Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

o grande desconhecido ~


O Espírito como Elemento da Natureza |

Os conceitos de naturalidade e normalidade decorrem das experiências da Cultura Empírica e subsistem na Cultura Científica como resíduos daquela fase primária. Esses resíduos emocionais foram alimentados ao longo de todo o processo religioso, por enquadrarem-se na concepção mágica e mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal. As Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos do sagrado e do profano e não tiveram condições para superá-los. O misticismo é uma forma de alienação, de fuga necessária do homem à dureza da realidade objectiva, onde as leis da estruturação sensorial agem de maneira inflexível. O místico é um desertor do real. O anseio de transcendência no homem, não esclarecido na sua motivação, leva-o a rejeitar o real e buscar o sucedâneo de uma suposta realidade, imaginada como refinamento do real-sensível. Surgem daí as categorias do espiritual e do material, que se mostram confusas na fase mitológica e posteriormente geram a divisão arbitrária e misteriosa das concepções teológicas. Os principais factores desse processo são:

a intuição da indestrutibilidade do ser;

o medo da morte como aniquilamento total;

o desejo de libertação do condicionamento material.

O ser é o que é e recusa-se a deixar de ser. Ele se reconhece como forma existencial subjectiva integrada na estrutura objectiva da realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento material é efémero e terá fatalmente de se desfazer na morte. O instinto de conservação leva-o a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos fenómenos mediúnicos não o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma continuidade natural após a morte. As múmias e os mausoléus egípcios, o paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico. Há pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana após a morte em termos espirituais. Condicionaram a sua mente, de tal maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da frustração do ser ante o pandemónio das alucinações do fabulário religioso. Kardec teve de agir com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a reacção violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas no seu livro O Céu e o Inferno colocou o Cristianismo sincrético da igreja no banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias, de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional. A indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às condições visíveis e palpáveis da realidade natural. A simbologia mítica não criava a loja de bugigangas, não dependia de um comércio de contrabandistas nas fronteiras despoliciadas da morte, mas de representações emotivas da sensibilidade humana ante os mistérios do mundo ainda indevassável. A indestrutibilidade do ser, e portanto a sua imortalidade, decorria espontaneamente da indestrutibilidade do mundo, em que as coisas e os seres se transformam por lei natural, sem depender de bênçãos ou maldições sacramentais. Os deuses nasciam das águas e da terra, como nascem todas as coisas. Essa naturalidade do pensamento mitológico foi rejeitada pela cultura teológica, que fugiu do real para o irreal, do natural para o imaginário.

O medo da morte como destruição total do ser humano tinha no paganismo a compensação da continuidade da alma além das dimensões da matéria. Sócrates expôs bem esse problema ao defender-se no tribunal de Atenas. Segundo a apologia que Platão lhe dedicou, Sócrates considerou a morte como natural e até mesmo conveniente na idade em que se encontrava. Lembrou que os juízes que o condenaram também já estavam condenados e analisou as duas alternativas da morte: sobreviver a ela e encontrar os sábios do passado no plano espiritual, o que seria uma felicidade, ou não sobreviver e dissolver-se no todo, o que seria o descanso total. De nenhum modo a morte o preocupava. A lei humana que o condenara apenas apressava o cumprimento inevitável da lei natural a que todos estão sujeitos. Ele era médium vidente e audiente, consultava sempre o seu daimon ou espírito protector, conhecia o problema da sobrevivência espiritual, mas falava a homens que não tinham essa experiência e usava o raciocínio mais apropriado ao momento. Esse episódio nos mostra que o medo da morte não era tão angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos, sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo. Entre os celtas, nas Gálias devastadas pela brutal conquista romana, os bardos cantavam nas tríades druídicas, a felicidade dos que sobreviviam após uma existência dedicada ao cumprimento dos deveres humanos. A morte não os assustava. Mas o terror cristão da morte, na era teológica de deformação do Cristianismo, revestiu a morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada, semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva de terrorismo mental. Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela segunda alternativa de Sócrates: o materialismo inconsequente, mas pelo menos racional.

Era natural e inevitável. Só a volta à experiência empírica poderia sustar a evasão mística, reconduzir os homens ao bom-senso, às medidas controladoras do pensamento racional. O desejo de libertação do condicionamento material, provocado pelo êxtase místico, pelos delírios da imaginação excitada, tinha de chocar-se com a dúvida metódica de Descartes e logo mais com o cepticismo desolador e o materialismo árido. Era necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria, mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas isso porque, no seu tempo, a vitória da razão já se definia, através das conquistas científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo, perdendo a visão espiritual da sua realidade subjectiva. A grande tarefa do Espiritismo se definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação, ligar a fé à razão, unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.

Era o que Jesus havia feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do materialismo saduceu. O Espiritismo dava continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo sincretismo religioso dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos reinos da Terra. Kardec podia então proclamar a verdade simples que não havia sido aceite, por falta de condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da Natureza. Sem compreendermos isso não poderemos compreender o Espiritismo. Espírito e matéria são os elementos constitutivos de toda a realidade. Esses elementos são dimensionais, constituem dimensões diversas da realidade única. Não podemos dividi-los em natural e sobrenatural, pois ambos se fundem na unidade real da Natureza, como a Ciência actual o demonstra, sem ainda compreender as suas conexões profundas e subtis.

Léon Denis, discípulo e continuador de Kardec, considerou o Espiritismo como a síntese conceptual de toda a realidade. O mistério da Trindade, que se manifesta em forma mitológica ou mística em todas as grandes religiões do mundo, define-se na racionalidade espírita nos termos da explicação kardeciana:

Deus
Espírito
Matéria

Deus é a Inteligência Suprema, a Consciência Cósmica de que tudo deriva e que a tudo controla. Só Ele é sobrenatural, pois sobrepõe-se a toda a Natureza. É a Unidade Solitária da concepção pitagórica, que paira no Inefável. Esse é o seu aspecto transcendente. Mas Pitágoras nos fala de um estremecimento da Unidade que desencadeou a Década, gerando o Universo. E temos, assim, o aspecto imanente de Deus, que se projecta na sua criação e a ela se liga, fazendo-se espontaneamente a sua alma e a sua lei: Dessa maneira, o próprio Sobrenatural se torna Natural. A consciência Cósmica impregna o Cosmos e imprime-lhe o esquema infinito dos seus desígnios. Leibniz desenvolveu a teoria da mónada para explicar filosoficamente o processo da criação. As mónadas seriam partículas infinitesimais do pensamento divino que, como as sementes, trazem em si mesmas o plano secreto daquilo que vai ser criado. Da dinâmica das mónadas invisíveis aos nossos olhos formam-se os reinos naturais:

Mineral
Vegetal
Animal
Hominal
Espiritual.

Esse processo criador é explicado por Kardecsob orientação do Espírito de Verdade, como um desenvolvimento incessante das potencialidades monádicas, num fluxo evolutivo que sobe sem cessar dos reinos inferiores aos reinos superiores. Léon Denis explica esse fluxo numa expressão poética: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Deus, a Lei Suprema, controla todo esse processo nos seus mínimos detalhes. A alma é a mónada, princípio individualizador que se caracteriza como princípio inteligente n’O Livro dos Espíritos. É assim que o espírito estrutura a matéria dispersa no espaço infinito. As hipóteses científicas do Universo Finito decorrem da incapacidade da Ciência para abranger a infinitude cósmica. Kardec adverte que, por mais que ampliemos os limites supostos do Universo, sempre haverá na nossa imaginação uma infinita continuidade do espaço cósmico. A consideração científica dos limites é puramente metodológica, determinada pela necessidade de ordenação na nossa mente. A própria Criação é infinita, incessante. Gustave Geley, metapsiquista francês, considera a mónada como um dínamo-psiquismo-inconsciente que dirige a constante metamorfose das coisas em seres, até chegar ao homem, que por sua vez, tomando consciência do seu destino, se transforma em anjo, integrando o reino espiritual da Angelitude, dos espíritos superiores.

