Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de agosto de 2014

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria I Posição do Problema (VI)

   A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a táctica do ateísmo do nosso tempo.

   Ele não é fruto directo do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa aparência. É evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho científico.

   Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e da juventude desprevenida e entusiasta, tendendo a fazer-lhes crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.

   Dir-se-ia, depois de os ouvir, nada haver além deles. Os grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente científico.

   Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os factos científicos, perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem impor.

   Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de velho e carcomido tronco de madeira podre e, no fundo, os partidários do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.

   Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos.

   E uma vez que são eles próprios a declarar que toda a hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimento.

   Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?

   Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base.

   Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela?

   Trata-se de discutir e escolher uma ou a outra, ou, para falar com mais exactidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois.

   E, pois que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o em dúvida e propondo a alegação contrária.

   No rosto desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:

   A força rege ou é regida pela matéria? É este o dilema que os factos de si mesmos devem resolver.

   O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas.

   Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às leis que as governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.

   A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de alguns ínfimos seres humanos se recusam a escutá-los. A mecânica celeste lança, ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitectura.

   A luz, o calor, a electricidade, pontos invisíveis projectados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento, a actividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza, e as imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? – porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? – porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar, tristemente, a luz imaculada que desce dos céus?

   Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo, começando por demonstrar a soberania da força no tracejar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronómicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria, esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra nada é. A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na população astral, sem excepção nem privilégio particular.

   Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saará um grão de areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo.

   Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria.

   A nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.

   Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si mesmos; que não agem nem pensam por impulso próprios e que, nas sendas invisíveis do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 6 de 6, 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 16 de agosto de 2014

Diálogos de Kardec ~

Carácter e Consequências Religiosas das Manifestações dos Espíritos ~

1. As almas ou Espíritos dos que aqui viveram constituem o mundo invisível que povoa o espaço e no meio do qual vivemos. Daí resulta que, desde que há homens, há Espíritos e que, se estes últimos têm o poder de manifestar-se, devem tê-lo tido em todas as épocas. É o que comprovam a história e as religiões de todos os povos. Entretanto, nestes últimos tempos, as manifestações dos Espíritos assumiram grande desenvolvimento e tomaram um carácter mais acentuado de autenticidade, porque estava nos desígnios da Providência pôr termo à praga da incredulidade e do materialismo, por meio de provas evidentes, permitindo que os que deixaram a Terra viessem atestar a sua existência e revelar-nos a situação ditosa ou infeliz em que se encontravam.

2. Vivendo o mundo visível no meio do mundo invisível, com o qual se acha em contacto perpétuo, segue-se que eles reagem incessantemente um sobre o outro, reacção que constitui a origem de uma imensidade de fenómenos, que foram considerados sobrenaturais, por não se lhes conhecer a causa.

A acção do mundo invisível sobre o mundo visível e reciprocamente é uma das leis, uma das forças da Natureza, tão necessária à harmonia universal, quanto a lei de atracção. Se ela cessasse, a harmonia estaria perturbada, conforme sucede num maquinismo, donde se suprima uma peça. Derivando de uma lei da natureza semelhante acção, nada têm, evidentemente, de sobrenaturais os fenómenos que ela opera. Pareciam tais, porque desconhecida era a causa que os produzia. O mesmo se deu com alguns efeitos da electricidade, da luz, etc.

3. Todas as religiões têm por base a existência de Deus e por fim o futuro do homem depois da morte. Esse futuro, que é de capital interesse para a criatura, se acha necessariamente ligado à existência do mundo invisível, pelo que o conhecimento desse mundo há constituído, desde todos os tempos, objecto das suas pesquisas e preocupações. A atenção do homem foi naturalmente atraída pelos fenómenos que tendem a provar a existência daquele mundo e nenhum houve jamais tão concludente, como os das manifestações dos Espíritos por meio das quais os próprios habitantes de tal mundo revelaram as suas existências. Por isso foi que esses fenómenos se tornaram básicos para a maior parte dos dogmas de todas as religiões.

4. Tendo instintivamente a intuição de uma potência superior, o homem foi sempre levado, em todos os tempos, a atribuir à acção directa dessa potência os fenómenos cuja causa lhe era desconhecida e que passavam, aos seus olhos, por prodígios e efeitos sobrenaturais. Os incrédulos consideram essa tendência uma consequência da predilecção que tem o homem pelo maravilhoso; não procuram, porém, a origem desse amor do maravilhoso. Ela, no entanto, reside muito simplesmente na intuição mal definida de uma ordem de coisas extracorpóreas. Com o progresso da Ciência e o conhecimento das leis da Natureza, esses fenómenos passaram pouco a pouco do domínio do maravilhoso para o dos efeitos naturais, de sorte que o que outrora parecia sobrenatural já não o é hoje e o que ainda o é hoje não mais o será amanhã.

Os fenómenos decorrentes da manifestação dos Espíritos forneceram, pela sua natureza, larga contribuição aos factos reputados maravilhosos. Tempo, contudo, viria em que, conhecida a lei que os rege, eles entrariam, como os outros, na ordem dos factos naturais. Esse tempo chegou e o Espiritismo, dando a conhecer essa lei, apresentou a chave para a interpretação da maior parte das passagens incompreendidas das Escrituras sagradas que a isso aludem e dos factos tidos por miraculosos.

5. O carácter do facto miraculoso é ser insólito e excepcional; é uma derrogação das leis da Natureza. Desde, pois, que um fenómeno se reproduz em condições idênticas, segue-se que está submetido a uma lei e, então, já não é miraculoso. Pode essa lei ser desconhecida, mas, por isso, não é menos real a sua existência. O tempo se encarregará de revelá-la.

O movimento do Sol, ou, melhor, da Terra, sustado por Josué, seria um verdadeiro milagre, porquanto implicaria a derrogação manifesta da lei que rege o movimento dos astros. Mas, se o facto pudesse reproduzir-se em dadas condições, é que estaria sujeito a uma lei e deixaria, consequentemente, de ser milagre.

6. É erróneo assustar-se a Igreja com o facto de restringir-se o círculo dos factos miraculosos, porquanto Deus prova melhor o seu poder e a sua grandeza por meio do admirável conjunto das suas leis, do que por algumas infracções dessas mesmas leis. E tanto mais erróneo é o seu temor, quanto ela atribui ao demónio o poder de operar prodígios, donde resultaria que, podendo interromper o curso das leis divinas, o demónio seria tão poderoso quanto Deus. Ousar dizer que o Espírito do mal pode suspender o curso das leis de Deus é blasfémia e sacrilégio.

Longe de perder qualquer coisa da sua autoridade por passarem os factos qualificados de milagrosos à ordem dos factos naturais, a religião somente pode ganhar com isso; primeiramente, porque, se um facto é tido falsamente por miraculoso, há aí um erro e a religião somente pode perder, se se apoiar num erro, sobretudo se se obstinasse em considerar milagre o que não o seja; em segundo lugar, porque, não admitindo a possibilidade dos milagres, muitas pessoas negam os factos qualificados de milagrosos, negando, consequentemente, a religião que em tais factos se estriba. Se, ao contrário, a possibilidade dos mesmos factos for demonstrada como efeitos das leis naturais, já não haverá cabimento para que alguém os repila, nem repila a religião que os proclame.

