Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de agosto de 2014

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria I Posição do Problema (VI)

   A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a táctica do ateísmo do nosso tempo.

   Ele não é fruto directo do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa aparência. É evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho científico.

   Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e da juventude desprevenida e entusiasta, tendendo a fazer-lhes crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.

   Dir-se-ia, depois de os ouvir, nada haver além deles. Os grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente científico.

   Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os factos científicos, perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem impor.

   Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de velho e carcomido tronco de madeira podre e, no fundo, os partidários do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.

   Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos.

   E uma vez que são eles próprios a declarar que toda a hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimento.

   Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?

   Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base.

   Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela?

   Trata-se de discutir e escolher uma ou a outra, ou, para falar com mais exactidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois.

   E, pois que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o em dúvida e propondo a alegação contrária.

   No rosto desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:

   A força rege ou é regida pela matéria? É este o dilema que os factos de si mesmos devem resolver.

   O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas.

   Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às leis que as governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.

   A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de alguns ínfimos seres humanos se recusam a escutá-los. A mecânica celeste lança, ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitectura.

   A luz, o calor, a electricidade, pontos invisíveis projectados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento, a actividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza, e as imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? – porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? – porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar, tristemente, a luz imaculada que desce dos céus?

   Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo, começando por demonstrar a soberania da força no tracejar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronómicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria, esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra nada é. A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na população astral, sem excepção nem privilégio particular.

   Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saará um grão de areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo.

   Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria.

   A nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.

   Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si mesmos; que não agem nem pensam por impulso próprios e que, nas sendas invisíveis do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 6 de 6, 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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