Nessa cosmogonia dinâmica vemos que nada escapa do plano natural. Os espíritos nascem das entranhas da matéria, inseridos nela e nela se metamorfoseando. Os filósofos existenciais do nosso tempo referendam nas suas teorias essa concepção naturalista do espírito. Pois o que é o espírito senão a própria criatura humana? A morte nos mostra que o corpo perece, mas o espírito não. Ensinava o Padre Vieira: Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma. A Filosofia Existencial proclama: A existência é subjectividade pura. E a existência, no caso, é o espírito, que faz do homem um existente, um ser que existe, sabe que é e por que existe e busca a sua transcendência. A Vida é comum a todas as coisas e todos os seres, mas a Existência é a condição específica do homem, que não se limita a viver, mas luta por transcender-se. Nessa transcendência o homem passa da humanitude (do reino hominal) para a Angelitude (o reino espiritual). Sendo o espírito a nossa própria essência, o que somos realmente, com toda a nossa personalidade, é evidente que o espírito não é sobrenatural, mas natural, um elemento vivo e dinâmico da Natureza. Quando tomamos consciência dessa concepção espírita do mundo e do homem, a realidade se impõe à nossa mente, afugentando as confusas e incongruentes fabulações teológicas.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 2 – O Espírito como Elemento da Natureza, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

               A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, sem lugar a contestação, inefáveis, particulares encantos. Na organização dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas.

   Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas. A luz que espalha a viço nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo esplendor da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses mundos longínquos que, como o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de actividade e vida. Poderíamos apresentar este grandioso e magnífico espectáculo da vida universal como eloquente testemunho da inteligência, sabedoria e omnipotência da causa anónima, que houve por bem reverberar, dos primórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora.

   Se, abrindo os olhos diante desse espectáculo, eles persistirem na sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes, em consciência, que também duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do Criador parece-nos infinitamente mais curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.

   E, como o método positivo consiste em não julgar antes de observar os factos, temos o dever de examinar primeiro os factos astronómicos de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, se revelar insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao apupo da plateia.

   Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas após sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso, eléctrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Kepler, laborioso sábio que a descobriu graças ao seu génio, como à sua paciência, e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Tycho-Braheantes que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege.

   Esses três pontos são:

   1º – Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.

   2º – As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vector (*) de um planeta em volta do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a descrevê-las.

   3º – Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários.

   (*) Assim se denomina a linha ideal que liga um planeta ao Sol.

   A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.

   Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel – que todos os movimentos celestes são consequências da lei, isto é: – que duas moléculas materiais se atraem na razão directa do volume de suas massas e na inversa do quadrado das distâncias. Partindo deste princípio, ele explica como a atracção exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exactamente idêntica, como os movimentos elípticos dos planetas em volta do Sol e dos satélites à volta dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem consequentes necessários da mesma lei, e como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigualdades tão complicadas do movimento lunar se prendem à acção perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atracção que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios não passa de consequência necessária da mesma lei.

   Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a acção incoercível dessas forças colossais, os mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a rota certa e previamente traçada por essas mesmas forças.

   Se nos fosse dado libertar-nos um momento das aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si mesmos, projectados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas que uma força de projecção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a velocidade de seiscentos e cinquenta mil léguas por dia. Rodeando esses mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando, cada manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da combinação mesma dos seus movimentos, a renovação da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira; reflectem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protector, ou transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a atracção dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os matizes policrómicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às palpitações eléctricas despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as plantas fósseis, do passado, até ao homem que pensa e sonda o futuro. Todos esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 1 de 3, 11º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Diálogos de Kardec ~

O Perispírito como princípio das manifestações ~

Os Espíritos, como já foi dito, têm um corpo fluídico, a que se dá o nome de perispírito. A sua substância é haurida do fluido universal ou cósmico, que o forma e alimenta, como o ar forma e alimenta o corpo material do homem. O perispírito é mais ou menos etéreo, conforme os mundos e o grau de depuração do Espírito. Nos mundos e nos Espíritos inferiores, ele é de natureza mais grosseira e se aproxima muito da matéria bruta.

Durante a encarnação, o Espírito conserva o seu perispírito, sendo-lhe o corpo apenas um segundo envoltório mais grosseiro, mais resistente, apropriado aos fenómenos a que tem de prestar-se e do qual o Espírito se despoja por ocasião da morte. O perispírito serve de intermediário ao Espírito e ao corpo. É o órgão de transmissão de todas as sensações. Relativamente às que vêm do exterior, pode dizer-se que o corpo recebe a impressão; o perispírito a transmite e o Espírito, que é o ser sensível e inteligente, a recebe. Quando o acto é de iniciativa do Espírito, pode dizer-se que o Espírito quer, o perispírito transmite e o corpo executa.

O perispírito não se acha encerrado nos limites do corpo, como numa caixa. Pela sua natureza fluídica, ele é expansível, irradia para o exterior e forma, em torno do corpo, uma espécie de atmosfera que o pensamento e a força da vontade podem dilatar mais ou menos. Daí se segue que pessoas há que, sem estarem em contacto corporal, podem achar-se em contacto pelos seus perispíritos e permutar a seu mau grado impressões e, algumas vezes, pensamentos, por meio da intuição.

Sendo um dos elementos constitutivos do homem, o perispírito desempenha importante papel em todos os fenómenos psicológicos e, até certo ponto, nos fenómenos fisiológicos e patológicos. Quando as ciências médicas tiverem na devida conta o elemento espiritual na economia do ser, terão dado um grande passo e horizontes inteiramente novos se lhes patentearão. As causas de muitas doenças serão a esse tempo descobertas e encontrados poderosos meios de as combater.

Por meio do perispírito é que os Espíritos actuam sobre a matéria inerte e produzem os diversos fenómenos mediúnicos. A sua natureza etérea não é que a isso obstaria, pois se sabe que os mais poderosos motores se nos deparam nos fluidos mais rarefeitos e nos mais imponderáveis. Não há, pois, motivo de espanto quando, com essa alavanca, os Espíritos produzem certos efeitos físicos, tais como pancadas e ruídos de toda a espécie, levantamento, transporte ou lançamento de objectos. Para se explicarem esses factos, não há porque recorrer ao maravilhoso, nem ao sobrenatural.

Actuando sobre a matéria, podem os Espíritos manifestar-se de muitas maneiras diferentes: por efeitos físicos, quais os ruídos e a movimentação de objectos; pela transmissão do pensamento, pela visão, pela audição, pela palavra, pelo tacto, pela escrita, pelo desenho, pela música, etc. Numa palavra, por todos os meios que sirvam a pô-los em comunicação com os homens.

