Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 6 de janeiro de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   Girólamo, colhido pelo encontro com a consciência, tentava arrebatar as algemas da magia poderosa que o imobilizava. Impossibilitado de raciocinar, constatava pela evidência a realidade do cometimento, não obstante fosse capaz de entender o mecanismo pelo qual a vida respondia com incomparável vigor, desenovelando a trama dos crimes, os mistérios da morte. No paroxismo que se alongava sob o clangor do desespero de que se via possuído – mais por encontrar-se descoberto do que pelo acoimar da consciência necessitada de despertamento –, tentava coordenar o raciocínio, que lhe parecia tardo, de modo a entender como o bruxo se pudera inteirar dos desfechos ocorridos no Solar di Bicci. Imerso na meditação, atarantado pelo tumulto da verdade que o esbordava, inevitável experimentou, de súbito, que a aragem asfixiante da sala fora renovada por mãos intangíveis, e uma brisa refrescante soprou, confortadora.

   O hierofanta caído ergueu-se suavemente, e com o semblante transmudado, no qual uma serenidade envolvente lhe aformoseava as linhas, falou transfigurado. A musicalidade da voz penetrava a acústica do moço, acalmando-o, sensibilizando-o no recôndito do ser.

   Donde vinha aquela mágica modulação? Que estranho sortilégio possuía o grego para apoderar-se, assim, dos segredos do coração encarcerado no ódio, que sucumbiu na avalancha de mil misérias e morrera na frieza da indiferença pelos alheios destinos? – interrogava-se o moço. – Não pôde continuar a reflexão, convocado à realidade do momento pela presença espiritual que o visitava.

   – Desperta para Deus, Girólamo, – falou a entidade, comovida. – A tua surpresa reflecte a ignorância do nosso século em torno da problemática do viver. Desencarcerada do corpo, não sucumbi, quando ele foi embutido na capela do nosso solar. Encontrei a vida e não o rio do esquecimento, transposto o túmulo. Despertei como milhões de seres colhidos pelo amanhecer da imortalidade. As cogitações religiosas do passado, que traíam as revelações de Nosso Pai, não me impediram defrontar a aurora da Eternidade, da qual ninguém se pode furtar, mergulhando no nada, ou sucumbindo sob as forças destruidoras do mal. Sou a tua tia, apiedada de ti e daqueles a quem feriste fundamente, traindo os elevados deveres cristãos e humanos que volta para falar-te. Agora marchas, revel, sob o peso da vindicta, vindo a experimentar, logo mais, o ultraje da própria consciência, açodada pelos remorsos irreversíveis, que poderão conduzir-te a funestas consequências…

   “Antes que consumasse os hediondos fratricídios – prosseguiu a mensageira, com modulação emocionada –, auscultando-te o espírito em torvelinho, falei-te em compulsão, num transe espontâneo, quando estavas prestes a desferir os golpes da abjecção criminosa. Não me quiseste ouvir, embora o constrangimento que te impus, fazendo-me escutar. Não me atendeste, ao sugerir-te a fuga… Informei-te que tudo passaria às tuas mãos, mais tarde, pelo impositivo da Sabedoria Divina. Rechaçaste meus alvitres e penetraste no paul da monstruosidade sem limite. Agora, recebes em troca do ódio semeado a perseguição que começa, e não sei quando terminará, porquanto nem a morte consegue, às vezes, parar o desaguar da animosidade. Se volto ao teu coração ingrato e insensível, recordando os filhinhos e Lúcia, que trucidaste na fúria enganosa da busca da segurança e da fortuna, ou evocando Assunta, que te seguiu a hipnose abrasadora do desvario sexual, igualmente fulminada pelo raio da tua loucura, faço-o por nímio sentimento de compaixão por ti e por aquele que, chamado pela tua ferocidade à arena do revide, afunda-se irremediavelmente nas trevas, mas a quem tanto amo e não merece ter somada, a desgraça que fere, a miséria do crime que planeja perpetrar contra tua infeliz pessoa. Refiro-me a Giovanni, o meu amado…”

   Aquela voz dorida retalhava a alma do criminoso, chocado ante o espectáculo da imortalidade envolvente, indestrutível. Incapaz de reagir pelos métodos da ética cristã, deixava-se avassalar por dúvidas atrozes, conquanto a vera realidade dos factos.

