu proporções enormes e a esfera de fogo passou a esfera de fumaça. Desde então, iria desenvolvendo-se sem cessar e perdendo a personalidade. O Sol, que primitivamente a iluminava, não a ultrapassava mais em brilho e ela própria aumentou a sua circunferência de tal modo que se tornou evidente, para mim, estar o planeta vaporoso destinado a perder a sua existência mesma por efeito de reabsorção na atmosfera crescente do Sol.

   Assistir a um fim de mundo é ocorrência rara. Por isso, em meu entusiasmo, pensava comigo mesmo, com uma espécie de vaidade: Eis, pois, um fim de mundo, ó Deus, e eis o destino reservado às inumeráveis terras habitadas!

   – Não é o fim – respondeu uma voz à minha ideia íntima –; é o começo.

   – Quê? É o começo? pensei eu em seguida.

   – O princípio da Terra mesma – respondeu a mesma voz –. Tu reviste toda a história da Terra, distanciando-te dela com velocidade superior à da luz.

   Tal afirmação não me surpreendeu mais do que o primeiro episódio da minha vida ultraterrestre, pois, já familiarizado com os efeitos chocantes das leis da luz, estava desde então preparado para toda a nova surpresa. Eu havia duvidado do facto por certos detalhes que não vos pude narrar, para não perturbar a unidade da minha exposição, porém, sem embargo, incomparavelmente mais extraordinárias ainda do que a sucessão geral dos acontecimentos.

   Quœrens – Mas, se se tratava realmente da Terra, como se explica que a vossa observação astronómica, feita antes para reconhecimento na constelação do Altar, vos haja indicado, ao contrario, que o mundo por vós examinado não era a Terra, nem uma estrelinha do Altar?

   Lúmen – É que essa constelação, em consequência da minha viagem no Espaço, havia mudado de posição. Em lugar das estrelas de terceira grandeza e das de quarta que constituem essa figura (vista da Terra), meu distanciamento rumo da nebulosa havia reduzido tais astros a pequenos pontos imperceptíveis. Estavam lá outras estrelas brilhantes, sem dúvida alguma do Cocheiro, estrelas diametralmente opostas às precedentes, quando se observa da Terra, mas que se interpuseram quando foram por mim transpostas. As perspectivas celestes haviam mudado, já, e impossível quase se tornava determinar a posição do nosso Sol.

   Quœrens – Não tinha pensado nessa inevitável mudança de perspectivas para além de Capela. Assim sendo, tratava-se mesmo da Terra à vossa vista. Ademais, sua história se desenrolou em sentido inverso da realidade. Vistes os velhos acontecimentos chegando depois dos factos modernos. Por que processos pôde a luz fazer-vos assim subir o rio do Tempo?

   Além disso, ó Lúmen, dissestes haver observado particularidades curiosas relativas à própria Terra. Desejaria particularmente formular algumas questões a respeito de tais detalhes. Ouvirei, pois, com interesse, as histórias extraordinárias que devem completar esta narrativa, persuadido de que, tal qual ocorreu anteriormente, elas responderão antecipadamente à minha curiosidade.
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CAMILLE FLAMMARION, Narrações do Infinito, LÚMEN Segunda narrativa – I (3 de 3) fragmento global 13º (C. Flammarion faz falar uma alma liberta dos vínculos corporais, a que ele denominou Lúmen)
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Seres Radiantes do espaço ~

Capítulo I

Desde Galvani, a atenção do homem se encaminhou para a electricidade, mas é somente a partir dos trabalhos de William Crookes sobre os estados subtis da matéria que começamos a perceber a extensão, a calcular a potência das forças invisíveis.

Sabe-se que as experiências desse ilustre sábio, com os médiuns HomeFlorence Cook, foram o ponto inicial de grandes descobertas que se sucederam e revolucionaram a Física.

Certamente, antes dele, Allan kardec e a Escola Espírita tinham estabelecido a existência do mundo dos fluidos, mas foi Crookes o primeiro que conseguiu captar as forças radioactivas e armazená-las, de modo a torná-las úteis para a Ciência humana.

As suas análises subtis da força psíquica estão descritas no seu livro Recherches sur le Spiritualisme (Pesquisas dos Fenómenos Espíritas).

Talvez observem que não se deve confundir as radiações do Espaço com o fluido humano. Mas sabemos que uma relação íntima os religa e que todas as forças terrestres, celestes e humanas se relacionam a um princípio comum.

A matéria, sob seus diversos aspectos, constitui um imenso reservatório de energia. Na realidade, ela é apenas força condensada: os sólidos se transformam em líquidos, os líquidos em gases, os gases em fluidos, e estes, à medida que se tornam mais subtis, mais quintessenciados, recuperam as suas propriedades primitivas e parecem se impregnar de inteligência. Pelo menos é o que parece resultar de certas manifestações do raio. Num grau superior, a força parece se identificar com o espírito e se torna um de seus atributos.

Toda matéria concreta é apenas, portanto, a energia capturada. O químico Fabre calculou que um quilo de carvão concentra 23 biliões de calorias, que libertadas, bastariam, diz ele, para accionar uma rede de linhas de caminhos-de-ferro, durante dois anos. Ora, apenas libertamos, actualmente, um número proporcionalmente insignificante. No dia em que se souber desintegrar, libertar todas as partículas da matéria, estaremos de posse de uma força incalculável.

Mas, tais progressos, nos dizem os espíritos, são medidos pelo valor moral da Humanidade. Deus não permite que certas revelações ou descobertas se realizem antes que o homem tenha atingido uma consciência mais completa de seus deveres e de suas responsabilidades. Vimos, na recente guerra, o uso que os alemães fizeram dos progressos da Química. Que farão eles, em uma outra guerra, das energias formidáveis que adormecem no íntimo da matéria.