Podem ser espontâneas ou provocadas as manifestações dos Espíritos. As primeiras dão-se inopinadamente e de improviso. Produzem-se, muitas vezes, entre pessoas de todo estranhas às ideias espíritas. Nalguns casos e sob o império de certas circunstâncias, pode a vontade provocar as manifestações, sob a influência de pessoas dotadas, para tal efeito, de faculdades especiais.

As manifestações espontâneas sempre se produziram, em todas as épocas e em todos os lugares. Sem dúvida,  já na antiguidade se conhecia o meio de as provocar; mas, esse meio constituía privilégio de certas castas que somente a raros iniciados o revelavam, sob condições rigorosas, escondendo-o ao vulgo, a fim de o dominar pelo prestígio de um poder oculto. Ele, contudo, se perpetuou, através das idades até aos nossos dias, entre alguns indivíduos, mas quase sempre desfigurado pela superstição, ou de mistura com as práticas ridículas da magia, o que contribuiu para o desacreditar. Nada mais fora até então senão o germen lançado aqui e ali. A Providência reservara para a nossa época o conhecimento completo e a vulgarização desses fenómenos, para os expurgar das ligas impuras e torná-los úteis ao melhoramento da Humanidade, madura agora para os compreender e lhes tirar as consequências.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, I – O Perispírito como princípio das manifestações, 10º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O Espiritismo na Arte ~


Nona lição de O Esteta

– A música e a transmissão do pensamento artístico
– Perispírito, receptor das ondas musicais

|10 de Fevereiro de 1922|

“Hoje falaremos sobre a música do espaço, considerada como meio de transmissão do pensamento artístico. Sei que um outro espírito, mais perto de vós (i), já tentou fazer-vos compreender a forma como as ondas, que chamais de musicais, são criadas e depois transmitidas através do espaço, para chegarem aos diferentes mundos. Já vos disseram que o que chamais de sonoridades para nós é comparável às cores que, transportadas em moléculas fluídicas, percorrem os campos vibratórios e vão comunicar aos seres impressões semelhantes àquelas que os vossos ouvidos percebem quando ouvis uma gama de sons harmonizados neste ou naquele grau de vibrações.

(i) Trata-se do Espírito Massenet, do qual publicaremos as lições mais adiante, nos tópicos especialmente dedicados à música (Nota do Autor; as suas notas sequentes conterão apenas as iniciais N.A.)

Na Terra, quando uma nota é tocada, se ela provém do tom maior, essa nota transmite-vos uma sensação de alegria plena e irrestrita. Se ela é em tom menor, ao contrário, o vosso cérebro receberá uma sensação de profundidade, algumas vezes de tristeza ou de grande dor, de acordo com a modulação dos acordes e o número de notas tocadas.

Portanto, a esses dois grandes princípios, maior e menor, correspondem duas sensações: a alegria e a dor. Entre essas notas, tendes uma infinidade de combinações que, por isso mesmo, formarão imagens. Assim como o escultor forma uma imagem virtual, o grupo de notas, os acordes, conforme sejam moduladas em tom maior ou menor, formarão pelo seu estilo uma série de pensamentos, que se tornam mais ou menos compreensíveis, segundo a evolução dos modos (ii) da música. Eis aqui um ponto estabelecido: as artes plásticas formam imagens e a arte das ondas musicais forma, igualmente, imagem, mas uma imagem mais subtil, da qual o teor é mais frágil e a compreensão mais delicada. Segundo o grau de evolução dos seres, essa compreensão será mais ou menos profunda. É por isso que muitas vezes, na vossa Terra, um ser de uma cultura média será impressionado, enquanto que o seu cérebro ficará refractário quando ele quiser servir-se do alfabeto para exprimir os seus pensamentos por meio de ondas que qualificais de musicais.

(ii) Modo: (em música) maneira como se dispõem os intervalos de tom e meio-tom numa escala; padrão rítmico constante numa composição (N.T.)

No espaço, como sabeis, não temos instrumentos, são os nossos perispíritos que recebem as ondas transmissoras do pensamento musical. Também será preciso impregnar directamente os seres que devem receber ondas dessa natureza. Como os outros artistas, o espírito evoluído no sentido musical, e que pode experimentar sensações infinitamente suaves e subtis, também pode transmiti-las com a ajuda dos vossos instrumentos e por intermédio do cérebro de um dos vossos executantes.

A matéria, para ser posta em movimento pelas ondas fluídicas, necessita de um intermediário, que será o vosso cérebro, o qual, em decorrência, age como um pólo atractivo e uma placa sensível, de onde partem todas as irradiações que emanam dos fluidos.

Os vossos grandes músicos podem, como os outros artistas, receber a inspiração, seja do espaço, seja como resultado de trabalhos anteriores. É exactamente o mesmo fenómeno que se produz com os outros artistas.

No espaço os nossos meios são muito mais rápidos que os vossos; não temos necessidade de instrumentos para trocar pensamentos, e a nossa música é toda de impressões, agindo directamente sobre a parte mais sensível do nosso ser fluídico, aquela que contém, em diversos graus, a centelha divina e que, entre vós, é representada pelo órgão do coração.

As outras artes reflectem-se por imagens esculturais ou pictóricas, que são as formas de transmissão de pensamento e, para nós, substituem a palavra. A música é uma impressão especial que invade todo o nosso ser fluídico, lança-o no êxtase, na beatitude, faz com que ele sinta sensações de alegria, de quietude, de angústia, de desgosto, de dor, de pena, de remorsos. Tal é, mais ou menos, a gama de todas as sensações ascendentes e descendentes, que vão do rosa ao preto; o preto representando o nada.

Compreendeis, por conseguinte, sob o ponto de vista puramente artístico, que sensações infinitas podem agir sobre um espírito já evoluído. Agora podeis, na Terra, preparar-vos para receber essas sensações no Além, afastando de vós qualquer satisfação material e sensual. Procurai as atracções artísticas, por mais pobres que sejam; enriquecei o vosso pensamento, dai aos vossos nervos um alimento de fortes vibrações; enchei o vosso cérebro de sensações que, no vosso mundo, se traduzem por estudos analíticos das vossas vidas terrestres. Tudo isso, um dia, repercutirá no espaço, ao cêntuplo, porquanto as vibrações armazenadas no vosso ser carnal despertarão e atrairão, como uma lira com mil asas (iii), todas as sensações atractivas que podem gerar os sentimentos mais harmoniosos, os mais elevados, que circulam nas correntes que emanam directamente da esfera divina.

(iii) Observe-se o profundo sentido desta frase: “como uma lira com mil asas”. A lira, símbolo da poesia, da expressão poética, teria mil asas, mil formas de agasalhar todas as sensações geradoras de sentimentos harmoniosos (N.T.)

É o mais alto grau da arte, uma sensação artística infinita.

As vossas pobres criaturas não podem experimentar as alegrias inefáveis que sentimos quando essas sensações vêm tocar os nossos espíritos extasiados.

Quais são essas sensações? Tentarei, como conclusão, dizer-vos, com a permissão de Deus, o que elas podem ser. Isso não será fácil, porque seria como o vos abrir uma visão directa sobre a obra divina. Os vossos guias vão orar. Espero poder dar-vos, em algumas palavras, uma ideia dessa grande obra de beleza, de luz e de harmonia.”

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LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V – Nona lição de O Esteta – A música e a transmissão do pensamento artístico – Perispírito, receptor das ondas musicais (3 de 4) 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (II)

   À porta do palácio, formou-se um pequeno cortejo: os amos, os porta-estandartes, os convidados, os áulicos e os amigos, que desceram na direcção da Praça do Campo, já regurgitante.