7. Nenhuma crença religiosa, por lhes ser contrária, pode infirmar os factos que a Ciência comprova de modo peremptório. Não pode a religião deixar de ganhar em autoridade acompanhando o progresso dos conhecimentos científicos, como não pode deixar de perder, se se conservar retardatária, ou a protestar contra esses mesmos conhecimentos em nome dos seus dogmas, visto que nenhum dogma poderá prevalecer contra as leis da Natureza, ou anulá-las. Um dogma que se funde na negação de uma lei da Natureza não pode exprimir a verdade.

O Espiritismo, que se funda no conhecimento de leis até agora incompreendidas, não vem destruir os factos religiosos, porém sancioná-los, dando-lhes uma explicação racional. Vem destruir apenas as falsas consequências que deles foram deduzidas, em virtude da ignorância daquelas leis, ou de as terem interpretado erradamente.

8. A ignorância das leis da Natureza, com o levar o homem a procurar causas fantásticas para fenómenos que ele não compreende, é a origem das ideias supersticiosas, algumas das quais são devidas aos fenómenos espíritas mal compreendidos. O conhecimento das leis que regem os fenómenos destrói essas ideias supersticiosas, encaminhando as coisas para a realidade e demonstrando, com relação a elas, o limite do possível e do impossível.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos  Carácter e Consequências Religiosas das Manifestações dos Espíritos, 9º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Espiritismo na Arte ~


– A poesia
– A música, o seu papel na inspiração profética e religiosa

A poesia, na realidade, é apenas uma forma de música. Ela é submetida às mesmas leis do ritmo, da vibração, que são as leis da vida nos seus estados superiores.

A Antiguidade, criadora do género, havia compreendido. O poeta antigo era, ao mesmo tempo, cantor e músico. Porém, actualmente, a poesia não é mais que uma das formas da literatura. Como todas as manifestações da arte em geral, ela perdeu o seu carácter augusto, para cair na banalidade. Somos inundados por um dilúvio de versos sem elevação e sem beleza.

Ora, o verso não suporta a mediocridade. E é por isso que, na Idade Média como nos nossos dias, escritores de grande talento, Dante (i), Lamartine, Victor Hugo e outros, puderam conservar na poesia o seu brilho, o seu carácter de grandeza e salvá-la de uma queda irremediável. Para exprimir o sublime ideal, todas as palavras são impotentes. Chegando a uma certa altura, o pensamento encontra apenas termos humanos, apropriados às exigências do nosso plano inferior, mas incapazes de traduzir as impressões da vida superior. E é isso que o Esteta lamenta. Desde que a insuficiência da linguagem humana se revela, a música, com os seus recursos infinitos, torna-se a única forma que se adapta à eterna beleza do Universo, a única forma de exprimir as sensações da alma radiosa, fundindo-se com o pensamento divino.

A palavra, quando está unida à música, pode dar ao pensador uma forma de expressão mais intensa, mais penetrante. Porém, nos nossos dias, a aplicação desse método tornou-se muitas vezes bem vulgar. A romança (ii), a canção (iii), tinham, ainda recentemente, o seu encanto, o seu sabor. Hoje, sob a influência de certos meios públicos, a canção não é mais que uma profanação, um aviltamento da ideia.

Porém, quando das cloacas impuras onde mãos sacrílegas a têm enlameado, a música eleva-se em direcção às alturas radiosas do pensamento e da poesia, ela se torna apta a traduzir os mais nobres sentimentos. Ela acha-se no seu elemento. Lá, tudo são ondas, vibrações, harmonias, luz. Eis por que a poesia, para permanecer no seu verdadeiro papel, deve inspirar-se nas leis da harmonia musical e reproduzi-las com fidelidade.

A música, nós o sabemos, desempenha um grande papel na inspiração profética e religiosa. Ela coloca ritmo na emissão fluídica e facilita a acção dos espíritos elevados. Eis por que ela tem o seu lugar nas reuniões espíritas, nas sessões em que é bom precedê-las por um hino apropriado às circunstâncias. Muitas vezes os guias dos grupos exortam os assistentes a entoar um cântico para facilitar as manifestações. Porém, até agora, é preciso confessá-lo, os espíritas se encontram muito carentes desse tipo de música e são obrigados a recorrer a cânticos vulgares, a banalidades indignas do objectivo pretendido. É com uma dolorosa impressão que temos constatado, mais de uma vez, a penúria dos recursos musicais usados nos grupos espíritas. Eis por que compomos um hino dedicado “aos invisíveis” e cuja música se deve a uma senhora que possui um certo senso estético e é plena de boa vontade. Mas eis que o senhor A.F., compositor muito conhecido, acaba de obter do Espírito Beethoven, por intermédio de um médium, um cântico espírita digno por completo do autor, e que em breve será divulgado. Os espíritas possuirão, finalmente, uma invocação musical em harmonia com as suas ideias e as suas aspirações.


– Influência da música sobre todos os seres
– A canção e o povo
O Esteta, a sua personalidade

Em toda a obra pretendida – literatura, poesia, arte –, a escolha dos meios deve ser apropriada à grandeza do objectivo.

Na verdade, a poesia está em toda a parte onde a colocamos. Ela não se exprime somente pelo verso; ela pode impregnar todas as formas da linguagem escrita ou falada, todos os aspectos da arte. A poesia é a expressão da beleza propagada em todo o Universo. É o ardor comunicativo da alma que compreendeu, alcançado o sentido profundo das coisas, a lei das supremas harmonias e que busca penetrá-la nas outras almas, pelos meios que lhe são próprios.

Todos os seres são sensíveis à música. Até os animais recebem a sua influência. Conhece-se a lenda de Orfeu, atraindo com a sua lira e agrupando, à volta dele, as feras da floresta. Os próprios insectos sentem as vibrações. Quando me ponho ao piano, as moscas voam em torno de mim de uma forma particular.

O poder da música também se demonstra pela influência da canção sobre o povo. Ela é a companheira do trabalho, o apoio do esforço paciente e repetido, a alegria do lar, porque exalta as forças e os sentimentos do ser humano. Portanto, a canção também poderia ser um meio de elevação, porém, nós já vimos, nos nossos dias a canção arrasta-se, muito frequentemente, em terreno lamacento e perde todo o carácter regenerador.

As duas últimas lições de o Esteta, que se encontrarão mais adiante, nos levam em direcção às serenas alturas da arte. Elas terminam a série de comunicações que recebemos desse grande espírito, do qual conhecemos agora a personalidade.

Ele foi um dos mais eminentes artistas da Renascença italiana, ao mesmo tempo arquitecto, pintor e escultor. A música também não lhe foi estranha. Hoje ele vive nas esferas superiores onde o Belo e o Bem reinam sem reservas; nelas ele procura a realização das suas grandiosas concepções. Os nossos guias dizem-nos que devemos considerar como um favor único a participação de o Esteta nos nossos trabalhos, assim, queremos expressar-lhe toda a nossa gratidão, bem como ao poder soberano que permitiu tal intervenção.

Em breve, falaremos sobre música e daremos as lições do Espírito Massenet consagradas mais especialmente a essa grande arte. Graças a essas lições, um raio de luz da vida celeste penetrou na nossa obscuridade e as nossas débeis tentativas humanas adquiriram mais relevo e mais amplidão.

