Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Deus na Natureza ~


Introdução (IV)

   As verdades significativas da Astronomia, da Física e da Química, como da Fisiologia, são, em si mesmas, as defensoras intrépidas da realidade essencial do mundo.

   Por mais difícil que à primeira vista pareça a refutação científica do Materialismo contemporâneo, nossa posição é belíssima, desde que nos colocamos no mesmo plano dos nossos adversários.

   E nesta guerra eminentemente pacífica, estamos, de antemão, seguros da vitória.

   Basta-nos, com efeito, de vez que o inimigo está em falsa posição, descobrir a fraqueza dessa posição e desequilibrá-lo.

   O método é simples e infalível, tão seguro que não o escondemos: deslocado o centro de gravidade, sabe qualquer mecânico que o indivíduo colhido de surpresa cai, imediatamente, a procurá-lo no solo. Eis o quadro que se nos vai deparar. Críticos houve que pretenderam ver em nosso método laivos de sorriso e um tanto de ironia.

   Não podemos ser juiz em causa própria, mas, ainda que a acusação tivesse fundamento, não nos caberia culpa alguma e sim, e só, aos acontecimentos, nos quais o grotesco teria momentaneamente empanado o sério, graças aos adversários tantas vezes arrastados às consequências mais curiosas.

   Referindo-nos à forma, devemos pedir ao leitor acredite, que, se por acaso tratarmos mais asperamente um que outro adversário, não é a nós que a falta deve ser imputada, visto não utilizarmos esses recursos extremos senão nos casos (muito frequentes talvez para eles) em que os adversários se obstinam em não se deixarem vencer. Somos, então, bem a nosso pesar, levados a feri-los com uma táctica mais rude, forçando-os a convir, pelos argumentos irresistíveis do mais forte, que são eles de facto os mais fracos nesta guerra de princípios.

   De resto, não há necessidade de acrescentar que são sempre esses princípios que atacamos, e nunca a personalidade dos que os advogam. Assim, considerando-se a índole mesma da questão, excluídas ficam as pessoas do campo de batalha.

   Além disso, em consciência, não acreditamos pratiquem os adversários o materialismo absoluto – o dos seus interesses e das paixões egoístas e, portanto, não temos outra intenção que discutir as suas teorias.

   Dividiremos nossa argumentação geral em cinco partes, no intuito de demonstrar em cada uma a proposição diametralmente contrária à sustentada pelos eminentes advogados do ateísmo.

   Assim, na primeira, lidaremos por estabelecer, preliminarmente, pelo movimento dos astros e depois pela observação do mundo inorgânico terrestre, que a Força não é atributo da Matéria, mas, ao contrário, a sua soberana, a sua causa directora.

   Na segunda parte verificaremos, pelo estudo fisiológico dos seres, que a vida não é propriedade fortuita das moléculas que a compõem e sim uma força especial a governar átomos, conforme o tipo das espécies. O estudo da origem e progressão das espécies também aproveitará à nossa doutrina.

   Na terceira parte observaremos, examinando as relações do pensamento com o cérebro, que há no homem algo mais que a matéria e que as faculdades intelectuais se distinguem das afinidades químicas. A personalidade da alma afirmará o seu carácter e a sua independência.

   A quarta evidenciará na Natureza um plano, uma destinação geral e particular, um sistema de combinações inteligentes, no seio das quais o olhar desprevenido não pode deixar de admirar, mediante sadia concepção das causas finais, o poder, a sabedoria e a previdência que coordenam o Universo.

   A quinta parte, enfim, como centro de convergência das vias precedentes, nos colocará na posição científica mais favorável para julgar simultaneamente a misteriosa grandeza do Ente Supremo e a cegueira incontestado dos que fecham os olhos para se convencerem de que Ele não existe.

   O verdadeiro título desta obra deveria ser: – “A contemplação de Deus através da Natureza”.

   Há alguns anos que se anuncia, como estando no prelo, este trabalho e nós lhe temos modificado várias vezes o título, que, de início era puramente científico. (Da Força, no Universo.)

   Acabamos, finalmente, por nos fixarmos neste. Sem dúvida, um título não tem essencial importância para que o autor se explique tão formalmente a respeito. Mas, no caso vertente, julgamos útil declarar desde logo que todos quantos vissem nas quatro palavras da capa a expressão de uma doutrina, errariam completamente. Aqui não há panteísmo, nem dogma. Nosso objectivo é expor uma filosofia positiva das ciências, que, em si mesma comporta uma refutação não teológica do materialismo contemporâneo. É, talvez, imprudentíssima ousadia o tentar assim uma senda isolada, entre os dois extremos, que sempre aliciaram poderosos sufrágios; mas, de vez que nos sentimos impelidos e sustentados por uma convicção particular, tanto quanto por ardente amor a um novo aspecto da verdade, podemos, porventura, resistir ao impulso interior que nos inspira?

   Ao leitor compete examinar a obra e decidir se alguma ilusão nos seduz e se nos oculta, sob o prestígio da verdade.

   Não podemos, todavia, eximir-nos de confessar que, desde que lemos em Augusto Comte que a Ciência aposentara o Pai da Natureza e acabava de “reconduzir Deus às suas fronteiras, agradecendo os seus serviços provisórios” – sentimo-nos algo ofendidos com a vaidade do deus-Comte e nos deixamos empolgar pelo prazer de discutir o fundo científico de semelhante pretensão.

   Verificamos, então, que o ateísmo científico é um erro e que a ilusão religiosa é outro erro. (De passagem digamos, o Cristianismo nos parece ainda esotérico.) Nossos actuais conhecimentos da Natureza e da vida nos representaram a ideia de Deus sob um prisma cujo valor a teodiceia, como o ateísmo, não podem menosprezar.

   Aos nossos olhos, o homem que nega simplesmente a existência de Deus e o que definiu esse Desconhecido e lhe debita em conta a explicação embaraçante, são ambos criaturas ingénuas, equivalentes na errónea.

   Mas também não compete nos engajarmos aqui assim no método antinómico e, sobretudo, não queremos revestir-nos de aparências misteriosas.

   Entremos, portanto, sem mais detença no âmago do assunto, declarando que nos esforçamos por explanar com a mais sincera independência o que acreditamos ser a verdade.

   Possam estes estudos ajudar a escalada na trilha do conhecimento, a quantos tomam a sério a sua passagem pela Terra e o progresso da Humanidade.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Introdução 4 de 4, 4º fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

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