  Diante das autoridades presentes, fez-se o sorteio dos bairros inscritos, dos quais seriam destacados os que deviam competir. Logo após, começou o corteo. As multidões vibraram de entusiasmo.

  Evocando os dias passados da cidade, as suas glórias e as suas conquistas, as suas tradições e o folk-lore, desfilaram, pela ordem de importância, os representantes das diversas classes, tendo à frente as Entidades Governamentais e os componentes dos diversos bairros inscritos, destacando-se nas suas cores características. Crianças ostentavam bandeiras dos contrada. Cada bairro se faz representar por 13 figurantes. O jogo das bandeiras brilha e nele os exímios acrobatas conquistam ensurdecedores aplausos: é nota viva, comovedora, agradável na festa. E atrás, encerrando o cortejo, aparece o Carroccio, puxado por quatro bovinos seleccionados, conduzidos, a seu turno, por dois homens encapuzados. Nesse carro de guerra está o Pallium – donde derivou o nome da festa – que será entregue ao vencedor, e na qual está estampada a efígie de Maria de Nazaré. O Pallium faz-se guarnecer por quatro trompetistas, a rigor, que anunciam a hora culminante.

  Tem início, então, a grande mossa dos animais escolhidos, representando os bairros atribuidos pelo sorteio. Os animais de raça, adestrados para disputa, partem com desabalada sofreguidão, enquanto os partidários se esganam aos gritos, louvando e encorajando os seus jóqueis preferidos. A corrida sobre lajes derrapantes é feita de emoções e receios. Alguns animais escorregam e atiram longe os condutores, que se ferem no atrito com as pedras luzidias.

  O Conde Lorenzo, entre as autoridades, na tribuna de honra, freme e alardeia as excelências do seu palafrém, do ginete florentino e estertora, ansioso.

  Girólamo, graças às deferências do Senhor Bispo, que a seu turno indicou ao Arcebispo aqueles que deveriam compor o Carroccio, como guardas de honra, figura em destaque, deslumbrado, provocando inveja e erguendo as insígnias da sua herdade e dos sítios que representava.

  A chegada dos concorrentes deu ao Bairro Oca a honra de receber o Pallium. Desceram da tribuna o Conde e a Condessa di Castaldi, que, ao lado do florentino, empapado de suor, receberam das mãos de Sua Eminência o cobiçado troféu.

  Carlo, ovacionado delirantemente, agradeceu o aplauso natural, espontâneo, festivo. Era o homem do dia. Os Castaldi foram cercados pelos amigos, pelos bajuladores, pelo povo e, com o animal, deixaram-se conduzir pela multidão, que carrega o ginete, entre delírios e animações. As cordas que isolam da pista a multidão são arriadas e toda a praça se transforma num imenso palco, para as festas regionais, bailes, teatros, espectáculos improvisados, e grupos alegres, bebendo em odres trabalhados o capitoso vinho, relaxam-se no prazer.

  Girólamo, conquanto os triunfos colhidos, martiriza-se com o êxito daquela estranha personagem, cuja lembrança o aflige e por quem nutre crescente despeito, que se transforma em surto de ódio.

  À noite, o Palácio Castaldi está regurgitante e o nobre casal abre-lhe as portas aos amigos que os vão saudar, homenageando-os pela honra do alto prémio conquistado. Empalmando as apostas numerosas, Dom Lorenzo retribui regiamente ao servo, atestando a generosidade de que se encontra possuído, e concede-lhe a liberdade de viver intensamente quanto possível aquela noite, que lhe será inesquecível.

  Longas serão as horas de oferendas a Baco e às dissipações. Tem-se a impressão de que todo o povo delira e não há problemas na Siena triunfadora. Ninguém recorda o amanhã. “Hoje, agora, é o nosso dia, a nossa hora!” – gritam bandos álacres, agitados.

  Tendo acompanhado o cortejo que seguiu, pressuroso, à casa dos sogros, Girólamo, ante a presença indesejável do moço engalanado pelos louros da vitória, cumpre o dever de banquetear-se e rever os amigos, retirando-se depois, na direcção das tabernas e casinos, onde a ilusão venenosa se desprende a peso de ouro e se faz colher com as ávidas mãos da loucura. Desgarrando-se de Francesco, que, após conduzir a esposa ao palácio, retorna aos ninhos de encantamento da cidade, misturando juventude e excessos, acorre ao casino “La Conchiglia”, para fruir as horas de enlevo e embriaguez.

  Vencido quase pelos vapores do álcool e do fumo, que emprestam ao grande salão, o moço senense divisou Carlo numa banca larga de dados, exibindo as qualidades de ganhador.

  – “Feliz no jogo, infeliz no amor”, – cantarola, abraçando mulheres atormentadas e profissionais da luxúria. Apresentando a bolsa recheada de moedas, o hábil cavaleiro, invejado e comentado, desafia ao jogo. Espicaçado pela inveja e por injustificável ciúme, Girólamo aceita a provocação, e a sala silencia para ouvir, sentir e viver a disputa. O ar abafado, pestilento, enche todos os recantos. De quando em quando, rebentam gargalhadas e gritos. Os dados correm no pano de feltro verde bem cuidado, as apostas aumentam e o Conde, jogador ardiloso e inveterado, reduz o adversário a mísera condição, para zombaria geral.

  – “Feliz nos cavalos, desditoso nos dados, impotente no amor” – baldoa Girólamo, picado pela jactance et forfanterie que o dominam acerbadamente.

  Vencido e humilhado naquele ambiente infeliz, ferido nos seus brios de ganhador do palio, Carlo sente que se deve desforçar do rival. Sai da sala em busca do ar da noite. Precisa pensar. Algo conspira contra ele, mas o seu signo o protege, – pensa revoltado. – Doestos e chacotas zombam, na comparação que fazem dele com o nobre Conde, com quem desejou duelar nos dados…

  Não obstante a hora avançada, a cidade continua febril e a taça do prazer generosamente derrama os seus perfumes abundantes e fáceis.

  Depois de caminhar até à Via del la Sapienza e atingir a Piazza de San Domenico, (i) o rapaz recebe as lufadas do ar brando, que sopram na larga área fronteira ao templo imponente. Olha o santuário, que é uma das glórias da cidade; aquele edifício teve o início da sua construção por volta de 1225 e o término somente 240 anos depois, estando situado em local de destaque, donde oferece ampla visão da cidade, em várias direcções. Sentando-se na relva macia, Carlo rebusca a imaginação:

  “O Conde Cherubini – pensa, estimulado pelo ódio que o domina –, após espezinhá-lo, vencido ante todos… Embora sob o estigma das tragédias que deveriam esmagar qualquer homem, aparenta triunfo e galhardia… Conforme lhe narraram os pajens e cavalariços, falou-se que ele bem poderia ter contribuído para que a fortuna do duque lhe viesse parar às mãos, flutuando em abundante rio de sangue e crimes… O duque di Bicci…”

  No mundo espiritual, o duque concertava um plano para atirar Girólamo entre as grades do cárcere ou no laço da forca. Estimulara, pela inspiração, a jovem Senhora Lucrécia a cair-lhe nos braços, a fim de que Francesco o convidasse a duelo reparador, não colimando o desejo. Ajudado, agora, pela conjuntura das Leis Desconhecidas para ele, – Leis que trouxeram Carlo a Siena –, eis surgida a oportunidade ambicionada pelo inimigo desencarnado.