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(i) Dante Alighieri: poeta italiano (Florença, 1265 - Ravena, 1321). Compôs sonetos amorosos e canções que expressavam a sua paixão platónica por Beatrice Portinari. Autor da Divina Comédia, é considerado o pai da poesia italiana. (N.T., segundo o D.K.L.)
(ii) Romança: composição, em geral curta, para canto e piano, de cunho sentimental ou patético, típica do século XIX. (N.T.)
(iii) Canção: texto colocado em música, frequentemente dividido em quadras e refrão, destinado a ser cantado. (N.T.)




LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V  Participação do mundo espiritual na obra humana / Espiritismo, novo e vigoroso impulso ao pensamento – A poesia
/ A música, o seu papel na inspiração profética e religiosa / Influência da música sobre todos os seres / A canção e o povo / O Esteta, a sua personalidade (2 de 4) 21º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

terça-feira, 29 de julho de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VII)

   Pelas relações que o homem pode agora estabelecer com os que deixaram a Terra, tem não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como compreende a solidariedade que liga os vivos e os mortos deste mundo e os deste mundo com os dos outros mundos. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos; segue-os nas suas migrações; é testemunha das suas alegrias e dos seus desgostos; sabe porque estão felizes ou infelizes e a sorte que o espera a ele consoante o bem ou o mal que faça. Estas ligações iniciam-no na vida futura que pode observar em todas as fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma esperança vaga: é um facto positivo, uma certeza matemática. Então, a morte já nada tem de assustador, pois é para ele a libertação, a porta da verdadeira vida.

   Através do estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual sofre as consequências directas e naturais dos seus erros: dito de outro modo, que é castigado por aquilo em que pecou; que as suas consequências duram tanto tempo como a causa que os produziu; que, assim, o culpado sofreria eternamente se persistisse eternamente no mal, mas que o sofrimento termina com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um melhorar, cada um pode, graças ao seu livre-arbítrio, prolongar ou abreviar os seus sofrimentos, tal como o doente sofre durante o tempo que levar até pôr um fim aos seus excessos.

  Se a razão afasta, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia dos castigos irremissíveis, perpétuos e absolutos, muitas vezes infligidos devido a um só erro, suplícios do Inferno que não podem suavizar o arrependimento mais ardente e mais sincero, ela inclina-se perante esta justiça distributiva e imparcial, que toma tudo em consideração, que nunca fecha a porta ao regresso e que estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.

   A pluralidade das existências, de que Cristo enunciou o princípio no Evangelho mas sem o definir mais que muitos outros, é uma das leis mais importantes reveladas pelo Espiritismo, no sentido em que demonstra a realidade e a sua necessidade para a evolução. Por esta lei, o homem explica todas as anomalias aparentes que a vida humana apresenta; as diferenças de posição social, os mortos prematuros que, sem a reencarnação, tornariam inúteis para as almas as vidas abreviadas; a desigualdade das aptidões intelectuais e morais, pela antiguidade do espírito que aprendeu mais ou menos e progrediu e que traz ao renascer o saber adquirido nas suas existências anteriores. (Ver o ponto 5 deste capítulo).

   Com a doutrina da criação da alma, a cada nascimento, voltamos a cair na teoria das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros, nada os une, os laços de família são puramente carnais: não são de maneira nenhuma solidários com um passado onde não existiam; com a ideia do nada depois da morte, toda a relação cessa com a vida; não são solidários com o futuro. Com a reencarnação, são solidários com o passado e com o futuro; perpetuando-se as suas relações no mundo espiritual e no mundo corporal, a fraternidade tem por base as próprias bases da natureza; o bem tem uma finalidade e o mal as suas consequências inevitáveis.

  Com a reencarnação caem todos os preconceitos de raças e de castas, uma vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, fidalgo ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, não existe nenhum que supere em lógica o facto material da reencarnação. Portanto, se a reencarnação funda sobre uma lei da natureza o princípio da fraternidade universal, funda sobre a mesma lei o da igualdade de direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 31 a 36 (VII), 9º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Inquietações Primaveris ~


O Mandamento Difícil |

O mandamento central dos Evangelhos, e por isso mesmo o mais complexo e o mais difícil, é o de amar ao próximo como a nós mesmos e a Deus sobre todas as coisas. Amar ao próximo não parece muito difícil, mas amá-lo como a nós mesmos é quase uma temeridade. Mas Jesus o deu de maneira enérgica, explicando ainda que esse amor corresponde também ao amor a Deus. Amamos naturalmente a nós mesmos com tal afinco que estendemos esse amor à família e o negamos às pessoas estranhas, não raro de maneira agressiva e ciumenta. Podemos explicar isso, psicologicamente, pelo egocentrismo da infância, que é uma exigência da formação da personalidade. Se a criança não fosse, como se costuma dizer, o centro do mundo, e não se apegasse a essa centralização, seria facilmente absorvida na mundanidade e dispersa na temporalidade, para usarmos a terminologia de Heideggard. Para manter a sua unidade ôntica, ou seja, para ser ela mesma, a criança tem de se apegar com unhas e dentes ao seu ego, esse pivô interno, em torno do qual se desenvolvem as energias da afectividade e da criatividade. O mundo atrai-nos e tenta absorver-nos num processo de dispersão centrífuga. Se não tivéssemos o pivô do ego, com as suas energias centralizadoras, o ser estaria sujeito a se perder na dispersão das energias ôntica. O normal é que essas duas correntes energéticas se contrabalancem, sem o que teríamos o indivíduo egoísta ou o indivíduo amorfo, sem nunca atingir a formação da personalidade que define o homem. A permanente ameaça e o temor da dispersão gera no homem a reacção de defesa contra a eternidade. Nas tribos selvagens as crianças recém-nascidas são consideradas criaturas estranhas e misteriosas, que chegam não se sabe de onde. Por isso são tratadas com carinho na primeira e segunda infância, mas depois submetidas a períodos de observação quanto às tendências que devem revelar. Só adquirem um nome e se integram na tribo depois de reconhecidas como em condições para tanto. Nas civilizações encontramos um desenvolvimento agudo do sociocentrismo, em que os estrangeiros são considerados impuros, como na Antiga Israel, ou considerados bárbaros, como na Roma Antiga. O próprio instinto de conservação, que começa na lei física da inércia e se prolonga nas coisas e nos seres, até ao homem, e as suas instituições, completam esse quadro defensivo. Não há dúvida que a nossa desconfiança em relação ao próximo provém dessas forças instintivas. Só conseguimos vencê-las quando nos sentimos ônticamente maduros, como seres formados e definidos na nossa personalidade. Quanto mais inseguros nos sentimos, tanto mais difícil se torna a nossa aceitação do próximo, sem prevenções e desconfianças. A nossa primeira atitude ante um desconhecido é sempre de reserva ou de antipatia. Somente nos reencontros reencarnatórios de criaturas afins, com um passado de relações felizes ou uma afinidade vibratória semelhante, os primeiros contactos podem ser expansivos.

A sabedoria dos ensinos de Jesus revela-se precisamente nesses casos em que se mostra de maneira evidente. Com o ensino do amor ao próximo Jesus agiu sobre a indevida extensão dessas forças preservadoras num tempo de maturidade. Não foi somente com o ensino do monoteísmo, da unicidade de Deus, que ele procurou acordar-nos para a fraternidade humana. Completando a acção reformista e dando mais ênfase à necessidade de amarmos a todos os nossos semelhantes, ele definiu a família humana como decorrente da paternidade universal de Deus.