Ao menos, a Ciência chegou a reconhecer a harmonia que liga as teorias da electricidade à lei universal da gravidade. Essa não regula somente a marcha dos corpos celestes, sobre seus dois aspectos, atracção e repulsão; ela regula todos os movimentos da matéria, desde as suas mais ínfimas partículas até aos astros gigantescos do Espaço. Todas as moléculas químicas, todas as parcelas da força eléctrica, como os iões e electrões, representam sistemas completos, análogos aos sistemas estelares. As mesmas radiações as penetram e as mesmas correntes as animam. A Natureza vibra, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande.

A formação de um astro, diz Max Frank, é idêntica, sob o ponto de vista do mecanismo das forças activas, à formação de uma molécula simples. Pode-se constatar, desde agora, por escalonamento das forças conhecidas, que o abismo intransponível, que outrora parecia separar a matéria do espírito, acha-se ultrapassado. A cadeia de vida se desenvolve grandiosamente, sem solução de continuidade, desde o átomo até ao astro, do homem, em todos os graus da hierarquia espiritual, até Deus.
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Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo I, 2 de 3, 2º fragmento da obra.
(imagem: Ascensão de Cristo, pintura de Salvador Dali, 1958)

quinta-feira, 12 de julho de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Siena, a hospitaleira, mantém inscrito na Porta Camollia, que dá acesso à cidade através da Via Cassia: “Cor magis tibi Sena pandit” (Siena
f´apre un cuore più largo di questa porta, *| como traduzem os senenses), o que expressa a forma galharda com que ali sempre se recebem os hóspedes e visitantes, caracterizando a nobreza dos seus costumes e a cultura do seu povo.

   Antiga senhora da Toscana, sempre rival de Florença, a cidade conserva os hábitos das épocas passadas, fazendo lembrar os costumes longobardos e, ulteriormente, os dos cônsules-bispos, culminando pelas tradições religiosas, que constituíam sua mais expressiva glória. Pelas suas ruas ladeirosas, e em suas casas de fé, caminharam os pés de Catarina, a monja extática, que contribuiu vigorosamente para a transferência do papado de Avinhão para Roma, em 1377, quando Gregório XI com ela concordara que, canonizada, se tornaria a padroeira da Itália, no presente século (1939). Por ali também jornadearam outros homens dedicados a Cristo, no áspero período medieval, entre os quais São Bernardino, que colaborou eficazmente para o engrandecimento do povo, na sua devoção à Igreja da época.

   Alongando-se por sobre três colinas, e cercada por muralhas de mais de sete quilómetros de extensão, era, também, considerada a cidade inexpugnável, não fossem as rivalidades internas e as lutas intestinas que a fizeram perder a supremacia e o destaque, nos meados do século XV, até ser incorporada ao grão-ducado da Toscana, um século depois. O orgulho nacional encontrava campo para desdobramento, entrando em disputa nas festas do “Palio”, que eram corridas de cavalos celebradas na Praça do Campo, em dois dias distintos: 2 de Julho, recordando os milagres da Virgem de Provenzano, e 16 de Agosto, em homenagem à Assunção de Maria. A cidade, dividida em confrade (bairros), ainda hoje se apresenta com as cores locais e as próprias insígnias de cada distrito para a grande mossa ou largada dos animais, ante o público apaixonado e vibrante, em cuja oportunidade as rivalidades encontram terreno fértil para proliferarem, e o jogo das apostas dos diversos aficionados representa expressivas somas.

   A festa se inicia pela celebração da missa, na Capela da praça, e logo depois outra, na Igreja de Santa Maria, em Provenzano, para onde eram e são conduzidos as bandeiras e o pálio que se destina ao vitorioso, na corrida. À tarde, faz-se o tradicional cortejo, com todos os trajes evocativos, seguidos de músicos e autoridades, palafreneiros e pajens, alcaides, provedores da fazenda pública, capitão da justiça e outros, destacando-se a beleza e o colorido dos que constituem os bairros representados. O fascinante jogo das bandeiras, que destaca a habilidade e a alta acrobacia de cada porta-estandarte, e o ápice da solenidade que precede, na Praça do Campo, à grande largada. Toda a cidade e pessoas dos arredores acorrem à Praça, ávidos de prazeres.

   Naquele verão, a cidade preparava-se com mais entusiasmo para a festa central, que lhe fazia reviver as glórias do passado. Nas imediações da Fonte Gaia (alegre), os jovens dos festejos, procurando, no entanto, manter em segredo a mor parte dos projectos, para surpreenderem os rivais. As libações alcoólicas atingem estados superlativos, que descambam para as agressões físicas, disputas verbais de baixas expressões, badernas, anarquias. Outras vezes, os bandos alegres se espalham pela cidade, em festas andantes, levando às janelas das bem-amadas as músicas contemporâneas e os sons dos alaúdes, guitarras e pífaros, sob o céu tranquilo e estrelado das noites quentes, alongando-se madrugada adentro, para culminarem nos bordéis, onde se vendem ilusão e loucura em taças de perfumes…

   Enquanto empolgado pelas emoções novas do matrimónio, Girólamo, ludibriado pela opulência transitória, compartia alegrias e sorrisos no lar. Marcado, no entanto, por carácter venal e impetuoso, acostumado às sensações fortes, dificilmente poderia libertar-se do jugo dos hábitos longamente arreigados, que lhe constituíam uma segunda natureza. Além disso, por mais frio e calculista que fosse, carregava o fardo da culpa a dormir nos tecidos sensíveis da memória inconsciente, aguardando o despertar, que não tardaria.