  Aproximou-se do moço em reflexão, cujo pensamento desordenado conseguia perceber, conquanto não apreendesse a forma como lhe chegavam as vibrações mentais, começou a falar, acusador, acolitado por Assunta, em desalinho total, na sua deformação espiritual – vítima do homicídio e vítima, simultânea, do novo sicário que a exauria em crua vampirização psíquica, roubando-lhe todas as energias e fazendo-a tresloucada, em longo curso de desesperação

  Em lugar, distante da bulha, debaixo do aplauso das estrelas miúdas e faiscantes, engastadas na transparência do céu de verão, Carlo interrogava-se, freneticamente. A perseverança do ódio consegue, não raro, vencer os negligentes do amor e os comparsas da insensatez, graças à constrição actuante do pensamento que vibra destruição, aniquilamento.

  Mergulhado cada vez mais nas recordações, exigindo da mente um esforço raro, passou a sintonizar com as duas entidades desditosas que lhe compartilhavam a aversão. Estabelecida a ligação psíquica, pôs-se a recordar a infância, os primeiros anos da juventude em Florença, quando pastoreava as colinas de San Miniato… (San Miniato brilhou-lhe na mente, como o espocar de fogos.) reviu a cena de sangue. Sim, era de lá que o conhecia, era ele o assassino, cujo crime vira naquela primavera do horror – reflectiu.

– Na tela mental, estimulada pelas evocações e sincronizada com o pensamento dos verdugos espirituais, delineou-se o rosto de Assunta, debatendo-se no punhal certeiro do criminoso em fúria. Evocou o desespero que dele se apossara – mantendo vivas as tintas do crime hediondo e do soberbo assassino –, fazendo-o correr logo recuperou as forças e o comando das pernas. Sim, não havia dúvidas… Saberia cobrar a dívida ao infame. “À quelque chose malheur est bon.”(*)

(*) “Para alguma coisa serve a desgraça.”

  “Na ocasião, – continuava a desfilar o novelo das recordações –, comunicara ao pai, que o acompanhara ao local  e nada encontrara, senão os sinais da terra revolvida e as manchas de sangue dos animais em fúria, como lhe dissera o genitor, ao aplicar-lhe algumas bastonadas, afirmando-lhe que delirava… E como nada mais soubesse, perdurou-lhe a dúvida. Agora, tinha a certeza.”

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (2 de 3) 27º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VIII)

"Anúncio do Consolador"

   Retira ao homem o espírito livre, independen-te, sobrevi-vendo à matéria, e farás dele uma máquina organizada, sem objectivo, sem responsabili-dade, sem outro travão para além da lei civil e boa para ser explorada como animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada o impede de aumentar os prazeres do presente; se sofre, só tem como perspectiva o desespero e o nada como refúgio. Tendo a certeza do futuro, a de reencontrar os que amou, o receio de rever os que ofendeu, todas as suas ideias se modificam. Se o Espiritismo não tivesse feito mais do que retirar ao homem a dúvida quanto à vida futura, teria contribuído para o seu aperfeiçoamento moral mais que todas as leis disciplinares que por vezes o peiam mas não modificam.

  Sem a pré-existência da alma, a doutrina do pecado original não seria só irreconciliável com a justiça de Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pelo erro de um único: seria um contra-senso, tanto mais injustificável quanto, segundo esta doutrina, a alma não existiria na época a que se pretende remontar a sua responsabilidade. Com a pré-existência, o homem traz ao renascer o germe das suas imperfeições, dos defeitos que não corrigiu e que se traduzem nos seus instintos inatos, nas suas propensões para tal ou tal vício. Reside aí o verdadeiro pecado original de que sofre muito naturalmente as consequências, mas com a diferença capital de que sofre o castigo dos seus próprios pecados e não o de um pecado de outro. E há outra diferença, simultaneamente consoladora, encorajadora e soberanamente equitativa: a de que cada existência lhe oferece os meios para se redimir através da reparação e para evoluir, quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo novos conhecimentos, e isto até que, ao estar suficientemente purificado, deixe de necessitar da vida corporal e possa viver exclusivamente da vida espiritual, eterna e bem-aventurada.

  Pelo mesmo motivo, o que evoluiu moralmente traz, ao renascer, qualidades inatas, tal como o que evoluiu intelectualmente traz ideias inatas; identifica-se com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer, sem pensar. O que é obrigado a combater as suas más tendências está ainda a lutar: o primeiro já venceu, o segundo vai a caminho de vencer. Existe, portanto, virtude original tal como há saber original e pecado ou, melhor vício original.

  O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a sua acção sobre a matéria. Demonstrou a existência do perespírito, presumido desde a antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de Corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma após destruição do corpo tangível. Sabemos hoje que esse invólucro é indissociável da alma; que é um dos elementos constituintes do ser humano; que é o veículo de transmissão do pensamento e que, durante a vida do corpo, serve de ligação entre o Espírito e a matéria. O perespírito representa um papel tão importante no organismo e numa quantidade de afecções, que se aproxima da fisiologia tão bem como da psicologia.

  O estudo das propriedades do perespírito, dos fluidos espirituais e dos atributos psicológicos da alma, abre novos horizontes à ciência e fornece a chave de um conjunto de fenómenos até então incompreendidos por não se conhecer a lei que os rege; fenómenos negados pelo materialismo porque se prendem à espiritualidade, qualificados por outros como milagres ou sortilégios, consoante as crenças. São assim, entre outros, os fenómenos da dupla visão, da visão à distância, do sonambulismo natural ou artificial, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão de pensamento, do fascínio, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Ao demonstrar que estes fenómenos assentam sobre leis tão naturais como os fenómenos eléctricos e as condições normais em que se podem produzir, o Espiritismo destruiu o império do maravilhoso e do sobrenatural e, por consequência, a fonte da maior parte das superstições. Se faz com que se acredite em certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, impede que se acredite em muitas outras de que demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.

  O Espiritismo, muito longe de negar ou de destruir o Evangelho, vem antes pelo contrário confirmar, explicar e desenvolver, através das novas leis da natureza que revelam tudo o que Cristo fez e disse; traz luz aos pontos obscuros do seu ensino, de tal modo que alguns daqueles para quem certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam ser inadmissíveis, as compreendem e as admitem sem dificuldade com a ajuda do Espiritismo; entendem-lhe melhor o alcance e podem separar a realidade da alegoria; Cristo parece-lhes maior: já não é simplesmente um filósofo, mas sim um Messias divino.

  Se, além disso, considerarmos o poder do Espiritismo pelo objectivo que confere a todas as acções da vida, pelas consequências do bem e do mal que deixa bem claras, a força moral, a coragem, os consolos que confere nas aflições através da ideia de termos perto de nós os entes que amámos, a garantia de os revermos, a possibilidade de conversar com eles, enfim, pela certeza de que de tudo o que fazemos, de que de tudo o que adquirimos em inteligência, em ciência, em moralidade, até ao derradeiro momento da vida, nada está perdido, que tudo aproveita à evolução, reconhecemos que o Espiritismo realiza todas as promessas de Cristo relativamente ao Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa do seu advento encontra-se igualmente realizada, pois, de facto, é ele o verdadeiro Consolador (*).