Stanley Jones, pastor metodista, chamado O Cavaleiro do Reino de Deus, pelas suas pregações profundamente humanistas, descobriu a maneira cristã de combater essa aversão ao estranho, dizendo: “Quando vejo passar pela minha porta um homem condenado pelos outros, logo penso que, por aquela criatura detestada, o Cristo se entregou à crucificação.” Porque, na verdade, Jesus não veio à Terra para salvar a este ou àquele, mas a toda a Humanidade. Se conseguirmos compreender isso, afastaremos da Terra o cancro moral do racismo, da aversão ao estrangeiro, da impiedade para com os infelizes viciados no crime e na maldade, oferecendo-lhes pelo menos um pouco de simpatia. Com isso, pingamos uma gota de amor na taça de fel que o nosso irmão leva aos lábios todos os dias.

Mais estranho nos parece o mandamento: “Amai aos vossos inimigos.” Entretanto, se não fizermos isso, nunca aprenderemos realmente a amar. Porque o verdadeiro amor nunca é discriminativo, mas abrangente, envolvendo num só objecto de afeição todas as criaturas. Como ensina Kardec, não podemos amar a um inimigo como amamos a um amigo, que conhecemos pela experiência da convivência, depositando nele a nossa confiança. Amar ao inimigo não é fácil, exige principalmente o sacrifício do perdão e do esquecimento do que ele nos fez de mal. E por isso mesmo esse amor é sublime, podendo levar o inimigo a se transformar no nosso maior e mais reconhecido amigo. Não podemos, porém, agir com ingenuidade nesses casos. Temos de usar sempre, como Jesus ensinou, a mansidão das pombas e a prudência das serpentes. Diz o povo que “Quem faz um cesto faz um cento.” O homem, herdeiro dos instintos animais, é também herdeiro dos instintos espirituais de que trata Kardec, e possui o poder discriminador da consciência. Agindo sempre com a devida prudência, pode apagar as mágoas da inimizade sem entregar-se às armadilhas da traição. Assim, o processo de amar o inimigo não pode ser imediato, mas progressivo, segundo a prudência dos selvagens no trato com os novos e ainda desconhecidos companheiros que chegam à tribo vestidos com a roupagem da inocência, segundo a expressão kardeciana. O que importa, no caso, não é o milagre da conversão do inimigo em amigo, mas o despertar no homem da compreensão verdadeira do amor.

A importância desse problema, na educação para a morte, relaciona-se com a questão da sobrevivência. As pesquisas da Ciência Espírita mostraram que muitos dos nossos sofrimentos na Terra provêm das malquerenças do passado. Um inimigo no Além representa quase sempre ligações negativas, de forma obsessiva, para o que ficou na Terra sem saber perdoar. A técnica espírita da desobsessão, de libertar o homem das vibrações de ódio e vingança dos inimigos mortos, é precisamente a da reconciliação de ambos nas sessões ou através de orações reconciliadoras. A situação obsessiva é grandemente desfavorável para o que continua vivo na Terra, pois este se esqueceu dos males cometidos e o espírito obsessor, vingativo, lembra-se claramente de tudo. Por isso, as práticas violentas do exorcismo, judeu ou cristão, com ameaças e exprobrações negativas do obsedado, podem levar ao auge o ódio do obsessor.

A condição do obsessor no plano espiritual, alimentando o ódio que levou da Terra, é também da responsabilidade do obsedado que não soube perdoar e pedir perdão. Todos os sofrimentos de uma situação de penoso desajuste no após-morte são produzidos pela dureza de coração do que continuou na Terra ou a ela voltou para o necessário reajuste. Por isso, Jesus advertiu que devemos acertar o passo com o nosso adversário enquanto estamos a caminho com ele. Conhecidos estes princípios de maneira racional, podemos influir no alívio da pesada atmosfera moral que pesa sobre a Terra em momentos como este que estamos vivendo. Não se trata de problemas que devam ser resolvidos por este ou aquele tribunal, humano ou divino. A solução está sempre nas nossas mãos, pois foi com elas que praticamos os crimes que agora dardejam sobre a nossa consciência como os raios de Júpiter. Nos tenebrosos anais da pesquisa psíquica mundial encontramos numerosos casos, descritos à minúcia pelos protagonistas de tragédias dessa espécie. Daí a advertência de Jesus, que parece temerária aos inscientes: “O que xinga o seu irmão de raca está condenado ao fogo do inferno.” A palavra raca é uma injúria grandemente ofensiva, mas o castigo parece exagerado. Devemos lembrar que o fogo do inferno não é eterno, como querem os teólogos, mas que a dor da consciência fora da matéria queima como fogo. Tivemos a oportunidade de conviver alguns dias com um assassino que matara o seu adversário à facada, pelas costas. Era um homem de formação protestante, que continuava apegado ao Evangelho e se justificava com passagens vingativas da Bíblia, apoiadas por Deus. Repeliu as nossas explicações de que a Bíblia é uma colectânea de livros judeus e nos disse, com assustadora firmeza: “Se ele me aparecesse agora redivivo, eu o mataria de novo.” Episódios como este nos mostram como os sentimentos humanos podem perdurar nos espíritos encarnados ou desencarnados, de maneira assustadora. O ódio desse homem não se extinguira com o sangue do inimigo. Nenhuma sombra de remorso transparecia nos seus olhos carregados de ódio e ameaças. Faltava-lhe, porém, o conhecimento das leis morais. Mais tarde, segundo nos disseram, o seu coração se abrandou. Tivera um sonho com o adversário morto, que lhe pedia perdão, em lágrimas, por havê-lo levado ao desespero do crime.

As tragédias dessa espécie, em que a vítima geralmente é responsável pelo crime, por motivos de sua intransigência, são em maior número do que supomos. Torna-se bem claro, nesses casos, o processo dialéctico da evolução humana. Nesse criminoso aparentemente insensível havia um coração profundamente ferido pela intransigência do adversário. Questões formais de honra, de direitos violados, de prepotência e humilhação torturaram a mente do assassino e o levaram ao crime. Cometido este, decorridos amargos anos de prisão, com a família na miséria e enxovalhada pela mancha criminosa, a vítima transformada em carrasco não conseguia perdoar o morto. Os instintos animais, em fermentação na sua afectividade e na sua consciência, não lhe permitiam se abrir para a compreensão da gravidade do seu acto. Ao mesmo tempo, o assassinado, nos planos espirituais inferiores, remoía o seu ódio e a sua frustração, acusando o assassino de lhe haver tirado a vida. A troca de vibrações mentais entre ambos mantinha-os na mesma luta. Somente a interferência da misericórdia divina conseguira abrir uma fresta de luz na mente do assassinado, para que ele caísse em si e reconhecesse a sua culpabilidade. Para a sociedade terrena a tragédia terminara nas grades de uma prisão, mas para o mundo espiritual ela prosseguia. Na consciência do assassinado a visão da realidade até então oculta despertava os instintos espirituais, os anseios de superação das condições animalescas a que se entregara na carne. A Educação para a Morte teria libertado ambos na própria vida carnal, levando-os à compreensão de que não eram feras em luta na selva, mas criaturas humanas dotadas de potencialidades divinas. Não lhes haviam faltado os socorros espirituais da intuição e do chamado terreno no campo religioso. Um era protestante e o outro católico, ambos tiveram contacto com os Evangelhos desde a infância, mas a reacção hipnótica dos interesses mundanos os havia imantado fortemente à matéria, fazendo-os esquecer a natureza espiritual da criatura humana. As religiões, por seu lado, imantadas às interpretações dogmáticas, não puderam ampará-los com a explicação racional da situação que enfrentavam. No entanto, há dois mil anos, Jesus já advertia: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!”

