Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VI

A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica
(II)

   Os altos vales da Meurthe, da Moselle e da Vologne possuem ainda numerosos monumentos megalíticos: menires e dolmens.

  Segundo Charton, o altar achado em Lamerey, os “tumulus” (i) de Bouzemont, de Dommartin-les-Remiremont, de Martigny são antiguidades célticas. (ii) O vale d’Arjol, os arredores de Darney recordam lembranças do mesmo tipo. A montanha dos Deux-Jumeaux apresenta, sobre o Piton Nord, cavidades circulares e características onde os druidas recolhiam directamente as águas pluviais como sendo as mais puras para a celebração de seus ritos religiosos. Sobre o Piton Sud, o Grand-Jumeau, pode notar-se os vestígios de um “oppidum(fortaleza gaulesa).

(i) Tumulus – construção de pedras em forma de cone, que os antigos elevavam por cima das sepulturas. (N.R., conforme o Nouveau Petit Larousse Illustré.)
(ii) Ver a obra Les Vosges Pittoresques. Tumulus – construção de pedras em forma de cone, que os antigos elevavam por cima das sepulturas. (N.R., conforme o Nouveau Petit Larousse Illustré.)

  Pessoalmente, pude observar na Lorraine muitas dessas rochas arrumadas em forma de altares, com cavidades circulares, espécie de pias de água-benta druídicas, em particular em Grand-Rougimont, no vale da Haute Vezouse. Igualmente na montanha, perto de Épinal, chamada “Cabeça de Pequena Cuba” por esse motivo. Uma escavação semelhante, chamada “Caldeirão das Fadas”, é encontrada na montanha de Répy, entre Raon-l’Étape e Étival.

  Perto de Saint-Dié outros vestígios célticos são encontrados, até na floresta dos Molières, distante de todo o caminho. Sobre a crista do monte de Ormont pode seguir-se as marcas de alinhamentos de pedras levantadas.

  Mais perto de Nancy, conhece-se a fortaleza de Sainte-Geneviève; a de Champigneulles, na floresta da Fourasse, e, sobretudo, a importante obra, acima de Ludres, chamada falsamente de “campo romano” e que é céltica, da Idade do Ferro. As escavações praticadas nesses lugares deram resultados significativos, conservados no Museu de Lorraine. Quantos outros vestígios célticos são considerados, por ignorância, como galo-romanos!

  A essas lembranças, frequentemente profanas, nós preferimos os velhos altares em plena floresta onde os romanos nunca entravam, ficando nas cidades e nos grandes vales abertos às rotas comerciais. Eu admiro os rochedos antigos na floresta profunda onde nós, celtas, nos sentimos mais em nossa casa.

  Os megálitos, nota-se, são numerosos em Lorraine como em todo o resto da Gália. Os menires ou pedras de pé, dolmens ou mesas de pedra, “cromlechs” ou círculos de pedra aí se encontram frequentemente, sempre em estado rústico, aos quais se poderia denominar com o título correcto de pedras virgens.

  Se a simplicidade das formas e a ausência completa de estética podiam ser consideradas como os indícios de uma antiguidade recuada, pode-se fazer remontar a origem dos megálitos às primeiras idades da história.

  Entretanto, nós vemos que os celtas ainda faziam uso deles durante a nossa era, embora mostrassem uma arte refinada na fabricação de armas, jóias, vestuários, etc. Havia então aí, nessa simplicidade desejada, uma intenção profunda, um sentimento religioso, que Jean Reynaud, professor da Universidade de Paris, nos explica nestes termos no seu belo livro L’Esprit de la Gaule:

  “Não se pode achar uma outra origem para esta arquitectura primitiva a não ser no respeito supersticioso de que os primeiros homens deviam sentir-se penetrados para com a majestade da terra. Eles deviam recear, naturalmente, cometer um sacrilégio, aventurando-se a modificar a figura desses blocos de formas inexplicáveis... Essa arquitectura simboliza a época em que o homem já quer erigir monumentos e não ousa ainda submeter aos ultrajes do martelo a face augusta da terra.”

  As costas da Moselle e os “altos do Meuse”, isto é, as duas cadeias de colinas que cercam esses rios, eram na maioria coroadas de fortalezas e mesmo de monumentos consagrados aos deuses e às deusas locais: Teutatès, Taran, Belen, Rosmerta, Serona, deusa das águas, que não eram, na realidade, mais do que génios tutelares, espíritos protectores das tribos. Todos esses vestígios provêm de duas grandes tribos célticas: os Médiomatriques, que tinham por capital Metz (Divorentum) e os Leuques, cujo principal centro era Toul. (iii)

(iii) Ver Parisot, Histoire de Lorraine.

  Os Médiomatriques tinham enviado seis mil homens para levantar o bloqueio de Alésia, enquanto que os Leuques, aliados dos Trévires, resistiam aos germanos.

  São Jerónimo dizia, no século IV, que a língua céltica era ainda usada em Verdun e em Toul, onde atrapalhou o progresso do Cristianismo.

/... 



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO VI – A Lorraine e os Vosges. Joana d’Arc, alma céltica 2 de 3, 20º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Interpretações erróneas sobre a homossexualidade ~

Na palavra homossexualidade o prefixo homo não se refere a homem, mas a igual ou semelhante. Esse é o sentido do prefixo grego que equivale a homogéneo ou homogeneidade. A palavra abrange, portanto, todos os casos de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, homens e mulheres. Há no meio espírita a tendência de se atribuir essa perversão ao processo de reencarnação. Tornou-se mesmo comum dizer-se que um afeminado revela com isso que foi mulher na encarnação anterior e que a mulher de aspecto e atitudes viris foi homem. O sexo é um caso de polaridade das funções genésicas. Essa polaridade é universal, manifesta-se em todas as coisas e em todos os seres. A sexualidade é uma das condições gerais do organismo. As leis de evolução determinam o sexo de acordo com as necessidades evolutivas do indivíduo. Sexo forma o carma, mas não é carma. O homem e a mulher são seres complementares. Na dialéctica da evolução eles se emparelham, formam a parelha humana destinada a conjugar-se e não a opor-se reciprocamente. Essa é uma antiga concepção que vem da mais alta antiguidade. Foi dela que nasceu o mito dos hermafroditas, filhos de Hermes e Afrodite, que reuniam em si os elementos femininos e masculinos. Segundo Sócrates, os primeiros habitantes da Hélade eram os andrógenos, ligados pelas costas, que andavam girando com grande velocidade e resolveram subir ao Monte Olimpo para desalojar os deuses. Zeus os castigou, cortando-os pelas costas, de maneira a separar o feminino e o masculino. Desde então as duas metades se perderam e procuram reencontrar-se e se ligarem de novo no amor, sob o poder de Eros.

O mito representa a condição humana total, em que a sexualidade revela a sua unidade primitiva, que se diferenciou no tempo em feminino e masculino. As existências actuais confirmam a essência simbólica do mito, mostrando o aspecto de polaridade das funções genéticas do homem. Todos os homens e mulheres são igualmente dotados da sexualidade única, que só se divide e se diferencia no plano funcional. Como ensina Allan Kardec, homens e mulheres têm os mesmos direitos, mas funções diferentes.

A natureza humana é una, mas sobre ela se recortam as figuras do homem e da mulher, diferenciando-se apenas pelas exigências do sexo. Mas há nessas teorias um aspecto ainda mais deprimente, que consiste no desrespeito à dignidade feminina. A mulher normal e decente não emprega as suas funções sexuais no sentido aviltante que os teóricos analfabetos lhe atribuem. Se um espírito passou pela encarnação feminina para adquirir nela as virtudes da maternidade, da ternura, da paixão pela beleza e a harmonia, como podemos conceber esse espírito aviltando-se e aviltando a espécie humana na fonte sublime da maternidade? Onde estaria o senso dos espíritos benevolentes, ao serviço de Deus nos laboratórios da reencarnação, para insistirem na técnica da perversão? Teorias dessa espécie defendidas levianamente no meio doutrinário envilecem a doutrina e fazem as pessoas de bom senso julgarem que somos uma tropilha de ignorantes.

Devemos ainda atentar para os aspectos científicos da questão. Os desequilíbrios sensoriais podem ser provocados pela educação deformante da criança. As sensações mórbidas provocadas nas primeiras fases da infância levam geralmente a distúrbios perigosos. Freud é ainda hoje censurado pelo seu pansexualismo, mas os estudiosos sérios das suas obras sabem que a razão o assistia nesses exageros que não eram propriamente dele, mas da realidade queimante que a investigação da libido lhe punha nas mãos de pioneiro. O misticismo religioso, com o seu insistente e criminoso estrangulamento das energias genéticas da espécie, das quais depende a sobrevivência humana, produziu maior número de monstros do que geralmente se pensa. Durante dois mil anos os pregadores de abstinências impossíveis violaram a naturalidade do sexo, entregando as suas vítimas à sanha dos espíritos inferiores, íncubos e súcubos, que punham clérigos e freiras em delírio nos mosteiros e conventos. Aldous Huxley nos conta, em Os Demónios de Loudun como foi estabelecida a taxa especial para a liberdade sexual dos padres celibatários durante a Idade Média. A hipocrisia e a depravação foram as flores mortais da semeadura de santidade forçada. É inacreditável que, agora, espíritas ingénuos, desconhecedores de sua própria doutrina – em que as leis de Deus são as próprias leis naturais – levantem essa acusação monstruosa à lei divina da reencarnação.

