Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 21 de setembro de 2014

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Manifestações Espirituais de Crianças ~

Nas correntes do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro existem, divididas em formas idealizadas de grupos espirituais, as correntes infantis, médicas, orientais, africanas, indígenas e outras, que se manifestam mediunicamente, com as características do condicionamento etário da vida terrena, das condições profissionais e raciais e assim por diante. Nas práticas africanas do Candomblé e nas práticas indígenas da Poracê manifestam-se os elementares, espíritos em transição para o plano humano. A intensa divulgação dessas práticas sincréticas – misturas de religiões primitivas dos negros africanos e dos indígenas americanos – leva muita gente a perguntar por que motivo essas manifestações não ocorrem também nas sessões espíritas, onde as manifestações são geralmente de criaturas humanas adultas. Um ilustre médico psiquiatra, dedicado a esses assuntos, chegou a declarar numa conferência em São Paulo que o Espiritismo ignorava a existência de espíritos não-humanos. Um espírita presente não se conteve e explicou-lhe em público que o Espiritismo conhece e proclama a existência de inúmeras formas de espíritos não-humanos mas não se apega ao assunto, por ser uma doutrina. As fases anteriores da evolução pertencem ao domínio das leis naturais. Todos esses espíritos em ascensão para o plano hominal não dispõem ainda de inteligência e consciência suficientemente desenvolvidas para participar do plano humano. No mundo espiritual esses espíritos são amparados e orientados por espíritos que se dedicam aos chamados espíritos da natureza.

Vale essa lição para os espíritas que hoje pregam a supressão das sessões mediúnicas, alegando que as doutrinações de espíritos humanos ignorantes e sofredores pertence ao mundo espiritual. Esse raciocínio ilógico e antinatural estabelece a dicotomia no processo de intercâmbio mediúnico, sem nenhuma prova da razão alegada. Por outro lado, nega o princípio de solidariedade humana entre os dois planos estreitamente conjugados, o carnal e o espiritual. A doutrinação mediúnica é função básica do Espiritismo, a mais bela e consoladora herança do Cristianismo do Cristo (e não dos seus vigários) como declarou o Padre Alta no seu famoso livro. Cancelar as sessões mediúnicas seria voltarmos ao marco-zero. Restabeleceríamos assim o princípio católico da inviolabilidade do mistério da morte, isolando-nos artificialmente dos espíritos amigos, nossos companheiros de evolução humana, que continuam a conviver connosco na interpenetração dos mundos material e espiritual, hoje comprovada pelas próprias Ciências materiais. Fecharíamos as portas da nossa ignorância na cara dos amigos e parentes que nos amam e nos ajudam no campo das relações mediúnicas. É isso o que desejam os inquietos e desavisados inovadores do nosso tempo?

As manifestações de espíritos de crianças são naturais, pois todos os espíritos podem manifestar-se. Mas as manifestações desses espíritos em cadeia, formando correntes para trabalhos espirituais não têm sentido. As crianças transformam os médiuns em bebês chorões, pedem chupetas e mamadeiras, querem brincar com bonecas e assim por diante. Acontece que os espíritos de crianças não são crianças, mas adultos. Deixando o corpo infantil são confiados a espíritos superiores que os orientam para que se descondicionem da situação infantil, de que somente necessitavam em função de sua rápida passagem cármica pela Terra. Quando o espírito já dispõe de conhecimentos espirituais, retorna por si mesmo e naturalmente à condição de adulto. A condição infantil corresponde às necessidades evolutivas do corpo material. Cumpridas essas exigências psicobiológicas, retornam à condição de adultos. Isso se torna evidente nas manifestações de espíritos de crianças mortas que se manifestam aos pais para identificar-se, mas em manifestações posteriores já se declaram adultas. Um menino de oito anos, no nosso grupo de trabalho, respondeu aos mimos e preocupações dos pais dizendo: “Não sou mais criança. A morte nos faz crescer depressa. Fiquei rapaz em poucos dias. Mas sou o mesmo espírito que vocês só conheceram como criança. Cumpri a minha missão e agora tenho de prosseguir na minha evolução. Estarei sempre com vocês, porque vos amo, mas não pensem em mim como morto ou como criança, pois não sou mais nenhuma dessas duas coisas”. Os espíritos de crianças, de adultos, de velhos, manifestam-se como eram na carne para se identificarem, mas não permanecem no estado em que morreram. As manifestações do sincretismo religioso são em geral condicionadas pelas crenças e tradições das religiões primitivas dos vários tipos de manifestações religiosas de que provêm. Trata-se em geral de manifestações anímicas submetidas ao processo de condicionamento à crença, pesquisado por Richet no século passado e pelos parapsicólogos actuais. Boirac deu a essas manifestações a designação de espiritóides, o que vale dizer pseudo-espíritas. O devoto de Nossa Senhora que vê um espírito radiante de mulher tende sempre a considerá-la como a santa de sua devoção. Esse é um dos capítulos mais difíceis do campo científico da mediunidade, que a maioria dos espíritas desconhece. Cada ciência tem os seus problemas melindrosos, que exigem estudo sério dos seus praticantes.