  (*) Muitos pais de família deploram a morte prematura de crianças, pela educação das quais fizeram grandes sacrifícios, e dizem para consigo que tudo isso foi uma pura perda. Com o Espiritismo não lamentam estes sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza de verem morrer os filhos, pois sabem que, se estes não beneficiam dessa educação no presente, ela servirá primeiro para a sua evolução como Espíritos; depois, que será um conhecimento adquirido para uma nova existência e que, quando regressarem, possuirão uma bagagem intelectual que os tornará mais aptos a adquirir novos conhecimentos. São as crianças que ao nascer trazem ideias inatas, que sabem sem, por assim dizer, terem necessidade de aprender. Se os pais não têm a satisfação imediata de verem os filhos usufruírem dessa educação, certamente gozá-la-ão mais tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez venham a ser novamente os pais dessas mesmas crianças que consideramos afortunadamente dotadas pela natureza e que devem as suas aptidões a uma anterior educação; assim como também, se as crianças se desencaminham por negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos que provocarão numa nova existência. (Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, n.º 21: Perdas de Pessoas Amadas e Mortes Prematuras.)

  Se a estes resultados acrescentarmos a rapidez inerente à propagação do espiritismo, apesar de tudo o que foi feito para o abater, não poderemos sequer pensar que o seu advento não seja outra coisa que não providencial, na medida em que triunfa sobre todas as forças e sobre todas as más vontades humanas. A facilidade com que é aceite por um grande número de pessoas, e isso sem constrangimentos, sem outros meios de que o poder da ideia, prova que ele responde a uma necessidade: a de acreditar em qualquer coisa, após o vazio cavado pela incredulidade. Consequentemente, chegou no momento exacto.

 Os aflitos são em grande número: não é então surpreendente que tantas pessoas acolham uma doutrina consoladora, de preferência a doutrinas que desesperam, na medida em que é mais aos deserdados da sorte do que aos felizes que se dirige o Espiritismo. O doente vê chegar o médico com mais alegria do que aquele que não costuma ter problemas de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o Médico.

  Vós que combates o Espiritismo, se queres que o deixem para vos seguirem, dá então mais e melhor que ele; cura mais garantidamente as feridas da alma. Dá mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, certezas maiores; faz do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; mas não penses em vencê-lo com a perspectiva do vazio; com a alternativa das chamas do Inferno ou da beata e inútil contemplação perpétua.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 37 a 44 (VIII), 10º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Inquietações Primaveris ~


A Consciência da Morte

Todos sabemos que morremos, que a morte é inevitável, mas estamos tão apegados à vida e fazemos uma ideia tão negativa e temerosa da morte que a rejeitamos na nossa consciência e a transformamos num mito, afastando-a para o Fim dos Tempos. Mito assustador, ela permanece à distância, envolta em névoas, de maneira que só a vemos como figura trágica de um conto de terror. Heideggard observou que só a aceitamos, para os outros, na expressão aleatória morre-se, que nunca se refere a nós. Fascinados pelo fluxo incessante da vida, mergulhados no torvelinho das nossas preocupações do dia a dia, temos a sensação inconsciente e agradável de que ela sempre se distancia de nós. Mesmo quando, conscientemente, pensamos na morte, o fazemos com a ilusão de que ela não chegará tão cedo, pois temos ainda muita coisa a fazer e sentimos que a vida borbulha em torno de nós sem permitir a entrada da morte no nosso meio. Essa é uma forma ingénua de protelarmos a nossa morte, segundo as exigências do instinto de conservação. Assim aliviamos o medo da morte, confiantes no poder da vida.

De nada valem essas pequenas trapaças. A morte chega quando menos o esperamos e não raro nos leva para a outra vida sem nos dar tempo para compreender o que aconteceu. As pesquisas psíquicas, em mais de dois séculos, mostraram o curioso espectáculo de muitas criaturas mortas que não sabem que morreram. Continuam vivas na matéria por conta das suas próprias ilusões e passam a assombrar sem querer e sem o saber os lugares em que viviam ou frequentavam. É claro que permanecem desajustadas no mundo espiritual.

Para evitar esses e outros inconvenientes, devemos desenvolver em nós a consciência da morte, sabendo positivamente que ela existe e é inevitável, sendo inútil qualquer ilusão nesse sentido, que só poderá prejudicar-nos. Temos de nos familiarizar com a morte, considerando-a com naturalidade, não a transformando em tragédia ou em espectáculos inúteis de desespero. Nas sessões espíritas cuida-se muito desses casos, procurando-se despertar os mortos de suas confusões produzidas pelo apego à Terra e integrá-los na nova forma de vida para a qual passaram. Eles não são tratados como almas do outro mundo, mas como companheiros da vida terrena que se libertaram do condicionamento animal por retornarem ao seu mundo de origem, que é o espiritual. Os adversários da doutrina criticam esse processo mediúnico, alegando que criaturas ainda encarnadas nada têm para ensinar às que já se livraram do corpo material. Mas desde as pesquisas de Kardec até aos nossos dias o processo de doutrinação tem dado os melhores resultados, tanto em favor de espíritos perturbados pela passagem súbita ao plano espiritual, quanto no esclarecimento de pessoas que sofrem as influências dessas entidades. Isso se explica por duas razões fundamentais:

1) A doutrinação é a transmissão de ensinos dos desencarnados superiores dados a Kardec, através da mediunidade, para a renovação moral e espiritual da Humanidade. Apoiados no conhecimento desses ensinos é que os médiuns e os doutrinadores atendem as entidades desencarnadas.

2) As pesquisas de cientistas eminentes como Richet, Crookes e Zöllner, no século passado, e Geley, Osty, Crawford, Soal, Carington, Pratt e Price, na actualidade, provaram que nos ambientes mediúnicos a emanação do ectoplasma ampara os espíritos desencarnados e inseguros no plano espiritual, dando-lhes a sensação de segurança física necessária para conversarem com os doutrinadores como se estivessem encarnados. A situação dos espíritos recém-desencarnados, no plano espiritual, não lhes permite a lucidez necessária para compreender facilmente os ensinos que recebem das pessoas que dirigem o trabalho mediúnico.

Esse intercâmbio processa-se em benefício dos espíritos e dos homens, sem nenhum sistema de evocações e rituais. Os espíritos manifestam-se por sua livre vontade, desejosos de comunicar-se após a morte do corpo físico, com familiares e amigos que deixaram na vida terrena. Essas manifestações naturais marcam toda a história da Humanidade, em todo o mundo e em todos os tempos, sem nenhuma interrupção. Não são descobertas modernas nem invenções de qualquer investigador; figuram nos livros sagrados de todas as religiões, na cultura de todos os povos e nas grandes obras literárias, filosóficas e científicas das grandes civilizações. Constituem, portanto, uma fenomenologia ao mesmo tempo arcaica e moderna, actualmente comprovada pelas pesquisas tecnológicas, tanto nas áreas espiritualistas como nas materialistas do mundo actual. Não se trata do produto de crenças ou superstições, mas de uma realidade fenoménica cientificamente provada e comprovada. As interpretações pessoais desses fenómenos, formuladas por clérigos interessados em negá-los ou subordiná-los a processos puramente psicológicos, nada representam, são apenas palpites ingénuos ou interesseiros, fartamente negados pelas grandes pesquisas científicas do passado e do presente.