A extrema sensibilidade dos órgãos sensoriais, apta à captação da estesia, complica-se no homem com o desenvolvimento da imaginação que o leva à busca do prazer. A inquietação humana decorre da encarnação, da prisão do espírito na carne. Mas a própria carne lhe oferece as vias de fuga da imaginação e do prazer. O espírito é liberdade e quer se afirmar como tal na existência, mas as barreiras do seu condicionamento humano o impedem de ser realmente o que é. O instinto de liberdade o arrasta para as vias de escape. As proibições formais da sociedade e da cultura, freando-lhes os impulsos genésicos e as influências de um passado milenar de abusos e recalques, acrescido das restrições morais que o encurralam na consciência em desenvolvimento, geram o trágico pandemónio da libido. Unamuno foi benevolente ao considerar o homem como um drama. Mais do que isso, ele se apresenta na existência como uma tragédia. Veja-se o desespero de Sartre, que impossibilitado de pôr ordem no caos, se precipitou no suicídio conceptual da frustração e do nada. A ideia absurda da nadificação o acalmou de tal forma que ele se empenhou a sustentá-la mesmo ante as conquistas científicas que o tornaram perempto antes do tempo. Alguns teólogos medievais costumavam dizer que o homem não pode colher os frutos do Paraíso antes do tempo. A simbólica expulsão de Adão do Paraíso dá-nos o quadro vivo dessa precipitação. A mulher, considerada inferior nas sociedades patriarcais, representa o instrumento da serpente (símbolo fálico) para levar o homem à desobediência. Agora, como se não bastasse essa injustiça mitológica, queremos também imputar-lhe a responsabilidade do homossexualismo através da reencarnação. O mito grego dos homens bissexuados, que Zeus separou para defender o Olimpo, repõe a mulher na sua dignidade aviltada. A metade perdida torna-se exigência vital, que o homem busca no plano existencial, reconhecendo nela a sua aspiração imediata, para fazê-la de novo sua companheira e parceira, sonho e ideal, mãe e irmã, apoio e estímulo, que nos tempos líricos da cavalaria medieval e castelã, senhora e mártir ao mesmo tempo, escravizada ao garrote vil dos cintos de castidade. Ambivalência monstruosa em que a dama sublime era transformada em suposta criminosa condenada por suspeição.

Ver num jovem efeminado a reencarnação de uma mulher pervertida é fugir à realidade universal das perversões masculinas, sempre mais brutais que as femininas. Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo, colocou bem esse problema de transferência estúpida e até mesmo covarde. As lésbicas gregas, como Safo, de inteligência e sensibilidade refinadas, viviam numa condição histórica e cultural muito diferente da nossa, integradas numa concepção do mundo que era global, gestáltica e não fragmentária como a nossa. O ideal do Belo, que Platão levara à suprema expressão, dominava o pensamento grego. A contemplação dos belos corpos, dizia o filósofo, eleva a alma aos planos divinos. Não era a sensação grosseira e banal, o refocilar dos porcos na lama, que atraía essas criaturas, mas a estesia pura ante a beleza perfeita. Já em Roma a situação era outra e os antigos camponeses transformados em conquistadores do mundo geravam as messalinas, flores espúrias de um mundo em que a práxis esmagava a herança da Grécia, mas desenvolvendo os resquícios da barbárie romana. Por isso, chegamos ao cúmulo de atribuir a Sócrates, como o fizeram Anito e Melito, a pecha de perversão. A nossa incapacidade para compreender o mundo em que o ideal superava o pragmático é inegável. Ernst Cassirer, em A Tragédia da Cultura, mostra-nos como arrancamos das ruínas de antigas civilizações, com garras de primatas, a impregnação do passado. Não recebemos a herança viva, mas os resíduos mortos que trazem o frio mineral das estátuas. Não somos capazes de medir o passado pela sua dimensão real e o reduzimos às nossas próprias dimensões. Benét Sanglé, fascinado pela figura de Cristo, colocou-o na retorta da psiquiatria e o transformou em louco no seu livro La Folie de Jesus. É geralmente assim que procedemos, com a sensibilidade embotada do nosso pragmatismo. O nosso refinamento é exterior e superficial. Por baixo das camadas de verniz da civilização actual carregamos os monstros que puseram as suas garras de fora na última Conflagração Mundial, no genocídio atómico de Nagasaki e Hiroshima, nas escaladas americanas sobre o Vietname. A prova disso está aí, flagrante e horrenda, nas violências tecnológicas de nosso século. E isso porque imolamos o espírito à matéria. Esquecemos a nossa origem, essência e destino divinos para nos proclamarmos senhores de um mundo de fome e miséria.

Outra explicação da homossexualidade atribui aos velhos a responsabilidade da perversão. Segundo os autores dessa teoria os velhos, ao perderem a virilidade, entregam-se a excitações indevidas, e quando o espírito volta a reencarnar-se, traz na sua bagagem esse estranho contrabando. Tivemos a oportunidade de contestar um dos autores num programa de televisão, no canal 13 de São Paulo. É incrível a leviandade com que certas pessoas, escudando-se em títulos universitários, mas sem critério científico, fazem afirmações dessa espécie. A generalização é tremendamente ofensiva. A dignidade, que sempre encontrou na senectude a sua mais bela expressão, esboroa-se nas mãos desses teóricos improvisados que nada respeitam. Os sectores da Espiritualidade incumbidos dos processos reencarnatórios tornam-se negligentes e insensíveis aos olhos desses teóricos do absurdo. A reencarnação, por sua vez, perde a sua validade como instituto de reparação e evolução. A desoladora falta de compreensão dos objectivos naturais da reencarnação, por parte desses diplomados por acaso ou negligência, chega a escandalizar as pessoas de bom senso. A mesquinhez dessas suspeitas infundadas revela a mentalidade tacanha desses pseudocientistas, que se apresentam como pesquisadores. Todas as pessoas que compreendem a doutrina da reencarnação sabem que esse processo universal é um dos meios de controle da evolução geral. Procurar motivos específicos e ridículos para manifestações de desequilíbrio já suficientemente conhecidos é querer confundir a questão. Não há razão para essas invenções ou invencionices, quando a perversão dos instintos naturais é uma constante da evolução em todos os seus campos. Geração e corrupção, como ensina Aristóteles, são a antítese e a tese da dialéctica da criação, mas nos limites temporais do processo. A regularidade das leis naturais que determinam a sistemática evolutiva não comporta especulações bastardas. A própria grandeza do destino humano, da destinação superior do homem no Universo, repele essas tolices. Cada ser e cada espécie estão submetidos à lei da harmonia e perfeição que rege, do minério ao homem, o desenvolvimento das potencialidades da criação. O dínamo-psiquismo-inconsciente de Geley a que já nos referimos, oferece-nos uma visão grandiosa do processo evolutivo que amesquinha por si mesmo essas especulações sem sentido.
/…



José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Interpretações Erróneas sobre a Homossexualidade, 15º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Seres Radiantes do espaço ~


Capítulo III (III)

Vamos examinar, agora, a questão das forças radiantes sob o ponto de vista da experiência espírita e da intervenção dos espíritos; resumimos, aqui, as instruções dos guias:

Os experimentadores chamados psiquistas nem sempre são imparciais no seu controle e atraem para si forças nocivas. Ainda não chegou para eles o momento de novas revelações; ele virá quando estes se aperceberem das novas ondas que trazem uma corrente de ideias mais elevada. Receber-se-ão as orientações sobre o modo de captar as ondas desconhecidas através dos médiuns.

É preciso que os espíritos sérios e convictos, contando com médiuns sensíveis, trabalhem para que estes constatem a existência das ondas desconhecidas e, assim, poderem dar a fórmula aos seus cientistas.

Não basta que os médiuns recebam essas ondas, como acontece nas manifestações, é preciso que eles percebam a forma e forneçam os meios de vulgarizá-las.

Até agora os espíritas não estão suficientemente orientados nesse sentido. Esforcem-se para dirigir a visão psíquica na direcção desses feixes radiantes, para que a Ciência aprenda a conhecê-los e a utilizá-los.

Os fenómenos meramente visuais não são suficientes. Seria melhor descobrir a causa, antes de constatar o efeito. As materializações poderiam dar elementos sobre isso, sob certas condições. Seria preciso determinar as leis que dirigem o andamento e a aplicação das forças radiantes.

