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sábado, 16 de agosto de 2014

Diálogos de Kardec ~

Carácter e Consequências Religiosas das Manifestações dos Espíritos ~

1. As almas ou Espíritos dos que aqui viveram constituem o mundo invisível que povoa o espaço e no meio do qual vivemos. Daí resulta que, desde que há homens, há Espíritos e que, se estes últimos têm o poder de manifestar-se, devem tê-lo tido em todas as épocas. É o que comprovam a história e as religiões de todos os povos. Entretanto, nestes últimos tempos, as manifestações dos Espíritos assumiram grande desenvolvimento e tomaram um carácter mais acentuado de autenticidade, porque estava nos desígnios da Providência pôr termo à praga da incredulidade e do materialismo, por meio de provas evidentes, permitindo que os que deixaram a Terra viessem atestar a sua existência e revelar-nos a situação ditosa ou infeliz em que se encontravam.

2. Vivendo o mundo visível no meio do mundo invisível, com o qual se acha em contacto perpétuo, segue-se que eles reagem incessantemente um sobre o outro, reacção que constitui a origem de uma imensidade de fenómenos, que foram considerados sobrenaturais, por não se lhes conhecer a causa.

A acção do mundo invisível sobre o mundo visível e reciprocamente é uma das leis, uma das forças da Natureza, tão necessária à harmonia universal, quanto a lei de atracção. Se ela cessasse, a harmonia estaria perturbada, conforme sucede num maquinismo, donde se suprima uma peça. Derivando de uma lei da natureza semelhante acção, nada têm, evidentemente, de sobrenaturais os fenómenos que ela opera. Pareciam tais, porque desconhecida era a causa que os produzia. O mesmo se deu com alguns efeitos da electricidade, da luz, etc.

3. Todas as religiões têm por base a existência de Deus e por fim o futuro do homem depois da morte. Esse futuro, que é de capital interesse para a criatura, se acha necessariamente ligado à existência do mundo invisível, pelo que o conhecimento desse mundo há constituído, desde todos os tempos, objecto das suas pesquisas e preocupações. A atenção do homem foi naturalmente atraída pelos fenómenos que tendem a provar a existência daquele mundo e nenhum houve jamais tão concludente, como os das manifestações dos Espíritos por meio das quais os próprios habitantes de tal mundo revelaram as suas existências. Por isso foi que esses fenómenos se tornaram básicos para a maior parte dos dogmas de todas as religiões.

4. Tendo instintivamente a intuição de uma potência superior, o homem foi sempre levado, em todos os tempos, a atribuir à acção directa dessa potência os fenómenos cuja causa lhe era desconhecida e que passavam, aos seus olhos, por prodígios e efeitos sobrenaturais. Os incrédulos consideram essa tendência uma consequência da predilecção que tem o homem pelo maravilhoso; não procuram, porém, a origem desse amor do maravilhoso. Ela, no entanto, reside muito simplesmente na intuição mal definida de uma ordem de coisas extracorpóreas. Com o progresso da Ciência e o conhecimento das leis da Natureza, esses fenómenos passaram pouco a pouco do domínio do maravilhoso para o dos efeitos naturais, de sorte que o que outrora parecia sobrenatural já não o é hoje e o que ainda o é hoje não mais o será amanhã.

Os fenómenos decorrentes da manifestação dos Espíritos forneceram, pela sua natureza, larga contribuição aos factos reputados maravilhosos. Tempo, contudo, viria em que, conhecida a lei que os rege, eles entrariam, como os outros, na ordem dos factos naturais. Esse tempo chegou e o Espiritismo, dando a conhecer essa lei, apresentou a chave para a interpretação da maior parte das passagens incompreendidas das Escrituras sagradas que a isso aludem e dos factos tidos por miraculosos.

5. O carácter do facto miraculoso é ser insólito e excepcional; é uma derrogação das leis da Natureza. Desde, pois, que um fenómeno se reproduz em condições idênticas, segue-se que está submetido a uma lei e, então, já não é miraculoso. Pode essa lei ser desconhecida, mas, por isso, não é menos real a sua existência. O tempo se encarregará de revelá-la.

O movimento do Sol, ou, melhor, da Terra, sustado por Josué, seria um verdadeiro milagre, porquanto implicaria a derrogação manifesta da lei que rege o movimento dos astros. Mas, se o facto pudesse reproduzir-se em dadas condições, é que estaria sujeito a uma lei e deixaria, consequentemente, de ser milagre.

6. É erróneo assustar-se a Igreja com o facto de restringir-se o círculo dos factos miraculosos, porquanto Deus prova melhor o seu poder e a sua grandeza por meio do admirável conjunto das suas leis, do que por algumas infracções dessas mesmas leis. E tanto mais erróneo é o seu temor, quanto ela atribui ao demónio o poder de operar prodígios, donde resultaria que, podendo interromper o curso das leis divinas, o demónio seria tão poderoso quanto Deus. Ousar dizer que o Espírito do mal pode suspender o curso das leis de Deus é blasfémia e sacrilégio.

Longe de perder qualquer coisa da sua autoridade por passarem os factos qualificados de milagrosos à ordem dos factos naturais, a religião somente pode ganhar com isso; primeiramente, porque, se um facto é tido falsamente por miraculoso, há aí um erro e a religião somente pode perder, se se apoiar num erro, sobretudo se se obstinasse em considerar milagre o que não o seja; em segundo lugar, porque, não admitindo a possibilidade dos milagres, muitas pessoas negam os factos qualificados de milagrosos, negando, consequentemente, a religião que em tais factos se estriba. Se, ao contrário, a possibilidade dos mesmos factos for demonstrada como efeitos das leis naturais, já não haverá cabimento para que alguém os repila, nem repila a religião que os proclame.

7. Nenhuma crença religiosa, por lhes ser contrária, pode infirmar os factos que a Ciência comprova de modo peremptório. Não pode a religião deixar de ganhar em autoridade acompanhando o progresso dos conhecimentos científicos, como não pode deixar de perder, se se conservar retardatária, ou a protestar contra esses mesmos conhecimentos em nome dos seus dogmas, visto que nenhum dogma poderá prevalecer contra as leis da Natureza, ou anulá-las. Um dogma que se funde na negação de uma lei da Natureza não pode exprimir a verdade.

O Espiritismo, que se funda no conhecimento de leis até agora incompreendidas, não vem destruir os factos religiosos, porém sancioná-los, dando-lhes uma explicação racional. Vem destruir apenas as falsas consequências que deles foram deduzidas, em virtude da ignorância daquelas leis, ou de as terem interpretado erradamente.

8. A ignorância das leis da Natureza, com o levar o homem a procurar causas fantásticas para fenómenos que ele não compreende, é a origem das ideias supersticiosas, algumas das quais são devidas aos fenómenos espíritas mal compreendidos. O conhecimento das leis que regem os fenómenos destrói essas ideias supersticiosas, encaminhando as coisas para a realidade e demonstrando, com relação a elas, o limite do possível e do impossível.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos  Carácter e Consequências Religiosas das Manifestações dos Espíritos, 9º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

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