A morte é um fenómeno natural, de natureza biológica, no qual se verifica o esgotamento da vitalidade nos seres pela velhice ou por acidente fisiológico. Não atinge a essência do ser, que é sempre de natureza espiritual, referindo-se apenas ao corpo material, o que vale dizer que ela não existe como extinção das formas de ser das plantas, dos animais e dos homens. Falar da morte como a nadificação, como faz Sartre, é simples ilogismo, tanto do ponto de vista puramente racional, quanto do científico. As condições actuais do desenvolvimento científico eliminaram totalmente qualquer possibilidade de sustentação da teoria do Nada, esse conceito vazio, como Kant o considerou. Os que insistem na destruição total do homem pela morte revelam ignorância do avanço das Ciências nos nossos dias. O que se fez neste século na investigação desse problema, directa ou indirectamente, liquidou as últimas esperanças dos que sonharam com a irresponsabilidade do nada, de um Universo inconsequente e sem finalidade. Indirectamente, a Física revelou as potencialidades ônticas da matéria e, nas suas entranhas, a eterna dinâmica dos átomos e as suas partículas, sendo que estas, mesmo quando livres, tendem sempre a formar estruturas atómicas definidas e plasmas orgânicos. As pesquisas da antimatéria revelaram a mesma tendência nos antiátomos, criadores de espaços novos e antiestruturas materiais. Os vazios espaciais mostraram-se carregados de campos de força que escapam ao nosso sensório, à precariedade dos sistemas de percepção humana, não raro superadas pela percepção animal. E, directamente, o avanço das pesquisas psicológicas, aprofundadas pela Parapsicologia, confirmaram a tese do avanço constante do inconsciente para o consciente, de Gustav Geley, confirmando a teoria da evolução criadora de Bergson. Cientistas soviéticos voltaram, nas pesquisas astronáuticas, a desvendar os mistérios dos sete véus de Ísis, como o fizeram M. Vassiliev e Sianiukovch, em Os Sete Estados do Cosmos. Nas captações e gravações do inaudível por Raudive, na Alemanha, nas pesquisas de Pratt sobre os fenómenos teta (avisos de morte e comunicações de espíritos de pessoas mortas) e nas pesquisas sobre a reencarnação por Ian Stevenson, Wladimir Raikov (este na Universidade de Moscovo) e por Barnejee na Universidade de Rajastam, temos uma constelação imponente de factos e dados positivos sobre a realidade, hoje inegável, da transitoriedade da morte. Ao mesmo tempo, ante esse panorama de revelações científicas, a morte adquire uma importância gigantesca na construção da génese moderna. Tornou-se impossível a sustentação lírica das teses materialistas dos nossos dias.

A necessidade de uma tomada universal de consciência sobre o sentido, o significado e o valor da morte, tornou-se imperiosa. É simplesmente inadmissível, neste século, qualquer doutrina que pretenda sustentar por simples argumentos que a morte é o fim e a frustração total dos seres vivos e especialmente da criatura humana. O panorama científico actual exige de todos nós o desenvolvimento da consciência da morte, cuja fatalidade inegável se explica pela necessidade de renovação das estruturas da vida em todos os planos da natureza. Em consequência, a presença de Deus, como Consciência Suprema que rege a toda a realidade, numa estrutura lógica, teleológica e antiteológica, firma-se como o imperativo categórico da compreensão do mundo, do homem e da vida. Os teólogos que proclamaram, ante a tragédia nazi num exíguo espaço-tempo do nosso pequenino planeta, a Morte de Deus, mataram a Teologia em que se amamentaram durante séculos, praticamente um matricídio vergonhoso e estúpido. Em última instância, suicidaram-se na porta do Céu, no momento exacto em que o Céu era conquistado pela Ciência mundial. Nunca se viu maior fiasco do que esse, que reduz a simples opereta a façanha de Prometeu e a sua morte no Cáucaso. Soou a hora final das Igrejas, o instante fatal da falência eclesiástica, transformada em toda a parte numa nova morte de Pã. A grande Deusa morreu aos nossos olhos, como já havia morrido o Deus Pã nos fiordes da Noruega, ante a capitulação dolorosa de Knut Hamsun. As Igrejas, universalmente transformadas em supermercados de quinquilharias sagradas, estão agora vendendo os seus saldos das existências aos missionários por conta própria que invadiram as nações para vender, nos submundos da ignorância falsamente ilustrada e do populacho ansioso por um céu de delícias pasmáticas made in Bizâncio. Porque Bizâncio foi o fim esquizofrénico do Mundo Antigo após a queda de Roma e hoje a Nova Roma, já também esclerosada, parece destinada a selar o fim do mundo do arbítrio e da violência em que vivemos.

Esse rápido olhar pelo passado de tentativas frustradas da implantação do Cristianismo na Terra basta para nos mostrar que precisamos de desenvolver em nós a consciência da morte, para aprendermos a morrer com decência e dignidade. Se esta civilização apoiada em arsenais atómicos nada mais pode esperar do que a sua própria explosão, que ao menos nos preparemos para morrer de mãos limpas, sem manchas de sangue e de roubo, a fim de podermos voltar nas futuras reencarnações, em condições de consciência que nos permitam realizar uma nova tentativa de cristianização do Planeta. Sem uma tomada de consciência do sentido e do valor da morte estaremos arriscados a continuar indefinidamente no círculo vicioso das vidas repetitivas e sem sentido. A vida só tem sentido quando serve de preparação para vidas melhores. O destino não é viver como as feras, mas viver para transcender-se, numa escalada do Infinito em busca das constelações superiores. Os segredos da morte nos são agora racionalmente acessíveis para podermos aprender a perder a nossa vida para reencontrar o Cristo.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Consciência da Morte, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Fevereiro de 1917|

   O Espiritismo não é inimigo das religiões; ao contrário, fornece-lhe poderosos elementos de valor e de regeneração.

   Os conhecimentos que ele nos proporciona sobre a vida no Além e as condições em que se desenvolve a nossa existência após a morte, a certeza de leis justas e equitativas regendo o mundo invisível, formam outros tantos meios de análise e exame crítico, permitindo separar, nas religiões, o que é artificial e ilusório do que é real e imperecível.

   Não há dúvida de que os fenómenos do Espiritismo se encontram na origem de todas as religiões, porém estas lhes emprestam um carácter sobrenatural e milagroso, transferindo-os para um passado remoto e fazendo-os perder toda a importância sobre a vida moral e social.

   O intercâmbio com o invisível era apenas uma hipótese, uma vaga esperança; com o Espiritismo, torna-se certo e permanente.

   Estamos vivendo uma das maiores épocas de transição da História. Os factos que se estão desenrolando, as cruentas lutas dos povos e as subversões sociais são o começo, a preparação de uma nova ordem das coisas.

   Quando terminar a guerra (*), a mente humana analisará todos os seus aspectos e procederá a um exame profundo de todas as forças que agiram no decorrer desses trágicos anos. Então comprovaremos que são as ideias que conduzem o mundo. O patriotismo, ao unir os corações dos franceses, conteve a invasão, limitando os seus estragos.

   O amor pela terra natal acordou o heroísmo que, apoiado pelos auxílios poderosos do mundo oculto, salvou a França.

   Por isso a ideia de pátria terá que ocupar um lugar especial no ensino da educação popular. Entretanto, isso não será o bastante: para terminar com as nossas desavenças, as nossas rivalidades, as lutas de classes e de interesses é preciso, antes de tudo, unir inteligências e consciências, pois sem a harmonia das almas não poderá haver a harmonia social.

