Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

a pedra e o joio ~


Conceitos mecanicis-tas

   Ao tentar a elaboração da sua teoria corpuscular do espírito, o confrade Hernani Guimarães Andrade (como vimos no nosso artigo de domingo passado) partiu de uma premissa falsa: a de que o Espiritismo deve sujeitar-se às ciências materiais. O trecho de Kardec, citado na página 16 do seu livro, para justificar essa premissa, pertence ao parágrafo 55, capítulo primeiro, de A Génese. Nesse parágrafo, Kardec esclarece que o Espiritismo, como doutrina progressiva, “assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer espécie, que tenham chegado ao estado de verdades práticas, deixando o domínio da utopia”.

   Para explicar melhor o seu pensamento, Kardec, entretanto, acrescenta que: “Deixando de ser o que é (o Espiritismo), mentiria à sua origem e ao seu fim providencial”. Como se vê, Kardec adverte, com o bom-senso que o caracterizava, que o Espiritismo não podia converter-se num sistema estático, devendo acompanhar o desenvolvimento natural do conhecimento. Acompanhá-lo, porém, no plano da realidade, das verdades práticas, e não das utopias, das conjecturas. E acentuava, ao fazer isso, que o Espiritismo não podia trair-se a si mesmo. Quer dizer, ao acompanhar o progresso geral, devia entretanto manter a sua integridade doutrinária.

   Não compreendendo essa posição de Kardec, o confrade Guimarães Andrade pretende fazer com o Espiritismo o que Augusto Comte fez com a Filosofia, sujeitá-lo às ciências. Para isso, entretanto, vê-se obrigado a um malabarismo intelectual que o coloca em situações contraditórias. Porque, segundo o próprio Kardec já advertia, a Ciência Espírita é de natureza diversa da Ciência da Matéria. Tem objecto diverso e exige métodos especiais. Não compreendendo esse facto, o Sr. Guimarães Andrade procura amoldar, na retorta da sua teoria corpuscular, os dois elementos diversos, o que não é possível. Disso resultam as incongruências que podemos notar em seu livro.

   A pretensão reformista do autor chega às raias do extremismo. Vejamos este trecho, das páginas 16 e 17 de A Teoria Corpuscular do Espírito, em que ele define sua posição: “Por conseguinte, a Ciência Espírita tem campo aberto à pesquisa e ao desenvolvimento de seus princípios básicos, os quais podem e devem evoluir paralelamente à Ciência Oficial. E, tal como esta, precisa progredir, até mesmo, se necessário, à custa de reforma dos seus postulados”. Isto quer dizer que o Espiritismo deve modificar os seus princípios básicos, para sujeitar-se aos novos enunciados das ciências materiais.

   Kardec, em A Génese, no mesmo trecho que citamos acima, lembra que as ciências materiais são apenas “a exposição das leis da natureza, com relação a certa ordem de factos”. E esclarece que se trata dos factos materiais. Estes interessam ao Espiritismo, pois estão na ordem geral das leis de Deus, mas não são o objecto da doutrina. Submeter a ciência espiritual aos enunciados de leis materiais é simples absurdo. Aliás, na “Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita”, que abre O Livro dos Espíritos, Kardec observa: “Quando a ciência sai da observação material dos factos, e trata de apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas: cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer, e o sustenta encarniçadamente”.

   O confrade Guimarães Andrade refere-se ao perigo de um dogmatismo espírita, mas oferece-nos um perigo maior, que é o do dogmatismo científico, de natureza materialista. Amarrar o Espiritismo a esses “sistemazinhos”, referidos por Kardec, é muito mais perigoso do que sustentar os postulados doutrinários que têm na sua base a “autoridade dos factos” e não das conjecturas explicativas. Aliás, nenhum progresso das ciências afectou até agora os postulados doutrinários. Pelo contrário, só os tem confirmado. Como pretender-se então modificar esses postulados? No tocante aos conceitos da Física Nuclear, o que parece evidente é que eles se aproximam dos conceitos espíritas, como vemos no caso de negação da matéria, de transformação do mundo material em mundo energético, de redução dos fenómenos físicos a simples aparência e assim por diante.

   As próprias contradições do Sr. Guimarães Andrade provam isso. Condenando, por exemplo, a terminologia mecanicista de Kardec, vê-se ele obrigado, logo mais, a usá-la. É o que se verifica no seu capítulo intitulado “Das Bases da Teoria”, em que os conceitos de “vibração” e de “fluido vital” são empregados, e este último com o agravante de juntar-se ao conceito hinduísta de “prana”. Também o conceito de “matéria inerte”, nada corpuscular, ali aparece. Vemos, assim, que a reforma pretendida pelo autor é mais difícil do que ele mesmo supunha. Não chega a efectuar-se nem sequer no plano da terminologia, quanto mais no plano mental dos conceitos, propriamente ditos, que permanece inalterado.

   Por outro lado, o Sr. Guimarães Andrade, para poder misturar as ciências físicas e os princípios espíritas na sua retorta, foi obrigado a voltar vinte e cinco séculos atrás, adoptando o esquema de Demócrito para a explicação atómica do espírito. Os seus corpúsculos modernos, denominados “bion”, “mentalton” e “intelecton”, não são mais do que adaptações dos chamados “átomos de fogo”, do atomismo grego, que explicavam inclusive a percepção extra-sensorial. Demócrito admitia átomos especiais para a percepção sensorial e átomos mais subtis para a percepção intelectual. E considerava o espírito como um “arranjo atómico”, exactamente como o faz o Sr. Guimarães Andrade. Esse arranjo, naturalmente, podia desarranjar-se com a morte, e o espírito voltaria ao “todo universal”. O Sr. Guimarães Andrade não escapa a esse fatalismo lógico da teoria atómica do espírito, caindo numa posição materialista, como veremos mais tarde.

   Ao expor a natureza do “bion”, que seria “a partícula correspondente à vida em si mesma, independente de prévia organização, o agente vivificador da matéria”, o autor se choca frontalmente com o princípio estabelecido no cap. quarto de O Livro dos Espíritos, onde o fluido vital: “sem a matéria, não é vida, da mesma maneira que a matéria não pode viver sem ele”. Ainda aqui, o erro decorre da posição materialista, que não admite o espírito como agente não-físico. Embora o autor, nesse terreno, às vezes admita o conceito doutrinário de espírito, no geral permanece com o conceito mecanicista do atomismo grego. É uma das suas contradições, que procuraremos esclarecer nos próximos trabalhos.
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José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Conceitos mecanicistas, 12º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

sábado, 9 de fevereiro de 2013

| o grande enigma ~


Deus | e o Universo (IV)

Não procures Deus nos templos de pedra e de mármore, ó homem que o queres conhecer, e sim no templo eterno da Natureza, no espectáculo dos mundos a percorrer o Infinito, nos esplendores da vida que se expande em sua superfície, na vista dos horizontes variados: planícies, vales, montanhas e mares que a tua morada terrestre te oferece. Por toda parte, à luz brilhante do dia ou sob o manto constelado das noites, à margem dos oceanos tumultuosos, e assim na solidão das florestas, se te sabes recolher, ouvirás as vozes da Natureza e os subtis ensinamentos que murmuram ao ouvido daqueles que frequentam suas solidões e estudam seus mistérios.

A Terra voga sem ruído na extensão. Essa massa de dez mil léguas de circuito desliza sobre as ondas do éter qual um pássaro no Espaço, qual um mosquito na luz. Nada denuncia sua marcha imponente. Nenhum ranger de rodas, nenhum murmúrio de vagas sob seus flancos. Silenciosa, ela passa, rola entre suas irmãs do céu. Toda a potente máquina do Universo se agita; os milhões de sóis e de mundos que a compõem, mundos perto dos qual o nosso vale por uma criança, todos se deslocam, se entrecruzam, prosseguem suas evoluções com velocidades aterradoras, sem que som algum ou qualquer choque venha trair a acção desse gigantesco aparelho. O Universo continua calmo. É o equilíbrio absoluto; é a majestade de um poder misterioso, de uma Inteligência que não se impõe, que se esconde no seio das coisas, e cuja presença se revela ao pensamento e ao coração, e que atrai o pesquisador qual a vertigem do abismo.

