Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 21 de setembro de 2014

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Manifestações Espirituais de Crianças ~

Nas correntes do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro existem, divididas em formas idealizadas de grupos espirituais, as correntes infantis, médicas, orientais, africanas, indígenas e outras, que se manifestam mediunicamente, com as características do condicionamento etário da vida terrena, das condições profissionais e raciais e assim por diante. Nas práticas africanas do Candomblé e nas práticas indígenas da Poracê manifestam-se os elementares, espíritos em transição para o plano humano. A intensa divulgação dessas práticas sincréticas – misturas de religiões primitivas dos negros africanos e dos indígenas americanos – leva muita gente a perguntar por que motivo essas manifestações não ocorrem também nas sessões espíritas, onde as manifestações são geralmente de criaturas humanas adultas. Um ilustre médico psiquiatra, dedicado a esses assuntos, chegou a declarar numa conferência em São Paulo que o Espiritismo ignorava a existência de espíritos não-humanos. Um espírita presente não se conteve e explicou-lhe em público que o Espiritismo conhece e proclama a existência de inúmeras formas de espíritos não-humanos mas não se apega ao assunto, por ser uma doutrina. As fases anteriores da evolução pertencem ao domínio das leis naturais. Todos esses espíritos em ascensão para o plano hominal não dispõem ainda de inteligência e consciência suficientemente desenvolvidas para participar do plano humano. No mundo espiritual esses espíritos são amparados e orientados por espíritos que se dedicam aos chamados espíritos da natureza.

Vale essa lição para os espíritas que hoje pregam a supressão das sessões mediúnicas, alegando que as doutrinações de espíritos humanos ignorantes e sofredores pertence ao mundo espiritual. Esse raciocínio ilógico e antinatural estabelece a dicotomia no processo de intercâmbio mediúnico, sem nenhuma prova da razão alegada. Por outro lado, nega o princípio de solidariedade humana entre os dois planos estreitamente conjugados, o carnal e o espiritual. A doutrinação mediúnica é função básica do Espiritismo, a mais bela e consoladora herança do Cristianismo do Cristo (e não dos seus vigários) como declarou o Padre Alta no seu famoso livro. Cancelar as sessões mediúnicas seria voltarmos ao marco-zero. Restabeleceríamos assim o princípio católico da inviolabilidade do mistério da morte, isolando-nos artificialmente dos espíritos amigos, nossos companheiros de evolução humana, que continuam a conviver connosco na interpenetração dos mundos material e espiritual, hoje comprovada pelas próprias Ciências materiais. Fecharíamos as portas da nossa ignorância na cara dos amigos e parentes que nos amam e nos ajudam no campo das relações mediúnicas. É isso o que desejam os inquietos e desavisados inovadores do nosso tempo?

As manifestações de espíritos de crianças são naturais, pois todos os espíritos podem manifestar-se. Mas as manifestações desses espíritos em cadeia, formando correntes para trabalhos espirituais não têm sentido. As crianças transformam os médiuns em bebês chorões, pedem chupetas e mamadeiras, querem brincar com bonecas e assim por diante. Acontece que os espíritos de crianças não são crianças, mas adultos. Deixando o corpo infantil são confiados a espíritos superiores que os orientam para que se descondicionem da situação infantil, de que somente necessitavam em função de sua rápida passagem cármica pela Terra. Quando o espírito já dispõe de conhecimentos espirituais, retorna por si mesmo e naturalmente à condição de adulto. A condição infantil corresponde às necessidades evolutivas do corpo material. Cumpridas essas exigências psicobiológicas, retornam à condição de adultos. Isso se torna evidente nas manifestações de espíritos de crianças mortas que se manifestam aos pais para identificar-se, mas em manifestações posteriores já se declaram adultas. Um menino de oito anos, no nosso grupo de trabalho, respondeu aos mimos e preocupações dos pais dizendo: “Não sou mais criança. A morte nos faz crescer depressa. Fiquei rapaz em poucos dias. Mas sou o mesmo espírito que vocês só conheceram como criança. Cumpri a minha missão e agora tenho de prosseguir na minha evolução. Estarei sempre com vocês, porque vos amo, mas não pensem em mim como morto ou como criança, pois não sou mais nenhuma dessas duas coisas”. Os espíritos de crianças, de adultos, de velhos, manifestam-se como eram na carne para se identificarem, mas não permanecem no estado em que morreram. As manifestações do sincretismo religioso são em geral condicionadas pelas crenças e tradições das religiões primitivas dos vários tipos de manifestações religiosas de que provêm. Trata-se em geral de manifestações anímicas submetidas ao processo de condicionamento à crença, pesquisado por Richet no século passado e pelos parapsicólogos actuais. Boirac deu a essas manifestações a designação de espiritóides, o que vale dizer pseudo-espíritas. O devoto de Nossa Senhora que vê um espírito radiante de mulher tende sempre a considerá-la como a santa de sua devoção. Esse é um dos capítulos mais difíceis do campo científico da mediunidade, que a maioria dos espíritas desconhece. Cada ciência tem os seus problemas melindrosos, que exigem estudo sério dos seus praticantes.

Kardec registou nas suas pesquisas várias manifestações de crianças na condição de agénere (manifestações de crianças em forma de materializações, mas que não o são). Trata-se de casos raros, provocados por excessivo apego de espíritos afins. O caso da menina Raquel, filha de Frederico Figner, foi uma materialização através de um médium. O agénere é o fenómeno produzido por alterações do perispírito ou corpo espiritual do espírito manifestante, que lhe dão a aparência de materializado. (Ver na Revista Espírita, de Kardec, a teoria dos agéneres). Sem estudo metódico e aprofundado da Doutrina, os adeptos se expõem ao perigo de erros e ilusões na apreciação dos fenómenos. E ficam geralmente em dificuldades para refutarem teorias esdrúxulas dos opositores; Ciência do imponderável e do invisível, que não raro se tornam ponderáveis e visíveis. O Espiritismo requer dos seus adeptos maior afinco nos estudos, na observação e na pesquisa. É de extrema leviandade a atitude de adeptos e contraditores do Espiritismo que pretendem explicar os fenómenos que não conhecem, julgando-se defensores únicos da verdade e detentores exclusivos do discernimento e do bom senso, dotados de dons especiais para encontrar trapaças em toda a parte. Um ilustrado e famoso professor de Medicina teve a coragem de exibir em reuniões científicas fotografias de mesas grosseiramente amarradas com tiras de pano e cordas como prova de fraudes em fenómenos de levitação. Tristes restos, destroços humilhantes de batalhas perdidas na luta contra o Espiritismo por trapaceiros, mágicos de palco e sacerdotes mais interessados na mentira do que na verdade das revelações espirituais. É inacreditável que, ainda hoje, em plena era atómica e em plena expansão mundial da Parapsicologia, reconhecida como ciência universitária, esses vergonhosos resíduos da miséria humana possam servir, embora como peças de museus arcaicos, como armas contra os resultados de pesquisas científicas.

Ao problema das manifestações de espíritos de crianças devemos juntar o das manifestações da mediunidade infantil. Campo ainda pouco explorado pelos pesquisadores, pelas dificuldades naturais que oferece e o temor de desencadear processos inesperados no psiquismo imaturo, foi pesquisado no passado e continua em pesquisas nos nossos dias. Os casos como o de Pierino Gamba e Gianela de Marco, explorados em exibições públicas mundiais, ficaram cientificamente inexplicados. Gianela, uma frágil menina italiana de seis anos, apresentou-se no Teatro Municipal de São Paulo, regendo a Orquestra Sinfónica com a perícia de um grande regente. Levada a uma exibição mais ampla no Ginásio do Pacaembu, inteiramente lotado, regeu com a mesma segurança, em promoção do Clube dos Jornalistas Espíritas, recebendo elogios crivados de espanto dos nossos críticos profissionais. Nos próprios casos de exorcismo católico, hoje amplamente divulgados, surgem crianças médiuns interpretadas como endemoniadas. Aos Centros Espíritas comparecem mães aflitas levando crianças que necessitam de tratamento para se livrarem de influências mediúnicas assustadoras. Na Parapsicologia actual as pesquisas mais interessantes referem-se a casos psiquiátricos e de manifestações telepáticas. Nessas manifestações, pesquisadores norte-americanos e ingleses provaram, sem querer e sem o saber, um dos mais surpreendentes princípios da Ciência Espírita – o de que os debilóides mentais são espiritualmente normais, decorrendo as deficiências de imperfeições e anormalidades do cérebro e não da mente. Experiências sucessivas e rigorosamente científicas, confirmando a tese de Rhine de que a mente não é física, revelaram a situação dramática dessas crianças, como decorrentes de abusos criminosos no passado. Pesquisas em presídios mostraram a mesma situação em casos de loucura. Robert Amadou, católico-tomista, relata essas pesquisas no seu livro Parapsicologia; Herenwald, Pardson-Crieg, Carington e outros fazem coro a esse testemunho.

Todos esses factos recentes, comprovados nos grandes centros universitários do mundo, abrem, segundo vários especialistas, uma nova perspectiva no campo das possibilidades de cura dessas deficiências.