   A princípio, nos dois primeiros anos do matrimónio, passava contínuos períodos com a esposa em Siena, no palácio dos sogros, principalmente na ocasião das festas na cidade.

   A presença espiritual do duque, que a seu turno se comprazia em processo violento de obsessão constrangedora sobre Assunta desencarnada, criava uma atmosfera psíquica densa na herdade, cujos efeitos paulatinamente se avolumavam na psicosfera do homicida sandeu.

   Apesar da abnegação da esposa, Beatriz, e os deveres administrativos na casa, o moço dissoluto não podia adaptar-se demoradamente à vida doméstica, onde não conseguia encontrar os fortes condimentos do prazer exacerbado capaz de fazê-lo vibrar até a exaustão.

   Assim, evadia-se frequentemente, viajando para Florença e Veneza, onde se poderia entregar, com todo o vigor, à libertinagem. Sentia, porém, saudades das rodas amigas senenses. Acalentava, em ânsia crescente, voltar às orgias antigas, entre os velhos amigos.

   O pretexto das festividades do “Palio” era motivação oportuna para nova evasão do lar, na direcção da cidade, que se engalanava para o primeiro período das celebrações festivas. À semelhança de ave prisioneira que reencontra a liberdade, – enquanto a sege o traz à alacridade das ruas, vencendo a Via Cassia, serpenteante entre outeiros nos quais a sega pôs o feno dourado a secar, recebendo as lufadas quentes da atmosfera carregada, sob um céu pardacento, tostando de sol forte –, o moço tem a imaginação em febre e sonha com o reencontro dos amigos. Para trás ficam os símbolos representativos da sua desmedida ambição, da vitória ardilosa sobre a vida e de todas as maquinações que se fizeram necessárias para que atingisse as metas perseguidas.

   Enquanto os animais fogosos ganham as distâncias que o separam da orgia por que anseia, volta-se inconscientemente para a colina e olha pelo rectângulo da janela o aclive em que repousa o velho solar vetusto, a alameda de ciprestes balouçando e, num átimo, voltam-se à mente as cenas que gostaria de olvidar, ali praticadas nos nefandos dias passados. O perdulário sente estranho arrepio percorrer-lhe o corpo, enquanto algo mais poderoso do que a sua vontade lhe dá ímpetos de correr mais do que os corcéis, para fugir, libertando-se da realidade. Imperiosamente necessita esquecer, afogar no prazer a sandice desesperadora.

   As nuvens de pó se erguem à passagem do veículo apressado e porque o calor seja asfixiante àquela hora do dia, ou porque a monotonia do trote dos animais produza uma melopeia hipnotizante, singular torpor invade o jovem, que se deixa conduzir pela modorra que lhe avassala as carnes, terminando por vencê-lo totalmente. Do lado de fora, a exuberância do dia ardente de Agosto, o ar morno, parado, os campos crestados e os montes, como contrafortes naturais em defesa da região. Dentro da sege, entre os estufados rubros, sacolejantes, com as janelas abertas e as cortinas afastadas, o cavaleiro Cherubini experimenta estranho mal-estar. Sofre a sensação de que o calor asfixiante domina o seu cérebro e, de repente, vê-se empurrado da carcaça fisiológica, que ressona, caída sobre o banco, e, ele mesmo, emplumado, de pé, defronta-se com Assunta, numa esfera de sonho. Instintivamente, deseja com sofreguidão fugir da mulher assassinada, mas imperioso comando, que o ata ao corpo, impede-o de consumar o anseio incontido. A sua vítima, que ressuscita dos meandros da morte, é antes uma megera que a arrebatadora filha de Chiusi, a apaixonada descendente dos nobres etruscos do passado. A boca, sedutora dantanho, é um traço ensanguentado na face amarfanhada, na qual se destacam os dois olhos congestionados a saltarem das órbitas. O rosto macerado perdeu toda a cor e vida; um filete de sangue lhe escorre pela fossa nasal; a cabeleira, basta e empastada à testa larga, coroa-a de horror, causando náuseas. De mãos crispadas e miraculosamente intumescida, é mais parecida a um monstro que se evadisse do Hades que à jovem de peregrina sedução, que lhe compartia o leito de perversão.

   Imóvel, vis-à-vis, a aparição o enfrenta, sardónica, como se desejasse fazer penetrar em sua memória, para sempre, a máscara do pavor que exibe. Fescenina e grotesca, ergue as mãos, que parecem garras de rapina, na direcção da garganta do antigo amante, avançando vagarosamente, com o impacto de inconcebível hediondez.
/…

*| “Siena te abre o coração mais que a sua porta.”



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 1 de 5) texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O Espiritismo na Arte~


Parte III

Senso artístico: constituição e evolução
– Fusão do bem com o belo: objectivo sublime da criação
|Março de 1922|

Em resumo, a lei eterna do Universo, o objectivo sublime da criação, é a fusão do bem com o belo. Esses dois princípios são inseparáveis, eles inspiram toda a obra divina e constituem a base essencial das harmonias do Cosmos.

O pensamento e a intenção divinos sendo o bem, a manifestação deles é o belo. Em sua ascensão, o ser deverá mais e mais compenetrar-se desse pensamento soberano, dessa vontade, e dedicar-se a realizá-los em si e à sua volta, sob formas sempre mais perfeitas. Sua felicidade consistirá em assimilar essa lei e em cumpri-la. As alegrias íntimas e profundas que resultarão disso são a demonstração evidente do objectivo do Universo, alegrias que toda a linguagem humana, dizem-nos os espíritos, é insuficiente para definir. Essas leis, esse objectivo essencial, o Espiritismo não somente os ensina; ele ainda nos indica os meios de alcançá-los, de praticá-los. Sob esse ponto de vista, seu papel é notável e sua intervenção, no actual momento da história, é providencial.