Se a Terra evolucionasse com estrondo, se o mecanismo do mundo se regulasse com fracasso, os homens, aterrorizados, curvar-se-iam e creriam. Mas, não! A obra formidável se executa sem esforço. Globos e sóis flutuam no Infinito, tão livres quanto plumas sob a brisa. Avante, sempre avante! O rondar das esferas se efectua guiado por uma potência invisível.

A vontade que dirige o Universo se disfarça a todos os olhares. As coisas estão dispostas de maneira que ninguém é obrigado a lhes dar crédito. Se a ordem e a harmonia do Cosmos não bastam para convencer o homem, este é livre no conjecturar. Nada constrange o céptico para ir a Deus.

O mesmo acontece às coisas morais. Nossas existências se desenrolam e os acontecimentos se sucedem sem ligação aparente; mas, a imanente justiça domina ao alto e regula nossos destinos segundo um princípio imutável, pelo qual tudo se encadeia em uma série de causas e de efeitos. Seu conjunto constitui uma harmonia que o espírito emancipado de preconceitos, iluminado por um raio da Sabedoria, descobre e admira. Que nós sabemos do Universo? Nossa vista só percebe um conjunto restrito do império das coisas. Somente os corpos materiais, à nossa semelhança, a afectam. A matéria subtil e difusa nos escapa. (I) Vemos o que há de mais grosseiro, em tudo que nos cerca. Todos os mundos fluídicos, todos os círculos onde a vida superior se agita, a vida radiosa, se eclipsam aos olhos humanos. Distinguimos apenas os mundos opacos e pesados que se movem nos céus. O Espaço que os separa nos parece vazio. Por toda parte, profundos abismos parecem abrir-se. Erro! O Universo está cheio. Entre essas moradas materiais, no intervalo desses mundos planetários, prisões ou presídios flutuam no Espaço, outros domínios da Vida se estendem, vida espiritual, vida gloriosa, que nossos sentidos espessos não podem perceber porque, sob suas radiações, quebraria qual se rompe o vidro ao choque de uma pedra.

A sábia Natureza limitou nossas percepções e nossas sensações. É degrau a degrau que ela nos conduz no caminho do saber. É lentamente, trecho por trecho, vidas depois de vidas, que ela nos leva ao conhecimento do Universo, seja visível, seja oculto. O ser sobe, um a um, os degraus da escadaria gigantesca que conduz a Deus. E cada um desses degraus representa para o ser uma longa série de séculos.

Se os mundos celestes nos aparecessem de repente, sem véus, em toda a sua glória, ficaríamos aturdidos, cegos. Mas, nossos sentidos exteriores foram medidos e limitados. Eles avultam e se apuram à medida que o ser se eleva na escala da existência e dos aperfeiçoamentos. O mesmo se dá com o conhecimento, a possessão das leis morais. O Universo se desvenda aos nossos olhos à proporção que a nossa capacidade de compreender as suas leis se desenvolve e engrandece. Lenta é a incubação das Almas sob a luz divina.
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(I) Actualmente não conhecemos, nem podemos conhecer, em sua essência, nem o Espírito nem a Matéria.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 4 de 5, 7º fragmento da obra.
(imagem: Salvador Dali, 1950)

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


Em torno do ser profundo de Victor Hugo

   Por mais profunda que seja a crítica em relação à personalidade de Victor Hugo, nela não penetrará enquanto não medir a sua existência com o critério palingenésico ou "sentido" de reencarnação do ser. Se Hugo teve inúmeras alternativas morais foi porque o seu ser penetrava nas misteriosas zonas de uma realidade pré-existencial. A crítica comum, quando se trata de grandes espíritos, opina sempre ignorando a natureza profunda que os conforma. Enquanto a crítica desconhecer que génio e mediunidade são uma mesma essência, não poderá nunca penetrar nesses "mundos" que se movem no infinito das almas.

   Victor Hugo sabia que em seu ser se entrecruzavam incontáveis existências por ele vividas; daí suas variações de carácter, suas angústias e tristezas, suas aproximações repentinas dos mais variados climas espirituais. Seu espírito projectava no circundante as suas sondas psíquicas até extrair da essência das coisas a sua substância infinita.

   Assim se relacionava com a alma verdadeira dos seres e das coisas; desse modo seu ser se colocava em comunicação com o outro Eu das pessoas, que é onde se encontra o verdadeiro espírito encarnado.

   Seu génio, logicamente, não pôde revelar a seus íntimos e amigos a realidade profunda que percebia no todo existente. Ocultava sempre segredos espirituais, falava de temas eternos de acordo com o sentir comum, pois sabia ser inoportuno revelar o que acontecia por esse sentido palingenésico de seu Ser, que o acompanhou em toda a sua vida. Ateve-se sempre à medida evolutiva dos espíritos, compreendendo que a realidade espiritual do homem não pode estar ao alcance de todos.

   Os filósofos quiseram perguntar sobre a origem de seu génio penetrando nas circunvoluções de seu cérebro. Pretenderam estimar sua inteligência conforme o peso desse órgão. O próprio Victor Hugo doou à ciência o seu organismo cerebral para que, não existindo nenhuma diferença substancial nos cérebros, fosse investigado, depois de sua morte, se havia qualquer disparidade entre a organização dele e da massa cerebral dos animais. Por essa razão, resolveu que a investigação deveria ser praticada no cérebro de seu próprio cão, "com a finalidade de descobrir se haveria algo diferente na substância ou organização de algum dos órgãos cerebrais que pudesse servir de base para apreciar os vários graus de inteligências".

(1) - Doutor Franco Ponte: Los cérebros de Victor Hugo y Alberto Einstein, Revista Cosmo, 1995, Ponce, Puerto Rico.

   A informação dada pela comissão médica examinadora foi a seguinte: "Não encontramos nenhuma molécula a mais de matéria cinzenta no cérebro de Victor Hugo que na do cão. Achamos diferença de volume e peso somente, que acreditamos não afectarem nada as manifestações intelectuais, pois é sabido que existem entidades de escassa inteligência com cérebros volumosos e vice-versa, entidades de vastos conhecimentos em cérebros muito pequenos".

   Ocorreu o mesmo quando se examinou o cérebro de Alberto Einstein, este outro ser que comoveu as bases da ciência oficial. O parecer assinalava: "Nada encontramos que nos conduza ao caminho da verdade", ao que se ajuntou: "Nada foi encontrado e estamos certos de que o cérebro de Einstein é igual em sua estrutura e forma física a todos os cérebros dos seres comuns".

   Estas conclusões demonstram que a caixa craniana não encerra e não gera a inteligência do ser. Dá-se conta que os lóbulos cerebrais não segregam as ideias como os rins e a urina e que o materialismo está assente sobre bases irreais no que se refere à espiritualidade do homem.

   A concepção espírita, que vai além do espiritualismo clássico, tem demonstrado mediante a observação de numerosos factos, que os lóbulos cerebrais não são mais que órgãos pelos quais se manifesta o ser e o pensamento. Consequentemente, o génio de Victor Hugo não esteve radicado na fisiologia especial de seu cérebro, ou seja, o grande poeta de Raios e Sombras, não possuía um cérebro extraordinariamente desenvolvido, pelo contrário, o génio é que foi a causa de seu grande desenvolvimento espiritual.