No tocante às manifestações mediúnicas de crianças engajadas nas chamadas correntes das formas de sincretismo religioso, em nada as favorecem essas pesquisas. A mediunidade infantil é puramente passiva, receptiva. O espírito de criança, no seu condicionamento infantil, está submetido ao processo de reencarnação, por isso mesmo desprovido da liberdade de escolha e de acção para controle de um médium. O paralelismo psicofísico do desenvolvimento infantil exige a ligação mais íntima e efectiva do espírito com o corpo. A mente infantil, reduzida às condições primárias da imaturidade, não dispõe de meios para o raciocínio claro e as decisões voluntárias. A criança só pode dispor de recursos para manifestações independentes depois dos oito anos de idade. Uma criança que se manifesta por um médium adulto pedindo bonecas ou chupetas permanece ainda no plano da subconsciência, não podendo violentar as leis naturais do crescimento humano. A Psicologia Infantil já se encontra suficientemente desenvolvida para nos oferecer uma visão geral do processo ontogenético nas fases primárias do desenvolvimento infantil.

Por outro lado, essas manifestações, se fossem reais, revelariam falta de ordem no mundo espiritual, onde as crianças ficariam à mercê de entidades maduras e mal orientadas. As consequências morais de uma situação como essa seriam desastrosas para todas as concepções espiritualistas. A situação da criança nessa concepção primitivista superaria em desalento à do limbo católico para onde as crianças não baptizadas seriam remetidas após a morte. Na obra da Criação, que é sobretudo ordem, amor e justiça, não se pode admitir logicamente esse abandono das crianças espirituais à própria sorte. Os espíritos infantis que não retomam a sua maturidade mental logo após a morte são entregues aos espíritos maternais que, segundo técnicas especiais, tratam de protegê-los e levá-los à reintegração nas suas experiências de vidas anteriores. O Espiritismo, como dizia Kardec, é uma questão de bom-senso.

A questão dos elementares, espíritos ainda em transição para a humanidade, decorre da própria teoria espírita da evolução, que é geral, universal e sequente. Doutrinas de elevado teor cultural, como a Teosofia de Olcot e Blavatsky e religiões mágicas, primitivas, como as do sincretismo religioso afro-brasileiro, dão grande ênfase a esse campo de manifestações primárias, que só pode ser pesquisado através da vidência. Como esse meio de pesquisa é sujeito a muitas imprecisões e interpretações erróneas, o Espiritismo interessa-se mais pelas manifestações de espíritos adultos, pois nestes encontra mais segurança e possibilidades de confirmação dos factos, bem como maior proveito para a humanidade que representa uma fase decisiva da evolução dos seres. Tudo nos mostra, no mundo actual, que não podemos perder tempo com especulações secundárias. A imensa maioria humana, encarnada e desencarnada, do nosso planeta, não chegou ainda à compreensão real do sentido da vida e necessita de apoio e ajuda daqueles que se adiantaram no caminho. As doutrinas espirituais que se dizem avançadas acabam fechando-se em pequenas elites desligadas da massa mais sofredora e necessitada.

A mensagem espírita, desenvolvendo e aclarando os ensinos cristãos, vai da choupana ao palácio e pode enfrentar com segurança os embates do religiosismo dogmático e do materialismo científico em todos os seus aspectos. Ela demonstra, inclusive, que a verdadeira Ciência não pode parar nos limites da matéria, pois o ser não é matéria, mas espírito, e a finalidade da Ciência é reconhecer e revelar a realidade total em sua interacção de causa e efeito, espírito e matéria. Negar o espírito ou considerá-lo como subordinado à matéria é negar as possibilidades cognoscitivas da inteligência. O cientista que assim procede comete um suicídio cultural. Toda a cultura se nadifica nesse gesto anti-humano de se esconder na cova de uma toupeira. O Espiritismo revela-nos o homem como o conhecedor insaciável de toda a realidade. Por isso, a primazia espírita concedida ao homem é uma exigência da evolução global das coisas e dos seres. As exigências metodológicas do conhecimento ôntico são necessárias, não podem ser transformadas em hipóteses que atravanquem as rotas do saber, como reconheceu Charles Richet, tratando precisamente dos problemas espirituais na Metapsíquica.

/…



José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Manifestações Espirituais de Crianças, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

o grande desconhecido ~


O PROCESSO CULTURAL

No desenvolvimento da Cultura, no nosso mundo, podemos assinalar três fases bem definidas no processo histórico:

A – Culturas Empíricas.
B – Culturas Religiosas.
C – Culturas Científicas.

As Culturas Empíricas desenvolvem-se nas relações primárias do homem com a Natureza, através das experiências naturais. Nessas experiências o homem elabora os três elementos básicos de toda a cultura:

– a linguagem.
– o rito.
– o instrumento.

Não se trata de uma elaboração sucessiva, mas sincrónica, de uma reelaboração das experiências animais.

Tudo se encadeia no Universo, diz O Livro dos Espíritos.

Nesse encadeamento as vozes animais transformam-se na linguagem humana, os ritos em rituais da sociabilidade humana e dos cerimoniais religiosos, as garras dos animais projectam-se nos instrumentos de madeira e pedra de que o homem se serve para agir sabre a Natureza e adaptá-la às suas necessidades de sobrevivência.

As experiências que desenvolvem a Cultura Empírica excitam as potencialidades do espírito, desenvolvendo-as nas tribos e nas hordas. A lei de adoração, proveniente da ideia inata de Deus no homem, gera a reverência pelos poderes misteriosos da Natureza e institui os primeiros rituais de reverência aos pagés ou xamãs e feiticeiros, bem como ao cacique e aos chefes guerreiros. O culto às divindades da selva nasce desses rituais.

A Cultura Empírica gera a Cultura Religiosa das primeiras tribos sedentárias. A ideia de Deus define-se mais nítida com o desenvolvimento da Razão, sob a influência dos ritos da Natureza, nas primeiras civilizações agrárias e pastoris. O milagre das germinações, no ritmo regular das estações, e a proliferação dos rebanhos provam a existência de inteligências controladoras dos fenómenos naturais e protectoras do homem. O animismo, projecção da alma humana nas coisas, impregna a Natureza com uma vida factícia em que a pedra, a árvore, o rio, o bosque, a montanha, o mar, tudo fala e pensa em condições humanas. As manifestações espíritas provam a realidade anímica da Natureza. A figura de Deus, Ser Superior, criador e dominador do mundo, impõe-se ao homem na forma necessariamente humana. E como Deus não pode estar sozinho, multiplica-se em mitos que simbolizam as suas várias actividades, ligadas às actividades humanas. Ao mesmo tempo, as forças destruidoras e as manifestações de espíritos malignos geram os mitos da oposição a Deus. Nasce o Diabo desse contraste, estabelecendo a luta entre o Bem e o Mal, sujeitando o homem à esperança da protecção divina e ao temor dos poderes maléficos.

A Cultura Religiosa configura-se na síntese dessa dialéctica do invisível e do visível, do sentimento e da sensação, fazendo evoluírem as civilizações agrárias e pastoris para a fase das civilizações teocráticas que se desenvolvem no Oriente, nas regiões em que brilha a luz em cada alvorecer.

Os ritmos da Terra e do Céu: Do dia e da noite, as estações do ano, o Sol e a Lua, as constelações anunciadoras de cada mudança no tempo, a chuva e as Inundações, os terramotos, as erupções vulcânicas, as pestes, as pragas, o relâmpago, o raio, as tempestades exigem a disciplinação do caos e ao mesmo tempo a complexidade dos cultos.

Os soberanos das nações são filhos de Deus e possuem poderes divinos.

A Cultura desenvolve-se na argamassa dos sentimentos e das sensações.

A Fé define-se como sentimento e sensação em misturas condicionadas pela Razão, expressa nas formulações filosóficas.

A Teologia brota desse complexo de mistérios como a Ciência Suprema dos videntes e dos profetas, dos homens mais do que homens de que falaria Descartes, homens privilegiados pela sabedoria infusa que desce do Céu para iluminar a Terra.

A Cultura Religiosa é uma oferenda celeste que os homens simplesmente homens não podem tocar com as suas mãos indignas, não podem avaliar com as suas mentes entorpecidas pelos interesses materiais e as ambições inferiores da vida perecível.

O mundo divide-se em duas partes inconciliáveis: surgem os conceitos do Sagrado e do Profano.

As Culturas Religiosas desligam-se da tradição empírica, rejeitam a experiência natural, relegando-a ao campo do profano, do pecaminoso. Entregam-se à alienação do suposto, do imaginário.