   Todavia, como se poderá preparar tal união? Trabalhe-se com ardor, com espírito de tolerância e concórdia, para aproximar os objectivos, as aspirações e as crenças. Dois poderosos meios se apresentam: A ciência e a fé.

   Antagónicos na aparência, essas tendências se conciliam e se completam mutuamente, como veremos no decurso deste livro. Elas podem fornecer facilmente uma concepção da vida e do destino, uma noção das leis superiores e uma base moral, estas coisas que são indispensáveis à nossa perturbada sociedade e sem as quais a existência seria vazia de sentido, sem finalidade e sem sanção.

   Dentro de toda a alma humana há um retiro, um ponto secreto, onde se instala a centelha divina, a parte do Infinito que garante a cada um de nós a indestrutibilidade do seu eu. Ali dormitam as forças invisíveis, os recursos psíquicos cujo desenvolvimento fará, mais tarde, do ser mesquinho, frágil e ignorante que somos no princípio de nossa evolução, um génio preparado para as grandes empresas e capaz de desempenhar um papel notável no Universo.

   A verdadeira religião consiste em utilizar esses recursos ocultos e valorizá-los. Ela tem que nos ensinar a colocar o ser interior em comunhão com o divino, expandindo-o, libertando-o de influências inferiores, fazendo-o adquirir a plenitude de sua irradiação.

   Conseguido esse estado espiritual, a alma humana poderá realizar as suas mais árduas missões e aceitar com alegria as provações mais duras. Saberá conservar nos dias mais difíceis um optimismo e uma confiança inquebrantáveis.

   Esse estado de espírito pode ser encontrado em todas as religiões, bem como fora delas. Atendo-se às práticas rituais da liturgia e aos diversos dogmas existentes dentro dos limites em que comummente se encontra a ideia religiosa, com frequência esquece-se da fé independente que paira acima de todos os cultos e não se sujeita ao “credo” de nenhuma igreja.

   Essa religião, pessoal e livre, talvez conte com maior número de membros do que as religiões reconhecidas, porém o número exacto de seus adeptos foge a todos cálculos.

   As descobertas científicas nos deram uma concepção do Universo vasta e grandiosa, mas diferente daquela que tínhamos na Idade Média e na antiguidade.

   A experimentação psíquica e o estudo do mundo invisível abriram perspectivas ilimitadas para a vida e para o destino do ser; o homem se sentiu ligado a todos os que pensam, amam e sofrem, na imensidão dos espaços.

   Os modelos das religiões caducas se romperam com o impulso triunfante do espírito, sequioso para conquistar a sua legítima parte de verdade e de luz. Quase não existem intelectuais que não tenham criado uma crença inspirada na observação directa da natureza, isenta das rotinas seculares, baseada na ciência e na razão.

   Os partidários dos dogmas não pretendem ver nesse sentimento senão o que denominam ironicamente de “religiosidade”. Realmente, ele possui em gérmen os elementos dessa religião universal, simples e natural que haverá, um dia, de reunir todos os povos do planeta e fundir as igrejas particulares, assim como os rios se fundem no oceano.

   Os actuais acontecimentos repercutirão profundamente por todas as formas da actividade social e, assim que a paz reinar novamente no mundo, haverá uma revisão de todas as causas que contribuem para o progresso humano, não escapando as religiões a uma análise crítica e rigorosa.

   Os terríveis factos que estão acontecendo darão a medida que permitirá calcular o poder ou a fraqueza moral das religiões.

   Verificar-se-à, não sem certo espanto, que a educação religiosa de povos que se intitulam cristãos, como a Alemanha e a Áustria, nada conseguiu fazer para impedir os mais condenáveis crimes que fazem a civilização se envergonhar.

   Ver-se-à com tristeza que, nestas horas cruéis, a Igreja Romana quase sempre colocou os seus interesses políticos acima das recomendações do Evangelho e dos sagrados direitos da consciência. Não foram melhores os adeptos do Islamismo e foi mais clara do que nunca a falência das religiões.

   No início da guerra a França foi sacudida por um grande movimento religioso e, após as nossas primeiras derrotas, as aspirações que moram no fundo de sua natureza lhe despertaram uma necessidade de crença, de saber que a morte não equivale ao nada e que, acima de tudo, existe um poder soberano, uma força inteligente e consciente, capaz de nos amparar e socorrer na provação e fazer prevalecer a justiça em um mundo de paixões descontroláveis.

   Se tal sentimento houvesse podido alcançar o ideal sonhado, seria o começo de uma renovação nacional, todavia as soluções apresentadas pelas igrejas, as poucas consolações que elas ofereciam aos corações dilacerados, as práticas ritualísticas impostas aos seus fiéis já não satisfaziam às necessidades do tempo e do meio. Foram julgadas insuficientes e assim, pouco a pouco, o movimento religioso se enfraqueceu.

   Todavia, o pensamento segue firme, voltado para o Além. Diante do perigo e do dilúvio de sofrimentos que nos ameaçam, no meio das ruínas e das mortes que se acumulam, a alma francesa procura sempre uma base sólida, uma certeza onde apoiar a sua fé e só as encontrará no moderno espiritualismo, o que equivale dizer no Espiritismo.

   A religião do futuro se apoiará na prova científica da sobrevivência, nas demonstrações experimentais e no testemunho dos sábios que estudaram os problemas da vida invisível.

   No decorrer desta guerra, o antropomorfismo das religiões se apresentou no seu aspecto mais monstruoso e o velho deus alemão não é mais do que uma evocação dos bárbaros deuses do paganismo germânico. Sob a máscara cristã mal ajustada, Odin, que comanda as cenas de carnificina, deixa entrever as suas feições.

   Esta noção da divindade é muito próxima do mais baixo materialismo e repugna às almas delicadas e aos espíritos refinados. Não se trata apenas das acções de um monarca ávido em dominar o mundo e dos chefes militares que o rodeiam; essa concepção é também encontrada nas obras dos pensadores alemães; professores, pastores e escritores a proclamam abertamente em discursos e publicações.

   Semelhante ao Jeová, do Antigo Testamento, o velho deus alemão protege somente uma raça, vendo nas outras apenas um rebanho de povos vis e corruptos, destinados à ruína e à morte.

   Esta feroz mentalidade faz dos alemães os pretensos instrumentos da vingança divina, impelindo-os a uma obra de destruição que eles continuam metodicamente.

   Essa grosseira mística aproxima-se das teorias de Nietzsche, relativas ao super-homem, tão difundidas na Alemanha, e podemos medir as funestas consequências de uma falsa religião unida a uma não menos falsa filosofia.

   É bom, sem dúvida, desenvolver a vontade de poder, segundo a expressão de Nietzsche, porém com a condição de se desenvolverem, ao mesmo tempo, a consciência e as outras faculdades do espírito e do coração: a piedade e a bondade, o respeito à verdade, ao direito e à justiça. Sem isto rompe-se todo o equilíbrio moral no ser humano e só se logrará produzir homens orgulhosos, déspotas, monstros que, para triunfarem, não vacilarão no emprego de todos os meios, mesmo os mais criminosos e odiosos.

   Daí essa terrível luta que se desenvolve à nossa volta, onde a Alemanha, em razão do seu feroz egoísmo, se desacredita e se desonra aos olhos do mundo e da História.

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(*) Primeira Guerra Mundial 1914-1918.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 1, Fevereiro de 1917, (1 de 2), 24º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)