Há um século vimos assistindo ao colossal desenvolvimento da indústria e de suas invenções, à descoberta e à aplicação dos recursos físicos da Terra. Disso resultou, nas ideias, uma poderosa corrente materialista, que deu um novo impulso aos apetites, às necessidades imperiosas de bem-estar e de usufrutos. A necessidade de se opor uma contra-influência espiritualista a essa corrente cada vez mais se faz sentir.

A evolução material necessita de uma evolução filosófica e religiosa paralela, sem o que as forças intelectuais se voltariam, cada vez mais, em direcção ao mal e o mundo desabaria num grande cataclismo do qual a última guerra seria apenas o prelúdio e dele nos daria só a ideia.

Acima da vida presente, que é somente transitória, é preciso, entre outras coisas, fazer entrever a outra vida, que é o seu objectivo e a sua sanção. Unicamente pelo acordo final das ciências, das filosofias e das religiões mais evoluídas é que o pensamento atingirá os altos cumes e que a humanidade encontrará a confiança e a paz, com conhecimento das verdades essenciais, sob suas diversas faces.
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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte III – Senso artístico: constituição e evolução – Fusão do bem com o belo: objectivo sublime da criação, 11º fragmento da obra
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Inquietações Primaveris~


A Extinção 
da Vida |

Vivemos até agora num torniquete de contradições alimentadas por grosseiros e desumanos interesses imediatistas. 

O mundo se apresenta em fase de renovação cultural, política e social, povoado por gerações novas que anseiam pelo futuro e se encontram oprimidas e marginalizadas pelo domínio arbitrário dos velhos, dolorosamente apegados a vícios insanáveis de um passado em escombros. 

A prudência medrosa dos velhos e o anacronismo fatal de suas ideias, de suas superstições e de seu apego desesperado à vida como ela foi e não como ela é, esmagam sob a pressão de mentalidade antiquada apoiada no domínio das estruturas tradicionalmente montadas dos dispositivos de segurança. Essa situação negativa é transitória, em virtude da morte, que renova as gerações, mas prolongando-se nesses dispositivos garante o prolongamento indefinido da situação, ao mesmo tempo em que as novas gerações, marginalizadas politicamente, não dispõem de experiências e conhecimentos para enfrentar os dominadores, caindo em apatia e desinteresse pela vida pública. Essa situação se agrava com a ocorrência de tentativas geralmente ingénuas e inconsequentes de jovens explorados por grupos violentos, o que provoca o desencadeamento de pressão oficial, geralmente seguida de revides terroristas. É o que se vê, principalmente, nos países europeus arrasados material e espiritualmente pela segunda guerra mundial.

Esse impasse internacional só pode ser rompido por medidas e atitudes válidas de governos das nações em que o choque de mentalidades antagónicas não chegou a produzir estragos materiais e morais irrecuperáveis. Muito podem contribuir para o restabelecimento de um estado normal nas instituições culturais, através de cursos e divulgações, pelos meios de comunicação organizados e dados por especialistas hábeis.

A Educação para a Morte, dada nas escolas de todos os graus, não como matéria independente, mas ligada a todas as matérias dos cursos, insistindo no estudo dos problemas existenciais, irá despertando as consciências, através de dados científicos positivos, para a compreensão mais clara e racional dos problemas da vida e da morte. Todo o empenho deve se concentrar na orientação ética da vida humana, baseada no direito à vida comunitária livre, em que todos os cidadãos podem gozar das franquias sociais, sem restrições de ordem social, política, cultural, racial ou de castas. O importante é mostrar, objectivamente, que a vida é o caminho da morte, mas que a morte não é o fim da existência humana, pois esta prossegue nas hipóstases espirituais do universo, nas quais o espírito se renova moralmente e se prepara com vistas a novas encarnações na linha da evolução ôntica da Humanidade.

Nascimento e morte são fenómenos biológicos interpenetrados. A vida e a morte constituem os elementos básicos de todas as vidas, que, por isso mesmo, são também mortais. O inferno mitológico dos pagãos devia ter desaparecido com o advento do Cristianismo, mas foi substituído pelo inferno cristão, mais cruel e feroz que o pagão. As carpideiras antigas deixaram de chorar profissionalmente nos velórios, mas os cerimoniais funerários da Igreja substituíram de maneira mais pungente e desesperadora, com pompas sombrias e latinório lastimante, prolongados em semanas e meses, o lamento por aqueles que apenas cumpriram uma lei natural da vida. A ideia trágica da morte sobrevive em nosso tempo, apesar do avanço das Ciências e do desenvolvimento geral da Cultura. Há milhões de anos morremos e ainda não aprendemos que vida e morte são ocorrências naturais. E as religiões da morte, que vampirescamente vivem dos gordos rendimentos das celebrações fúnebres e das rezas indefinidamente pagas pelos familiares e amigos dos mortos, empenham-se num combate contra os que pesquisam e revelam o verdadeiro sentido da morte. A ideia fixa de que a morte é o fim e o terror das condenações de após a morte sustentam esse comércio necrófilo em todo o mundo. Contra esse comércio simoníaco é necessário desenvolver-se a Educação para a Morte, que, restabelecendo a naturalidade do fenómeno, dará aos homens a visão consoladora e cheia de esperanças reais da continuidade natural da vida nas dimensões espirituais e a certeza dos retornos através do processo biológico da reencarnação, claramente ensinado nos próprios Evangelhos.