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, O Mandamento Difícil, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 13 de julho de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VIII

Acção dos Espíritos sobre os Actuais Aconteci-mentos (II)

|Janeiro de 1917|

   Neste momento, quando a borrasca se aplaca e os clarões da esperança iluminam o horizonte chegou a hora de nos recolhermos em meditação, concentrando-nos e fazendo um exame de consciência.

   Não nos cabe nenhuma parte de responsabilidade nesse drama tão terrível que agita e conturba o mundo?

   Combatemos com toda a energia necessária contra essa decomposição moral que é a causa primária de todos os nossos males? Tentamos reagir contra o domínio do ouro, da força e do sucesso, que parecia tornar-se a religião exclusiva da humanidade? Temos defendido sempre os princípios nobres da consciência e da vida contra a onda avassaladora do sórdido materialismo?

   Poucos existem no nosso meio que, atingindo certa idade e tendo ocupado uma posição social, e exercendo qualquer tipo de influência à sua volta, possam responder afirmativamente a tais perguntas.

   Não há, portanto, de que nos admirarmos, se ficamos feridos nas nossas afeições e interesses e se nos cabe uma parte na dor comum.

   Principalmente para nós, os crentes, é necessário que a grande lição seja proveitosa e que os sofrimentos purifiquem os nossos corações.

   O vento da tempestade que está passando sobre o mundo deve reavivar em nós o firme desejo de trabalhar pelo soerguimento moral do nosso país, despertando em todas as almas a noção das verdades elevadas, o sentimento da vida eterna e a ideia de Deus.

   Cabe, afinal, que se juntem as vontades e as aspirações e que a prece fervorosa, dirigida ao Pai pelos filhos culpados, se eleve da Terra para o Céu.

   Cada vez mais mergulhávamos na matéria e perdíamos de vista o profundo sentido e a verdadeira finalidade da vida. Trágicos acontecimentos vieram nos demonstrar que neste mundo tudo é precário e a nos animar a erguer os olhos para o Alto. Esses acontecimentos nos dizem que neste planeta não temos o futuro assegurado e que os bens, as honras e tudo quanto nos seduz e encanta desaparece como uma sombra vã.

   Fomos criados para a vida infinita e o nosso domínio é o Universo inteiro, não sendo a Terra senão uma das incontáveis estações da nossa longa jornada.

   Pertencemos a Deus, de onde viemos e para onde volveremos, aperfeiçoando e desenvolvendo o nosso ser, através da alegria e do sofrimento, pelo júbilo ou pela dor.

   O nosso corpo é apenas uma prisão temporária e a morte é uma libertação. A sabedoria consiste, pois, em sempre subordinar a matéria ao espírito, porque ela não é mais que uma aparência, enquanto o espírito é a única realidade viva e imortal.

   O sofrimento é sagrado por ser a escola austera das almas, o meio mais seguro de purificação e elevação.

   A dor é a reparação do passado e a conquista do futuro; é a possibilidade que nos é oferecida para nos juntarmos aos nossos queridos invisíveis, participando de sua vida espiritual, os seus trabalhos e as suas missões.

   Pela dor os nossos destinos se ajustam e se marcam de modo mais vivo, ensinando que a hora presente é solene para a humanidade, cujo progresso ou recuo ela pode precipitar.

   Pela conjugação dos nossos esforços podemos garantir a vitória do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, do altruísmo sobre o egoísmo brutal, permitindo que algum progresso se faça para reino do Espírito Divino.

   Depois da tormenta virá o tempo de paz, permitindo realizar o balanço moral dessa guerra. Veremos então que os nossos males deram os seus frutos. Os crimes, as covardias e as traições que o presente carrega suscitarão um sentimento universal de reprovação e de horror, impedindo que eles se repitam.

   Por outro lado, as privações e o sofrimento experimentados em comum associam os corações, anulando distinções entre partidos e religiões, tornando definitiva a união sagrada que a necessidade dos dias tristes impôs.

   Todos os filhos da França se sentirão como irmãos, animados pelo mesmo espírito, dispostos a preparar a vitória das forças morais e, através delas, o soerguimento da pátria.

   Grande número de jovens já começa a entrever as nobres verdades que só alcançam quando mais idosos e mais experientes. Antes da guerra eles passavam por materialistas e amantes dos gozos, porém, premidos pelas circunstâncias, diante do perigo, na presença da morte e principalmente nas longas esperas da trincheira, o pensamento lhes amadureceu.

   Aos seus olhos apareceram novas perspectivas, vozes interiores lhes cantaram dentro da alma, e a vida agora lhes apareceu sob um aspecto não conhecido. O mundo invisível, que na sangrenta luta os animava, os inspira nas horas de calma e repouso, sugerindo-lhes nobre e elevado ideal, depositando nas suas almas os germes de sagrada semente.

   Sobre isso, recebi muitas cartas da linha da frente, que servem de outros tantos testemunhos. Uma coisa elas demonstram: que se forjam vontades cuja têmpera enfrentará todos os choques e que, do caos dos acontecimentos, surgirão almas selectas que, conscientes do seu valor, penetradas pela grande lei dos destinos, nenhum fracasso lhes poderá enfraquecer a fé.

   Estarão preparadas para todos os sacrifícios, pois o seu ideal as eleva acima de todas as provações, de todas as decepções, sabendo que o futuro lhes pertence.

   Na escola do sofrimento, as presentes gerações aprenderão a renunciar aos seus erros e vícios, imprimindo novas direcções à vida nacional e preparando os elementos de uma renovação que restituirá à França todo o brilho do seu génio e todo o seu prestígio no mundo.

   Assim se faz a História: pela íntima e profunda colaboração das duas humanidades, a da Terra e a do Espaço.

   A observação superficial, considerando apenas o plano terrestre, vê os factos se sucederem desordenadamente, sem nexo, numa aparente incoerência, só explicável pelo livre-arbítrio que Deus concede ao homem, de agir a seu gosto.

   Todavia, se contemplarmos as coisas de mais alto, distinguiremos melhor o misterioso fio que as liga. Através da marcha maravilhosa dos séculos se vislumbra a obra da eterna justiça.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VIII / Acção dos Espíritos sobre os Actuais Acontecimentos / Janeiro de 1917 (2 de 2) 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


Situações novas ~

  Essas possibilida-des se tornam cada vez mais visíveis, graças à aceleração do processo histórico no século actual (XX). A teoria marxista da luta de classes, comprovada pelos factos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas inteiramente novas. A ideia da revolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do século XIX e nos princípios do século XX. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta foram antes populares do que proletárias, e não somente no conjunto das massas, mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, em França e na Itália. Nos três últimos países, o Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e pequeno-burguesa.

  Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a “consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente novas, e os marxistas se esquecem dos princípios dialécticos da sua própria filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi, em A Grande Síntese, emite este conceito, em que os materialistas dialécticos deviam meditar:“Se a luta foi, a um tempo, de natureza física, hoje é económica e nervosa, e amanhã será espiritual e ideal, muito mais digna de ser travada.”