   O homem Victor Hugo não era igual ao homem comum, sujeito às limitadas percepções dos cinco sentidos corporais. O grande poeta francês foi um exemplo de homem palingenésico dotado, por essa mesma razão, do sexto sentido ou da mediunidade altamente desenvolvida. Assim é que foi vidente, profeta e poeta e pôde compreender o que significam espiritualmente as grandes epopeias da humanidade. Compreendeu assim que a Revolução Francesa sem uma revolução espiritual não seria mais que um fenómeno político de ordem local.  

   Descobriu também que em cada homem pode estar reencarnado um rei, um mendigo, um santo ou um malfeitor; por isso o poeta conseguiu perceber que as verdadeiras raízes da história estão no espírito. Para Hugo os processos sociais eram o resultado de impulsos morais provenientes de espíritos reencarnados e não cegos tumultos políticos. O próprio Jean Valjean, condenado por roubar um pão, pôde ser, de acordo com as visões espíritas do poeta, um espírito reencarnado com a missão de obrigar os poderosos a não serem, impiedosos para com os miseráveis da terra.

   Mas, por que se ocultam e dissimulam as ideias espíritas de Victor Hugo? Será que o génio é grande somente quando apoia a cultura materialista?

   A única coisa que nos atrevemos a responder é que Victor Hugo havia sobrepujado as velhas concepções espirituais e que o seu génio pôde abrir as suas asas mercê do que as revelações mediúnicas da Ilha de Jersey tão objectivamente demonstraram. Eis o que tentaremos ver nos próximos capítulos.
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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Em torno do ser profundo de Victor Hugo, 4º fragmento da obra.
(imagem: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo V

A Auvergne. Vercin-gétorix, Gergovie e Alésia
(II)

Numa obra recente chamada L’Initiation de Vercingétorix,* o Sr. André Lebey nos forneceu detalhes muito interessantes sobre a educação religiosa e política do jovem chefe arvernense. Inicialmente, ele nos apresenta muitas cenas vivas e coloridas nas quais os nobres chamados “colares de ouro”, responsáveis pela morte trágica de Celtil, se entregam a esse género de intriga que pôs a perder a Gália, zelando com um ódio ciumento pelo progresso do jovem varão e temendo represálias. Depois, é a viagem de Vercingétorix, que atravessou as vastas solidões silvestres que separam as tribos, visitando a floresta sagrada dos carnutos, onde ele participa da grande cerimónia anual, presidida pelo arquidruida e pela grande sacerdotisa da Ilha de Sein; e sua visita a Carnac, onde ele cumpre outros ritos. Ali, nas horas do crepúsculo, ele escuta os cantos do bardo, afirmando o Deus supremo:

“Eu creio em um Deus único, eterno, que não se conhece, que nunca se conhecerá, indubitavelmente. Eu creio naquele que é, naquele que será, visto que é o mesmo, naquele que se revela e existiu sempre, visto que é o mesmo ainda. O caminho que leva à sua incógnita começa no sacrifício voluntário.”

Sob a direcção de um druida, guia tutelar e familiar, ele vai obter nos santuários os conhecimentos dessa grande doutrina, a propósito da qual Dom Martin pode dizer que “ela não foi tomada emprestada de nenhum outro povo”. Sem dúvida, em seus relatos é preciso levar em conta a fantasia, mas os principais factos repousam numa base histórica. O que há de mais notável nessa obra são as páginas consagradas à conversa solene e secreta dos dois druidas sobre a praia bretã, em frente das ilhas sagradas. Um deles, Divitiac, é admirador e aliado dos romanos; o outro, Macarven, preceptor de Vercingétorix, somente tem em vista o futuro e a grandeza da Gália, o desenvolvimento de seu génio livre, independente de toda ingerência estrangeira.

Divitiac tinha voltado de uma viagem à cidade Eterna, deslumbrado pela glória política e pelo esplendor monumental de Roma. Ele sonha com uma aliança que julga necessária para completar o poderio da Gália e assegurar sua função no mundo.

Macarven lembra ao seu interlocutor a corrupção, o cepticismo dos romanos, sua rapacidade, sua sede de dominação e, sobretudo, a astúcia e os ardis com os quais eles estão acostumados. Confiante na religião e na prática que ama, ele deposita toda a sua esperança numa Gália independente. Disse ele a Divitiac:

“Minha fé é mais clarividente do que a tua. Para vencer completamente, seria melhor que ela extinguisse as armas manuais, em nome de sua superioridade! O triunfo passageiro da matéria sobre o espírito não pode anular a vida do espírito; ela a consagra ainda mais e a faz ressuscitar eternamente acima da vitória momentânea do inimigo. Ao contrário, aceitando, mesmo por astúcia, o conquistador que a domina, ela se humilha pouco a pouco, ela se entrega. A derrota nobre valeria mais pela sua resistência legítima do que a vitória brutal do número e da força, unicamente. Eu somente confio na estrada perpétua, obstinada da consciência. Porque ela é direita, superior, decisiva entre todos os outros meandros, ela segue mais adiante. Deixá-la, abdicá-la e se perder, talvez morrer, e da morte da qual não se levanta. Essa morte engole tudo, é tão pesada que arrasta a alma esmagada sob o peso de sua nulidade.” (P. 163)

Prosseguindo sua viagem, Vercingétorix vai consultar as druidisas da Ilha de Sein.

“Tu vieste – lhe dizem elas – nos interrogar sobre o enigma dos mundos. Nós e nossos sacerdotes te respondemos. Tu chegaste, como nós, ao conhecimento da migração das almas e das leis da vida universal. Agora uma outra tarefa te será imposta; é preciso, doravante, pensar em Roma. Se tudo que viste do império gaulês te tem feito amá-lo, se tu estás ligado à nossa religião, forte e doce, natural e divina, onde o mal inevitável da vida se esclarece e se resgata pelo sacrifício, depois atinge ao sublime verdadeiro pelo culto equilibrado do espírito; se tu te dás conta de que na cidade fria, sobre a qual vigia o Capitólio, apesar da doçura do clima e da beleza dos montes Apeninos, vencido, tu regressarás para morrer no ar salubre da Gergovie, a lição viva do Puy majestoso, a profundeza calmante de suas florestas, então prepara-te desde agora! Prepara-te para salvar teu país e sua religião, única no mundo, tua nação de águas claras, de corações disputadores, mas bons e quentes. Crê em mim, crê em minhas irmãs, crê em nossos sacerdotes; esta virtude particular ao nosso solo, onde a raça céltica atinge sua mais justa expansão, não existe em outra parte.”

Mais tarde, a grande druidisa conduz o chefe arverne sobre o promontório que domina o mar de terror, em frente da ilha sagrada. Nesse tumulto de vagas, que imprime às suas palavras uma espécie de solenidade fatídica, ela lhe lançou estes dizeres em tom imperioso:

“Eleito por todos, tu serás rei e tu nos pertences. Sob este gládio cintilante, acima do abismo, símbolo da vontade, além de todas as agitações humanas, jura dedicar todos os minutos da vida, tua vida, tua morte, tudo o que compõe teu corpo perecível, como também tudo o que prepara tua alma imortal ao cumprimento da libertação.

Tu estás, aqui, no fim do mundo. Se teu juramento é sincero, os deuses que velam em torno de nós e nas ilhas, nos confins do santuário de todos os santuários, te atenderão!”**

E no vento e na tempestade, sob o ruído das ondas barulhentas, sob o gládio ensanguentado, Vercingétorix jurou!
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* Editor Albin Michel, rua Huyghens, 22, Paris.
** Ver L’Initiation de Vercingétorix, André Lebey, pp. 191, 201, 205.