Conhecendo o mecanismo da vida, em que nascimento e morte se revezam incessantemente, os instintos de morte e seus impulsos criminosos irão se atenuando até desaparecerem por completo. Os desejos malsãos de extinção da vida, que originam os suicídios, os assassinatos e as guerras, tenderão a se transformar nos instintos da vida. A esperança e a confiança em Deus, bem como a confiança na vida e nas leis naturais, criarão um novo clima no planeta, hoje devastado pelo desespero humano. O medo e o desespero desaparecerão com o esclarecimento racional e científico do mistério da morte, esse enigma que a ressurreição de Jesus e os seus ensinos, bem como os do Apóstolo Paulo, já deviam ter esclarecido há dois mil anos.
/…


Herculano Pires, José – Educação para a Morte, 4 A Extinção da Vida 2 de 2, 7º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 5 de julho de 2012

O Mundo Invisível e a Guerra~


IV
O Mês de Joana d’Arc

|Maio de 1915|

   Cabe perguntar se sua clara visão, atravessando os séculos vindouros, não se projectava então até aos acontecimentos do presente, até essa gigantesca luta da civilização contra a barbárie, na qual pensava em interferir.

   Por meio da violência e do terror, a Alemanha pretendeu impor ao mundo a sua horrível cultura, suas teorias implacáveis do super-homem, das quais Nietzsche se constituiu profeta e que anulam o que há de mais digno, mais poético, mais belo na alma humana, isto é, as qualidades nobres, e com elas a compaixão, a piedade e a bondade.

   O Deus do Evangelho, que Jesus nos ensinara a amar, os alemães pretenderam trocar por não se sabe qual divindade sombria e cruel, que se assemelha muito menos ao Deus dos cristãos do que ao Odin escandinavo em seu Walhalla manchado de sangue.

   A essas concepções de outras eras, nas quais ao mais grosseiro materialismo se alia um misticismo bárbaro, devemos contrapor, sob a égide da Virgem Lorena, um espiritualismo claro e progressista, feito de luz, justiça e amor.

   Esse espiritualismo mostrará ao mundo a lei eterna que prega a liberdade, a responsabilidade de todos os seres e que lhes impõe a necessidade de resgatar, pelas existências sucessivas e dolorosas, todo o mal que hajam praticado.

   E após a expiação ela assegura o ressurgimento e a partilha, para todos, das alegrias e bens celestes, na proporção justa do merecimento conquistado e dos progressos realizados.

   Eis a doutrina que Joana preconiza, que não se ocupa apenas com a libertação da pátria, pois que, desde muitos anos, coopera também em sua renovação moral. Todos aqueles que frequentam os grupos de estudo onde ela se manifesta sabem com que carinho vela por essa doutrina, sustentando seus defensores e trabalhando por sua difusão no mundo.

   Joana, inspirada pelo Alto, cumpriu outrora uma missão que, no decorrer dos tempos, serviria de exemplo para todos. Hoje se compreende que o papel da mulher poderia ser o de fortalecer o ânimo do homem, aumentando-lhe a dedicação patriótica. Realmente, no seio da família, sua missão é mais modesta; mas a educação que dá ao filho deve despertar-lhe a energia e o valor, acentuando-lhe o amor à pátria e todas as virtudes daí decorrentes.

   Assim ver-se-ão desenvolver as energias do país; a fusão dos partidos tornar-se-á mais fácil, assim como a missão de todos, porque estarão unidos por um nobre ideal comum.

    Separados na paz, os franceses se uniram diante do perigo. Ontem incrédulos, apelam hoje às forças divinas e humanas capazes de fortalecer a raça; apelam às inspirações do Alto, que vivificam as almas e despertam as qualidades viris adormecidas.

   Estamos certos de que esse estado de espírito há de persistir. No momento actual existem, em nossa linha de frente, cerca de três milhões de homens que sentem iguais fadigas e sofrem iguais perigos. É impossível que as provações sofridas por eles não constituam um laço poderoso e que, unidos pelo coração e por um mesmo pensamento, não trabalhem unidos para o reerguer da pátria.

   Joana os ajudará para conseguirem esse objectivo e, por seu intermédio, afirmamos nós, será feita a união de todos os partidos, porque a Virgem de Orléans não é propriedade de nenhum deles. Pertence a todos e cada um encontrará em sua vida um motivo para venerá-la.

   Os monárquicos glorificarão nela a heroína fiel que se sacrificou pelo rei; os crentes, a enviada providencial que surgiu na hora dos desastres.

   Os filhos do povo a amarão como a camponesa que se armou para salvar a pátria; os soldados se recordarão de que, como eles, ela sofreu e foi ferida duas vezes; os infelizes, que ela suportou todas as amarguras, todas as provações, e que bebeu o cálice das dores até ao fim.

   Todos verão nela uma demonstração da força superior, da força eterna encarnada em um ser humano para executar obras capazes de elevar as inteligências e reconciliar todos os corações.
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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IV – O Mês de Joana d’Arc, 3 de 3 13º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

pensamento crítico ~


Justificativa do equívoco marxista

   Sobram razões, entretanto, para esse equívoco. Não podemos condenar Marx e Engels, bem como Feuerbach, em última instância, se este último, rebelando-se contra a “divinização dos fenómenos naturais impressionantes” pelo homem primitivo, pela razão instintiva, quis apegar-se à raiz latina da palavra religião, o verbo “religare”, para construir uma religião humana de fraternidade terrena, sem compromissos transcendentes, como Comte o tentaria mais tarde. Os dois primeiros, pelo contrário, rejeitaram até mesmo a velha raiz, tomados de uma verbofobia que ainda hoje impregna os seus seguidores. E levantaram, no pó do planeta, a primeira grande revolução filosófica, política e social, contra a imensidade cósmica do Espírito.