O choque apocalíptico ~

  Marx viu, na sua época, a necessidade de se construir uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes”, e o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência, e só podem manter o seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de nos mostrar quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias.

  Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas perspectivas da guerra atómica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.

   A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E a força das ideias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes, mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou de muito, na sua própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a antítese da dialéctica hegeliana que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?

Hora de libertação ~

  Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que resulta a progresso, e os “contrários” não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.

  A forma proletária da violência não modifica a substância mesma da violência, e os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive o Brasil, armada com os poderes do feudalismo, se tornou um poder feudal, a antítese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, numa classe como noutra, e a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo económico é fugir para a abstracção de uma economia autónoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polaca Larissa Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários económicos, verdadeiros “negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno de sua génese, na Alemanha burguesa.

  Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irónico dos materialistas-dialécticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”, pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido, e não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente.”

  Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do Espírito, da solução espiritual, e só ela nos livrará do torniquete da força contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconsequente do poder material. RuskinTolstóiTagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.

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José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Situações novas, O choque apocalíptico, Hora de libertação, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 27 de junho de 2014

O sentido da vida ~


Amar a Deus

Não somente um ilustre pastor protestante nos fez certa vez essa pergunta, como também o reverendo Otoniel Motta a explanou, do ponto de vista protestante, no seu livrinho Temas Espirituais, afirmando que os espíritas não podem amar a Deus, uma vez que não lhe atribuem nenhuma espécie de forma. Tivemos já a oportunidade de lembrar a ambos um outro mandamento bíblico, aliás tão invocado pelos presentes, o de que não devemos adorar imagens. Esse mandamento foi renovado por Jesus, quando disse que devíamos adorar a Deus em espírito e verdade. Analisando ambos, e tendo em vista o que dissemos no capítulo anterior, compreenderemos que o Espiritismo vem renovar também a compreensão desses mandamentos, abrindo a inteligência do homem para a compreensão de Deus em espírito e verdade, única maneira de ele o adorar independentemente de qualquer imagem.

De um ponto de vista material, sabemos que há imagens de madeira, de barro, de metal e de outros elementos. Entretanto, do ponto de vista espiritual, devíamos saber que há também outras espécies de imagens, e muito especialmente as imagens mentais. Por acaso podemos admitir que a adoração de uma imagem mental seja menos condenável do que a das imagens materiais? Podemos admitir que não seja idolatria a adoração de ídolos mentais, forjados pelo homem à sua imagem e semelhança?

Contra a idolatria mental, tão perniciosa quanto a material, se ergue o Espiritismo. Essa idolatria levou Antero de Quental a escrever o célebre soneto em que considera Deus como um ser criado pelo homem, à imagem e semelhança deste. Levou também Marx e Engels a considerarem o fenómeno Deus como a simples projecção do homem a um plano superior, no anseio natural de querer superar as circunstâncias que o dominam e escravizam, na Terra. Graças à idolatria mental, os filósofos materialistas conseguiram desferir profundos golpes na crença de muitos homens acostumados a pensar. E multidões de crentes, por sua vez, no mundo inteiro, desviaram o sentimento de amor que deviam dedicar a Deus, para o simples ídolo mental que a religião lhes oferecia. Com isso, tornaram morta a sua própria fé, tiraram-lhe todas as possibilidades de expansão dinâmica, reduzindo-a a uma expressão inferior de puro fetichismo.

Espiritismo apresenta-nos a seguinte constituição do Universo:

“Deus, espírito e matéria constituem o princípio de tudo o que existe, a trindade universal. Mas, ao elemento material, temos de juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário entre o espírito e a matéria...”

Como vemos, o Espiritismo é profundamente deísta, considerando Deus como elemento constitutivo e básico do Universo. O Deus do Espiritismo, entretanto, e por isso mesmo, não pode ser reduzido a uma simples imagem mental de forma humana.

Allan Kardec nos apresenta Deus, no O Livro dos Espíritos, como eterno, imutável, imaterial, único, omnipotente, soberanamente justo e bom. São atributos que as religiões também reconhecem no Criador, e que por si mesmos contradizem a forma humana que lhe dão. Negando-lhe essa forma ou qualquer outra que lhe quisermos dar, o Espiritismo nos coloca em face, tão-somente, dos atributos de Deus. É, pois, pelos seus atributos, que o devemos amar. E quem não percebe que, dessa maneira, o Espiritismo nos desvia da idolatria, para nos encaminhar ao amor de Deus em espírito e verdade?

Do ponto de vista espírita, aliás, compreendemos a lição do amar a Deus sobre todas as coisas, lição que, usando a faculdade de pensar, não poderíamos compreender, do ponto de vista idólatra. Mesmo porque seria um contra-senso colocarmos o nosso amor por uma imagem qualquer, fosse ela mental ou não, acima do amor que devemos aos nossos entes mais queridos. Só um desvio mental, uma anomalia psíquica, nos levaria a tal coisa.

O Espiritismo nos ensina que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, segundo a lição dos textos sagrados, e nos mostra, aliás, que é absolutamente indispensável fazermos isso, se quisermos cumprir a nossa tarefa terrena, alcançar o objectivo supremo da nossa encarnação neste planeta expiatório. E isso pelo simples motivo de que sendo Deus eterno, imutável e imaterial, devemos colocar o nosso interesse acima das coisas transitórias, mutáveis e materiais, que nos cercam e nos prendem à existência terrena. Sendo Deus único e omnipotente, nele devemos confiar e esperar, e não em outros seres e outras coisas, por mais belas e fascinantes que elas nos sejam apresentadas.

Mas o que é mais importante para todos nós, pequenos bichos da terra, tão pequenos, como dizia Camões, é que, sendo Deus soberano, justo e bom, é evidentemente a suprema justiça e a suprema bondade, pelo que devemos amar a justiça e a bondade acima de toda a injustiça e de toda a maldade. Amando a Deus sobre todas as coisas, através daquilo que de Deus podemos conhecer, que são os seus atributos, seremos capazes de realmente colocar Deus acima de tudo e de todos.

Assim compreendemos também o ensinamento do Cristo, de que devemos abandonar até mesmo os nossos pais, a nossa mulher e os nossos filhos, se o quisermos seguir. Pois o homem que ama a Deus, em espírito e verdade, sobre todas as coisas, está sempre com a verdade, a justiça, o amor, a bondade, a pureza, contra mesmo os seus próprios interesses da vida material. Coloca o seu amor a Deus acima das vantagens que pode auferir na vida, sempre que prefere a verdade à mentira, por mais fascinantes que sejam as promessas desta. E não terá dúvidas em romper com os próprios pais, a mulher e os filhos, quando estes ficarem com a mentira ou a injustiça, pois ele, fiel ao seu amor a Deus, preferirá sempre a justiça e a verdade.

Neste caso, porém, até o materialista não poderia amar a Deus mais eficientemente do que muitos religiosos, e de maneira mais real?

Já nos dirigiram, certa vez, essa pergunta, a que vamos responder.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Amar a Deus 1º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 20 de junho de 2014

| o grande enigma ~


Solidariedade comunhão universal ||

Todos os seres estão ligados uns aos outros e se influenciam reciprocamente: O Universo inteiro está submetido à lei da solidariedade. Os mundos nas profundezas do éter, os astros que, a milhares de quilómetros de distância, entrecruzam os seus raios de prata, conhecem-se, chamam-se e respondem-se. Uma força, que denominamos atracção, os reúne através dos abismos do Espaço.