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO V – A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 2 de 3, 17º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Tratamento de Vícios e Perversões (II)

Levados pelas excitações novidadeiras do momento de transição que atravessamos, certas instituições mal dirigidas pretendem modernizar as práticas doutrinárias, suprimindo as sessões mediúnicas e substituindo-as por reuniões de estudos doutrinários. Alegam que a doutrinação e esclarecimento dos espíritos inferiores é função dos espíritos superiores, no plano espiritual. Essa é uma boa maneira de fugir às responsabilidades doutrinárias e cortar as ligações do homem com os espíritos, relegando-os ao silêncio misterioso dos túmulos, onde, na verdade, não se encontram. Foi essa a maneira que os cristãos fascinados pelo poder romano, na fase de romanização do Cristianismo, encontraram para se livrarem das manifestações agressivas dos espíritos rancorosos, contrários aos ensinos evangélicos, sem perceberem que se desligavam assim do mundo espiritual. A supressão dos cultos pneumáticos – sessões mediúnicas da era apostólica –, permitiu a romanização da Igreja, frustrando-lhe os objectivos espirituais. O mundo espiritual é unitário e orgânico, exactamente como o mundo material. Cortar a ligação humana com a região inferior desse mundo é atentar contra o princípio doutrinário da solidariedade dos mundos e constitui uma ingratidão para com os espíritos que deram à própria doutrina. Mais do que isso, é uma insensatez, pois não dispomos de meios para fazer essa cirurgia cósmica. A Igreja pagou caro a sua insensatez, tendo de recorrer mais tarde à revelação grega, à Filosofia de Platão (Santo Agostinho) e de Aristóteles (São Tomás de Aquino) para erigir com decalques e empréstimos a sua própria Filosofia.

Por outro lado, a interpenetração dos mundos (espiritual e material) faz parte do sistema, ou seja, da organização universal, que não temos o direito de violar em favor do nosso comodismo, do nosso egoísmo e da nossa cegueira espiritual. Essa pretensão criminosa lembra a teoria do Espiritismo sem espíritos, de Morselli, famoso director da Clínica de Doenças Mentais de Génova, que, obrigado a aceitar a realidade dos factos, escapou do aperto por essa via estratégica. Querem os espíritas actuais seguir a esperteza do genovês ilustre, sem os seus ilustrados argumentos?

A alegação de que os espíritos inferiores que nos perturbam são doutrinados no Além, o que dispensa o nosso trabalho nas sessões mediúnicas, é de estarrecer. Então essas criaturas que passaram anos assistindo e dirigindo sessões mediúnicas, doutrinando espíritos, não se doutrinaram a si mesmas? Não viram os espíritos necessitados a que se dirigiam, não ouviram as suas ameaças e os seus lamentos, passaram pelas actividades doutrinárias como cegos e surdos? Não aprenderam nos compêndios da doutrina que os espíritos apegados à matéria necessitam de esclarecimento – como o sedento necessita da água, como o escafandrista necessita do oxigénio da superfície para respirar no fundo do mar? Não aprenderam, com as pesquisas de Geley, que nas sessões mediúnicas se processa em fluxo contínuo a emissão de ectoplasma que permite aos espíritos sofredores sentirem-se amparados na matéria, como se ainda estivessem encarnados, para poderem compreender as explicações doutrinárias? Não aprenderam que os espíritos superiores descem às sessões mediúnicas para poderem comunicar-se com entidades sofredoras inadaptadas ainda aos planos elevados? Querem negar a realidade dolorosa das obsessões e entregar totalmente os obsidiados ao internamento das clínicas de Morselli? Não sabem que a relação homem-espírito é uma condição permanente dos mundos inferiores como o nosso, em que a maioria dos espíritos desencarnados permanece apegada à Terra e por isso necessita do socorro das sessões mediúnicas? Annie Besant, a admirável autora de A Sabedoria Antiga, discípula e sucessora de Blavatsky na presidência da Sociedade Teosófica Mundial – apesar da repulsa dos teósofos às práticas mediúnicas –, abriu uma excepção no aludido livro, ensinando que, no caso de perturbações de espíritos numa casa, se alguém tiver coragem de falar com a entidade e provar-lhe que já morreu, conseguirá afastá-la. A grande teosofista reconhece a necessidade e a eficácia da doutrinação espírita, e os próprios espíritas querem agora, tardiamente, assumir a atitude teosófica que o próprio Sr. Sinet, teósofo do mais alto prestígio, condenou em seu livro Incidentes da Vida da Sra. Blavatsky. Sinet corrige esta (sua mestra) no tocante à teoria dos cascões astrais e sustenta a legitimidade das manifestações mediúnicas. Tudo isso é ignorância em excesso para representantes de Federações e outras instituições espíritas que visitam grupos e centros, como fiscais de feira, mandando suspender as sessões mediúnicas.

Nas perversões sexuais e sensoriais em geral, bem como nos casos de toxicomania, a doutrinação dos espíritos vampirescos é indispensável ao êxito da terapia. Porque nesses casos estão sempre envolvidos pelo menos o vampiro espiritual e o vampirizado encarnado. Se não se obtiver o desligamento dessas vítimas recíprocas, não se conseguirá a cura. Os que defendem a tese de Morselli no meio espírita, essa tese já há muito superada entre os próprios adversários gratuitos ou interesseiros da doutrina, passaram com armas e bagagens para o adversário. Não querem apenas a amputação da doutrina, pois na verdade querem a morte e a sepultura inglório do Espiritismo, como os teólogos católicos e protestantes da Teologia Radical da Morte de Deus querem enterrar o suposto cadáver de Deus na cova aberta pelo louco de Nietsche, que acabou morrendo louco. Sirva o exemplo do filósofo infeliz para os filosofantes imberbes e desprevenidos do nosso meio espírita. Não há nada mais desastroso para uma doutrina do que abrigar entre seus adeptos criaturas que se deixam levar por cantos de sereias. Precisamos, com urgência, recorrer à táctica de Ulisses, mandando tapar com chumaços de algodão os ouvidos desses ingénuos navegantes de mares perigosos.
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José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Tratamento de Vícios e Perversões 2 de 2, 12º fragmento da obra.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Seres Radiantes do espaço ~


Capítulo II (III)

Sobre a oração, perguntámos às entidades protectoras se as realizadas em conjunto são mais poderosas e eficientes do que a oração isolada. Respon-deram-nos que a oração em conjunto, feita nas igrejas, não tem sempre a coordenação necessária para atingir um fim elevado; frequentemente, ela se perde no Espaço, antes de atingir as esferas divinas. Seria preciso que de cada alma emanasse uma prece tendo um mesmo objectivo: prece para os infelizes, com a intenção de aliviar os seus males; prece para os que têm necessidade de evoluir, etc.

A oração é geralmente marcada por um pequeno sentimento de egoísmo; ela, com frequência, pede a Deus vantagens pessoais. Mesmo quando não atinja o fim visado, a oração contribui para sanear a atmosfera, para melhorar o ambiente dos mundos inferiores.

Quando a prece em conjunto é feita em boas condições, ela reage contra as vibrações materiais. Sob este ponto de vista, as religiões têm sua utilidade. A prece gera a fé que inspira as acções grandiosas e nobres. É a fé esclarecida que nos aproxima de Deus, foco irradiante de vida, de sabedoria e de amor. Mesmo numa escala mais material, diremos: não é a fé que inspira os grandes sacrifícios? É a fé patriótica, que tornou nossos soldados invencíveis, que os ajudou a suportar os sofrimentos, a doença, a morte, e a repelir os ataques de um inimigo mais forte. É a fé num ideal social que inspirou, engrandeceu, em todas épocas, os mártires do direito, da justiça e da liberdade. É a fé na Ciência que, em nossos dias, inspirou os devotamentos como os do Dr. Vaillant |* e tantos outros, vítimas de seu empenho para administrar forças terríveis.

A vontade sustentada pela fé é, portanto, a melhor força motriz para dirigir as forças psíquicas do ser e projectá-las para um objectivo sublime. O homem deve, enfim, compreender que todas as forças do Universo, tanto físicas como morais, nele se reflectem; sua vontade pode comandar umas e outras que se manifestam na sua consciência.