   Foi, não um temporal num copo d’água, mas uma tormenta num grão de areia. Não obstante, como nesse grão de areia é que, segundo Kardec, nascemos, crescemos, vivemos, morremos, renascemos e progredimos sempre, pois “tal é a lei”, a revolta representa, para nós, toda uma época histórica, de importância igual à rebelião dos anjos, no princípio dos tempos.

   A esses novos lúciferes assistiam as razões poderosas da mistificação religiosa da época. A religião, distanciada da sua velha raiz, convertera-se em instrumento de opressão e da mais deslavada velhacaria. Nem foi por outro motivo que Kardec declarou, em A Gênese, com a clareza e a precisão que o caracterizavam: “As religiões, infelizmente, têm sido sempre instrumentos de dominação. O papel de profeta tem tentado as ambições secundárias, e tem-se visto surgir uma multidão de pretensos reveladores ou messias que, favorecidos pelo prestígio desse nome, exploram a credulidade, em proveito do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua preguiça, achando mais cómodo viver na dependência dos iludidos. A religião cristã não esteve ao abrigo desses parasitas.” 

   As igrejas haviam corporificado o princípio religioso, no terreno social, na forma de organizações político-financeiras, sedentas de dominação. Os sacerdotes nada mais eram do que os negociantes do culto. E este, como bem o definiram os materialistas dialécticos, “o suborno da divindade”. A corrupção capitalista invadira os céus, podendo acrescentar-se, por isso mesmo, com Tcheskiss: “O desenvolvimento da ciência provoca a morte da religião.” Já Kardec o dissera, no mesmo livro citado: “Se a religião se recusa a avançar com a ciência, a ciência avançará sozinha.”

   Querer que a capacidade de análise objectiva de Marx e Engels falhasse nesse terreno, despercebida do aspecto brutal da religião e ao seu verdadeiro papel na estrutura social, seria querer demasiado. Por outro lado, supor que esses anátemo-patologistas da sociedade capitalista pudessem agir, diante do corpo enfermo da sociedade da época, como psiquiatras, descobrindo a malversação dos elementos espirituais no desequilíbrio religioso, seria desconhecer o fenómeno das especializações no campo da ciência.

   Marx e Engels fizeram o que puderam. Pura e simplesmente. O que assombra, porém, é que um século depois os seus discípulos e continuadores ainda arrastem a mesma asa quebrada, sem compreenderem a necessidade de avançar na concepção do mundo, em obediência, pelo menos, ao “processus” da sua própria dialéctica.
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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico – Justificativa do equívoco marxista, 3º fragmento da obra.
(imagem: Diógenes, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

terça-feira, 3 de julho de 2012

a pedra e o joio~


questão metodo-
lógica

   Quem se atreve a afirmar, por exemplo, que o roustain-
guismo é simples questão de opinião e por isso não deve ser discutido, ou que este ou aquele pretenso cientista tem o direito de formular suas teorias, dá uma prova espontânea de sua ignorância do problema espírita em sua inelutável posição epistemológica. Como obra evidente de mistificação, um decalque malfeito e deformador da obra de Kardec, visando a ridicularizar a doutrina verdadeira, o roustainguismo não pode (absolutamente não pode) ser aceito por nenhum espírita consciente, a não ser por efeito de fascinação. O direito de uma pessoa formular teorias em qualquer campo do conhecimento está sujeito a uma exigência elementar e básica: a de conhecer a fundo esse campo. Sem isso, e sem dar provas disso, ninguém, por mais aparentemente culto que possa ser considerado ou que se diga, não tem o direito de formular e divulgar teorias a respeito. Isso é ponto pacífico em todo o mundo.

   Vamos a exemplos concretos:

   Quando o Sr. Oswaldo Polidoro, na sua incultura e na sua ingenuidade, se propõe a fazer um Espiritismo do Século XX, chamando-o de Espiritismo Divinista – pois entende que Kardec sujeitou-se à Ciência humana e negou a divina –, só os que ignoram a posição metodológica de Kardec e sua importância cultural podem aceitar esse absurdo. No outro extremo, quando Hernani Andrade elabora em bases físicas uma Teoria Corpuscular do Espírito para superar o suposto mecanicismo de Kardec, só as pessoas incapazes de compreender a posição kardeciana e a função cultural do Espiritismo podem bater palmas a essa tentativa absurda.

   Esclareçamos um pouco mais, se possível:

   Quando o Sr. Luciano dos Anjos, representando toda a Directoria da Federação Espírita Brasileira, sustenta e propaga o roustainguismo e nega aos espíritas o direito de instituir cursos de doutrina e de organizar instituições culturais espíritas (defendendo ridiculamente o autodidatismo como ideal de formação cultural), só os que nada entendem dos problemas culturais podem apoiá-lo nessa proposta de retorno ao primitivismo. Nenhuma pessoa de bom senso e de certa cultura poderá aceitar esse ilogismo a menos que esteja sujeita a um processo de fascinação, essa forma aguda de obsessão que afecta a capacidade de julgar.

   Quando o Sr. Artur Massena, presidente leigo da Sociedade de Medicina e Espiritismo do Rio de Janeiro, acha que as suas experiências de 36 anos no trato da mediunidade (não como cientista, que não é, mas como um prático, um curioso e no máximo um amador) lhe dá o direito de contradizer Kardec e introduzir novidades no assunto, só os que ignoram por completo o que seja Ciência e o que seja cultura podem aprovar essa temeridade.