O Cristianismo envolve-se nas contradições humanas:

cai na simonia, no comércio ambicioso de sacramentos e indulgências, pregando a renúncia ao mundo e a santidade da pobreza;

proclama a humildade como virtude e investe-se do poder político;

denuncia o paganismo e o judaísmo como heréticos e assimila os seus elementos rituais e a sua política gananciosa;

prega o Reino de Deus e apossa-se dos reinos terrenos;

impugna a sabedoria grega e constrói o seu saber com decalques de Platão e Aristóteles;

ensina a fraternidade e promove as guerras fratricidas em nome de Deus;

erige-se em religião do Deus Único e divide Deus em três pessoas distintas;

institui o celibato como virtude e faz comércio ambicioso do sacramento do matrimónio;

combate a magia e reveste o seu culto de poderes mágicos;

luta contra as heresias e comete a suprema heresia de submeter Deus ao poder do sacerdócio no acto eucarístico;

profliga a idolatria e enche os seus templos com ídolos copiados da idolatria mitológica, chega ao máximo da alienação estabelecendo o sistema fechado das clausuras e dos mosteiros segregados;

prega o Evangelho e nega ao povo o acesso aos textos que considera privativos do clero;

proclama a supremacia espiritual do amor e semeia o ódio aos que não aceitam os seus
princípios.

A alienação cristã faz da cultura um sincretismo de absurdos assimilados de dogmas e rituais bastardos de igrejas e ordens ocultas da mais alta Antiguidade, transformando o conhecimento em gigantesca manta de retalhos em que as próprias vestes sacerdotais e paramentos do culto são copiados de antigas e condenadas igrejas.

A cultura cristã desenvolve-se com pressupostos falaciosos e um fabulário ridículo enxameado de superstições erigidas em verdades absolutas, provindas de revelações divinas.

A verdade artificial da sabedoria eclesiástica encobre a realidade com o espesso véu das elucubrações dos teólogos, modelos de esquizofrenia catatónica e megalomania delirante.

A cultura em evolução nas fases anteriores cai na estagnação de um charco de mentiras sagradas, pílulas doiradas de um anestésico.

Interrompe-se o processo cultural.

Não se pode conhecer mais nada. Cada Igreja tem a sua verdade própria e inverificável, sendo a Igreja Cristã a mais poderosa barreira a qualquer tentativa de investigação da realidade. A morte cruel é o prémio dos que se atreverem a rasgar o Véu de Isis para mostrar o corpo da Verdade Nua.

O desenvolvimento da imaginação criadora levara a cultura a um solipsismo devorador.

Tudo estava esclarecido, a imaginação dos poetas (considerados profetas) resolvia todos os mistérios em termos de mitologia grega ou tradição romana, os teólogos solucionavam os problemas da vida e da morte com belas frases em latim, as Igrejas detinham a Verdade Absoluta, amaldiçoando-se entre si, e velavam pela ordem cultural perseguindo e matando em nome de Deus os atrevidos que tentassem profanar a Palavra de Deus, escrita na Bíblia por velhíssimos judeus que haviam, num complô com César e o seu legado Pilatos, condenado à flagelação e à cruz um jovem carpinteiro que tivera a audácia de se apresentar como o Messias de Israel.

A Cultura Cientifica teve de romper a golpes de atrevimento a selva selvaggia dessa cultura religiosa inconsequente, contraditória e arrogante, empalhada como um pássaro morto em velhos pergaminhos de uma sabedoria feita de suposições e elucubrações pretensiosas.

O mundo dos homens desligara-se totalmente da realidade, fechando-se num casulo de formulações abstractas.

Mais bizantina que Bizâncio, Roma sofismava sobre problemas que se recusava a conhecer. Só a ignorância total e a ingenuidade das populações bárbaras poderia aceitar. Após a queda do Império do Ocidente, comprovava-se historicamente a afirmação evangélica de que o ensino de Jesus seria deturpado e necessitaria de tempo para que os homens pudessem compreendê-lo.

O milénio medieval teria a função de desenvolver a razão como guia do pensamento e freio da imaginação, ao fogo das tragédias e loucuras de um misticismo criminoso, para que, no Renascimento, os frutos de experiências dolorosas abrissem perspectivas para o desenvolvimento de uma cultura realista, apoiada em pesquisas metódicas da realidade.

Foi então que a esquizofrenia mundial se revelou em definitivo: o espírito humano estava dividido numa cultura fantasiosa, formada pela dogmática absurda das religiões, e numa cultura rebelde, atrevida e exigente, que arrancava os homens da ilusão de um saber confuso, para oferecer-lhes o saber legítimo que iniciara a fase das experiências empíricas e se negara a si mesma no desenvolvimento alucinado do fanatismo religioso.

O movimento da Reforma, desencadeado por Lutero, em consequência das lutas de Abelardo e das proposições de Erasmo de Roterdão, em conjugação aparentemente ocasional com as tentativas de pesquisas objectivas de Galileu, CopérnicoGiordano Bruno e outros mártires da Ciência nascente, marcavam os rumos de uma nova concepção do mundo e do homem.

Abelardo foi o precursor medieval de Descartes, que por sua vez foi o precursor de Kardec.

Aos fundamentos emocionais da Fé absurda e cega, os pioneiros do retomo ao real ofereciam os fundamentos da Razão esclarecida e da pesquisa científica.

A Verdade ressurgia das cinzas das fogueiras criminosas e a Fé de olhos abertos substituía a ceguinha esclerótica das sacristias.

Mas a luta pela Verdade da concepção cristã restabelecida só atingiria o seu apogeu nos meados do Século XIX, com a Codificação do Espiritismo, através das pesquisas pioneiras de Kardec sobre os fenómenos mediúnicos, hoje admitidos pela Ciência com a denominação de paranormais.

Kardec provara que os médiuns não eram anormais, como pretendiam os investigadores da Medicina e da Psicologia, nem sobrenaturais, como pretendiam os defensores de dogmas obsoletos, mas naturais e normais.

Mediunidade impunha-se à pesquisa dos cientistas exponenciais da época, que rasgavam ao mesmo tempo o Véu do Templo, revelando os seus mistérios, os Véus de Isis, para desvendar o sentido dos símbolos mitológicos.

Os homens começaram então a aprender que não sabiam nada e tinham de lutar para descobrir a Verdade escondida atrás da aparência enganosa das coisas dos seres.

A Ciência Espírita instalou-se no mundo, com as consequências necessárias da Filosofia Espírita e da Religião em Espírito e Verdade.

Espiritismo, nos seus três aspectos, está hoje confirmado pela Cultura Científica e o seu alcance cósmico confirma-se ao ritmo acelerado das conquistas culturais do século, restabelecendo o ensino deturpado pelas ambições humanas, que Jesus de Nazaré semeou em palavras de vida e imortalidade nas almas de todos os tempos.

/…



José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, I – O PROCESSO CULTURAL, 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 24 de agosto de 2014

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria I Posição do Problema (VI)

   A exposição precedente já deixou adivinhar, sem dúvida, a táctica do ateísmo do nosso tempo.

   Ele não é fruto directo do estudo científico, mas procura insinuar-se com essa aparência. É evidente a ilusão, nesses filósofos, pois sabemos que há entre eles uns tantos conceitos sinceros. É à força de quererem conjugar à Ciência as suas teorias, que acabaram por embutir no cérebro essa união clandestina. Essas teorias não podem invocar a seu favor qualquer das grandes provas científicas da nossa época e, sem embargo, dão-se como resultantes de todo o moderno trabalho científico.

   Isso repetem, e é com essa hermenêutica que abusam dos ignorantes e da juventude desprevenida e entusiasta, tendendo a fazer-lhes crer que as ciências, à força de progredirem, acabaram por descobrir e demonstrar que não há Deus nem alma. São eles que fazem a Ciência.

   Dir-se-ia, depois de os ouvir, nada haver além deles. Os grandes homens da antiguidade e da Idade Média, tanto como os modernos, são fantasmas, e toda a Filosofia deve desaparecer diante do ateísmo pretensamente científico.

   Preciso se faz que a imaginação popular não se deixe iludir por simples jogo de palavras, que mais valem, às vezes, por verdadeira comédia. Importa que as criaturas pensem por si mesmas, julguem com conhecimento de causa e adquiram a certeza de que os factos científicos, perquiridos sem prevenção, não comportam as conclusões dogmáticas que lhes querem impor.

   Vista de perto, a pedra angular a grande custo lançada pelo materialismo contemporâneo deixa entrever que ela não passa de velho e carcomido tronco de madeira podre e, no fundo, os partidários do sistema não estão mais seguros do seu cepticismo do que o estariam os calvos discípulos de Heráclito ou de Epícuro.

   Ainda que queiram convencer-nos do contrário, todo o seu sistema não passa de hipótese, mais vazia e menos fundamentada que muitos romances científicos.

   E uma vez que são eles próprios a declarar que toda a hipótese deve ser banida da Ciência, não há como deixarmos de começar por esse banimento.

   Realmente, com que direito fazem da força atributo da matéria?

   Com que direito afirmam que a força está submetida à matéria, que lhe obedece passivamente aos caprichos, escrava absoluta de elementos inertes, mortos, indiferentes, cegos? Maior e mais fundado é o nosso direito de inverter-lhes a proposição, derrubando-lhes o edifício pela base.

   Terminemos assim esta exposição do problema, decidindo que o discrime se coloca nestes termos fundamentais: é a matéria que domina a força, ou antes esta que domina aquela?

   Trata-se de discutir e escolher uma ou a outra, ou, para falar com mais exactidão – trata-se de observar a Natureza e optar depois.