Aprender a harmonizá-las, trabalhar para desenvolvê-las em vidas sucessivas, tal é a lei de seu destino. Sob esse ponto de vista, lembremos que temos uma obra admirável para cumprir. Ela consiste em criar em nós uma personalidade sempre mais radiante e, para isso, temos o tempo sem limites, o caminho sem fim e a vida eterna na acção perpétua.

Porém, o que alguns não podem compreender pelas faculdades intelectuais, outros podem sentir pelo coração, pela necessidade de expansão e do amor que neles é inato, pois, a verdade, acabamos de dizê-lo, está ao alcance dos simples e dos puros; de todos aqueles que, no recolhimento e no silêncio, ao abrigo das tempestades, do mundo, do conflito das paixões e dos interesses, sabem interrogar as profundezas da consciência e entrar em relação com o mundo superior, foco de toda luz, de toda sabedoria, fonte de todas as grandes revelações.

Cada estrela que brilha no céu nos ensina uma lição; cada túmulo que se cava na terra fria nos dá um aviso. A existência terrestre passa como uma sombra, mas a vida celeste é infinita. Entretanto, nossas vidas humanas, por mais que sejam curtas, podem ser fecundas para o nosso progresso; apesar de seu carácter precário, elas formam os materiais com o auxílio dos quais se edificam os nossos destinos; elas são como pedras que compõem o imenso edifício do futuro da alma. Esforcemo-nos, portanto, por polir essas pedras, talhá-las e esculturá-las, para com elas construir um monumento de linhas puras, de formas grandiosas e harmoniosas.
/…

|* Dr. Ch. Vaillant, radiólogo de Paris, nascido em 1872; segundo a Enciclopédia Lello, foi vítima dos raios X.



Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo II, 3 de 3, 6º fragmento da obra.
(imagem: Ascensão de Cristo, pintura de Salvador Dali, 1958)

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Deus na Natureza ~


Introdução (IV)

   As verdades significativas da Astronomia, da Física e da Química, como da Fisiologia, são, em si mesmas, as defensoras intrépidas da realidade essencial do mundo.

   Por mais difícil que à primeira vista pareça a refutação científica do Materialismo contemporâneo, nossa posição é belíssima, desde que nos colocamos no mesmo plano dos nossos adversários.

   E nesta guerra eminentemente pacífica, estamos, de antemão, seguros da vitória.

   Basta-nos, com efeito, de vez que o inimigo está em falsa posição, descobrir a fraqueza dessa posição e desequilibrá-lo.

   O método é simples e infalível, tão seguro que não o escondemos: deslocado o centro de gravidade, sabe qualquer mecânico que o indivíduo colhido de surpresa cai, imediatamente, a procurá-lo no solo. Eis o quadro que se nos vai deparar. Críticos houve que pretenderam ver em nosso método laivos de sorriso e um tanto de ironia.

   Não podemos ser juiz em causa própria, mas, ainda que a acusação tivesse fundamento, não nos caberia culpa alguma e sim, e só, aos acontecimentos, nos quais o grotesco teria momentaneamente empanado o sério, graças aos adversários tantas vezes arrastados às consequências mais curiosas.

   Referindo-nos à forma, devemos pedir ao leitor acredite, que, se por acaso tratarmos mais asperamente um que outro adversário, não é a nós que a falta deve ser imputada, visto não utilizarmos esses recursos extremos senão nos casos (muito frequentes talvez para eles) em que os adversários se obstinam em não se deixarem vencer. Somos, então, bem a nosso pesar, levados a feri-los com uma táctica mais rude, forçando-os a convir, pelos argumentos irresistíveis do mais forte, que são eles de facto os mais fracos nesta guerra de princípios.

   De resto, não há necessidade de acrescentar que são sempre esses princípios que atacamos, e nunca a personalidade dos que os advogam. Assim, considerando-se a índole mesma da questão, excluídas ficam as pessoas do campo de batalha.

   Além disso, em consciência, não acreditamos pratiquem os adversários o materialismo absoluto – o dos seus interesses e das paixões egoístas e, portanto, não temos outra intenção que discutir as suas teorias.

   Dividiremos nossa argumentação geral em cinco partes, no intuito de demonstrar em cada uma a proposição diametralmente contrária à sustentada pelos eminentes advogados do ateísmo.

   Assim, na primeira, lidaremos por estabelecer, preliminarmente, pelo movimento dos astros e depois pela observação do mundo inorgânico terrestre, que a Força não é atributo da Matéria, mas, ao contrário, a sua soberana, a sua causa directora.

   Na segunda parte verificaremos, pelo estudo fisiológico dos seres, que a vida não é propriedade fortuita das moléculas que a compõem e sim uma força especial a governar átomos, conforme o tipo das espécies. O estudo da origem e progressão das espécies também aproveitará à nossa doutrina.

   Na terceira parte observaremos, examinando as relações do pensamento com o cérebro, que há no homem algo mais que a matéria e que as faculdades intelectuais se distinguem das afinidades químicas. A personalidade da alma afirmará o seu carácter e a sua independência.

   A quarta evidenciará na Natureza um plano, uma destinação geral e particular, um sistema de combinações inteligentes, no seio das quais o olhar desprevenido não pode deixar de admirar, mediante sadia concepção das causas finais, o poder, a sabedoria e a previdência que coordenam o Universo.

   A quinta parte, enfim, como centro de convergência das vias precedentes, nos colocará na posição científica mais favorável para julgar simultaneamente a misteriosa grandeza do Ente Supremo e a cegueira incontestado dos que fecham os olhos para se convencerem de que Ele não existe.

   O verdadeiro título desta obra deveria ser: – “A contemplação de Deus através da Natureza”.

   Há alguns anos que se anuncia, como estando no prelo, este trabalho e nós lhe temos modificado várias vezes o título, que, de início era puramente científico. (Da Força, no Universo.)

   Acabamos, finalmente, por nos fixarmos neste. Sem dúvida, um título não tem essencial importância para que o autor se explique tão formalmente a respeito. Mas, no caso vertente, julgamos útil declarar desde logo que todos quantos vissem nas quatro palavras da capa a expressão de uma doutrina, errariam completamente. Aqui não há panteísmo, nem dogma. Nosso objectivo é expor uma filosofia positiva das ciências, que, em si mesma comporta uma refutação não teológica do materialismo contemporâneo. É, talvez, imprudentíssima ousadia o tentar assim uma senda isolada, entre os dois extremos, que sempre aliciaram poderosos sufrágios; mas, de vez que nos sentimos impelidos e sustentados por uma convicção particular, tanto quanto por ardente amor a um novo aspecto da verdade, podemos, porventura, resistir ao impulso interior que nos inspira?

   Ao leitor compete examinar a obra e decidir se alguma ilusão nos seduz e se nos oculta, sob o prestígio da verdade.

   Não podemos, todavia, eximir-nos de confessar que, desde que lemos em Augusto Comte que a Ciência aposentara o Pai da Natureza e acabava de “reconduzir Deus às suas fronteiras, agradecendo os seus serviços provisórios” – sentimo-nos algo ofendidos com a vaidade do deus-Comte e nos deixamos empolgar pelo prazer de discutir o fundo científico de semelhante pretensão.

   Verificamos, então, que o ateísmo científico é um erro e que a ilusão religiosa é outro erro. (De passagem digamos, o Cristianismo nos parece ainda esotérico.) Nossos actuais conhecimentos da Natureza e da vida nos representaram a ideia de Deus sob um prisma cujo valor a teodiceia, como o ateísmo, não podem menosprezar.

   Aos nossos olhos, o homem que nega simplesmente a existência de Deus e o que definiu esse Desconhecido e lhe debita em conta a explicação embaraçante, são ambos criaturas ingénuas, equivalentes na errónea.