   É necessário compreendermos o absurdo dessas posições, se quisermos prestar algum serviço, por mínimo que seja, à causa espírita. Ainda neste caso aplica-se admiravelmente a recomendação de Erasto a Kardec: é preferível rejeitar dez possíveis verdades ou acertos nesse terreno do que aceitar uma única mentira. Porque essa única mentira porá o Espiritismo em má situação perante os homens de bom senso. E porque, como advertiu Kardec, devemos pisar no terreno sólido da realidade, deixando as utopias, por mais fascinantes que se apresentem, que se submetam à prova inexorável do tempo. Não somos utópicos, somos realistas. Não jogamos com possibilidades, mas com factos. E fora dos factos e da sua pesquisa rigorosa não temos Espiritismo.

   Quem não compreender isso pode aderir a qualquer das formas de utopia que levaram o Espiritualismo ao descrédito no século passado e continuam a se propagar em nossos dias com ampla liberdade. Quem quiser permanecer no Espiritismo terá de submeter-se às exigências culturais da doutrina, que são sobretudo de ordem metodológica.

   Até agora, o Espiritismo só foi conhecido no Brasil através dos cinco volumes da Codificação. Só agora dispomos da colecção da Revista Espírita do tempo de Kardec, tão importante que ele mesmo a incluiu no rol das leituras necessárias para o bom conhecimento da doutrina, como vemos em O Livro dos Médiuns. Ninguém, entre nós, conhece Kardec em profundidade. Homens de cultura, considerados como grandes conhecedores da doutrina, publicaram trabalhos que provam a superficialidade espantosa desse conhecimento. Se leram e estudaram, não aprenderam, não assimilaram.

   Dirigentes de grandes instituições doutrinárias mostram-se ignorantes do sentido e da natureza da doutrina, enxertando-a com estranhos conceitos provindos da época anterior ao aparecimento do Espiritismo. Chega-se a combater, como perigoso, o desenvolvimento cultural do Espiritismo, e isso nas altas rodas das instituições de cúpula.

   Essa situação desoladora favorece o aparecimento de pretensos reformadores e actualizadores da doutrina, que tanto surgem do meio do povo – através de médiuns ao serviço de espíritos mistificadores –, quanto das elites culturais, através de teóricos improvisados, que se aproveitam de seus títulos universitários ou posições sociais para impor ao povo suas ideias pessoais, não raro tão absurdas como as dos místicos sertanejos. E há também, para maior espanto das pessoas sensatas, os que exercendo funções de responsabilidade no meio espírita, mostram-se admirados com os prodígios de mediunismo nas formas de sincretismo religioso afro-brasileiro – como a Umbanda, a Quimbanda, o Candomblé – e bandeiam-se para os terreiros.

   Tudo isso resulta de uma fonte única: a ignorância da doutrina. As molas secretas da vaidade, da auto-suficiência e das obsessões encorajam essa proliferação de tolices, cuja finalidade evidente é a ridicularização do Espiritismo. Urge, pois, que os espíritas sensatos e responsáveis tomem posição contra essa avalanche de absurdos, tenham a coragem e a franqueza de falar a verdade em defesa do Espiritismo, doa a quem doer.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. A questão metodológica, 2 de 2, 7º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

segunda-feira, 2 de julho de 2012

| o grande enigma ~


Ao Leitor

A Justiça! 
Se há neste mundo uma necessidade imperiosa para todos os que sofrem, para quantos têm a alma dilacerada, não é essa a de crer, de saber que a justiça não é uma palavra vazia; que há, de qualquer maneira, compensações para todas as dores, sanção para todos os deveres, consolação para todos os males?

Ora, essa justiça absoluta, soberana, quaisquer que sejam nossas opiniões políticas e nossas vistas sociais, deve reconhecer perfeitamente, não é de nosso mundo. As instituições humanas não a comportam.

Embora chegássemos a corrigir, a melhorar essas instituições e, por conseguinte, a atenuar muitos males, a diminuir a soma das desigualdades e das misérias humanas, há causas de aflição, enfermidades cruéis e inatas contra as quais seremos sempre impotentes: a perda da saúde, da vista, da razão, a separação dos seres amados e todo o imenso séquito dos sofrimentos morais, tanto mais vivos quanto o homem é mais sensível e a civilização mais apurada.

Apesar de todos os melhoramentos sociais, nunca obteremos que o bem e o mal encontrem neste mundo integral sanção. Se existe essa justiça absoluta, o seu tribunal não pode estar senão no Além! Mas quem nos provará que esse Além não é um mito, uma ilusão, uma quimera? As religiões, as filosofias passaram; elas desdobraram sobre a Alma humana o manto rico de suas concepções e de suas esperanças. Entretanto, a dúvida subsistiu no fundo das consciências. Uma crítica minuciosa e sábia tem passado em estreito crivo todas as teorias de outrora. E desse conjunto maravilhoso só resultaram ruínas.

Mas, em todos os pontos do globo, fenómenos psíquicos se produziram. Variados, contínuos, inumeráveis, traziam a prova da existência de um mundo espiritual, invisível, regido por princípios rigorosos, tão imutáveis quanto os da matéria, mundo que guarda nas suas profundezas o segredo de nossas origens e de nossos destinos. Uma nova ciência nasceu baseada nas experiências, nas pesquisas e nos testemunhos de sábios eminentes; uma comunicação se estabelecera com esse mundo invisível que nos cerca e uma revelação poderosa banha a Humanidade qual uma onda pura e regeneradora.
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Léon Denis, O Grande Enigma, Ao Leitor 2 de 3.
(imagem: Salvador Dali, 1950)

domingo, 1 de julho de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


CAPÍTULO III

O País de Gales. 
A Escócia. 
A obra dos bardos

Os galeses, em geral, acreditavam firmemente no mundo dos espíritos e nas suas manifestações. Eles apresentam, às vezes, nomes e formas muito fantasiosas para isso. Seus relatos deixam uma grande margem para a imaginação. Entretanto, do conjunto dos factos relatados se deduz uma série de testemunhos que não saberíamos recusar.