   E, pois que os honrados campeões da matéria afirmam, com tanta segurança, o primeiro enunciado, começamos revocando-o em dúvida e propondo a alegação contrária.

   No rosto desta obra inscrevemos, por conseguinte, esta pergunta:

   A força rege ou é regida pela matéria? É este o dilema que os factos de si mesmos devem resolver.

   O panorama geral do Universo vai oferecer-nos uma primeira demonstração de soberania da força e da ilusão dos materialistas.

   Da matéria, nos elevamos às forças que a dirigem; destas, às leis que as governam, e destas, ainda, ao seu misterioso autor.

   A harmonia repleta o mundo dos seus acordes e o ouvido de alguns ínfimos seres humanos se recusam a escutá-los. A mecânica celeste lança, ousadamente, no espaço, o arco das órbitas e o olho de um parasita desses orbes desdenha a grandeza da sua arquitectura.

   A luz, o calor, a electricidade, pontos invisíveis projectados de uma a outra esfera, fazem circular nos espaços infinitos o movimento, a actividade, a vida, a radiação do esplendor e da beleza, e as imbeles criaturas, apenas desabrochadas à superfície de um parasita desses orbes desdenha a grandeza a confessar a fulgurância celeste! É loucura ou é tolice? É orgulho, ou ignorância? Qual a origem e a finalidade de tão estranha aberração? Porque a força vital, álacre e fecunda, palpita no Sol como na borboleta que morre com a manhã; no carvalho anoso das florestas como na primaveril violeta? – porque a vida magnificante doura as messes de Julho e os cabelos anelados da juventude petulante e freme no seio virginal das noivas? – porque negar a beleza, mascarar a verdade e desprezar a inteligência? Porque envenenar as virtudes eternas que sustentam a estrutura do mundo e eclipsar, tristemente, a luz imaculada que desce dos céus?

   Antes de penetrar os mistérios do reino tão rico e interessante da vida, devemos considerar o esboço material do Universo, começando por demonstrar a soberania da força no tracejar desse mesmo esboço. Dividiremos esta primeira em duas partes: o Céu e a Terra, para estabelecer em primeiro lugar, por leis astronómicas e depois pelas terrestres, que, onde quer que exista a matéria, esta jamais deixou de ser escrava servil, universalmente dominada pela energia que a rege. Esta divisão não deve sugerir, de modo algum, a velha comparação do céu com a Terra, que bem sabemos serem termos incomparáveis. Considerado como valor absoluto, o céu é tudo e a Terra nada é. A Terra é átomo imperceptível, perdido no seio do infinito; o céu a envolve no ilimitado e a integra na população astral, sem excepção nem privilégio particular.

   Reunir os dois vocábulos, é como dizer: os Alpes são uma pedrinha, o Oceano é uma gota d’água e o Saará um grão de areia. É comparar o todo a um mínimo do mesmo todo.

   Importa, portanto, não interpretar literalmente a nossa divisão, que só se justifica por colimar maior clareza do assunto. Para nós, terrícolas, este globo é alguma coisa, assim como para a minúscula lagarta, que aflora numa folha, esta folha algo vale, mau grado à sua insignificância no conjunto da pradaria.

   A nossa esfera de observação divide-se também, naturalmente, em duas partes: o que pertence e o que não pertence ao nosso mundo.

   Ora, vamos estabelecer que, fora do nosso mundo, assim como nele, a matéria está em tudo e por toda a parte e não passa de coisa inerte, cega, morta, composta de elementos incapazes de se dirigirem por si mesmos; que não agem nem pensam por impulso próprios e que, nas sendas invisíveis do espaço, tanto como nos canais da seiva ou do sangue, o que aglutina em átomos, dirige as moléculas e conduz os mundos, é uma Força na qual transparece o plano, a vontade, a inteligência, a sabedoria e o poder do seu amor.

/…


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 6 de 6, 10º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 16 de agosto de 2014

Diálogos de Kardec ~

Carácter e Consequências Religiosas das Manifestações dos Espíritos ~

1. As almas ou Espíritos dos que aqui viveram constituem o mundo invisível que povoa o espaço e no meio do qual vivemos. Daí resulta que, desde que há homens, há Espíritos e que, se estes últimos têm o poder de manifestar-se, devem tê-lo tido em todas as épocas. É o que comprovam a história e as religiões de todos os povos. Entretanto, nestes últimos tempos, as manifestações dos Espíritos assumiram grande desenvolvimento e tomaram um carácter mais acentuado de autenticidade, porque estava nos desígnios da Providência pôr termo à praga da incredulidade e do materialismo, por meio de provas evidentes, permitindo que os que deixaram a Terra viessem atestar a sua existência e revelar-nos a situação ditosa ou infeliz em que se encontravam.

2. Vivendo o mundo visível no meio do mundo invisível, com o qual se acha em contacto perpétuo, segue-se que eles reagem incessantemente um sobre o outro, reacção que constitui a origem de uma imensidade de fenómenos, que foram considerados sobrenaturais, por não se lhes conhecer a causa.

A acção do mundo invisível sobre o mundo visível e reciprocamente é uma das leis, uma das forças da Natureza, tão necessária à harmonia universal, quanto a lei de atracção. Se ela cessasse, a harmonia estaria perturbada, conforme sucede num maquinismo, donde se suprima uma peça. Derivando de uma lei da natureza semelhante acção, nada têm, evidentemente, de sobrenaturais os fenómenos que ela opera. Pareciam tais, porque desconhecida era a causa que os produzia. O mesmo se deu com alguns efeitos da electricidade, da luz, etc.

3. Todas as religiões têm por base a existência de Deus e por fim o futuro do homem depois da morte. Esse futuro, que é de capital interesse para a criatura, se acha necessariamente ligado à existência do mundo invisível, pelo que o conhecimento desse mundo há constituído, desde todos os tempos, objecto das suas pesquisas e preocupações. A atenção do homem foi naturalmente atraída pelos fenómenos que tendem a provar a existência daquele mundo e nenhum houve jamais tão concludente, como os das manifestações dos Espíritos por meio das quais os próprios habitantes de tal mundo revelaram as suas existências. Por isso foi que esses fenómenos se tornaram básicos para a maior parte dos dogmas de todas as religiões.

4. Tendo instintivamente a intuição de uma potência superior, o homem foi sempre levado, em todos os tempos, a atribuir à acção directa dessa potência os fenómenos cuja causa lhe era desconhecida e que passavam, aos seus olhos, por prodígios e efeitos sobrenaturais. Os incrédulos consideram essa tendência uma consequência da predilecção que tem o homem pelo maravilhoso; não procuram, porém, a origem desse amor do maravilhoso. Ela, no entanto, reside muito simplesmente na intuição mal definida de uma ordem de coisas extracorpóreas. Com o progresso da Ciência e o conhecimento das leis da Natureza, esses fenómenos passaram pouco a pouco do domínio do maravilhoso para o dos efeitos naturais, de sorte que o que outrora parecia sobrenatural já não o é hoje e o que ainda o é hoje não mais o será amanhã.

Os fenómenos decorrentes da manifestação dos Espíritos forneceram, pela sua natureza, larga contribuição aos factos reputados maravilhosos. Tempo, contudo, viria em que, conhecida a lei que os rege, eles entrariam, como os outros, na ordem dos factos naturais. Esse tempo chegou e o Espiritismo, dando a conhecer essa lei, apresentou a chave para a interpretação da maior parte das passagens incompreendidas das Escrituras sagradas que a isso aludem e dos factos tidos por miraculosos.

5. O carácter do facto miraculoso é ser insólito e excepcional; é uma derrogação das leis da Natureza. Desde, pois, que um fenómeno se reproduz em condições idênticas, segue-se que está submetido a uma lei e, então, já não é miraculoso. Pode essa lei ser desconhecida, mas, por isso, não é menos real a sua existência. O tempo se encarregará de revelá-la.

O movimento do Sol, ou, melhor, da Terra, sustado por Josué, seria um verdadeiro milagre, porquanto implicaria a derrogação manifesta da lei que rege o movimento dos astros. Mas, se o facto pudesse reproduzir-se em dadas condições, é que estaria sujeito a uma lei e deixaria, consequentemente, de ser milagre.

6. É erróneo assustar-se a Igreja com o facto de restringir-se o círculo dos factos miraculosos, porquanto Deus prova melhor o seu poder e a sua grandeza por meio do admirável conjunto das suas leis, do que por algumas infracções dessas mesmas leis. E tanto mais erróneo é o seu temor, quanto ela atribui ao demónio o poder de operar prodígios, donde resultaria que, podendo interromper o curso das leis divinas, o demónio seria tão poderoso quanto Deus. Ousar dizer que o Espírito do mal pode suspender o curso das leis de Deus é blasfémia e sacrilégio.

Longe de perder qualquer coisa da sua autoridade por passarem os factos qualificados de milagrosos à ordem dos factos naturais, a religião somente pode ganhar com isso; primeiramente, porque, se um facto é tido falsamente por miraculoso, há aí um erro e a religião somente pode perder, se se apoiar num erro, sobretudo se se obstinasse em considerar milagre o que não o seja; em segundo lugar, porque, não admitindo a possibilidade dos milagres, muitas pessoas negam os factos qualificados de milagrosos, negando, consequentemente, a religião que em tais factos se estriba. Se, ao contrário, a possibilidade dos mesmos factos for demonstrada como efeitos das leis naturais, já não haverá cabimento para que alguém os repila, nem repila a religião que os proclame.