   Mas também não compete nos engajarmos aqui assim no método antinómico e, sobretudo, não queremos revestir-nos de aparências misteriosas.

   Entremos, portanto, sem mais detença no âmago do assunto, declarando que nos esforçamos por explanar com a mais sincera independência o que acreditamos ser a verdade.

   Possam estes estudos ajudar a escalada na trilha do conhecimento, a quantos tomam a sério a sua passagem pela Terra e o progresso da Humanidade.
/…


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 4 de 4, 4º fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Diálogos de Kardec ~


A TIARA ESPIRITUAL

(Em casa da Sra. de Cardone, 6 de maio de 1857)

Eu tivera ocasião de conhecer a Sra. de Cardone nas sessões do Sr. Roustan. Alguém me disse, creio que foi o Sr. Carlotti, que ela possuía notável talento para ler nas mãos. Nunca acreditei que as linhas da mão tivessem uma significação qualquer, mas sempre acreditei que, para certas pessoas dotadas de uma espécie de segunda vista, podia isso constituir meio de estabelecerem uma relação que lhes permitisse, como aos sonâmbulos, dizer algumas vezes coisas verdadeiras. Os sinais da mão nada mais são, nesse caso, do que um pretexto, um meio de fixar a atenção, de desenvolver a lucidez, como o são as cartas, a borra de café, os espelhos ditos mágicos, para os indivíduos que dispõem dessa faculdade. A experiência me confirmou de novo a justeza dessa opinião. Seja como for, aquela senhora, tendo-me convidado a ir visitá-la, acedi ao seu convite e eis aqui um resumo do que ela me disse:

“Nascestes com grande abundância de recursos e de meios intelectuais... extraordinária força de raciocínio... Formou-se o vosso gosto; governado pela cabeça, moderais a inspiração pelo raciocínio; subordinais o instinto, a paixão, a intuição ao método, à teoria. Tivestes sempre pendor para as ciências morais... Amor da verdade absoluta... Amor da Arte definida.

“Tem número, medida e cadência o vosso estilo; mas, por vezes, trocaríeis um pouco da sua precisão por uma certa poesia.

“Como filósofo idealista, estivestes sujeito à opinião de outrem; como filósofo crente, experimentais agora a necessidade de formar seita.

“Benevolência judiciosa; necessidade imperiosa de aliviar, de socorrer, de consolar; necessidade de independência.

“Muito demoradamente vos corrigis da súbita impulsão do vosso humor.

“Éreis singularmente apto para a missão que vos está confiada, porquanto o vosso feitio é mais para vos tornardes o centro de imensos desenvolvimentos, do que capaz de trabalhos insulados... Vossos olhos têm o olhar do pensamento.

“Vejo aqui o sinal da tiara espiritual... É bem pronunciado... Vede.” (Olhei e nada vi de particular.)

Que entendeis, perguntei-lhe, por tiara espiritual? Querereis dizer que serei papa? Se tal houvesse de acontecer, não seria decerto nesta existência.

Resposta — Deveis notar que eu disse tiara espiritual, o que significa: autoridade moral religiosa e não soberania efectiva.”

Reproduzi pura e simplesmente as palavras daquela senhora, por ela mesma transcritas. Não me compete julgar se são exactas sobre todos os pontos. Algumas reconheço-as verdadeiras, porque estão de acordo com o meu carácter e com as disposições do meu espírito.

Há, porém, uma passagem evidentemente errónea, a em que ela diz, a propósito do meu estilo, que eu às vezes trocaria algo da minha precisão por um pouco de poesia. Nenhum instinto poético existe em mim; o que procuro, acima de tudo, o que me agrada, o que aprecio nos outros é a clareza, a limpidez, a precisão e, longe de sacrificar esta à poesia, o que se me poderia censurar fora o sacrificar o sentimento poético à sequidão da forma positiva. Preferi sempre o que fala à inteligência ao que apenas fala à imaginação.

Quanto à tiara espiritual, O Livro dos Espírito acabava de aparecer; a Doutrina estava em seus primórdios e não podia ainda prejulgar dos resultados que ulteriormente daria. Nenhuma importância, pois liguei a essa revelação e me limitei a anotá-la a título informativo.

No ano seguinte a Sra. de Cardone deixou Paris e não tornei a vê-la, senão oito anos depois, em 1866, quando as coisas já tinham caminhado bastante. Disse-me ela:

Lembra-se da minha predição acerca da tiara espiritual? Aí a tem realizada. — Como realizada? Que eu o saiba, não me acho no trono de S. Pedro. — Não, decerto; mas, também, não foi isso o que lhe anunciei. O senhor não é, de facto, o chefe da Doutrina, reconhecido pelos espíritas do mundo inteiro? Não são os seus escritos que fazem lei? Não se contam por milhões os seus correligionários? Em matéria de Espiritismo, haverá alguém cujo nome tenha mais autoridade do que o seu? Os títulos de sumo-sacerdote, de pontífice, mesmo de papa, não lhe são dados espontaneamente?

São-no, sobretudo, pelos seus adversários e por ironia, bem o sei, mas nem por isso o facto deixa de indicar de que género é a influência que eles lhe reconhecem, porque pressentem qual o papel que lhe cabe. Assim, esses títulos lhe ficarão.

Em suma, o senhor conquistou, sem a buscar, uma posição moral que ninguém lhe pode tirar, dado que, sejam quais forem os trabalhos que se elaborem depois dos seus, ou concomitantemente com eles, o senhor será sempre o proclamado fundador da Doutrina. Logo, em realidade, está com a tiara espiritual, isto é, com a supremacia moral. Reconheça, portanto, que eu disse a verdade.

Acredita agora, mais um pouco, nos sinais das mãos?

— Menos que nunca e estou convencido de que, se a senhora viu alguma coisa, não foi na minha mão, mas no seu próprio espírito e vou prová-lo.

Admito que nas mãos, como nos pés, nos braços e nas outras partes do corpo, existem certos sinais fisiognomónicos; mas, cada órgão apresenta sinais particulares, conforme o uso a que é sujeito e conforme as suas relações com o pensamento. Os sinais das mãos não podem ser os mesmos que os dos pés, dos braços, da boca, dos olhos, etc.

Quanto ao pregueado da palma das mãos, a maior ou menor acentuação que apresentam resulta da natureza da pele e da maior ou menor quantidade de tecido celular. Como essas partes em nenhuma correlação fisiológica estão com os órgãos das faculdades intelectuais e morais, não podem ser a expressão dessas faculdades. Mesmo admitindo-se que haja essa correlação, elas poderiam fornecer indicações sobre o estado actual do indivíduo, mas não poderiam constituir sinais de presságios de coisas futuras, nem de acontecimentos passados e independentes da vontade do mesmo indivíduo. Na primeira hipótese, eu, a rigor, compreenderia que, com o auxílio de tais lineamentos, se pudesse dizer que uma pessoa possui esta ou aquela aptidão, este ou aquele pendor; o mais vulgar bom-senso, porém, repeliria a ideia de que se possa ver ali se ela foi casada ou não, quantas vezes e o número de filhos que teve, se é viúva ou não, e outras coisas semelhantes, como o pretende a maioria dos quiromantes.

Entre as linhas das mãos, há uma que toda gente conhece e que representa bem um M. Se é bastante acentuada, pressagia, dizem, uma vida infeliz (malheureuse); porém, a palavra malheur (infelicidade) é francesa e ninguém se lembra de que, nas outras línguas, a palavra que a essa corresponde não começa pela mesma letra, donde se segue que a linha em questão deveria apresentar formas diferentes, de acordo com as línguas dos povos.

