ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~
Girólamo, colhido pelo encontro com a consciência, tentava
arrebatar as algemas da magia poderosa que o imobilizava. Impossibilitado de
raciocinar, constatava pela evidência a realidade do cometimento, não obstante
fosse capaz de entender o mecanismo pelo qual a vida respondia com incomparável
vigor, desenovelando a trama dos crimes, os mistérios da morte. No paroxismo
que se alongava sob o clangor do desespero de que se via possuído – mais por
encontrar-se descoberto do que pelo acoimar da consciência necessitada de
despertamento –, tentava coordenar o raciocínio, que lhe parecia tardo, de modo
a entender como o bruxo se pudera
inteirar dos desfechos ocorridos no Solar di Bicci. Imerso na meditação,
atarantado pelo tumulto da verdade que o esbordava, inevitável experimentou, de
súbito, que a aragem asfixiante da sala fora renovada por mãos intangíveis, e
uma brisa refrescante soprou, confortadora.
O hierofanta caído ergueu-se suavemente, e com o semblante
transmudado, no qual uma serenidade envolvente lhe aformoseava as linhas, falou
transfigurado. A musicalidade da voz penetrava a acústica do moço, acalmando-o,
sensibilizando-o no recôndito do ser.
Donde vinha aquela mágica modulação? Que estranho sortilégio
possuía o grego para apoderar-se, assim, dos segredos do coração encarcerado no
ódio, que sucumbiu na avalancha de mil misérias e morrera na frieza da
indiferença pelos alheios destinos? – interrogava-se o moço. – Não pôde continuar a reflexão, convocado à realidade do momento pela presença espiritual que o
visitava.
– Desperta para Deus, Girólamo, – falou a entidade,
comovida. – A tua surpresa reflecte a
ignorância do nosso século em torno da problemática do viver. Desencarcerada
do corpo, não sucumbi, quando ele foi embutido na capela do nosso solar.
Encontrei a vida e não o rio do esquecimento, transposto o túmulo. Despertei
como milhões de seres colhidos pelo amanhecer da imortalidade. As cogitações
religiosas do passado, que traíam as revelações de Nosso Pai, não me impediram
defrontar a aurora da Eternidade, da qual ninguém se pode furtar, mergulhando
no nada, ou sucumbindo sob as forças destruidoras do mal. Sou a tua tia,
apiedada de ti e daqueles a quem feriste fundamente, traindo os elevados
deveres cristãos e humanos que volta para falar-te. Agora marchas, revel, sob o
peso da vindicta, vindo a experimentar, logo mais, o ultraje da própria
consciência, açodada pelos remorsos irreversíveis, que poderão conduzir-te a funestas
consequências…
“Antes que consumasse os hediondos fratricídios – prosseguiu
a mensageira, com modulação emocionada –, auscultando-te o espírito em
torvelinho, falei-te em compulsão, num transe espontâneo, quando estavas
prestes a desferir os golpes da abjecção criminosa. Não me quiseste ouvir,
embora o constrangimento que te impus, fazendo-me escutar. Não me atendeste, ao
sugerir-te a fuga… Informei-te que tudo passaria às tuas mãos, mais tarde, pelo
impositivo da Sabedoria Divina. Rechaçaste meus alvitres e penetraste no paul
da monstruosidade sem limite. Agora, recebes em troca do ódio semeado a
perseguição que começa, e não sei quando terminará, porquanto nem a morte
consegue, às vezes, parar o desaguar da animosidade. Se volto ao teu coração ingrato
e insensível, recordando os filhinhos e Lúcia, que trucidaste na fúria enganosa
da busca da segurança e da fortuna, ou evocando Assunta, que te seguiu a
hipnose abrasadora do desvario sexual, igualmente fulminada pelo raio da tua
loucura, faço-o por nímio sentimento de compaixão por ti e por aquele que,
chamado pela tua ferocidade à arena do revide, afunda-se irremediavelmente nas
trevas, mas a quem tanto amo e não merece ter somada, a desgraça que fere, a
miséria do crime que planeja perpetrar contra tua infeliz pessoa. Refiro-me a
Giovanni, o meu amado…”
Aquela voz dorida retalhava a alma do criminoso, chocado
ante o espectáculo da imortalidade envolvente, indestrutível. Incapaz de reagir
pelos métodos da ética cristã, deixava-se avassalar por dúvidas atrozes, conquanto a
vera realidade dos factos.
– Recua nos teus intentos infeliz e refaz o caminho, –
prosseguiu a Senhora duquesa. –
Jesus não deseja a morte do pecador, mas o seu arrependimento, a sua salvação.
Há sempre um caminho para quem deseja buscar a verdade, renovar-se para a vida.