7. Nenhuma crença religiosa, por lhes ser contrária, pode infirmar os factos que a Ciência comprova de modo peremptório. Não pode a religião deixar de ganhar em autoridade acompanhando o progresso dos conhecimentos científicos, como não pode deixar de perder, se se conservar retardatária, ou a protestar contra esses mesmos conhecimentos em nome dos seus dogmas, visto que nenhum dogma poderá prevalecer contra as leis da Natureza, ou anulá-las. Um dogma que se funde na negação de uma lei da Natureza não pode exprimir a verdade.

O Espiritismo, que se funda no conhecimento de leis até agora incompreendidas, não vem destruir os factos religiosos, porém sancioná-los, dando-lhes uma explicação racional. Vem destruir apenas as falsas consequências que deles foram deduzidas, em virtude da ignorância daquelas leis, ou de as terem interpretado erradamente.

8. A ignorância das leis da Natureza, com o levar o homem a procurar causas fantásticas para fenómenos que ele não compreende, é a origem das ideias supersticiosas, algumas das quais são devidas aos fenómenos espíritas mal compreendidos. O conhecimento das leis que regem os fenómenos destrói essas ideias supersticiosas, encaminhando as coisas para a realidade e demonstrando, com relação a elas, o limite do possível e do impossível.

/…



ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos  Carácter e Consequências Religiosas das Manifestações dos Espíritos, 9º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

O Espiritismo na Arte ~


– A poesia
– A música, o seu papel na inspiração profética e religiosa

A poesia, na realidade, é apenas uma forma de música. Ela é submetida às mesmas leis do ritmo, da vibração, que são as leis da vida nos seus estados superiores.

A Antiguidade, criadora do género, havia compreendido. O poeta antigo era, ao mesmo tempo, cantor e músico. Porém, actualmente, a poesia não é mais que uma das formas da literatura. Como todas as manifestações da arte em geral, ela perdeu o seu carácter augusto, para cair na banalidade. Somos inundados por um dilúvio de versos sem elevação e sem beleza.

Ora, o verso não suporta a mediocridade. E é por isso que, na Idade Média como nos nossos dias, escritores de grande talento, Dante (i), Lamartine, Victor Hugo e outros, puderam conservar na poesia o seu brilho, o seu carácter de grandeza e salvá-la de uma queda irremediável. Para exprimir o sublime ideal, todas as palavras são impotentes. Chegando a uma certa altura, o pensamento encontra apenas termos humanos, apropriados às exigências do nosso plano inferior, mas incapazes de traduzir as impressões da vida superior. E é isso que o Esteta lamenta. Desde que a insuficiência da linguagem humana se revela, a música, com os seus recursos infinitos, torna-se a única forma que se adapta à eterna beleza do Universo, a única forma de exprimir as sensações da alma radiosa, fundindo-se com o pensamento divino.

A palavra, quando está unida à música, pode dar ao pensador uma forma de expressão mais intensa, mais penetrante. Porém, nos nossos dias, a aplicação desse método tornou-se muitas vezes bem vulgar. A romança (ii), a canção (iii), tinham, ainda recentemente, o seu encanto, o seu sabor. Hoje, sob a influência de certos meios públicos, a canção não é mais que uma profanação, um aviltamento da ideia.

Porém, quando das cloacas impuras onde mãos sacrílegas a têm enlameado, a música eleva-se em direcção às alturas radiosas do pensamento e da poesia, ela se torna apta a traduzir os mais nobres sentimentos. Ela acha-se no seu elemento. Lá, tudo são ondas, vibrações, harmonias, luz. Eis por que a poesia, para permanecer no seu verdadeiro papel, deve inspirar-se nas leis da harmonia musical e reproduzi-las com fidelidade.

A música, nós o sabemos, desempenha um grande papel na inspiração profética e religiosa. Ela coloca ritmo na emissão fluídica e facilita a acção dos espíritos elevados. Eis por que ela tem o seu lugar nas reuniões espíritas, nas sessões em que é bom precedê-las por um hino apropriado às circunstâncias. Muitas vezes os guias dos grupos exortam os assistentes a entoar um cântico para facilitar as manifestações. Porém, até agora, é preciso confessá-lo, os espíritas se encontram muito carentes desse tipo de música e são obrigados a recorrer a cânticos vulgares, a banalidades indignas do objectivo pretendido. É com uma dolorosa impressão que temos constatado, mais de uma vez, a penúria dos recursos musicais usados nos grupos espíritas. Eis por que compomos um hino dedicado “aos invisíveis” e cuja música se deve a uma senhora que possui um certo senso estético e é plena de boa vontade. Mas eis que o senhor A.F., compositor muito conhecido, acaba de obter do Espírito Beethoven, por intermédio de um médium, um cântico espírita digno por completo do autor, e que em breve será divulgado. Os espíritas possuirão, finalmente, uma invocação musical em harmonia com as suas ideias e as suas aspirações.


– Influência da música sobre todos os seres
– A canção e o povo
O Esteta, a sua personalidade

Em toda a obra pretendida – literatura, poesia, arte –, a escolha dos meios deve ser apropriada à grandeza do objectivo.

Na verdade, a poesia está em toda a parte onde a colocamos. Ela não se exprime somente pelo verso; ela pode impregnar todas as formas da linguagem escrita ou falada, todos os aspectos da arte. A poesia é a expressão da beleza propagada em todo o Universo. É o ardor comunicativo da alma que compreendeu, alcançado o sentido profundo das coisas, a lei das supremas harmonias e que busca penetrá-la nas outras almas, pelos meios que lhe são próprios.

Todos os seres são sensíveis à música. Até os animais recebem a sua influência. Conhece-se a lenda de Orfeu, atraindo com a sua lira e agrupando, à volta dele, as feras da floresta. Os próprios insectos sentem as vibrações. Quando me ponho ao piano, as moscas voam em torno de mim de uma forma particular.

O poder da música também se demonstra pela influência da canção sobre o povo. Ela é a companheira do trabalho, o apoio do esforço paciente e repetido, a alegria do lar, porque exalta as forças e os sentimentos do ser humano. Portanto, a canção também poderia ser um meio de elevação, porém, nós já vimos, nos nossos dias a canção arrasta-se, muito frequentemente, em terreno lamacento e perde todo o carácter regenerador.

As duas últimas lições de o Esteta, que se encontrarão mais adiante, nos levam em direcção às serenas alturas da arte. Elas terminam a série de comunicações que recebemos desse grande espírito, do qual conhecemos agora a personalidade.

Ele foi um dos mais eminentes artistas da Renascença italiana, ao mesmo tempo arquitecto, pintor e escultor. A música também não lhe foi estranha. Hoje ele vive nas esferas superiores onde o Belo e o Bem reinam sem reservas; nelas ele procura a realização das suas grandiosas concepções. Os nossos guias dizem-nos que devemos considerar como um favor único a participação de o Esteta nos nossos trabalhos, assim, queremos expressar-lhe toda a nossa gratidão, bem como ao poder soberano que permitiu tal intervenção.

Em breve, falaremos sobre música e daremos as lições do Espírito Massenet consagradas mais especialmente a essa grande arte. Graças a essas lições, um raio de luz da vida celeste penetrou na nossa obscuridade e as nossas débeis tentativas humanas adquiriram mais relevo e mais amplidão.

/…
(i) Dante Alighieri: poeta italiano (Florença, 1265 - Ravena, 1321). Compôs sonetos amorosos e canções que expressavam a sua paixão platónica por Beatrice Portinari. Autor da Divina Comédia, é considerado o pai da poesia italiana. (N.T., segundo o D.K.L.)
(ii) Romança: composição, em geral curta, para canto e piano, de cunho sentimental ou patético, típica do século XIX. (N.T.)
(iii) Canção: texto colocado em música, frequentemente dividido em quadras e refrão, destinado a ser cantado. (N.T.)




LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V  Participação do mundo espiritual na obra humana / Espiritismo, novo e vigoroso impulso ao pensamento – A poesia
/ A música, o seu papel na inspiração profética e religiosa / Influência da música sobre todos os seres / A canção e o povo / O Esteta, a sua personalidade (2 de 4) 21º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

terça-feira, 29 de julho de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VII)

   Pelas relações que o homem pode agora estabelecer com os que deixaram a Terra, tem não só a prova material da existência e da individualidade da alma, como compreende a solidariedade que liga os vivos e os mortos deste mundo e os deste mundo com os dos outros mundos. Conhece a situação deles no mundo dos Espíritos; segue-os nas suas migrações; é testemunha das suas alegrias e dos seus desgostos; sabe porque estão felizes ou infelizes e a sorte que o espera a ele consoante o bem ou o mal que faça. Estas ligações iniciam-no na vida futura que pode observar em todas as fases, em todas as suas peripécias; o futuro já não é uma esperança vaga: é um facto positivo, uma certeza matemática. Então, a morte já nada tem de assustador, pois é para ele a libertação, a porta da verdadeira vida.