Há cinquenta anos, os espíritos procuram levar os sábios em direcção àqueles em quem encontram disposições favoráveis para reconhecer, directamente, e analisar as correntes do Espaço. Mas esses sábios somente captaram uma ínfima parte dos elementos que compõem as radiações e nos servem para transmitir o nosso pensamento.

Excepcionalmente, Pierre Curie |* quase chegou a descobrir o princípio das forças universais e o seu génio ultrapassaria os limites fixados, mas nesse caminho, convém ir por etapas sucessivas e graduadas. A vossa evolução não é suficiente para, de um único salto, atingir o objectivo. Se, a partir de agora, a Ciência descobrisse o fio condutor que religa todos os seres e todos os mundos, resultaria numa grande perturbação para o espírito humano. O poder adquirido seria, sobretudo, usado para o mal. O orgulho e o espírito de revolta se utilizariam desse mal para subverter ou destruir uma obra de séculos.

Necessário seria, então, que o Sr. Curie desaparecesse do campo terrestre, |** mas, no Além, Deus permite que ele prossiga os seus trabalhos e que inspire os seus antigos colaboradores.

O materialismo retirou à Ciência o carácter de grandeza e de elevação moral que a tornaria digna de receber a revelação suprema, de recolher o depósito sagrado. O espírito materialista, ensoberbecido de uma tal conquista, se ergueria contra Deus. Mas no dia em que, impregnado de um espírito novo, o sábio tiver assimilado essas radiações superiores que sintetizam toda a vida universal, ele reverenciará a obra Divina.

Então, o Espiritismo, unido à Ciência, transformará a Terra num mundo evoluído. Enquanto esperam, os espíritas, em vez de se interessarem por esses fenómenos exteriores e materiais que absorvem actualmente a atenção dos cientistas, devem orientar os seus trabalhos, com a ajuda de médiuns bem-educados, para a visão das correntes fluídicas que lhes revelarão a existência dessas ondas radiantes de que a electricidade é apenas uma partícula elementar. |***

Não será nas grandes cidades que se vão encontrar médiuns semelhantes, porque os feixes fluídicos se chocam com as emanações mórbidas, fazendo diminuir a condutividadeSão necessários médiuns de natureza simples e pura, eu diria, quase ingénuos, em ambientes pacíficos e acolhedores, onde a comunhão se possa estabelecer mais facilmente com as entidades protectoras e os génios do Além.

Com o auxílio de médiuns dessa classe, os espíritos guias chegariam até a produzir ondas condensáveis em gotas de água nas próprias mãos do sensitivo. As pessoas presentes poderiam constatar-lhe a existência, seja pelo contacto nos dedos do médium, ou ainda por meio de chapas fotográficas que fixam as correntes fluídicas produtoras desses efeitos.

/…

|* Físico e químico francês (1859-1906), descobriu, com a esposa Marie, o rádio, elemento químico.
|** Morreu aos 46 anos, por atropelamento, em Paris. Participou em sessões espíritas!
|*** O electrão.



Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo III, 3 de 4, 9º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Anos e Anos de Viagem Sideral, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria I Posição do Problema (III)

  No conjunto de um sistema em movimento, toda a peça que se obstinasse em estacionar recuaria realmente. Nos nossos dias, já não é admissível dizer-se, dogmaticamente, que tal ou tal noção é perfeita e deve guardar o ataque da infalibilidade: ou se faz, ou se não faz parte da marcha progressiva do espírito. No primeiro caso, importa acompanhá-lo integralmente e, no segundo, há que confessar-se em atraso. Eis o que precisa ficar bem claro.

  Digamo-lo francamente: em ciência experimental, Deus não pode ser admitido a priori e muito menos a destinação, ou finalidade, que presumimos apreender nas obras da Natureza.

  As doutrinas apriorísticas caducaram, já se não admitem.

  Confessemo-nos com os materialistas e perguntemos se os que tomaram Deus e não a Natureza como ponto de partida explicaram, algum dia, as propriedades da matéria ou as leis que governam o mundo. Puderam eles dizer-nos da mobilidade ou imobilidade do Sol? – se a Terra era plana ou esférica? – quais os desígnios de Deus, etc.? Absolutamente. Mesmo porque, seria impossível. Partir de Deus para investigação e exame da Criação é processo baldo de nexo e de sentido. Esse precário método para estudar a Natureza e inferir consequências filosóficas, no pressuposto de poder, com uma simples teoria, construir o Universo e fixar as verdades naturais, desacreditou-se, felizmente, há muito tempo.

  Mas, pelo facto de havermos substituído a hipótese precedente pelos resultados do exame a posteriori, segue-se que devamos fechar os olhos e negar a inteligência, a sabedoria, a harmonia reveladas pela própria observação? Haverá motivo para repudiar toda e qualquer conclusão filosófica e ficar a meio caminho, temerosos de atingir o fim? E deveremos, por isso, rendermo-nos aos cépticos contemporâneos que, sem embargo de evidência, rejeitam toda luz e toda conclusão?

  Pensamos que não. Muito ao contrário, pelo método que preconizam, constatamos as suas recusas e inconsequências.

  Antes de qualquer controvérsia, importa determinar as posições recíprocas, por evitar mal-entendidos, esperando nós que as declarações precedentes bastem para esclarecer categoricamente a nossa atitude.

  Combateremos francamente o materialismo, não com as armas da fé religiosa, não com os argumentos da fraseologia escolástica, não com as autoridades tradicionais, mas pelos raciocínios que a contemplação científica do Universo inspira e fecunda.

   Examinemos preliminarmente, num lanço-de-olhos, de conjunto, o processo geral do ateísmo hodierno.

  Esse processo assemelha-se sensivelmente ao de que se utilizou o barão de Holbach, nos fins do século passado, para fundamentar o seu famoso Sistema da Natureza, obra de um materialismo vulgar, para a qual achava Goethe não haver suficiente desprezo e costumava averbar de – “legítima quintessência da senectude, inepta e insulsa”. O novo processo, mais exclusivamente científico, todavia, consiste principalmente em declarar que as forças que dirigem, não dirigem o mundo, isto é: que em vez de governarem a matéria, antes se lhe escravizam e que é a matéria (inerte, cega, desprovida de inteligência) que, movendo-se de si mesma, se governa mediante leis, cujo alcance ela não pode, todavia, apreciar.

  Pretendem os nossos materialistas actuais que a matéria existe de toda a eternidade, revestida de umas tantas propriedades, de certos atributos e que essas propriedades qualificativas da matéria bastam para explicar a existência, estado e conservação do mundo.

  Dessarte, substituem um Deus-espírito por um Deus-matéria.

  Ensinam que a matéria governa o mundo e que as forças químicas, físicas, mecânicas, não passam de qualidades.

  Para refutar um tal sistema, há que tomar, por conseguinte, o partido contrário e demonstrar um Deus-espírito, antes que um Deus-matéria, incompreensível, a reger a matéria; estabelecer que a substância é escrava antes que proprietária da força; provar que a direcção do mundo não cabe às moléculas cegas que o constituem, mas a forças sob cuja acção transparecem as leis supremas.

  Fundamentalmente, o problema se resume nesta demonstração e nós esperamos que ela ressaltará brilhante dos estudos objectivados neste nosso trabalho.

  E de vez que os adversários se apoiam em legítimos factos científicos para estabelecer o erro, cumpre-nos contrabatê-los com esses mesmos factos.

  A bem dizer, ainda que se demonstrasse que o Universo não é mais que um mecanismo material, cujas forças não se conjugam a um motor, mas remontam a matéria, subindo e descendo incessantes num sistema de motilidade perpétua, nem por isso a causa divina estaria perdida.

  Contudo, desde os primórdios da Filosofia, a partir de Heráclito e Demócrito, o sistema mecânico do mundo constituiu-se o refúgio e o argumento dos ateus, enquanto o sistema dinâmico albergava e escorava os espiritualistas.

  Nós, por princípio, filiamo-nos à concepção dinâmica e combatemos o sistema incompleto de um mecanismo sem construtor. Muito judiciosamente, diz Caro: (I) – por um lado o mecanismo tudo explica, mediante combinações e agrupamentos de átomos eternos. Todas as variedades de fenómenos, o nascimento, a vida, a morte, mais não são que o resultado mecânico de composições e decomposições, a manifestação de sistemas atómicos que se reúnem e se separam.

  O dinamismo, ao contrário, subordina todos os fenómenos e todos os seres à ideia de força.

  O mundo é a expressão, seja de forças opostas e harmoniosas entre si, seja de uma força única, cuja metamorfose perpétua engendra a universalidade dos seres.

  Pode-se constatar que, não obstante ser a explicação secundária das coisas, até certo ponto, independente da primária, ou metafísica, a História atesta o facto constante de uma afinidade natural: de um lado, entre a explicação mecânica e a hipótese supressiva de Deus; e de outro lado, entre a teoria dinâmica e a hipótese que diviniza o mundo em seu princípio.
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(I) La Philosophie de Goethe, capítulo 6º.



Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 3 de 6, 7º fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Diálogos de Kardec ~


Causa e natureza da clarividência sonambúlica - Explicações do fenómeno da lucidez




   Sendo de natureza diversa das que ocorrem no estado de vigília, as percepções que se verificam no estado sonambúlico não podem ser transmitidas pelos mesmos órgãos. É sabido que neste caso a visão não se efectua por meio dos olhos que, aliás, se conservam, em geral, fechados e que até podem ser abrigados dos raios luminosos, de maneira a afastar todo motivo de suspeita. Ao demais, a visão à distância e através dos corpos opacos exclui a possibilidade do uso dos órgãos ordinários da vista. Forçoso é, pois, se admita que no estado de sonambulismo um sentido novo se desenvolve, como sede de faculdades e de percepções novas, que desconhecemos e das quais não nos podemos aperceber, senão por analogia e pelo raciocínio. Bem se vê que nada de impossível há nisso; mas, qual a sede desse novo sentido? Não é fácil determiná-la com exactidão. Nem mesmo os sonâmbulos fornecem a tal respeito qualquer indicação precisa. Uns há que, para verem melhor, aplicam os objectos sobre o epigastro, outros sobre a fronte, outros no occipital. O sentido de que se trata não parece, portanto, circunscrito a um lugar determinado; é, todavia, certo que a sua maior actividade reside nos centros nervosos. O que é positivo é que o sonâmbulo vê. Por onde e como? É o que nem ele mesmo pode explicar.

   Notemos, porém, que, no estado sonambúlico, os fenómenos da visão e as sensações que o acompanham são essencialmente diferentes do que se passa no estado ordinário, pelo que não nos serviremos do termo ver, senão por comparação e por nos faltar naturalmente um com que designemos uma coisa desconhecida. Um povo composto por cegos de nascença certo careceria de uma palavra para designar a luz e referiria as sensações que ela produz a alguma das que lhe fossem familiares por lhes estar ele sujeito.

   Alguém procurava explicar a um cego a impressão viva e deslumbrante da luz sobre os olhos. Compreendo, disse eleé como o som de uma trombeta. Outro, um pouco mais prosaico sem dúvida, ao qual queriam fazer que compreendesse a emissão dos raios luminosos em feixes ou cores, respondeu: Ah! sim, é como um pão de açúcar. Estamos nas mesmas condições, relativamente à lucidez sonambúlica: somos verdadeiros cegos e, do mesmo modo que estes últimos com relação à luz, comparamo-la ao que tem mais analogia com a nossa faculdade visual. Mas, se quisermos estabelecer uma analogia absoluta entre essas duas faculdades e julgar de uma pela outra, forçosamente nos enganaremos, como os dois cegos que acabamos de citar. É esse o erro de quase todos os que procuram pretensamente convencer-se pela experiência: intentam submeter a clarividência sonambúlica às mesmas provas que a vista ordinária, sem ponderarem que entre elas a única relação existente é a do nome que lhes damos. Daí, como os resultados nem sempre lhes correspondem à expectativa, acham mais simples negar.

   Se procedermos por analogia, diremos que o fluido magnético, disseminado por toda a Natureza e cujos focos principais parece que são os corpos animados, é o veículo da clarividência sonambúlica, como o fluido luminoso é o veículo das imagens que a nossa faculdade visual percebe. Ora, assim como o fluido luminoso torna transparentes corpos que ele atravessa livremente, o fluido magnético, penetrando todos os corpos sem excepção, torna inexistentes os corpos opacos para os sonâmbulos. Tal a explicação mais simples e mais material da lucidez, falando do nosso ponto de vista. Temo-la como certa, porquanto o fluido magnético incontestavelmente desempenha importante papel nesse fenómeno; ela, entretanto, não poderia elucidar todos os factos. Há outra que os abrange a todos; mas, para expô-la, fazem-se indispensáveis algumas explicações preliminares.

   Na visão à distância, o sonâmbulo não distingue um objecto ao longe, como o faríamos nós com o auxílio de uma lunetaNão é que o objecto, por uma ilusão de óptica, se aproxime dele, ELE É QUE SE APROXIMA DO OBJECTO. O sonâmbulo vê o objecto exactamente como se este se achasse a seu lado; vê-se a si mesmo no lugar que ele observa; numa palavra: transporta-se para esse lugar. Seu corpo, no momento, parece extinto, a palavra lhe sai mais surda, o som da sua voz apresenta qualquer coisa de singular; a vida animal também parece que se lhe extingue; a vida espiritual está toda no lugar aonde o transporta o seu próprio pensamento: somente a matéria permanece onde estava. Há pois uma certa porção do ser que se lhe separa do corpo e se transporta instantaneamente através do espaço, conduzida pelo pensamento e pela vontade. Evidentemente, é imaterial essa porção; a não ser assim, produziria alguns dos efeitos que a matéria produz. É a essa parcela de nós mesmos que chamamos: a alma.

   É a alma que confere ao sonâmbulo as maravilhosas faculdades de que ele goza. A alma é quem, dadas certas circunstâncias, se manifesta, isolando-se em parte e temporariamente do seu invólucro corpóreo. Para quem quer que haja observado com atenção os fenómenos do sonambulismo em toda a sua pureza, é patente a existência da alma, tornando-se-lhe uma insensatez demonstrada até à evidência a ideia de que tudo em nós acaba com a vida animal. Pode-se, pois, dizer com alguma razão que o magnetismo e o materialismo são incompatíveis. Se alguns magnetizadores se afastam desta regra e professam as doutrinas materialistas, é sem dúvida que se hão cingido a um estudo muito superficial dos fenómenos físicos do Magnetismo e não procuram seriamente a solução do problema da visão à distância. Como quer que seja, nunca vimos um único sonâmbulo que não se mostrasse penetrado de profundo sentimento religioso, fossem quais fossem suas opiniões no estado vigíl.

   Voltemos à teoria da lucidez. Sendo a alma o princípio básico das faculdades do sonâmbulo, necessariamente nela é que reside a clarividência e não nesta ou naquela parte circunscrita do corpo material. Essa a razão por que o sonâmbulo não pode indicar o órgão dessa faculdade, como designaria os olhos, se se tratasse da visão exterior. Ele vê por todo o seu ser moral, isto é, por toda a sua alma, visto que a clarividência é um dos atributos de todas as partes da alma, como a luz é um dos atributos de todas as partes do fósforo. Onde quer, pois, que a alma possa penetrar, há clarividência; essa a causa da lucidez dos sonâmbulos através de todos os corpos, sob os mais espessos envoltórios e a todas as distâncias.

   Uma objecção, como é natural, se apresenta a esse sistema e apressamo-nos a responder a ela. Se as faculdades sonambúlicas são as mesmas da alma desprendida da matéria, por que não são constantes essas faculdades? Por que alguns sonâmbulos são mais lúcidos do que outros? Por que, num mesmo indivíduo, a lucidez é variável?

   Concebe-se a imperfeição física de um órgão; mas não se concebe a da alma.

   Esta se acha presa ao corpo por laços misteriosos que não nos fora dado conhecer antes que o Espiritismo houvesse demonstrado a existência e o papel do perispírito. Tendo sido esta questão tratada de modo especial na Revista Espírita e nas obras fundamentais da doutrina, não nos alargaremos aqui sobre ela, limitando-nos a dizer que é pelos nossos órgãos materiais que a alma se manifesta no exterior. No nosso estado normal, essas manifestações ficam naturalmente subordinadas à imperfeição do instrumento, do mesmo modo que o melhor artífice não pode fazer obra perfeita com utensílios maus. Assim, por muito admirável que seja a estrutura do nosso corpo, qualquer que tenha sido a providência da Natureza, com relação ao nosso organismo, para o exercício das funções vitais, acima desses órgãos sujeitos a todas as perturbações da matéria, há a subtileza da nossa alma. Enquanto, pois, ela se conserva presa ao corpo, sofre-lhe os entraves e as vicissitudes.

   O fluido magnético não é a alma; é um liame, um intermediário entre a alma e o corpo. Actuando mais ou menos sobre a matéria é que ele torna mais ou menos livre a alma, donde a diversidade das faculdades sonambúlicas. O sonâmbulo é o homem despojado apenas de uma parte das suas vestiduras e cujos movimentos são embaraçados pelo que lhe resta dessas vestiduras.

   Somente quando tem alijado de si os últimos restos da ganga terrena, como a borboleta que abandona a sua crisálida, se encontra a alma na plenitude de si mesma e goza de liberdade completa no uso de suas faculdades. Se houvesse um magnetizador bastante poderoso para dar liberdade absoluta à alma, romper-se-ia o liame terrestre e a morte imediata se seguiria. O sonambulismo, portanto, fez que puséssemos o pé na vida futura; ergueu uma ponta do véu sob que se ocultam as verdades que o Espiritismo nos faz hoje entrever. Não na conheceremos, todavia, em sua essência, senão quando nos houvermos desembaraçado por completo da cobertura material que neste mundo a obscurece.
/…



ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Causa e natureza da clarividência sonambúlica, Explicação do fenómeno da lucidez, 6º fragmento solto da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ (III)

  Para um desses redutos, onde agora sofria o duque as ásperas agruras de que Girólamo se tornara responsável, é que ele conduziu o sobrinho, a fim de produzir na sua memória espiritual o choque inicial do horror, por meio do qual a sincronização com a região da treva faria o culpado começar a pagar o pesado e duro tributo da regeneração impostergável.