Por exemplo, no que se refere aos “espíritos batedores da mina”, esses seres invisíveis que, por seus golpes surdos, prolongados, repetidos, encorajam os mineiros e dirigem suas pesquisas em direcção aos melhores filões; eis o relatório redigido, sobre esse assunto, pelo engenheiro Merris, homem muito estimado pelo seu saber e sua probidade, publicado na revista Gentleman’s Magazine:

“As pessoas que não conhecem as artes e as ciências ou o poder secreto da natureza zombarão de nós, mineiros de Cardigan, que acreditamos na existência dos “batedores”. Eles são uma espécie de génios bons, mas inapreensíveis, que não se vêem, mas se ouvem, e que parecem trabalhar nas minas, isto é, que o “batedor” é o representante ou o precursor do trabalho nas minas, como os sonhos o são de certos acidentes que acontecem.

Quando foi descoberta a mina de Esgair y Myn, os “batedores” nela trabalharam activamente, noite e dia, e um grande número de pessoas os ouviram. Mas, após a descoberta da grande mina, não foram mais ouvidos. Quando comecei a explorar as minas de Elwyn-Elwyd, os “batedores” agiram tão fortemente, durante um certo tempo, que assustaram os jovens operários. Quando removíamos as camadas de rochas, antes de chegar no mineral, é que os ruídos se fizeram mais fortes; eles cessaram quando nós atingimos o mineral.

Sem dúvida, nossas asserções serão discutidas. Afirmo, entretanto, que os factos são reais, mesmo que não possa nem pretenda explicá-los. Os cépticos podem sorrir; quanto a nós, mineiros, continuaremos a nos alegrar e a agradecer aos “batedores”, ou melhor, a Deus, que nos envia seus conselhos.”

Os fenómenos de assombração não são raros no País de Gales. Cita-se de bom grado tal casa ou tal castelo que os conheceram e suportaram. O Sr. Le Goffic, na sua viagem a Cardiff como delegado bretão à grande Assembleia solene de 1899, recolheu uma grande série de relatos desse género, que ele publicou no seu livro L’Âme Bretonne (A Alma Bretã).

A maioria desses relatos nos parecem muito marcados de superstição. Cremos, portanto, que devemos indicar um testemunho sério, o de Lady Herbert, ilustre patriota galesa, descendente dos antigos reis “kymris”, que recebia a delegação no seu castelo de Llanover.

O Sr. Le Goffic cita a conversa que teve sobre esse assunto com essa grande dama:

“O exemplo vem do Alto. Não se diz na Inglaterra que a própria rainha tem seu fantasma que ronda os apartamentos de Windsor? E esse fantasma, vestido de negro, não é outro senão a grande Elisabeth.

O lugar-tenente Glynn, de guarda na biblioteca, percebeu como o fantasma penetrou no quarto contíguo. Ora, esse quarto não tinha saída, mas tivera uma, outrora, durante a vida de Elisabeth, e que foi fechada depois. O lugar-tenente correu atrás do fantasma e chegou justo a tempo para vê-lo introduzir-se na parede. O facto se reproduziu diversas vezes e o temor foi tão grande, em Windsor, que foi preciso dobrar a guarda da noite.

Windsor tem sua dama negra, meu castelo de Cold Brooks tem sua dama branca. Vós perguntais qual o sentido dessas aparições? Ora, como a igreja nos explica, são almas em sofrimento que pedem piedade dos vivos esquecidos. Os outros espectros têm a função de avisadores. É o caso, creio, da dama negra de Windsor: sua presença anuncia sempre algum facto grave, uma guerra ou catástrofe próxima.

Os avisos, ou como vós dizeis na Bretanha, os “intersignos”, revestem todas as formas. Algumas vezes essas formas são especiais para certas famílias. Os Grey de Ruthwen são avisados da morte de seus membros pela aparição de uma carruagem, com quatro cavalos negros.

A família Airl, quando um dos seus membros está perto da hora da morte, ouve um rufo de tambor. Em um jantar, estando presente um desses Airl, alguém lhe perguntou como passatempo: “Qual é, então, o ‘intersigno’ de sua família?” – “O tambor”. E, como para atestar o facto, um rufo, surdo e velado, soou ao longe. Lord Airl empalideceu; algum tempo depois, um mensageiro veio anunciar que um dos membros de sua família estava morto.

Os Mac-Gwenlyne, descendentes do célebre clã desse nome, possuem há séculos, no norte da Escócia, o velho solar de Fairdhu: uma grande abóbada curvada lhe dá o acesso, e julga-se que a pedra que serve de base para essa abóbada começa a tremer quando um Mac-Gwenlyne vai morrer...” 

Os casos de castelos e lugares assombrados são tão numerosos na Escócia que deixamos de citar todos. Sabe-se que esse país é a terra clássica dos videntes, dos fantasmas e dos espíritos familiares. O aspecto melancólico de suas regiões, cobertas de neblina, e de suas ruínas presta-se às visões e às evocações.

Ainda em nossos dias, a sombra de Marie Stuart não apareceu a Lady Caithness, Duquesa de Pomar, na capela real de Holyrood, onde se alinham os túmulos dos reis da Escócia? Em sua sumptuosa casa da rua Brémontier, em Paris, em dias de reuniões psíquicas, a duquesa se comprazia em nos contar sua palestra nocturna com a infortunada rainha.
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LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO III – O País de Gales. A Escócia. A obra dos bardos 2 de 3, 12º fragmento.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)