   Através do estudo da situação dos Espíritos, o homem sabe que a felicidade e a infelicidade na vida espiritual são inerentes ao grau de perfeição e de imperfeição; que cada qual sofre as consequências directas e naturais dos seus erros: dito de outro modo, que é castigado por aquilo em que pecou; que as suas consequências duram tanto tempo como a causa que os produziu; que, assim, o culpado sofreria eternamente se persistisse eternamente no mal, mas que o sofrimento termina com o arrependimento e a reparação; ora, como depende de cada um melhorar, cada um pode, graças ao seu livre-arbítrio, prolongar ou abreviar os seus sofrimentos, tal como o doente sofre durante o tempo que levar até pôr um fim aos seus excessos.

  Se a razão afasta, como incompatível com a bondade de Deus, a ideia dos castigos irremissíveis, perpétuos e absolutos, muitas vezes infligidos devido a um só erro, suplícios do Inferno que não podem suavizar o arrependimento mais ardente e mais sincero, ela inclina-se perante esta justiça distributiva e imparcial, que toma tudo em consideração, que nunca fecha a porta ao regresso e que estende constantemente a mão ao náufrago, em vez de o empurrar para o abismo.

   A pluralidade das existências, de que Cristo enunciou o princípio no Evangelho mas sem o definir mais que muitos outros, é uma das leis mais importantes reveladas pelo Espiritismo, no sentido em que demonstra a realidade e a sua necessidade para a evolução. Por esta lei, o homem explica todas as anomalias aparentes que a vida humana apresenta; as diferenças de posição social, os mortos prematuros que, sem a reencarnação, tornariam inúteis para as almas as vidas abreviadas; a desigualdade das aptidões intelectuais e morais, pela antiguidade do espírito que aprendeu mais ou menos e progrediu e que traz ao renascer o saber adquirido nas suas existências anteriores. (Ver o ponto 5 deste capítulo).

   Com a doutrina da criação da alma, a cada nascimento, voltamos a cair na teoria das criações privilegiadas; os homens são estranhos uns aos outros, nada os une, os laços de família são puramente carnais: não são de maneira nenhuma solidários com um passado onde não existiam; com a ideia do nada depois da morte, toda a relação cessa com a vida; não são solidários com o futuro. Com a reencarnação, são solidários com o passado e com o futuro; perpetuando-se as suas relações no mundo espiritual e no mundo corporal, a fraternidade tem por base as próprias bases da natureza; o bem tem uma finalidade e o mal as suas consequências inevitáveis.

  Com a reencarnação caem todos os preconceitos de raças e de castas, uma vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, fidalgo ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, não existe nenhum que supere em lógica o facto material da reencarnação. Portanto, se a reencarnação funda sobre uma lei da natureza o princípio da fraternidade universal, funda sobre a mesma lei o da igualdade de direitos sociais e, por consequência, o da liberdade.

/…



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 31 a 36 (VII), 9º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Inquietações Primaveris ~


O Mandamento Difícil |

O mandamento central dos Evangelhos, e por isso mesmo o mais complexo e o mais difícil, é o de amar ao próximo como a nós mesmos e a Deus sobre todas as coisas. Amar ao próximo não parece muito difícil, mas amá-lo como a nós mesmos é quase uma temeridade. Mas Jesus o deu de maneira enérgica, explicando ainda que esse amor corresponde também ao amor a Deus. Amamos naturalmente a nós mesmos com tal afinco que estendemos esse amor à família e o negamos às pessoas estranhas, não raro de maneira agressiva e ciumenta. Podemos explicar isso, psicologicamente, pelo egocentrismo da infância, que é uma exigência da formação da personalidade. Se a criança não fosse, como se costuma dizer, o centro do mundo, e não se apegasse a essa centralização, seria facilmente absorvida na mundanidade e dispersa na temporalidade, para usarmos a terminologia de Heideggard. Para manter a sua unidade ôntica, ou seja, para ser ela mesma, a criança tem de se apegar com unhas e dentes ao seu ego, esse pivô interno, em torno do qual se desenvolvem as energias da afectividade e da criatividade. O mundo atrai-nos e tenta absorver-nos num processo de dispersão centrífuga. Se não tivéssemos o pivô do ego, com as suas energias centralizadoras, o ser estaria sujeito a se perder na dispersão das energias ôntica. O normal é que essas duas correntes energéticas se contrabalancem, sem o que teríamos o indivíduo egoísta ou o indivíduo amorfo, sem nunca atingir a formação da personalidade que define o homem. A permanente ameaça e o temor da dispersão gera no homem a reacção de defesa contra a eternidade. Nas tribos selvagens as crianças recém-nascidas são consideradas criaturas estranhas e misteriosas, que chegam não se sabe de onde. Por isso são tratadas com carinho na primeira e segunda infância, mas depois submetidas a períodos de observação quanto às tendências que devem revelar. Só adquirem um nome e se integram na tribo depois de reconhecidas como em condições para tanto. Nas civilizações encontramos um desenvolvimento agudo do sociocentrismo, em que os estrangeiros são considerados impuros, como na Antiga Israel, ou considerados bárbaros, como na Roma Antiga. O próprio instinto de conservação, que começa na lei física da inércia e se prolonga nas coisas e nos seres, até ao homem, e as suas instituições, completam esse quadro defensivo. Não há dúvida que a nossa desconfiança em relação ao próximo provém dessas forças instintivas. Só conseguimos vencê-las quando nos sentimos ônticamente maduros, como seres formados e definidos na nossa personalidade. Quanto mais inseguros nos sentimos, tanto mais difícil se torna a nossa aceitação do próximo, sem prevenções e desconfianças. A nossa primeira atitude ante um desconhecido é sempre de reserva ou de antipatia. Somente nos reencontros reencarnatórios de criaturas afins, com um passado de relações felizes ou uma afinidade vibratória semelhante, os primeiros contactos podem ser expansivos.

A sabedoria dos ensinos de Jesus revela-se precisamente nesses casos em que se mostra de maneira evidente. Com o ensino do amor ao próximo Jesus agiu sobre a indevida extensão dessas forças preservadoras num tempo de maturidade. Não foi somente com o ensino do monoteísmo, da unicidade de Deus, que ele procurou acordar-nos para a fraternidade humana. Completando a acção reformista e dando mais ênfase à necessidade de amarmos a todos os nossos semelhantes, ele definiu a família humana como decorrente da paternidade universal de Deus.

Stanley Jones, pastor metodista, chamado O Cavaleiro do Reino de Deus, pelas suas pregações profundamente humanistas, descobriu a maneira cristã de combater essa aversão ao estranho, dizendo: “Quando vejo passar pela minha porta um homem condenado pelos outros, logo penso que, por aquela criatura detestada, o Cristo se entregou à crucificação.” Porque, na verdade, Jesus não veio à Terra para salvar a este ou àquele, mas a toda a Humanidade. Se conseguirmos compreender isso, afastaremos da Terra o cancro moral do racismo, da aversão ao estrangeiro, da impiedade para com os infelizes viciados no crime e na maldade, oferecendo-lhes pelo menos um pouco de simpatia. Com isso, pingamos uma gota de amor na taça de fel que o nosso irmão leva aos lábios todos os dias.

Mais estranho nos parece o mandamento: “Amai aos vossos inimigos.” Entretanto, se não fizermos isso, nunca aprenderemos realmente a amar. Porque o verdadeiro amor nunca é discriminativo, mas abrangente, envolvendo num só objecto de afeição todas as criaturas. Como ensina Kardec, não podemos amar a um inimigo como amamos a um amigo, que conhecemos pela experiência da convivência, depositando nele a nossa confiança. Amar ao inimigo não é fácil, exige principalmente o sacrifício do perdão e do esquecimento do que ele nos fez de mal. E por isso mesmo esse amor é sublime, podendo levar o inimigo a se transformar no nosso maior e mais reconhecido amigo. Não podemos, porém, agir com ingenuidade nesses casos. Temos de usar sempre, como Jesus ensinou, a mansidão das pombas e a prudência das serpentes. Diz o povo que “Quem faz um cesto faz um cento.” O homem, herdeiro dos instintos animais, é também herdeiro dos instintos espirituais de que trata Kardec, e possui o poder discriminador da consciência. Agindo sempre com a devida prudência, pode apagar as mágoas da inimizade sem entregar-se às armadilhas da traição. Assim, o processo de amar o inimigo não pode ser imediato, mas progressivo, segundo a prudência dos selvagens no trato com os novos e ainda desconhecidos companheiros que chegam à tribo vestidos com a roupagem da inocência, segundo a expressão kardeciana. O que importa, no caso, não é o milagre da conversão do inimigo em amigo, mas o despertar no homem da compreensão verdadeira do amor.