  Inerme, descomposto, o espírito encarnado foi arrastado ao núcleo de punição devida e, quando sentiu a atmosfera asfixiante e se pôde dar conta do espectro que o vituperava, foi acometido de tão pungente sofrimento que o corpo, no leito distante, traduzia a dor em gritos, estertores e agitação penosos…

  O dia marchava alto e a cidade estava em bulha crescente. Sobressaltada pela atroada que vinha da peça do hóspede e estando a sós àquela hora, sem sopitar o desejo que a fazia fremir, Lucrécia, a anfitriã desassisada, resolveu afrontar os códigos da moral e experimentar o risco de qualquer dano, correndo precípite pela recâmara, e, vendo o hóspede agónico, avançou, audaciosa, e o despertou com agitação.

  Atraído ao corpo, – sublime refúgio para os viciados e culpados –, Girólamo ergeu-se, descorado, trémulo, a custo recobrando o controle dos sentidos estiolados. Vencida a primeira etapa do despertamento amargo, dando-se conta da presença da bela mulher, apressou-se em explicar o grave incidente.

  – Devo estar enfermo, – gaguejou, estremunhado. – Desde a saída do meu solar venho sendo vítima de pesadelos incessantes. Em lucidez, sinto-me acoimado por demónios vingadores e, agora, dormindo, sinto-me arrastado ao inferno…

  – Meu belo forasteiro – retrucou a arisca, em leviandade imperdoável –, seu mal deve ter outra origem…

  Sorriu, generosa, provocante. Acercou-se do moço alucinado, ainda, pelo receio e as sedas fartalhantes roçaram o corpo venal do rapaz. Dela se desprendiam os aromas fortes, luxuriosos, então em voga. Atraente, sabia como utilizar a arma da sensualidade. Curvando-se sobre ele, com o pretexto aparente de enxugar-lhe o suor, levou as mãos à face vincada por olheiras, que Girólamo apresentava, e acariciou-o. Subitamente abrasado, insensível a qualquer sentimento de gratidão ou respeito ao lar que o acolhia, espicaçado nos sentimentos inferiores, aos quais muito facilmente dava campo, o ardente senense arrebatou-a e, fogoso, na volúpia de mais um cometimento sórdido, beijou-a demorada, sofregamente.

  O tempo não lhes tinha significação, nem o local, que deveria ser sagrado, na condição de um santuário doméstico legalmente constituído. Na paixão que os desgovernava, iam dar curso ao atentado à dignidade, quando o moço, febril pelo desejo e lapso pelas perversões contínuas do corpo, escutou a estrídula gargalhada explodir dentro da cabeça.

  Fulminante pelo desespero, empurrou Lucrécia sobre o leito, segurou a cabeça com as duas mãos e chocou-a contra as pedras da parede, como se a desejasse arrebatar. A mulher, surpreendida pelo inesperado insucesso, recuou, amedrontada, ao fitar o moço repentinamente possuído pela demência. Horrorizada, desceu a escada, para buscar o esposo no andar térreo da habitação nabada e explicar-lhe o desalinho do hóspede.

  Informado do súbito mal-estar do companheiro, Francesco, que se encontrava no pátio interno do palácio, subiu a escada com celeridade e pôde impedir que o amigo enceguecido culminasse, naquele transe, numa tragédia imprevisível.

  – Talvez te tenhas perturbado com o áugure, falou-lhe, tentando acalmá-lo. – Não te deveria ter conduzido àquele local. Estavas agitado e talvez as informações e magias do louco te tivessem afectado. Mandarei um servo chamar o médico e logo mais estarás pronto para enfrentar o dia quente, para nós promissor.

  Ante a naturalidade do amigo, Girólamo aquiesceu e acalmou-se, prometendo asserenar-se.

  Não podia, porém, compreender o que se passava. Sempre pudera dominar os impulsos nos momentos oportunos, dissimulando os estados íntimos, mesmo quando comandado por emoções violentas. Até ali era tido por cidadão honrado e nobre respeitado. O seu título aureolava-o de prestígio e, como cavaleiro, caminhava em destaque ao lado das personalidades de preeminência da cidade. Deveria estar enlouquecendo e a providência de chamar o médico parecia-lhe acertada. Aguardara aquele momento, reflexionava, para viver intensamente a vida nocturna de Siena, nos dias da Festa, e aquela enfermidade parecia disposta a impedi-lo. Não procurára os sogros por desejar que a sua presença passasse despercebida. Planejava visitá-los após o prazer exacerbado, quando já estivesse de retorno, defendendo, com esse acto, a retaguarda. No entanto…

  Pudesse, porém, o leviano ver além da barreira orgânica e enxergaria, contraído e carrancudo, o duque di Bicci, irreconhecível na sua deformação exterior, agressivo, tendo Assunta a debater-se nas suas mãos poderosas, enquanto blasfemava, vingador, insaciável, desforçando-se naquela que ajudara o amante a arrojá-lo no couto da amargura. As expressões mais sórdidas, que escapavam dos lábios contorcidos de Assunta, traduziam a fúria de que se via possuída e o superlativo desejo de vingança que a vergastava, a alucinava. Ameaçava o antigo companheiro, em ímpar agonia. Desejando libertar-se, entrou, também, em agressão, mas, impotente para tanto, por ser responsável consciente pelos delitos de que agora se tornava vítima, renhiu demoradamente e desmaiou nas garras poderosas que a lancinavam…

  Chegando o médico, este surpreendeu-se com a palidez do cliente. Fez-lhe um exame superficial, como era comum na época, e prescreveu-lhe vários duches, aplicando-lhes uma rápida sangria descongestionante e mais alguns medicamentos, cujas fórmulas elaborou. Sugeriu repouso, depois do que poderia tomar um bom cálice de vinho…

  Os sorrisos varreram a preocupação, encerrando a gravidade da doença.

  O dia transcorreu morno e activo. Saindo a pé com Francesco, para ligeiras visitas a amigos, ambos retornaram cedo ao palácio, afim de retemperaram as forças para o baile-de-máscaras que o duque di Médici preparara para aquela noite, em homenagem às comemorações do dia imediato.

  Os convites distribuídos anteriormente foram dirigidos a mais de duzentos ruidosos senenses e visitantes, empolgados com os surpreendentes prazeres que os aguardavam.

  O Palácio Médici, em situação privilegiada da cidade, era uma imensa fortaleza, no acme de uma colina, entre árvores vetustas e cercado de largo fosso, que resguardava os jardins exóticos, de rosas variadas, protegido pela Viale dei Mille.

  A construção, erguida por Cosme I (Médici), é vetusta e sobranceira, donde se tem a visão da cidade engalanada.

  Os salões da herdade seriam abertos, na oportunidade, ao grande público, para uma alucinante festa de prazer, das que a fizeram célebre noutros tempos. Já não desfrutando do mesmo prestígio do passado, desde a anexação da Toscana à Áustria, os Médici entregavam-se ao gozo, recuperando em dissipação o que perderam em destaque político. As autoridades governamentais, por motivos óbvios, receberam convite especial, com o justo destaque que a sua condição impunha. Ao lado das comemorações programadas para o dia imediato. Não apenas a nobreza e os convidados especiais, mas o povo também, que normalmente se comprimia nos arredores, foi convocado podendo adentrar-se pelos jardins, ao ensejo abertos a todos, para ver o desfile da grandeza e do luxo, enquanto nos seus lares escasseavam o pão e a paz…

  Conquanto Girólamo fosse considerado persona-non-grata no Palácio Médici, por motivos compreensíveis, a instâncias de Francesco e da esposa, que receberam honrosa solicitação, resolveu participar, desde que seria um baile de máscaras, em que se poderia ocultar o carácter sórdido da aparência social, na dissimulação pelo disfarce.

  Lucrécia, abalada e ansiosa, ante o estado do homem cobiçado, com quem não pudera consumar a leviandade, gastou o dia nos aprestos superficiais para o baile.
/…



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 3 de 4, 24º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

O Espiritismo na Arte ~


Sétima lição

(Acção do pensamento na literatura e na oratória)

|27 de Janeiro de 1922|

“Esta noite vamos abordar o domínio artístico, que tem por veículo puro o pensamento, o pensamento na literatura e na oratória. Na nossa última conversa mostramos como, sob o ponto de vista artístico, o reflexo do pensamento podia, graças a meios maravilhosamente subtis, ligar-se a moléculas fluídicas e, por meio de cores variadas, representando ideias, compor quadros nos quais a arte da cor reproduz cenas tendo o belo por símbolo; isso dito em forma de transição. E agora, qual será a acção do pensamento na arte?