Quanto à tiara espiritual é, evidentemente, uma coisa especial, excepcional e, até certo ponto, individual e eu estou convencido de que a senhora não encontrou essa expressão no vocabulário de nenhum tratado de quiromancia. Como então lhe veio ela à mente? Pela intuição, pela inspiração, por essa espécie de presciência peculiar à dupla vista de que muitas pessoas são dotadas sem o suspeitarem. Sua atenção estava concentrada nos lineamentos da mão, a senhora fixou o pensamento num sinal em que outra pessoa teria visto coisa muito diversa, ou a que a senhora mesmo atribuiria significação diferente, se se tratasse de outro indivíduo.
/…



ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, A minha Primeira Iniciação no Espiritismo, A TIARA ESPIRITUAL, 3º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 6 de janeiro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Girólamo, colhido pelo encontro com a consciência, tentava arrebatar as algemas da magia poderosa que o imobilizava. Impossibilitado de raciocinar, constatava pela evidência a realidade do cometimento, não obstante fosse capaz de entender o mecanismo pelo qual a vida respondia com incomparável vigor, desenovelando a trama dos crimes, os mistérios da morte. No paroxismo que se alongava sob o clangor do desespero de que se via possuído – mais por encontrar-se descoberto do que pelo acoimar da consciência necessitada de despertamento –, tentava coordenar o raciocínio, que lhe parecia tardo, de modo a entender como o bruxo se pudera inteirar dos desfechos ocorridos no Solar di Bicci. Imerso na meditação, atarantado pelo tumulto da verdade que o esbordava, inevitável experimentou, de súbito, que a aragem asfixiante da sala fora renovada por mãos intangíveis, e uma brisa refrescante soprou, confortadora.

   O hierofanta caído ergueu-se suavemente, e com o semblante transmudado, no qual uma serenidade envolvente lhe aformoseava as linhas, falou transfigurado. A musicalidade da voz penetrava a acústica do moço, acalmando-o, sensibilizando-o no recôndito do ser.

   Donde vinha aquela mágica modulação? Que estranho sortilégio possuía o grego para apoderar-se, assim, dos segredos do coração encarcerado no ódio, que sucumbiu na avalancha de mil misérias e morrera na frieza da indiferença pelos alheios destinos? – interrogava-se o moço. – Não pôde continuar a reflexão, convocado à realidade do momento pela presença espiritual que o visitava.

   – Desperta para Deus, Girólamo, – falou a entidade, comovida. – A tua surpresa reflecte a ignorância do nosso século em torno da problemática do viver. Desencarcerada do corpo, não sucumbi, quando ele foi embutido na capela do nosso solar. Encontrei a vida e não o rio do esquecimento, transposto o túmulo. Despertei como milhões de seres colhidos pelo amanhecer da imortalidade. As cogitações religiosas do passado, que traíam as revelações de Nosso Pai, não me impediram defrontar a aurora da Eternidade, da qual ninguém se pode furtar, mergulhando no nada, ou sucumbindo sob as forças destruidoras do mal. Sou a tua tia, apiedada de ti e daqueles a quem feriste fundamente, traindo os elevados deveres cristãos e humanos que volta para falar-te. Agora marchas, revel, sob o peso da vindicta, vindo a experimentar, logo mais, o ultraje da própria consciência, açodada pelos remorsos irreversíveis, que poderão conduzir-te a funestas consequências…

   “Antes que consumasse os hediondos fratricídios – prosseguiu a mensageira, com modulação emocionada –, auscultando-te o espírito em torvelinho, falei-te em compulsão, num transe espontâneo, quando estavas prestes a desferir os golpes da abjecção criminosa. Não me quiseste ouvir, embora o constrangimento que te impus, fazendo-me escutar. Não me atendeste, ao sugerir-te a fuga… Informei-te que tudo passaria às tuas mãos, mais tarde, pelo impositivo da Sabedoria Divina. Rechaçaste meus alvitres e penetraste no paul da monstruosidade sem limite. Agora, recebes em troca do ódio semeado a perseguição que começa, e não sei quando terminará, porquanto nem a morte consegue, às vezes, parar o desaguar da animosidade. Se volto ao teu coração ingrato e insensível, recordando os filhinhos e Lúcia, que trucidaste na fúria enganosa da busca da segurança e da fortuna, ou evocando Assunta, que te seguiu a hipnose abrasadora do desvario sexual, igualmente fulminada pelo raio da tua loucura, faço-o por nímio sentimento de compaixão por ti e por aquele que, chamado pela tua ferocidade à arena do revide, afunda-se irremediavelmente nas trevas, mas a quem tanto amo e não merece ter somada, a desgraça que fere, a miséria do crime que planeja perpetrar contra tua infeliz pessoa. Refiro-me a Giovanni, o meu amado…”

   Aquela voz dorida retalhava a alma do criminoso, chocado ante o espectáculo da imortalidade envolvente, indestrutível. Incapaz de reagir pelos métodos da ética cristã, deixava-se avassalar por dúvidas atrozes, conquanto a vera realidade dos factos.

   – Recua nos teus intentos infeliz e refaz o caminho, – prosseguiu a Senhora duquesa. – Jesus não deseja a morte do pecador, mas o seu arrependimento, a sua salvação. Há sempre um caminho para quem deseja buscar a verdade, renovar-se para a vida. Giovanni te afirma que nada o deterá, e que é tarde para ti. Eu, porém, te digo: é tempo ainda de refazeres ao menos parte dos danos causados às vidas ceifadas, redimindo-te através de vidas que possas amparar e resguardar. As tuas posses, arbitrariamente tuas, multiplica-as na sementeira da esperança, nas terras baixas que a maremma |* toscana empresta, aniquilando vidas. Drena o solo e recupera-o para os esfaimados que te fitam o poder, vencidos por inveja e revolta inominável. Socorre a velhice e atende a orfandade, tu que és o autor de desmandos e lágrimas. Transforma as moedas do crime em pães da esperança e favorece a noite do erro com o sol da misericórdia, em benefício dos que falecem à míngua de pão e socorro. Medita nas lições misericordiosas do Crucificado e escuta-Lhe o brado de perdão… Ele, que perdoou os que O maceravam numa cruz ignóbil, a ti também perdoará a suprema alienação, facultando-te o recomeço em estância inicial de renovação interior. Beatriz ajudar-te-á na lavoura do bem em começo. É jovem e te ama. Entretece com ela a coroa da misericórdia e condu-la ao altar da fraternidade, tu que da vida somente conheces o chafurdar nas paixões venenosas. Velarei por ti nos intentos primeiros da tua carreira de salvação e, sendo-me permitido, te inspirarei nos propósitos superiores da redenção. Do ódio renascerá o amor, sobre os escombros das ilusões abandonadas, e a floração da fraternidade produzirá os frutos do perdão daqueles que foram lesados pela tua incúria.

   Houve uma grande pausa. A sala enchia-se da noite em triunfo sobre o dia, em declínio ao longe. As vozes da Natureza murmuravam lá fora. Após o silêncio angustiante, o espírito Ângela aduziu:

   – Na noite de tempestade, enfrentaste a natureza em fúria e a tormenta fez que ninguém ouvisse os débeis gemidos das tuas vítimas. No dia de primavera, roubaste o alento de Assunta, enquanto as flores aromatizavam o ar. Neste entardecer de verão, eu te suplico despertamento…

   “Arrepende-te, Girólamo! Deixa que penetre a luz do amor. Por mais longos te sejam os dias –, e eu duvido que neste estado os tenhas muito promissores –, chegará o momento da partida, do ajuste de contas com a Divina Consciência. Ninguém consegue evadir-se à responsabilidade dos actos e horas soam no relógio da vida que conclamam o distraído à visão da realidade, despertando-o, em definitivo, para o encontro com a razão, mesmo quando obstinado na invigilância. Eu te suplico, meu filho: salva-te, salvando aqueles que ora te seguem peçonhentos e vingativos! Busca Jesus e ora. Estiveste hoje ao lado do sacerdote, levando as mãos cheias de moedas e o coração vazio de paz. Retornaste de lá com as mãos vazias de bens e com o coração cheio de ilusão. A bênção dos homens vale a vacuidade deles mesmos. Só o amparo da consciência recta no dever é bênção legítima para a paz de cada um. Não te mancomunes mais com a insanidade. Pára, pára enquanto o tempo urge a teu favor, ou, sem dúvida, será tarde demais para ti… para muitos de nós. Abençoe-te o Senhor, Girólamo!”