De igual maneira, na escala da vida, todas as Almas estão unidas por múltiplas relações. A solidariedade que as liga funda-se na identidade de sua natureza, na igualdade dos seus sofrimentos através dos tempos, na similitude dos seus destinos e dos seus fins.

A exemplo dos astros dos céus, todas essas Almas se atraem. A Matéria exerce sobre o Espírito os seus poderes misteriosos. Qual Prometeu sobre a sua rocha, ela o encadeia aos mundos obscuros. A Alma humana sente todas as atracções da vida inferior; ao mesmo tempo percebe os chamados do Alto.

Nessa penosa e laboriosa evolução que arrasta os seres, há um facto consolador sobre o qual é bom insistir: em todos os graus da sua ascensão, a Alma é atraída, auxiliada, socorrida pelas entidades superiores. Todos os Espíritos em marcha são auxiliados pelos seus irmãos mais adiantados e devem auxiliar, por sua vez, todos os que lhes estão abaixo.

Cada individualidade forma um anel da grande cadeia dos seres. A solidariedade que os liga pode muito bem restringir um tanto a liberdade de cada um; mas, se esta liberdade é limitada em extensão, não o é na intensidade.

Por mais limitada que seja a acção do anel, um só dos seus impulsos pode limitar toda a cadeia.

É maravilhosa essa fecundação constante do mundo inferior pelo mundo superior. Daí vêm todas as intuições geniais, as inspirações profundas, as revelações grandiosas. Em todos os tempos, o pensamento elevado irradiou no cérebro humano. Deus, na sua equidade, nunca recusou o seu socorro nem a sua luz a raça alguma, a povo algum. A todos tem enviado guias, missionários, profetas. A verdade é uma e eterna; ela penetra na Humanidade por irradiações sucessivas, à medida que o nosso entendimento se torna mais apto para assimilá-la.

Cada revelação nova é continuação da antiga. É este o carácter do Espiritualismo moderno, que traz um ensino, um conhecimento mais completo do papel do ser humano, uma revelação dos poderes recônditos que ele possui e também das suas relações íntimas com o pensamento superior e divino.

O homem, Espírito encarnado, tinha esquecido o seu verdadeiro papel. Sepultado na matéria, perdia de vista os grandes horizontes do seu destino; desprezava os meios de desenvolver os seus recursos latentes, de se tornar mais feliz, tornando-se melhor. A revelação nova lhe vem lembrar todas essas coisas. Vem despertar as Almas adormecidas, estimular a sua marcha, provocar a sua elevação. Ela ilumina os recônditos obscuros do nosso ser, diz as nossas origens e os nossos fins, explica o passado pelo presente e abre um porvir que temos a liberdade de tornar grande ou miserável, segundo os nossos actos.

A Alma humana só pode realmente progredir na vida colectiva, trabalhando em benefício de todos.

Uma das consequências dessa solidariedade que nos liga é que à vista dos sofrimentos de alguns perturba e altera a serenidade dos outros.

Assim, é preocupação constante dos Espíritos elevados levar às regiões obscuras, às Almas retardadas nos caminhos da paixão e do erro, as irradiações do seu pensamento e os transportes do seu amor. Nenhuma Alma pode perder-se; se todas tiverem sofrido, todas serão salvas. No meio das suas provas dolorosas, a piedade e o afecto das suas irmãs as enlaçam e as arrastam para Deus.

Como compreender, com efeito, que os Espíritos radiosos possam esquecer aqueles que outrora amaram, aqueles que partilharam as suas alegrias, as suas preocupações, e pensam ainda nas sendas terrestres? A queixa dos que sofrem, dos que o destino encadeia ainda nos mundos atrasados, chega até eles e suscita a sua generosa compaixão. Quando um desses apelos atravessa o Espaço, eles deixam as moradas etéreas para derramar os tesouros da sua Caridade nos escuros sulcos dos mundos materiais. Qual vibrações de luz, os transportes do seu amor se propagam na extensão, levando o consolo aos corações entristecidos, vertendo sobre as chagas humanas o bálsamo da Esperança.

Muitas vezes, também, durante o sono, as Almas terrestres, atraídas pelas suas irmãs mais adiantadas, lançam-se com força para as alturas do Espaço, para se impregnarem dos fluidos vivificantes da pátria eterna. Ali, Espíritos amigos as cercam e as exortam, reconfortam e acalmam as suas angústias; em seguida, extinguindo pouco a pouco a luz em torno delas, a fim de que as pungentes lamentações da separação não as acabrunhem, elas as reconduzem às fronteiras dos mundos inferiores. O seu despertar é melancólico, mas agradável, e, embora esquecidas da sua passagem pelas altas regiões, sentem-se elas reconfortadas e retomam mais alegremente os encargos da sua existência neste mundo.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, III Solidariedade | comunhão universal 2 de 3, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 7 de junho de 2014

Victor Hugo e o invisível ~


Um Discurso Palingenésico para Materialistas e Ateus ~

   Depois de um jantar oferecido por Victor Hugo a amigos seus, foi ele convidado a expor os seus pensamentos. Entre os comensais encontravam-se ateus, agnósticos e materialistas, mas, apesar disto o poeta derramou o perfume poético e filosófico de suas ideias espirituais. Como sempre as suas asas de águia se abriram por cima de todos e de sua boca brotaram os mais excelsos conceitos, que foram reconhecidos pelo ilustre poeta Arsenio Houssaye (i). O autor de Os Miseráveis respondeu assim ao convite:

   "Quem pode dizer-nos que eu não volte a encontrar-me nos séculos futuros? Shakespeare escreveu: 'A vida é um conto de fadas que se lê pela segunda vez'. Poderia ter dito pela milésima vez. Porque não há século pelo qual eu não veja passar a minha sombra.

   "Vós não acreditais nas personalidades moventes, quer dizer, nas reencarnações, com o pretexto de que não recordais nada de vossas existências passadas, mas como as lembranças dos séculos desvanecidos poderiam estar impressas em vós quando não vos recordais nada das mil e uma cenas de vossa vida presente? Desde 1802 hei-de ter tido em mim dez Victor Hugo! Creis vós que me lembro de todas as acções e de todos os seus pensamentos?

   "Quando houver atravessado o túmulo para voltar a encontrar outra luz, todos esses Victor Hugo me serão um pouco estranhos, mas esta será sempre a mesma alma!

   "Sinto em mim toda uma vida nova, toda uma vida futura; sou como a selva que muitas vezes foi derrubada; os jovens rebentos são cada vez mais fortes e vivazes. Eu subo, subo, subo até ao infinito. Tudo é radiante à minha frente, a terra me dá a sua seiva generosa, mas o céu me ilumina com o reflexo dos mundos entrevistos.

   "Dizeis vós que a alma é a expressão das forças corporais: por que então a minha alma é mais luminosa quando as forças corporais irão já me abandonar? O inverno está sobre a minha cabeça, a primavera está na minha alma; aspiro aqui nesta hora às lilases e às rosas como se tivesse vinte anos. À medida que me aproximo da velhice, melhor escuto em meu redor as imortais sinfonias dos mundos que me chamam. É maravilhoso e sensível. É um conto de fadas, mas é uma história.