Kardec registou nas suas pesquisas várias manifestações de crianças na condição de agénere (manifestações de crianças em forma de materializações, mas que não o são). Trata-se de casos raros, provocados por excessivo apego de espíritos afins. O caso da menina Raquel, filha de Frederico Figner, foi uma materialização através de um médium. O agénere é o fenómeno produzido por alterações do perispírito ou corpo espiritual do espírito manifestante, que lhe dão a aparência de materializado. (Ver na Revista Espírita, de Kardec, a teoria dos agéneres). Sem estudo metódico e aprofundado da Doutrina, os adeptos se expõem ao perigo de erros e ilusões na apreciação dos fenómenos. E ficam geralmente em dificuldades para refutarem teorias esdrúxulas dos opositores; Ciência do imponderável e do invisível, que não raro se tornam ponderáveis e visíveis. O Espiritismo requer dos seus adeptos maior afinco nos estudos, na observação e na pesquisa. É de extrema leviandade a atitude de adeptos e contraditores do Espiritismo que pretendem explicar os fenómenos que não conhecem, julgando-se defensores únicos da verdade e detentores exclusivos do discernimento e do bom senso, dotados de dons especiais para encontrar trapaças em toda a parte. Um ilustrado e famoso professor de Medicina teve a coragem de exibir em reuniões científicas fotografias de mesas grosseiramente amarradas com tiras de pano e cordas como prova de fraudes em fenómenos de levitação. Tristes restos, destroços humilhantes de batalhas perdidas na luta contra o Espiritismo por trapaceiros, mágicos de palco e sacerdotes mais interessados na mentira do que na verdade das revelações espirituais. É inacreditável que, ainda hoje, em plena era atómica e em plena expansão mundial da Parapsicologia, reconhecida como ciência universitária, esses vergonhosos resíduos da miséria humana possam servir, embora como peças de museus arcaicos, como armas contra os resultados de pesquisas científicas.

Ao problema das manifestações de espíritos de crianças devemos juntar o das manifestações da mediunidade infantil. Campo ainda pouco explorado pelos pesquisadores, pelas dificuldades naturais que oferece e o temor de desencadear processos inesperados no psiquismo imaturo, foi pesquisado no passado e continua em pesquisas nos nossos dias. Os casos como o de Pierino Gamba e Gianela de Marco, explorados em exibições públicas mundiais, ficaram cientificamente inexplicados. Gianela, uma frágil menina italiana de seis anos, apresentou-se no Teatro Municipal de São Paulo, regendo a Orquestra Sinfónica com a perícia de um grande regente. Levada a uma exibição mais ampla no Ginásio do Pacaembu, inteiramente lotado, regeu com a mesma segurança, em promoção do Clube dos Jornalistas Espíritas, recebendo elogios crivados de espanto dos nossos críticos profissionais. Nos próprios casos de exorcismo católico, hoje amplamente divulgados, surgem crianças médiuns interpretadas como endemoniadas. Aos Centros Espíritas comparecem mães aflitas levando crianças que necessitam de tratamento para se livrarem de influências mediúnicas assustadoras. Na Parapsicologia actual as pesquisas mais interessantes referem-se a casos psiquiátricos e de manifestações telepáticas. Nessas manifestações, pesquisadores norte-americanos e ingleses provaram, sem querer e sem o saber, um dos mais surpreendentes princípios da Ciência Espírita – o de que os debilóides mentais são espiritualmente normais, decorrendo as deficiências de imperfeições e anormalidades do cérebro e não da mente. Experiências sucessivas e rigorosamente científicas, confirmando a tese de Rhine de que a mente não é física, revelaram a situação dramática dessas crianças, como decorrentes de abusos criminosos no passado. Pesquisas em presídios mostraram a mesma situação em casos de loucura. Robert Amadou, católico-tomista, relata essas pesquisas no seu livro Parapsicologia; Herenwald, Pardson-Crieg, Carington e outros fazem coro a esse testemunho.