   – Recua nos teus intentos infeliz e refaz o caminho, – prosseguiu a Senhora duquesa. – Jesus não deseja a morte do pecador, mas o seu arrependimento, a sua salvação. Há sempre um caminho para quem deseja buscar a verdade, renovar-se para a vida. Giovanni te afirma que nada o deterá, e que é tarde para ti. Eu, porém, te digo: é tempo ainda de refazeres ao menos parte dos danos causados às vidas ceifadas, redimindo-te através de vidas que possas amparar e resguardar. As tuas posses, arbitrariamente tuas, multiplica-as na sementeira da esperança, nas terras baixas que a maremma |* toscana empresta, aniquilando vidas. Drena o solo e recupera-o para os esfaimados que te fitam o poder, vencidos por inveja e revolta inominável. Socorre a velhice e atende a orfandade, tu que és o autor de desmandos e lágrimas. Transforma as moedas do crime em pães da esperança e favorece a noite do erro com o sol da misericórdia, em benefício dos que falecem à míngua de pão e socorro. Medita nas lições misericordiosas do Crucificado e escuta-Lhe o brado de perdão… Ele, que perdoou os que O maceravam numa cruz ignóbil, a ti também perdoará a suprema alienação, facultando-te o recomeço em estância inicial de renovação interior. Beatriz ajudar-te-á na lavoura do bem em começo. É jovem e te ama. Entretece com ela a coroa da misericórdia e condu-la ao altar da fraternidade, tu que da vida somente conheces o chafurdar nas paixões venenosas. Velarei por ti nos intentos primeiros da tua carreira de salvação e, sendo-me permitido, te inspirarei nos propósitos superiores da redenção. Do ódio renascerá o amor, sobre os escombros das ilusões abandonadas, e a floração da fraternidade produzirá os frutos do perdão daqueles que foram lesados pela tua incúria.

   Houve uma grande pausa. A sala enchia-se da noite em triunfo sobre o dia, em declínio ao longe. As vozes da Natureza murmuravam lá fora. Após o silêncio angustiante, o espírito Ângela aduziu:

   – Na noite de tempestade, enfrentaste a natureza em fúria e a tormenta fez que ninguém ouvisse os débeis gemidos das tuas vítimas. No dia de primavera, roubaste o alento de Assunta, enquanto as flores aromatizavam o ar. Neste entardecer de verão, eu te suplico despertamento…

   “Arrepende-te, Girólamo! Deixa que penetre a luz do amor. Por mais longos te sejam os dias –, e eu duvido que neste estado os tenhas muito promissores –, chegará o momento da partida, do ajuste de contas com a Divina Consciência. Ninguém consegue evadir-se à responsabilidade dos actos e horas soam no relógio da vida que conclamam o distraído à visão da realidade, despertando-o, em definitivo, para o encontro com a razão, mesmo quando obstinado na invigilância. Eu te suplico, meu filho: salva-te, salvando aqueles que ora te seguem peçonhentos e vingativos! Busca Jesus e ora. Estiveste hoje ao lado do sacerdote, levando as mãos cheias de moedas e o coração vazio de paz. Retornaste de lá com as mãos vazias de bens e com o coração cheio de ilusão. A bênção dos homens vale a vacuidade deles mesmos. Só o amparo da consciência recta no dever é bênção legítima para a paz de cada um. Não te mancomunes mais com a insanidade. Pára, pára enquanto o tempo urge a teu favor, ou, sem dúvida, será tarde demais para ti… para muitos de nós. Abençoe-te o Senhor, Girólamo!”

   Pela face descarnada e nívea do ancião as lágrimas em pérolas escorriam contínuas, abundantes.

   Girólamo sentiu-se destravar da magia da hora, ergueu-se de um salto, qual já se exasperava com a demora, pedindo-lhe que partissem a toda a brida.

   Pelo caminho, falando com demonstrações insopitáveis de cólera, o moço senense relatou destraviado, a Francesco:

   – Esse miserável é um bruxo que merece a misericórdia da fogueira. Que faz a Santa Inquisição que não alcança esses intermediários de Lúcifer? Imagina, Francesco, que o demónio tomou as características dos meus tios, que me falavam pela sua boca, ameaçando-me a existência com propósitos de destruir-me a vida!

   Gargalhando nervosamente, fixando-se ao engodo com o qual se comprazia, na alucinação de que se fazia possuído, alvitrou ao amigo:

   – Antes da Porta Ovile um bom chianti me recobrará a calma, dando-me condições para o repasto e a noite sonhadora que me espera: esta é a primeira noite de que posso dispor em Siena, nos últimos meses, e não irei perdê-la por coisa nenhuma do mundo.

   – All’inferno i morti! – exclamou com feição de louco.

   – Viva il placere e l’órgia! All’inferno i morti! |** – retrucou Francesco.

   No alto, as estrelas apareciam volumosas e brilhantes. O céu transparente, com revérberos da claridade do poente, lentamente prateava-se com a chegada do luar tranquilizante, qual poema de luz sobre os campos crestados e os ciprestes balouçantes, abençoando a noite, em mensagem de esperança e paz.
/…

|* Maremmas (toscana) – paludismo, febres…
|** Viva o prazer e a orgia! Ao inferno os mortos!



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL 5 de 5, 21º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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