O pensamento é, antes de tudo, um dom de observação. O ser humano, encarnado ou desencarnado, pode explorar, em pensamento, todos os meios. Deixaremos de lado os seres que têm o carácter essencialmente material e levam os seus pensamentos para mundos onde reina o espírito do lucro ou da luxúria.

Porém, no ser evoluído, o pensamento se elevará muito mais alto.

Vós sabeis que, na vossa Terra, esse pensamento se liga à pintura dos costumes, à análise dos caracteres, e se traduz em escritos que revestem formas mais ou menos simbólicas. No espaço, o pensamento torna-se naturalmente muito mais livre; ele possui em si mesmo o reflexo exacto de todos os sentimentos que, anteriormente, nele puderam imprimir-se e impressioná-lo em graus diversos. O espírito, quando está liberto da matéria e chegou a uma certa elevação, pode transmitir o seu pensamento directamente a seres ainda encarnados. Daí os fenómenos da inspiração.

Tomemos, por exemplo, um ser espiritual muito evoluído e que professe o culto da beleza perfeita. Ele reconhecerá na Terra os seres humanos cujo pensamento já se traduz em feixes luminosos. Ele sentir-se-á atraído para esses seres e o seu próprio pensamento irá misturar-se ao deles; as suas moléculas fluídicas vivificarão, de uma forma intensa, as moléculas materiais geradoras que brotam do cérebro do ser que vive no vosso mundo.

Os espíritos escritores se aproximarão dos artistas da pena; os antigos oradores sentir-se-ão atraídos para os mestres da palavra.

Eis a transmissão do espaço para um mundo. Porém, no ser evoluído, o desejo de fazer irradiar o seu pensamento através do espaço não é menor que aquele que o atrai em direcção aos mundos habitados. Tomemos, por exemplo, um grande pensador da Terra; de regresso ao espaço, ele revelará aos espíritos que o cercam a própria essência das virtudes adquiridas. Depois, lendo nos cérebros dos seres encarnados, ali projectará ondas impregnadas de todas as qualidades do seu pensamento.

É uma obra imperecível esta transmissão através dos corpos fluídicos, porque quando a irradiação do pensamento é intensa, ela impressiona os cérebros de tal maneira que estes guardam sempre a marca da impressão recebida.

Existe uma estreita correlação entre os pensadores da Terra e os do espaço. Certos espíritos passam a sua existência no espaço recolhendo essas impressões. Quando, por sua vez, se sentem capazes de fazer os seres menos evoluídos aproveitarem essas impressões, eles retornam à Terra e então vêm a ser esses grandes escritores, esses grandes poetas e essas pessoas ilustres que ganham a respectiva admiração daqueles que os cercam.

A arte da eloquência forma-se da mesma maneira, porém com mais subtileza. No orador, as vibrações do espaço são poderosamente sentidas através do organismo, em consequência de um trabalho mais intenso, efectuado antes do nascimento, e pela acção de uma vontade muito mais forte. Cada orador, em graus diferentes, possui o dom da intuição, mais ou menos desenvolvido. Em geral, as qualidades de um mestre da eloquência resultam de uma preparação realizada no espaço, graças à soma das impressões recebidas nesse meio.

Segundo a disposição das moléculas materiais, a arte, no homem de letras ou no orador, é mais ou menos pura. Tendes a prova desse facto considerando-se as diferentes classes de escritores, de poetas, de oradores. No escritor comum, o pensamento ainda é carregado de um materialismo grosseiro. No poeta, o ideal, o símbolo, distinguem-se mais e quanto mais puros mais admiráveis eles são. O mesmo acontece com o orador que, profano ou sacro, consagra o seu órgão físico à defesa e à difusão das máximas e dos preceitos que emanam quase de Deus.

As formas de exteriorização do pensamento são tão múltiplas quanto os indivíduos. As categorias de pensadores podem distinguir-se no espaço pela intensidade luminosa que se desprende do seu ser fluídico. A vossa palavra, de natureza absolutamente material, é algo desconhecido no espaço; assim sendo, quando um ser retorna a essa vida, ele deve submeter-se a uma nova adaptação e a sua linguagem tornar-se-á a da interpretação das cores. Na cor há uma gama de tal modo subtil e variada que as menores modulações podem representar as menores flutuações do pensamento.

Um ser apaixonado pela arte poderá receber e transmitir pensamentos de uma delicadeza infinita e eu vos asseguro que, em minha opinião, a arte no pensamento se aproxima mais de Deus do que as outras artes.

Que delícia é para nós, no espaço, sentir as vibrações de um ser tendo o carácter de uma pureza, de uma elevação notáveis e que se traduzem por radiações de uma tonalidade maravilhosamente rica em átomos fluídicos.

Não retornarei aqui à análise de todos os domínios do pensamento. Eu quis simplesmente dar-vos o mecanismo da transferência da arte da Terra ao espaço e o seu princípio fundamental no meio das camadas fluídicas. Acrescentarei, e insisto em vos dizer, que o pensamento é, para nós, a coisa mais fácil de se transmitir, porque temos uma verdadeira alegria em ajudar na iluminação moral dos seres que vos cercam.

Os vossos cérebros humanos, fechados às sublimes ideias emanadas do Ser Divino, não podem, actualmente, compreender o encadeamento das forças em acção no Universo. Que vos baste saber que o pensamento de Deus atinge todos os seres e todas as coisas, que nenhuma das suas radiações é perdida, e que o nosso papel, de nós, pobres libélulas, é transmitir o melhor de nós mesmos àqueles que nos podem compreender. A arte vem ajudar-nos nisso. Portanto, dediquem-se a pensar com arte. Amai aqueles que pensam bem. Porque, estejam certos disto, a própria essência desse pensamento é um reflexo da vida no espaço; lamentem aqueles que não sabem pensar. A arte é uma das formas da beleza e, como o pensamento, ela deve ser o seu veículo, porque a beleza encerra em si mesma os princípios da bondade, da grandeza e da justiça.
/…



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – Sétima lição / Acção do pensamento na literatura e na oratória, 18º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Da sombra do dogma à luz da razão ~


NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA (IV)

   Todas as ciências se encadeiam e se sucedem numa ordem racional; nascem umas das outras à medida que vão encontrando um ponto de apoio nas ideias e nos conhecimentos anteriores. A astronomia, uma das primeiras a ter sido cultivada, permaneceu nos erros da infância até ao momento em que a física veio revelar a lei da força dos agentes naturais; a química, nada podendo sem a física, iria suceder-lhe de perto, para depois caminharem as duas em conjunto, apoiando-se uma na outra. A anatomia, a fisiologia, a zoologia, a botânica, a mineralogia, só passaram a ser ciências sérias com a ajuda das luzes trazidas pela física e depois pela química. A geologia, nascida ontem, sem a astronomia, a física, a química e todas as outras, teria tido a falta dos seus verdadeiros elementos de vitalidade; só podia ter surgido depois.

   A ciência moderna fez justiça aos quatro elementos primitivos dos Antigos e, de observação em observação, chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria; mas a matéria, em si, é inerte; não possui vida, nem pensamento, nem sentimentos; precisa da união com o princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu nem inventou este princípio, mas foi o primeiro a demonstrá-lo por provas irrecusáveis; estudando-o, analisando-o, tornou-lhe a acção evidente. Ao elemento material veio acrescentar o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual; eis os dois princípios, as duas forças vivas da natureza. Pela união indissolúvel destes dois elementos, explicam-se sem dificuldade uma quantidade de factos até então inexplicáveis |*.

   O espiritismo, tendo por finalidade o estudo de um dos dois elementos constituintes do Universo, toca na maior parte das ciências; só poderia aparecer depois da sua elaboração e nasceu, pela força das coisas, da impossibilidade de tudo se explicar somente com a ajuda das leis da matéria.

   Acusa-se o espiritismo de parentesco com a magia e com a feitiçaria, mas esquecemos que a astronomia tem como antepassada a astrologia judiciária, que não está assim tão longe de nós; que a química é filha da alquimia, com que nenhum homem de juízo se atreveria a ocupar-se nos dias de hoje. No entanto, ninguém nega que esteve na astrologia e na alquimia o germe das verdades de onde saíram as ciências actuais. Apesar das suas fórmulas ridículas, a alquimia abriu o caminho para o estudo dos corpos simples e para a descoberta da lei das afinidades; a astrologia, apoiando-se na posição e no movimento dos astros que tinha estudado; mas na ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo do Universo, os astros eram, para o comum, entes misteriosos a que a superstição atribuía uma influência moral e um sentido revelador. Quando GalileuNewton ou Kepler deram a conhecer estas leis, quando o telescópio rasgou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que certas pessoas consideram indiscreto, os planetas apareceram-nos como simples mundos semelhantes ao nosso e a pirâmide do maravilhoso desmoronou-se.