   Pela face descarnada e nívea do ancião as lágrimas em pérolas escorriam contínuas, abundantes.

   Girólamo sentiu-se destravar da magia da hora, ergueu-se de um salto, qual já se exasperava com a demora, pedindo-lhe que partissem a toda a brida.

   Pelo caminho, falando com demonstrações insopitáveis de cólera, o moço senense relatou destraviado, a Francesco:

   – Esse miserável é um bruxo que merece a misericórdia da fogueira. Que faz a Santa Inquisição que não alcança esses intermediários de Lúcifer? Imagina, Francesco, que o demónio tomou as características dos meus tios, que me falavam pela sua boca, ameaçando-me a existência com propósitos de destruir-me a vida!

   Gargalhando nervosamente, fixando-se ao engodo com o qual se comprazia, na alucinação de que se fazia possuído, alvitrou ao amigo:

   – Antes da Porta Ovile um bom chianti me recobrará a calma, dando-me condições para o repasto e a noite sonhadora que me espera: esta é a primeira noite de que posso dispor em Siena, nos últimos meses, e não irei perdê-la por coisa nenhuma do mundo.

   – All’inferno i morti! – exclamou com feição de louco.

   – Viva il placere e l’órgia! All’inferno i morti! |** – retrucou Francesco.

   No alto, as estrelas apareciam volumosas e brilhantes. O céu transparente, com revérberos da claridade do poente, lentamente prateava-se com a chegada do luar tranquilizante, qual poema de luz sobre os campos crestados e os ciprestes balouçantes, abençoando a noite, em mensagem de esperança e paz.
/…

|* Maremmas (toscana) – paludismo, febres…
|** Viva o prazer e a orgia! Ao inferno os mortos!



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL 5 de 5, 21º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O Espiritismo na Arte~


Parte IV

(A França, sua missão; A alma céltica)

|Abril de 1922|

O talento da França é feito de equilíbrio e de harmonia. Apesar de certas faltas no passado, pode-se dizer que ele muitas vezes serviu de mediador entre as escolas mais diversas, entre os sistemas mais opostos. Ainda hoje, na ordem política, por exemplo, a França se mantém entre a reacção e a anarquia. Frequentemente foi assim, no decorrer da sua história, nos domínios da arte e do pensamento.

Vimos que sua língua, que é uma das expressões do seu talento, apresenta as qualidades de precisão e de flexibilidade que fazem dela um maravilhoso agente de difusão e de propaganda. Ela sabe emprestar às ideias, ao mesmo tempo, a força e a graça, e é por aí que ela pode contribuir largamente para iniciar o mundo no conhecimento das leis superiores.

A literatura e a poesia francesas, melhor que todas as outras, souberam reproduzir todas as nuançes do pensamento e do sentimento; a ternura, a energia, o encanto, a doçura infinita do ideal, em uma palavra, todos os sonhos sobre-humanos da arte e da beleza.

O luminoso talento da França tem por papel, principalmente, reunir e fundir, numa média equilibrada, os dois talentos diferentes, o do Sul e o do Norte, da raça latina e das raças setentrionais. É, talvez, ao encontro desses elementos opostos, ao fluxo e refluxo dessas correntes diferentes, que se deve a mobilidade do seu espírito e a instabilidade por vezes enfadonha de seus desígnios; porém, sempre após os períodos de crise, em que o equilíbrio nela é alterado, o espírito nacional retorna sua actividade e seu progresso.

Sua missão, portanto, parece ser a de fornecer aos outros povos, de espírito mais lento, as indicações, as directrizes das quais eles tiram uma aplicação prática e fecunda. É nesse sentido que a França é um agente maravilhoso de progresso e de evolução humana, por seu cuidado com a verdade e com a luz, e pela beleza das formas com as quais ela se compraz em revesti-las.

São essas qualidades que lhe darão um papel preponderante na difusão do Espiritismo filosófico e moral, enquanto que os países anglo-saxões estão interessados em representá-lo, principalmente sob seu aspecto científico e experimental.

Após suas horas de tentativas e de obscuridade, o génio da França, que não é outro senão a alma sempre viva e imortal da Gália, ergue-se e, com um vigoroso esforço, liberta-se dos atoleiros terrestres e lança-se em direcção ao céu, para ali descobrir novos horizontes, novas perspectivas sobre o futuro e mostrá-las como objectivo à humanidade em marcha.

Para todos aqueles que sabem estudar e compreender o génio da nossa raça, sob o véu do cepticismo que por vezes a recobre, a alma céltica reaparece e, nas horas solenes, são seus impulsos que determinam as resoluções viris, os actos decisivos.

É ela que inspira Joana d’Arc e por suas mãos livra a França do jugo dos ingleses; ainda é ela que provoca essa poderosa explosão espiritualista que, em época revolucionária, leva a todos a noção essencial de liberdade, assegurando assim o triunfo da alma moderna sobre as teorias deprimentes do determinismo e do fatalismo. É sempre ela que, nos dias sombrios de 1914, revela todas as forças vivas da nação e a conduz, heróica e sublime, diante do despotismo germânico e do militarismo teutónico |*; mais recentemente ainda, a alma céltica coloca a nação como um dique em oposição à onda vermelha do bolchevismo |**.

A França tem maiores deveres que as outras nações, porque recebeu maiores dons, mais brilhantes qualidades. Assim, suas responsabilidades são mais pesadas e mais extensas. Hoje, uma tarefa, mais importante do que todas as outras, desenha-se para ela no mundo inteiro. Trata-se de iniciar os homens nas belezas de um futuro mais vasto, mais rico que aquele que as concepções filosóficas e religiosas puderam entrever. Trata-se de guiar a ascensão humana em direcção ao grau mais elevado do pensamento, onde se acendem os clarões de um novo dia, a aurora de uma civilização mais nobre e mais digna, livre dos flagelos que, até aqui, entravaram o caminho áspero e doloroso da humanidade.

As outras nações têm, cada uma, a sua tarefa importante, mas a França ultrapassa a todas pela variedade de suas aptidões e de suas actividades. É por isso que o mundo inteiro tem os olhos fixos sobre ela, esperando o sinal que traçará sua nova evolução.

Ó alma viva da França, desliga-te das pesadas influências materiais que ainda te oprimem, eleva-te até esse nobre ideal que é tua missão adquirir e propagar no mundo! Somente quando a nova revelação for conhecida por todos os povos, quando ela tiver dado à sua expressão a forma magnífica do teu talento, é que os homens compreenderão seu grande destino, bem como os deveres e os encargos que ele lhes impõe, e a justiça e a paz enfim reinarão sobre a Terra regenerada. E por esse meio teu papel aparecerá aos olhos de todos. Tu serás respeitada pelas gerações, e a tua glória se iluminará com um brilho que nada poderá mais impedir!
/…

|* Teutónico: relativo aos teutões, povo antigo da Germânia que habitava às margens do mar Báltico; relativo à Alemanha e aos alemães. (N.T., segundo o D.K.L.)
|** Bolchevismo: doutrina da ala esquerda maioritária do Partido Operário Social-Democrata Russo; o mesmo que Comunismo. (N.T., segundo o D.K.L.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – A França, sua missão; A alma céltica, 15º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)