Todos esses factos recentes, comprovados nos grandes centros universitários do mundo, abrem, segundo vários especialistas, uma nova perspectiva no campo das possibilidades de cura dessas deficiências.

No tocante às manifestações mediúnicas de crianças engajadas nas chamadas correntes das formas de sincretismo religioso, em nada as favorecem essas pesquisas. A mediunidade infantil é puramente passiva, receptiva. O espírito de criança, no seu condicionamento infantil, está submetido ao processo de reencarnação, por isso mesmo desprovido da liberdade de escolha e de acção para controle de um médium. O paralelismo psicofísico do desenvolvimento infantil exige a ligação mais íntima e efectiva do espírito com o corpo. A mente infantil, reduzida às condições primárias da imaturidade, não dispõe de meios para o raciocínio claro e as decisões voluntárias. A criança só pode dispor de recursos para manifestações independentes depois dos oito anos de idade. Uma criança que se manifesta por um médium adulto pedindo bonecas ou chupetas permanece ainda no plano da subconsciência, não podendo violentar as leis naturais do crescimento humano. A Psicologia Infantil já se encontra suficientemente desenvolvida para nos oferecer uma visão geral do processo ontogenético nas fases primárias do desenvolvimento infantil.

Por outro lado, essas manifestações, se fossem reais, revelariam falta de ordem no mundo espiritual, onde as crianças ficariam à mercê de entidades maduras e mal orientadas. As consequências morais de uma situação como essa seriam desastrosas para todas as concepções espiritualistas. A situação da criança nessa concepção primitivista superaria em desalento à do limbo católico para onde as crianças não baptizadas seriam remetidas após a morte. Na obra da Criação, que é sobretudo ordem, amor e justiça, não se pode admitir logicamente esse abandono das crianças espirituais à própria sorte. Os espíritos infantis que não retomam a sua maturidade mental logo após a morte são entregues aos espíritos maternais que, segundo técnicas especiais, tratam de protegê-los e levá-los à reintegração nas suas experiências de vidas anteriores. O Espiritismo, como dizia Kardec, é uma questão de bom-senso.

A questão dos elementares, espíritos ainda em transição para a humanidade, decorre da própria teoria espírita da evolução, que é geral, universal e sequente. Doutrinas de elevado teor cultural, como a Teosofia de Olcot e Blavatsky e religiões mágicas, primitivas, como as do sincretismo religioso afro-brasileiro, dão grande ênfase a esse campo de manifestações primárias, que só pode ser pesquisado através da vidência. Como esse meio de pesquisa é sujeito a muitas imprecisões e interpretações erróneas, o Espiritismo interessa-se mais pelas manifestações de espíritos adultos, pois nestes encontra mais segurança e possibilidades de confirmação dos factos, bem como maior proveito para a humanidade que representa uma fase decisiva da evolução dos seres. Tudo nos mostra, no mundo actual, que não podemos perder tempo com especulações secundárias. A imensa maioria humana, encarnada e desencarnada, do nosso planeta, não chegou ainda à compreensão real do sentido da vida e necessita de apoio e ajuda daqueles que se adiantaram no caminho. As doutrinas espirituais que se dizem avançadas acabam fechando-se em pequenas elites desligadas da massa mais sofredora e necessitada.

A mensagem espírita, desenvolvendo e aclarando os ensinos cristãos, vai da choupana ao palácio e pode enfrentar com segurança os embates do religiosismo dogmático e do materialismo científico em todos os seus aspectos. Ela demonstra, inclusive, que a verdadeira Ciência não pode parar nos limites da matéria, pois o ser não é matéria, mas espírito, e a finalidade da Ciência é reconhecer e revelar a realidade total em sua interacção de causa e efeito, espírito e matéria. Negar o espírito ou considerá-lo como subordinado à matéria é negar as possibilidades cognoscitivas da inteligência. O cientista que assim procede comete um suicídio cultural. Toda a cultura se nadifica nesse gesto anti-humano de se esconder na cova de uma toupeira. O Espiritismo revela-nos o homem como o conhecedor insaciável de toda a realidade. Por isso, a primazia espírita concedida ao homem é uma exigência da evolução global das coisas e dos seres. As exigências metodológicas do conhecimento ôntico são necessárias, não podem ser transformadas em hipóteses que atravanquem as rotas do saber, como reconheceu Charles Richet, tratando precisamente dos problemas espirituais na Metapsíquica.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Manifestações Espirituais de Crianças, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

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