A importância desse problema, na educação para a morte, relaciona-se com a questão da sobrevivência. As pesquisas da Ciência Espírita mostraram que muitos dos nossos sofrimentos na Terra provêm das malquerenças do passado. Um inimigo no Além representa quase sempre ligações negativas, de forma obsessiva, para o que ficou na Terra sem saber perdoar. A técnica espírita da desobsessão, de libertar o homem das vibrações de ódio e vingança dos inimigos mortos, é precisamente a da reconciliação de ambos nas sessões ou através de orações reconciliadoras. A situação obsessiva é grandemente desfavorável para o que continua vivo na Terra, pois este se esqueceu dos males cometidos e o espírito obsessor, vingativo, lembra-se claramente de tudo. Por isso, as práticas violentas do exorcismo, judeu ou cristão, com ameaças e exprobrações negativas do obsedado, podem levar ao auge o ódio do obsessor.

A condição do obsessor no plano espiritual, alimentando o ódio que levou da Terra, é também da responsabilidade do obsedado que não soube perdoar e pedir perdão. Todos os sofrimentos de uma situação de penoso desajuste no após-morte são produzidos pela dureza de coração do que continuou na Terra ou a ela voltou para o necessário reajuste. Por isso, Jesus advertiu que devemos acertar o passo com o nosso adversário enquanto estamos a caminho com ele. Conhecidos estes princípios de maneira racional, podemos influir no alívio da pesada atmosfera moral que pesa sobre a Terra em momentos como este que estamos vivendo. Não se trata de problemas que devam ser resolvidos por este ou aquele tribunal, humano ou divino. A solução está sempre nas nossas mãos, pois foi com elas que praticamos os crimes que agora dardejam sobre a nossa consciência como os raios de Júpiter. Nos tenebrosos anais da pesquisa psíquica mundial encontramos numerosos casos, descritos à minúcia pelos protagonistas de tragédias dessa espécie. Daí a advertência de Jesus, que parece temerária aos inscientes: “O que xinga o seu irmão de raca está condenado ao fogo do inferno.” A palavra raca é uma injúria grandemente ofensiva, mas o castigo parece exagerado. Devemos lembrar que o fogo do inferno não é eterno, como querem os teólogos, mas que a dor da consciência fora da matéria queima como fogo. Tivemos a oportunidade de conviver alguns dias com um assassino que matara o seu adversário à facada, pelas costas. Era um homem de formação protestante, que continuava apegado ao Evangelho e se justificava com passagens vingativas da Bíblia, apoiadas por Deus. Repeliu as nossas explicações de que a Bíblia é uma colectânea de livros judeus e nos disse, com assustadora firmeza: “Se ele me aparecesse agora redivivo, eu o mataria de novo.” Episódios como este nos mostram como os sentimentos humanos podem perdurar nos espíritos encarnados ou desencarnados, de maneira assustadora. O ódio desse homem não se extinguira com o sangue do inimigo. Nenhuma sombra de remorso transparecia nos seus olhos carregados de ódio e ameaças. Faltava-lhe, porém, o conhecimento das leis morais. Mais tarde, segundo nos disseram, o seu coração se abrandou. Tivera um sonho com o adversário morto, que lhe pedia perdão, em lágrimas, por havê-lo levado ao desespero do crime.

As tragédias dessa espécie, em que a vítima geralmente é responsável pelo crime, por motivos de sua intransigência, são em maior número do que supomos. Torna-se bem claro, nesses casos, o processo dialéctico da evolução humana. Nesse criminoso aparentemente insensível havia um coração profundamente ferido pela intransigência do adversário. Questões formais de honra, de direitos violados, de prepotência e humilhação torturaram a mente do assassino e o levaram ao crime. Cometido este, decorridos amargos anos de prisão, com a família na miséria e enxovalhada pela mancha criminosa, a vítima transformada em carrasco não conseguia perdoar o morto. Os instintos animais, em fermentação na sua afectividade e na sua consciência, não lhe permitiam se abrir para a compreensão da gravidade do seu acto. Ao mesmo tempo, o assassinado, nos planos espirituais inferiores, remoía o seu ódio e a sua frustração, acusando o assassino de lhe haver tirado a vida. A troca de vibrações mentais entre ambos mantinha-os na mesma luta. Somente a interferência da misericórdia divina conseguira abrir uma fresta de luz na mente do assassinado, para que ele caísse em si e reconhecesse a sua culpabilidade. Para a sociedade terrena a tragédia terminara nas grades de uma prisão, mas para o mundo espiritual ela prosseguia. Na consciência do assassinado a visão da realidade até então oculta despertava os instintos espirituais, os anseios de superação das condições animalescas a que se entregara na carne. A Educação para a Morte teria libertado ambos na própria vida carnal, levando-os à compreensão de que não eram feras em luta na selva, mas criaturas humanas dotadas de potencialidades divinas. Não lhes haviam faltado os socorros espirituais da intuição e do chamado terreno no campo religioso. Um era protestante e o outro católico, ambos tiveram contacto com os Evangelhos desde a infância, mas a reacção hipnótica dos interesses mundanos os havia imantado fortemente à matéria, fazendo-os esquecer a natureza espiritual da criatura humana. As religiões, por seu lado, imantadas às interpretações dogmáticas, não puderam ampará-los com a explicação racional da situação que enfrentavam. No entanto, há dois mil anos, Jesus já advertia: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!”

/…



José Herculano Pires – Educação para a Morte, O Mandamento Difícil, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 13 de julho de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


VIII

Acção dos Espíritos sobre os Actuais Aconteci-mentos (II)

|Janeiro de 1917|

   Neste momento, quando a borrasca se aplaca e os clarões da esperança iluminam o horizonte chegou a hora de nos recolhermos em meditação, concentrando-nos e fazendo um exame de consciência.

   Não nos cabe nenhuma parte de responsabilidade nesse drama tão terrível que agita e conturba o mundo?

   Combatemos com toda a energia necessária contra essa decomposição moral que é a causa primária de todos os nossos males? Tentamos reagir contra o domínio do ouro, da força e do sucesso, que parecia tornar-se a religião exclusiva da humanidade? Temos defendido sempre os princípios nobres da consciência e da vida contra a onda avassaladora do sórdido materialismo?

   Poucos existem no nosso meio que, atingindo certa idade e tendo ocupado uma posição social, e exercendo qualquer tipo de influência à sua volta, possam responder afirmativamente a tais perguntas.

   Não há, portanto, de que nos admirarmos, se ficamos feridos nas nossas afeições e interesses e se nos cabe uma parte na dor comum.

   Principalmente para nós, os crentes, é necessário que a grande lição seja proveitosa e que os sofrimentos purifiquem os nossos corações.

   O vento da tempestade que está passando sobre o mundo deve reavivar em nós o firme desejo de trabalhar pelo soerguimento moral do nosso país, despertando em todas as almas a noção das verdades elevadas, o sentimento da vida eterna e a ideia de Deus.

   Cabe, afinal, que se juntem as vontades e as aspirações e que a prece fervorosa, dirigida ao Pai pelos filhos culpados, se eleve da Terra para o Céu.

   Cada vez mais mergulhávamos na matéria e perdíamos de vista o profundo sentido e a verdadeira finalidade da vida. Trágicos acontecimentos vieram nos demonstrar que neste mundo tudo é precário e a nos animar a erguer os olhos para o Alto. Esses acontecimentos nos dizem que neste planeta não temos o futuro assegurado e que os bens, as honras e tudo quanto nos seduz e encanta desaparece como uma sombra vã.

   Fomos criados para a vida infinita e o nosso domínio é o Universo inteiro, não sendo a Terra senão uma das incontáveis estações da nossa longa jornada.

   Pertencemos a Deus, de onde viemos e para onde volveremos, aperfeiçoando e desenvolvendo o nosso ser, através da alegria e do sofrimento, pelo júbilo ou pela dor.

   O nosso corpo é apenas uma prisão temporária e a morte é uma libertação. A sabedoria consiste, pois, em sempre subordinar a matéria ao espírito, porque ela não é mais que uma aparência, enquanto o espírito é a única realidade viva e imortal.

   O sofrimento é sagrado por ser a escola austera das almas, o meio mais seguro de purificação e elevação.

   A dor é a reparação do passado e a conquista do futuro; é a possibilidade que nos é oferecida para nos juntarmos aos nossos queridos invisíveis, participando de sua vida espiritual, os seus trabalhos e as suas missões.

   Pela dor os nossos destinos se ajustam e se marcam de modo mais vivo, ensinando que a hora presente é solene para a humanidade, cujo progresso ou recuo ela pode precipitar.

   Pela conjugação dos nossos esforços podemos garantir a vitória do bem sobre o mal, da luz sobre as trevas, do altruísmo sobre o egoísmo brutal, permitindo que algum progresso se faça para reino do Espírito Divino.

   Depois da tormenta virá o tempo de paz, permitindo realizar o balanço moral dessa guerra. Veremos então que os nossos males deram os seus frutos. Os crimes, as covardias e as traições que o presente carrega suscitarão um sentimento universal de reprovação e de horror, impedindo que eles se repitam.

   Por outro lado, as privações e o sofrimento experimentados em comum associam os corações, anulando distinções entre partidos e religiões, tornando definitiva a união sagrada que a necessidade dos dias tristes impôs.