   ''Faz meio século que escrevo o meu pensamento em prosa e em verso, história e filosofia, drama, novela, legendas, sátira, ode, canção; de tudo tenho tratado, mas sinto que não disse mais que a milionésima parte do que é meu. Quando estiver no túmulo poderei dizer, como tantos outros: ''terminei a minha jornada!" e não "terminei a minha vida". A minha jornada recomeçará no outro dia, de manhã. O túmulo não é um labirinto sem saída; é uma avenida, que se fecha no crepúsculo e volta a abrir-se na aurora.

   "Se eu não perco um minuto é porque amo este mundo como a uma pátria, porque a verdade me atormenta, como atormentou Voltaire, esse deus humano. A minha obra não é mais do que um começo; meu monumento apenas saiu da terra; quisera eu vê-lo subir ainda; subir sempre. A sede de infinito prova o infinito. Que dizeis vós, senhores ateus?

   "Escuta-me. O homem não é mais do que um exemplar de Deus infinitamente pequeno, a edição em 32 do in-fólio gigantesco, mas o mesmo livro. Glória inaudita para o homem! Eu sou o homem, eu, uma partícula invisível, uma gota no oceano, um grão de areia na praia. Contudo, pequeno que sou, sinto-me deus porque também desenvolvo o caos que está em mim. Eu faço livros – quer dizer, sonhos – que são os mundos. Oh! falo sem orgulho porque já não tenho mais vaidade que a formiga que edificou a Babilónia, nem vaidade como o menor dos pássaros, que canta no coro universal.

   "Eu não sou nada. Jaz aqui Victor Hugo, um abismo, um eco que passa, uma nuvem que foi, uma onda que morre na praia. Eu não sou nada, mas deixa-me continuar a minha obra começada; deixa-me subir de século em século em todas as rochas, todos os perigos, todos os amores, todas as paixões, todas as angústias. Quem vos disse que um dia, depois de milhares de ascensões, não haveria eu, como todos os homens de boa vontade, conquistado um posto de ministro no supremo conselho desse adorável tirano que se chama Deus''.

   Como vemos, Victor Hugo falou de personalidades moventes, quer dizer, de seres dinâmicos que, sobrepujando as trevas do sepulcro, avançam para o verdadeiro Ser, para a aquisição da soberana personalidade espiritual. Essas personalidades moventes assinaladas pelo poeta representam a evolução palingenésica do espírito que, como vemos, constitui a base de sua obra poética e filosófica.

   Reconhece-se ele mesmo uma série de Victor Hugo, que vem ascendendo através da história espiritual do Ser. A perene evolução do seu Espírito aproximou-o de Deus até vencer as trevas do nada e da morte. Esta catarse não foi experimentada por Jean-Paul Sartre e o existencialismo ateu que ele encabeça, pois só o Espírito como entidade palingenésica poderá dar ao homem moderno o verdadeiro existencialismo: a existência baseada nas vidas sucessivas da alma.

   Frente ao nada, Victor Hugo proclamou a vida eterna; frente ao túmulo, aceitou a revelação mediúnica dos Espíritos, cuja valorização filosófica e religiosa se encontra na obra ''O Livro dos Espíritos", de Allan Kardec.

   De facto, o poeta das grandes iluminações espirituais era espírita porque não pôde ser um espiritualista sem bases reais nem mediúnicas. Foi espírita porque comprovou que a morte não aniquila o homem, cujo espírito imortal e divino é quem rege os processos do mundo material. Sentiu a presença dos mortos como uma protecção e inspiração que eleva e transforma a condição humana. Rebateu o mundo estático e fixo para aceitar a filosofia da vida universal, concebendo que almas e mundos se enlaçam dialécticamente à causa da lei da reencarnação a que tudo está submetido.

   Victor Hugo foi o gigante da visões cósmicas, o poeta dos salmos e odes que igualaram as mais belas páginas dos profetas bíblicos. Tinha no seu espírito a poesia e o saber da filosofia espírita. Sentiu de forma ampla os postulados da ciência da alma em relação com a ciência do céu. Foi assim que compreendeu que o ser passa de um mundo a outro mediante vidas e mortes sucessivas, para se transformar num colaborador do Plano Divino.

   Do pensamento filosófico e poético de Victor Hugo se deduz que não haverá autêntico espiritualismo sem as bases mediúnicas do Espiritismo. Toda a verdadeira concepção espiritualista deverá assentar-se sobre a concepção revelada pelo génio espiritual e religioso do mundo invisível. Para o poeta, as manifestações mediúnicas não eram o resultado de sombras larvais, de resíduos psíquicos do ser nem de sedutores demónios. As manifestações, para Victor Hugo, eram mensagens dos mundos imateriais destinadas a penetrar na natureza humana para iluminá-la pelo amor e pela beleza.

   No seu país, outro génio poético das vidas sucessivas foi Alfonso de Lamartine, que cantou a concepção da reencarnação da alma. A história espiritual que anima os seus dois livros - A queda de um anjo Jocelyn - está entretecida pelo amor entre dois seres que se buscam através dos tempos. Lamartine, na sua obra Uma viagem ao Oriente, revela as reminiscências palingenésicas de passado distante. Disse assim num dos seus capítulos: "Quando visitei a Judeia, não tinha nas mãos nem a Bíblia nem mapas, nada que me servisse de indicação de lugares, sequer uma pessoa capaz de me dar o nome actual dos lugares nem o antigo dos vales e montanhas. Apesar disso, reconheci imediatamente o Vale de Terebinto e o campo de batalha de Saul. Quando fomos ao convento, os padres me confirmaram a exactidão de minhas previsões. Os meus companheiros ficaram admirados e apenas davam crédito a isso.

   "Em Sephora, designei com o dedo e mencionei pelo nome uma colina coroada por um castelo arruinado, como o provável lugar do nascimento de Maria. No dia seguinte, ao pé de uma montanha árida, reconheci o túmulo dos macabeus, no que disse a verdade sem o saber. Exceptuando os vales do Líbano, não tenho encontrado na Judeia um lugar, uma coisa que não fosse para mim como uma recordação.

   "Temos vivido, pois, duas vezes ou mil? Nossa memória não é quiçá mais que uma imagem adormecida, que o sopro de Deus faz reanimar" (ii). Victor Hugo e Alfonso de Lamartine coincidem nesta concepção palingenésica do ser. Ambos sentiam ''misteriosos estremecimentos'' ao encontrarem-se frente a ruínas antigas; percebiam como a sombra de "outra sombra" se projectava sobre o presente. De facto, estes génios da gaia ciência somente pela ideia da pré-existência das almas puderam alcançar tão alto nível lírico e religioso. Isto nos mostra que a criação poética voltará às suas verdadeiras fontes quando o poeta se reconhecer como um ser que nasce, morre e renasce. Em suma, a poesia palingenésica será o que despertará a alma encarnada de seu sono terreno e que lhe fará recordar as suas vidas anteriores entretecidas de misteriosas longitudes espirituais.

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(i) Suzanne Misset-Hopes: Presença de Victor Hugo, Ed Amoure Vie, Bugnolet (Sense,
França). N. do Autor.
(ii) Citado por Petit de Juleville em sua Histoire de la literature française, t. VII. N. do Autor.



Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, UM DISCURSO PALINGENÉSICO PARA MATERIALISTAS E ATEUS, 9º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)