   Passa-se o mesmo com o Espiritismo em relação à magia e à feitiçaria; estas também se apoiavam na manifestação dos astros; mas, na ignorância das leis que regem o mundo espiritual, misturavam nessa relação práticas e crenças ridículas a que o espiritismo moderno, fruto da experiência e da observação, fez justiça. Com toda a certeza, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior do que a existe entre a astronomia e a astrologia, a química e a alquimia; querer confundi-las é provar que desconhecemos tudo.

  Só o facto de existir a possibilidade de comunicarmos com os seres do mundo espiritual tem consequências incalculáveis da maior gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais importância quanto atinge todos sem excepção. Este conhecimento não pode deixar de causar, ao generalizar-se, uma modificação profunda nos costumes, no carácter, nos hábitos e nas crenças, que têm uma tão grande influência nas relações sociais. É uma total revolução que se opera nas ideias, tanto maior e tão mais poderosa quanto atinge o coração de todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos.

   É portanto com razão que o Espiritismo é considerado a terceira grande revelação. Vejamos em que diferem essas revelações e por que laço se ligam umas às outras.

   MOISÉS, como profeta, revelou aos homens o conhecimento de um Deus único, Senhor Supremo e Criador de todas as coisas; promulgou a lei do Sinai e estabeleceu os fundamentos da fé verdadeira; como homem, foi o legislador do povo através do qual esta fé primitiva que, depurada, se viria um dia a espalhar por toda a Terra.

   CRISTO, retirando da lei antiga o que é eterno e divino e rejeitando o que era só transitório, puramente disciplinar e de concepção humana, acrescenta a revelação da vida futura, de que Moisés não tinha falado, a dos castigos e recompensas que esperam o homem depois da morte (ver Revista Espírita, 1861, pp. 90 e 280).

   A parte mais importante da revelação de Cristo, no que ela é de fonte primeira, pedra angular de toda a sua doutrina, é o ponto de vista totalmente novo sob o qual dá a aperceber a Divindade. Já não é o Deus terrível, ciumento, vingativo de Moisés, o Deus cruel e impiedoso que rega a Terra com sangue humano, que ordena o massacre e o extermínio dos povos, sem exceptuar as mulheres, as crianças e os velhos, que castiga os que poupam as vítimas; já não é o Deus injusto que castiga um povo inteiro pelo erro do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa do inocente, que fere as crianças devido ao erro do pai; mas um Deus clemente, soberanamente justo e bom, pleno de brandura e de misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um consoante as suas obras; já não é o Deus de um só povo privilegiado, o Deus dos exércitos a presidir aos combates para sustentar a sua própria causa contra o deus dos outros povos, mas o Pai comum do género humano, que estende a Sua protecção a todos os Seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus que recompensa e castiga com os bens da Terra, que faz com que a glória e a felicidade consistam na submissão dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura, mas que diz aos homens: «A vossa verdadeira pátria não é neste mundo, mas no reino celeste; é aí que os de coração humilde serão elevados e os orgulhosos serão rebaixados.» Já não é um Deus que faz da vingança uma virtude e manda que se troque olho por olho, dente por dente; mas o Deus de misericórdia que diz: «Perdoai as ofensas se quereis que vos sejam perdoadas; devolvei o bem contra o mal; não façais aos outros o que não quereis que vos façam.» Já não é o deus mesquinho e meticuloso que impõe, sob os mais rigorosos castigos, a forma como deseja Ser adorado, que Se ofende com a inobservância de uma fórmula; mas o Deus grande que considera o pensamento e não se honra com a forma. Já não é, enfim, o Deus que quer ser temido mas o Deus que quer ser amado.
/…

|* A palavra elemento não é aqui aplicada no sentido de corpo simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constituinte de um todo. Neste sentido, podemos dizer que o elemento espiritual tem parte activa na economia do Universo, tal como dizemos que o elemento civil e o elemento militar figuram no montante de uma população; o elemento religioso entra na educação; que, na Argélia, existe o elemento árabe e o elemento europeu. (N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 17 a 23, 6º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de ilustração: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Inquietações Primaveris ~


Jovens e Maduros

O conceito de Educação como o chamado de uma consciência para elevar ao seu nível uma consciência imatura, segundo René Hubert, coloca a questão no plano rousseauniano da educação individual para simplificá-la, mas aplica-se a todas as formas da educação colectiva. Rousseau mesmo usou essa táctica, pois não desejava reduzir a educação a um sistema privado de elite. A Educação como um acto de amor dirige-se a toda a Humanidade. Qualquer discriminação no processo educacional, seja por motivos raciais, sociais, nacionais ou outros, é uma deturpação do processo educativo e uma traição à sua finalidade básica, que é fazer de um ser biológico, como a criança ao nascer, ou de um ser social, como o adolescente e o jovem, um ser moral. As excessivas restrições de certos tipos de moral, como a vitoriana na Inglaterra e a das religiões da morte em todo o mundo, levaram a moral ao descrédito, pois a única virtude que produziram foi a hipocrisia. Quando se quer asfixiar a natureza humana, nas suas exigências vitais, o resultado é sempre o mesmo e as consequências futuras resultam na rebeldia total. Mas quando se trata de um ser moral, a expressão não se refere a esta ou àquela moral, e sim à Moralidade em termos pestalozianos. Nesse sentido, a Educação para a Morte abrange todas as idades da evolução biopsíquica do ser humano, que só atinge realmente os seus fins quando abrange as colectividades. Por isso, Pestalozzi deu ao seu sistema uma amplitude filantrópica. O simples facto de ministrarmos educação específica aos filhos de abastados, relegando as demais crianças e jovens aos azares da sorte, é uma imoralidade que atenta o princípio do amor, fundamental na educação. É precisamente neste ponto crucial do problema que a tríade Educação, Vida e Morte se resolve numa exigência única e, portanto, indivisível. Quem não educa não ajuda ninguém a viver e morrer. Isso equivale a dizer: Quem não distribui Educação em pé de igualdade para todos trai os objectivos existenciais do homem e da Humanidade. Por outro lado, o comércio puro e simples da Educação, mantido apenas com finalidade financeira, constitui-se num pecado ético muito mais grave do que o pecado mortal das igrejas.

Henri Bergson viu com precisão a unidade fundamental e substancial da Religião, da Moral e da Educação. Segundo a sua tese, a moral social funda-se na religião estática, fechada na sua dogmática exclusivista, dando-lhe, apesar desse exclusivismo, a designação de Moral Aberta, porque ela se abre no plano social. Opõe-se a ela a Moral Fechada, assim designada por ser individual, que não se subordina a nenhuma religião institucionalizada, mas apenas à consciência dos homens superiores. Essa é a moral que Pestalozzi chamou de Moralidade, colocando-a acima das religiões. Referiu-se também à religião animal, evidentemente primitiva, nascida da magia primitiva das selvas, que determina a moral tribal, da qual resulta, no processo evolutivo do homem, na moral social. Dessa maneira, o problema ético é o pivô de toda a Educação e de toda a Moral, tendo por expressão subalterna das exigências da natureza humana as formas possíveis da religião. Assim, Deus se faz humano e o homem se faz divino, na troca ingénua de favores mútuos entre o Céu e a Terra. Os jovens, recém-saídos da adolescência, acreditam-se dotados de poderes miríficos para transformar a realidade árida e caquéctica do mundo, renovando-a nos ardores de sua própria juventude. Quando um jovem decide entrar para a carreira eclesiástica é porque a sociedade o convenceu de que nela poderá usar os instrumentos sagrados, provenientes da magia das selvas e aprimorados na estética da civilização, para realizar, com os poderes terrestres e celestes em mistura o que o sacerdócio lhe faculta, as metamorfoses necessárias de toda a estrutura social para a implantação do Reino de Deus na Terra. Ao chegar, porém, ao plano dos adultos, amadurecendo no trato da mundanidade, em que imperam as ambições de poder e ganância, tão contrárias às perspectivas divinas dos seus sonhos que já pendem murchos à beira dos caminhos percorridos e marcados pelos rastos de amarguras, decepções e frustrações irremediáveis, vê que os instrumentos divinos, já agora inúteis nas suas mãos, nada mais são do que amuletos imaginários. Só lhe resta, então, rebelar-se contra si mesmo, negar-se na dialéctica dos sonhos e desenganos e ajustar-se ao comodismo da maturidade sem perspectivas. É nesse momento fatal do fim da juventude que as religiões entram em agonia. A crença ingénua e tecida de lendas piedosas transforma-se em paliativo ignóbil para os desesperos do mundo e os impulsos do antigo entusiasmo se revelam mortos e exangues como as serpentes de fogo da kundalini indiana que viraram cinzas e carvão triturado pelos anos. A Moral, que antes brilhava no céu das aspirações supremas da alma, é então um cadáver frio que serve apenas para defendê-lo das fraquezas inevitáveis do passado. No velório estúpido das carpideiras o herói fracassado, vencido por si mesmo, só encontra a consolação presente e duramente aviltante de acomodações. Qual a sua concepção da morte? A do túmulo, da podridão oculta no laboratório da terra para o aproveitamento na química dos resíduos impuros – o nada. O pivô poderoso que sustentava o giroscópio das aspirações supremas transformou-se apenas num pivô forjado por dentista de arrabalde, agora solto e inútil na boca desdentada de uma bruxa a que chamam pelo nome de Morte. Não há saída alguma nesse impasse final e definitivo. O homem se entrega então, sem ilusões ou esperanças possíveis, ao prazer mesquinho da bajulação e da subserviência, temperando os restos de sua existência perdida no calco amargo das humilhações. Essa é a tragédia das gerações que floresceram nos campos semeados pelas mentiras da Religião e da Moral que se cevam na hipocrisia. Por isso o Fim do Mundo, imaginado pelos teólogos e pregado pelos clérigos, nada mais é que o sabá funambulesco dos duendes sem esperanças. Os mortos ressuscitam para a vida eterna, mas o fazem nos seus corpos recuperados por um Deus sádico, que os retira do túmulo no estado precário em que morreram num passado longínquo, dando-lhes apenas o consolo de continuarem na eternidade a viver com as doenças e os aleijões de uma longínqua vida frustrada. Não seria preferível o caldeirão do Diabo, nesse caso, mais piedoso do que Deus?