   Todos os filhos da França se sentirão como irmãos, animados pelo mesmo espírito, dispostos a preparar a vitória das forças morais e, através delas, o soerguimento da pátria.

   Grande número de jovens já começa a entrever as nobres verdades que só alcançam quando mais idosos e mais experientes. Antes da guerra eles passavam por materialistas e amantes dos gozos, porém, premidos pelas circunstâncias, diante do perigo, na presença da morte e principalmente nas longas esperas da trincheira, o pensamento lhes amadureceu.

   Aos seus olhos apareceram novas perspectivas, vozes interiores lhes cantaram dentro da alma, e a vida agora lhes apareceu sob um aspecto não conhecido. O mundo invisível, que na sangrenta luta os animava, os inspira nas horas de calma e repouso, sugerindo-lhes nobre e elevado ideal, depositando nas suas almas os germes de sagrada semente.

   Sobre isso, recebi muitas cartas da linha da frente, que servem de outros tantos testemunhos. Uma coisa elas demonstram: que se forjam vontades cuja têmpera enfrentará todos os choques e que, do caos dos acontecimentos, surgirão almas selectas que, conscientes do seu valor, penetradas pela grande lei dos destinos, nenhum fracasso lhes poderá enfraquecer a fé.

   Estarão preparadas para todos os sacrifícios, pois o seu ideal as eleva acima de todas as provações, de todas as decepções, sabendo que o futuro lhes pertence.

   Na escola do sofrimento, as presentes gerações aprenderão a renunciar aos seus erros e vícios, imprimindo novas direcções à vida nacional e preparando os elementos de uma renovação que restituirá à França todo o brilho do seu génio e todo o seu prestígio no mundo.

   Assim se faz a História: pela íntima e profunda colaboração das duas humanidades, a da Terra e a do Espaço.

   A observação superficial, considerando apenas o plano terrestre, vê os factos se sucederem desordenadamente, sem nexo, numa aparente incoerência, só explicável pelo livre-arbítrio que Deus concede ao homem, de agir a seu gosto.

   Todavia, se contemplarmos as coisas de mais alto, distinguiremos melhor o misterioso fio que as liga. Através da marcha maravilhosa dos séculos se vislumbra a obra da eterna justiça.

/…




LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VIII / Acção dos Espíritos sobre os Actuais Acontecimentos / Janeiro de 1917 (2 de 2) 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


Situações novas ~

  Essas possibilida-des se tornam cada vez mais visíveis, graças à aceleração do processo histórico no século actual (XX). A teoria marxista da luta de classes, comprovada pelos factos, caminha, entretanto, dentro das novas condições da evolução técnica e do progresso científico, para formas inteiramente novas. A ideia da revolução proletária já não parece tão nítida e precisa como nos fins do século XIX e nos princípios do século XX. Os derradeiros movimentos revolucionários, inclusive o maior deles, a revolução chinesa, apenas teoricamente se basearam no proletariado. As forças em luta foram antes populares do que proletárias, e não somente no conjunto das massas, mas também nos organismos dirigentes. Por outro lado, nos países de maior desenvolvimento industrial, ao contrário do que pressupõe a tese marxista, a revolução proletária se torna mais difícil, como nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha, em França e na Itália. Nos três últimos países, o Partido Comunista tem crescido, não em virtude das condições específicas da vida proletária, mas das condições gerais, com indiscutível predominância da situação camponesa e pequeno-burguesa.

  Podemos perguntar, diante disso: Onde se encontra a “consciência de classe” do proletariado norte-americano ou do inglês – este o mais antigo e o mais impenetrável ao marxismo –, para o golpe de libertação no capital acumulado em escala jamais vista? As condições sociais evoluem com rapidez vertiginosa. Os progressos da técnica, aliados ao desenvolvimento intelectual e psíquico do homem, geram situações inteiramente novas, e os marxistas se esquecem dos princípios dialécticos da sua própria filosofia, continuando apegados a dogmas já superados pelo processo histórico. Pietro Ubaldi, em A Grande Síntese, emite este conceito, em que os materialistas dialécticos deviam meditar:“Se a luta foi, a um tempo, de natureza física, hoje é económica e nervosa, e amanhã será espiritual e ideal, muito mais digna de ser travada.”

O choque apocalíptico ~

  Marx viu, na sua época, a necessidade de se construir uma filosofia de classe para o proletariado, a fim de que este, tomando consciência da sua missão histórica, se colocasse à altura da mesma. A filosofia foi construída e tornou-se um dos grandes momentos do conhecimento humano, mas o proletariado não a absorveu, senão em doses mínimas. Criou-se, por isso mesmo, a teoria das “minorias dirigentes”, e o exemplo do bolchevismo, na Rússia, tornou-se clássico. As minorias, entretanto, só podem vencer, não pela violência, mas pelo excesso de violência, e só podem manter o seu domínio pela opressão crescente. O tempo se encarregou de nos mostrar quanto estas duras realidades colocaram o sonho do socialismo científico distanciado das suas raízes revolucionárias.

  Surge, assim, uma nova situação mundial. As minorias marxistas criam as potências orientais, enquanto as minorias capitalistas se entrincheiram no ocidente. O nosso grão de areia é dividido nos hemisférios antípodas que hoje se digladiam, ameaçados de mútua destruição, pelas perspectivas da guerra atómica. Para lutar contra o imperialismo, contra os trustes imperialistas, a Rússia Soviética teve também de construir o seu próprio poder imperialista, criar o seu estatismo absorvente. O que Marx não previa aconteceu.

   A violência dirigida, metódica, intencional, revelou-se fonte inesgotável de novas formas de violência, em escala incalculável. E a força das ideias mostrou-se mais poderosa do que a própria luta de classes, mais criadora e destruidora do que os próprios antagonismos da produção capitalista. A lei da “negação da negação” lançou-se, como o monstro Frankenstein, contra o próprio criador, pois o idealismo marxista superou de muito, na sua própria aplicação, a realidade proletária dos princípios do século. O marxismo negou-se a si mesmo, para dar nascimento ao poder proletário, face a face com o poder capitalista. Não são, por acaso, a tese e a antítese da dialéctica hegeliana que se defrontam, neste momento, em proporções apocalípticas, no panorama internacional? E a síntese não virá do novo choque mundial, já em pleno desenvolvimento?

Hora de libertação ~

  Essa conclusão tem de ser a seguinte: os marxistas cometeram um dos grandes equívocos da história, ao oferecerem à força a resistência de outra força. Não é do choque dos “semelhantes”, mas dos “contrários” que resulta a progresso, e os “contrários” não são determinados pela forma, pela aparência, mas pela substância.

  A forma proletária da violência não modifica a substância mesma da violência, e os “contrários”, traduzidos apenas numa expressão formal, não podem produzir o progresso substancial. Por outro lado, o proletariado não é uma substância, mas uma eventualidade, pois a divisão da sociedade em classes é artificial. Armando-se o proletariado de poderes semelhantes aos da burguesia, transformamo-lo em massa burguesa, da mesma maneira por que esta, em muitos países, inclusive o Brasil, armada com os poderes do feudalismo, se tornou um poder feudal, a antítese da burguesia francesa que derrubou a Bastilha. Pois o homem é o mesmo, numa classe como noutra, e a influência das condições sociais não tarda a se fazer sentir, na sua atitude perante a sociedade. Esquecer a substância humana no processo económico é fugir para a abstracção de uma economia autónoma, solta no espaço e no tempo. Nem foi por outro motivo que a jovem revolucionária polaca Larissa Reissner, a grande autora de Homens e Máquinas, ao ver os seus antigos camaradas transformados nos comissários económicos, verdadeiros “negociantes oficiais do partido”, temeu pelo naufrágio da revolução no pântano burguês e preferiu deixar o território da revolução para voltar ao inferno de sua génese, na Alemanha burguesa.

  Nesta altura, poderíamos surpreender o sorriso irónico dos materialistas-dialécticos, a nos perguntarem: “Mas o que deveríamos então, opor à força e ao poder do capitalismo?” Não, não responderemos “o que deveriam”, pois palavras foram deturpadas, perderam o seu verdadeiro sentido, e não queremos que os interlocutores, mesmo imaginários, nos dêem as costas sem mais aquela. Responderemos que tudo quanto se fez até agora tinha de ser feito, estava nas linhas do determinismo-histórico, na exigência das próprias condições sociais, não poderia fugir às contingências de um mundo em fermentação, impulsionado pelo instinto e pela paixão. Voltemos a Ubaldi, que mais uma vez nos esclarece o problema: “Não sois ainda uma sociedade, mas apenas uma grei, um desencadeamento de forças psíquicas primordiais, explodindo confusamente.”

  Mas responderemos, também, que a hora chegou – e agora é – em que as coisas devem tomar novo rumo. Esse rumo o Espiritismo aponta com clareza, a todos os que tiverem “olhos de ver”. É o rumo do Espírito, da solução espiritual, e só ela nos livrará do torniquete da força contra a força, da violência contra a violência, do jogo cego e inconsequente do poder material. RuskinTolstóiTagore e Gandhi avultam neste momento da história humana.

/…



José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Situações novas, O choque apocalíptico, Hora de libertação, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)