Giovanni te afirma que nada o deterá, e que é tarde para ti. Eu, porém, te
digo: é tempo ainda de refazeres ao menos parte dos danos causados às vidas
ceifadas, redimindo-te através de vidas que possas amparar e resguardar. As
tuas posses, arbitrariamente tuas, multiplica-as na sementeira da esperança,
nas terras baixas que a maremma |*
toscana empresta, aniquilando vidas. Drena o solo e recupera-o para os
esfaimados que te fitam o poder, vencidos por inveja e revolta inominável.
Socorre a velhice e atende a orfandade, tu que és o autor de desmandos e
lágrimas. Transforma as moedas do crime em pães da esperança e favorece a noite
do erro com o sol da misericórdia, em benefício dos que falecem à míngua de pão
e socorro. Medita nas lições misericordiosas do Crucificado e escuta-Lhe o
brado de perdão… Ele, que perdoou os que O maceravam numa cruz ignóbil, a ti
também perdoará a suprema alienação, facultando-te o recomeço em estância
inicial de renovação interior. Beatriz ajudar-te-á na lavoura do bem em começo.
É jovem e te ama. Entretece com ela a coroa da misericórdia e condu-la ao altar
da fraternidade, tu que da vida somente conheces o chafurdar nas paixões
venenosas. Velarei por ti nos intentos primeiros da tua carreira de salvação e,
sendo-me permitido, te inspirarei nos propósitos superiores da redenção. Do
ódio renascerá o amor, sobre os escombros das ilusões abandonadas, e a floração
da fraternidade produzirá os frutos do perdão daqueles que foram lesados pela
tua incúria.
Houve uma grande pausa. A sala enchia-se da noite em triunfo
sobre o dia, em declínio ao longe. As vozes da Natureza murmuravam lá fora.
Após o silêncio angustiante, o espírito Ângela aduziu:
– Na noite de tempestade, enfrentaste a natureza em fúria e
a tormenta fez que ninguém ouvisse os débeis gemidos das tuas vítimas. No dia
de primavera, roubaste o alento de Assunta, enquanto as flores aromatizavam o
ar. Neste entardecer de verão, eu te suplico despertamento…
“Arrepende-te, Girólamo! Deixa que penetre a luz do amor. Por
mais longos te sejam os dias –, e eu duvido que neste estado os tenhas muito
promissores –, chegará o momento da partida, do ajuste de contas com a Divina
Consciência. Ninguém consegue evadir-se à responsabilidade dos actos e horas soam
no relógio da vida que conclamam o distraído à visão da realidade,
despertando-o, em definitivo, para o encontro com a razão, mesmo quando
obstinado na invigilância. Eu te suplico, meu filho: salva-te, salvando aqueles
que ora te seguem peçonhentos e vingativos! Busca Jesus e ora. Estiveste hoje
ao lado do sacerdote, levando as mãos cheias de moedas e o coração vazio de
paz. Retornaste de lá com as mãos vazias de bens e com o coração cheio de
ilusão. A bênção dos homens vale a vacuidade deles mesmos. Só o amparo da
consciência recta no dever é bênção legítima para a paz de cada um. Não te
mancomunes mais com a insanidade. Pára, pára enquanto o tempo urge a teu favor,
ou, sem dúvida, será tarde demais para ti… para muitos de nós. Abençoe-te o
Senhor, Girólamo!”
Pela face descarnada e nívea do ancião as lágrimas em
pérolas escorriam contínuas, abundantes.
Girólamo sentiu-se destravar da magia da hora, ergueu-se de
um salto, qual já se exasperava com a demora, pedindo-lhe que partissem a toda
a brida.
Pelo caminho, falando com demonstrações insopitáveis de
cólera, o moço senense relatou destraviado, a Francesco:
– Esse miserável é um bruxo
que merece a misericórdia da fogueira. Que faz a Santa Inquisição que não
alcança esses intermediários de Lúcifer? Imagina, Francesco, que o demónio
tomou as características dos meus tios, que me falavam pela sua boca,
ameaçando-me a existência com propósitos de destruir-me a vida!
Gargalhando nervosamente, fixando-se ao engodo com o qual se
comprazia, na alucinação de que se fazia possuído, alvitrou ao amigo:
– Antes da Porta
Ovile um bom chianti me
recobrará a calma, dando-me condições para o repasto e a noite sonhadora que me
espera: esta é a primeira noite de que posso dispor em Siena, nos últimos
meses, e não irei perdê-la por coisa nenhuma do mundo.
– All’inferno i
morti! – exclamou com feição de louco.
– Viva il placere e l’órgia!
All’inferno i morti! |** – retrucou Francesco.
No alto, as estrelas apareciam volumosas e brilhantes. O céu
transparente, com revérberos da claridade do poente, lentamente prateava-se com
a chegada do luar tranquilizante, qual poema de luz sobre os campos crestados e
os ciprestes balouçantes, abençoando a noite, em mensagem de esperança e paz.
/…
|* Maremmas (toscana) – paludismo, febres…
|** Viva o prazer e a orgia! Ao inferno os mortos!
VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO,
6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL 5 de 5, 21º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado
a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
Sem comentários:
Enviar um comentário