É espantosa a inversão de valores produzida pela imaginação teológica do Cristianismo. Espremidos entre duas ordens de coisas, a humana e a divina, mas fatalmente apegados, por sua condição humana e pelo condicionamento das aspirações celestes, os teólogos fizeram tal confusão na suposta Ciência de Deus que herdaram das mitologias pagãs, que acabaram atribuindo virtudes de Deus ao Diabo e atribuindo a Deus as maldades deste. Disso resultou que Deus aparece muitas vezes no plano teológico vestido com a pele do Diabo, e este se atreve, não raro, a enfiar-se diabolicamente na pele de Deus. Claro que essa lamentável confusão levaria os homens, não aos caminhos do Céu nem às veredas do Inferno, mas ao deserto sem caravanas nem roteiros da descrença e do materialismo. Tanto papel impresso se gastou, em tomos inflados de sabedoria fantasiosa, que se tornou necessária a rede de dogmas inexplicáveis e invioláveis, até mesmo intangíveis, para se impedir o desmoronamento total das gigantescas estruturas teológicas. Mas não há prisão que escravize para sempre o pensamento, hoje reconhecido como a energia mais poderosa do universo. Esses prometeus de batina quiseram roubar o fogo do Céu sem escalar o monte Olimpo. Evitaram os raios de Zeus e de Júpiter, mas acabaram enrolados nas suas próprias trapaças. A Igreja não confiou nas sementes do Evangelho (que Lutero teve de arrancar à força de suas mãos azinhavradas) e semeou na Terra as sementes do Diabo, regadas a maldições e sangue, ao crepitar sinistro das fogueiras inquisitoriais. Essas mesmas fogueiras, porém, fizeram amadurecer a razão humana que explodiria em flores e frutos, em safras inesperadas nos fins da Idade Média e no Renascimento. Deus corrigia os teólogos.

As novas gerações são as últimas herdeiras da herança teológica e enfrentam os derradeiros embates com os defensores de uma tradição mentirosa e hipócrita. Essa posição exige dos jovens pesados ónus. Eles se sentem esmagados por aquelas exigências dos rabinos do Templo, que Jesus acusou de sobrecarregarem os homens com fardos esmagadores e não os ajudar sequer com a ponta dos dedos; amarrados a tradições da família e ao mesmo tempo atraídos pelas perspectivas de uma vida mais racional e justa em conflito consigo mesmo. O chamado conflito de gerações se acentua e complica, levando muitos jovens à revolta e ao desespero. Acabam rasgando os velhos protocolos dos Sábios de Sião e entregando-se à experiência, na busca de originalidades. Chegam à maturidade em plena confusão. Não conseguiram assimilar a cultura do passado e precisam integrar-se urgentemente nas condições de um mundo híbrido em que as opções se tornam embaraçosas. O anseio dos adultos, de se parecerem jovens, torna-os geralmente excêntricos, portanto desajustados. Nessa fase de transição a idade cronológica perde o seu antigo sentido, juventude e maturidade se confundem, gerando uma velhice insubordinada que tripudia sobre os valores antigos. Mas a força da idade acaba se impondo e obriga os velhos jovens a todos os compromissos da mentira e da hipocrisia. É por isso que parece, aos observadores atentos, como virados do avesso.

A Educação para a Morte os livraria dessas situações conflituosa, dando-lhes os instrumentos da compreensão da época, necessários à orientação segura para os tempos de insegurança. A morte nos espera e surpreende a todos, mas quando aprendemos que a morte não é a estação final da vida e sim um ponto de baldeação para outros destinos, reconhecemos a necessidade das fases de transição, que nos fazem conhecer o avesso do mundo. É nessas fases que a rotina das civilizações se quebra, se despedaça, para que o fluxo da evolução possa prosseguir nas civilizações subsequentes. As pessoas que não podem aceitar o princípio da reencarnação, que lhes parece absurdo, deviam pensar na rotina da vida, que nos fecha também na rotina das ideias feitas e aceitas sem análise. Num Universo essencialmente dinâmico, em que, como dizia Talles, não podemos entrar duas vezes num mesmo rio, pois enquanto saímos das águas o rio já se modificou, não é admissível aceitarmos que só o homem não possa mudar-se, transformar-se, e tenha de desaparecer com a morte. A regra é uma só, para todas as coisas e todos os seres. Desde que nascemos, até que morrermos, a nossa própria vida individual é uma constante mudança. Por isso perguntou o poeta mexicano Amado Nervo: “É mais difícil renascer do que nascer?”
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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Jovens e Maduros, 14º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VII
O Dia de Finados na Trincheira

|2 de novembro de 1916|

   O céu está sombrio e uma imensa tristeza envolve a Terra. As almas dos que caíram lutando pela pátria pairam no espaço em incontáveis legiões.

   Nas casas solitárias, mulheres em luto pranteiam os desaparecidos.

   Os órfãos da guerra, cujos pais repousam debaixo da terra, nas planícies da região de Flandres ou nos bosques da Lorraine, vão lentamente para os cemitérios, para ornar de flores os túmulos das mães que os sofrimentos e os desgostos mataram.

   Bem ao longe, na trincheira, um jovem soldado vigia atentamente e lança os olhos em seu derredor.

   As linhas inimigas estão silenciosas e o canhão já se calou. A calma da natureza sucedeu ao tumulto da peleja e às conversas ruidosas dos acampamentos da retaguarda, porque aqui o perigo fez emudecer todas as conversações inúteis. A perspectiva da morte impõe a todos um grave recolhimento e os profundos pensamentos sobem dos corações aos cérebros.

   Aquele jovem soldado é um intelectual, um sensitivo e um espírita, e faz um ano que está na linha de frente, entrando em vários combates e vendo os colegas mortos pela metralha.

   De que depende a sua própria vida? Ela não é como um argueiro, uma palha, no meio da tormenta? Todavia, ele sabe que está sobre a sua cabeça uma protecção oculta e percebe que uma força desconhecida o ampara.

   Como todos aqueles cuja vida interior é intensa, agrada-lhe ficar só e a solidão é para ele a grande escola inspiradora, a causa das revelações, e nela se concretiza a comunhão de sua alma com Deus. Complacentes, os seus olhos repousam sobre a floresta próxima, que o Outono vestiu com as suas tintas de ouro e de púrpura.

   Até ele chega a canção de um regato, as colinas que cercam o horizonte desaparecem no pálido clarão do poente. Desse espectáculo da natureza emana uma serena paz que nada, nem o pensamento do perigo nem o receio da morte, consegue perturbar.

   Entre as cruentas visões da guerra, é bastante uma hora de contemplação para lembrar que a soberana beleza da vida e a eterna beleza do mundo superam todas as hecatombes humanas e que as guerras são impotentes para destruir qualquer parcela de embrião da alma.

   A noite se estende sobre a planície e, entre as nuvens, as estrelas projectam sobre a Terra os seus raios trémulos como provas de amor, testemunhos da imensa fraternidade que liga todos os seres e todos os mundos.

   Com a paz, a confiança e a esperança atingem o seu coração. Certamente ele saberá sempre cumprir o seu dever, batendo-se em defesa da pátria invadida, por cujo amor suportará todas as privações e trabalhos, porém as violências da guerra não lhe abafarão o sentimento superior da ordem e da harmonia universais.

   Assim como para os celtas (seus antepassados), os cadáveres estendidos pelo chão não são mais para eles, do que corpos despedaçados que a terra se prepara para receber no seu seio maternal.

   No mais profundo recesso de cada um de nós permanece um princípio imperecível contra o qual nada podem fazer todos os furores do ódio e todos os assaltos da força bruta.

   É dali, desse santuário íntimo, que renascerá, após a borrasca, o anseio humano pela justiça, a piedade e a bondade.
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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VII –  O Dia de Finados na Trincheira, 1 de 2, 20º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)