Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 6 de novembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME
…/

   – Girólamo, filha,
prosseguiu, com inesquecível expressão , é coração atormentado, dirigido por um espírito gravemente enfermo.
Louco nas suas ambições desvairadas, prepara a taça espumante de fel

para fazer-nos sorvê-la, enveredando por longo e estreito corredor que o conduzirá demoradamente, séculos a fio, pela senda de terríveis flagícios, que ele mesmo elabora desde agora, para purificar-se depois, dolorosamente.

   Perdoemo-lo por antecipação, evitando sintonizar com funestas ideias que o infelicitam e que logo mais explodirão como maremoto furioso, tentando levar-nos de roldão… Antiga vítima nossa, guarda cicuta no espírito invigilante e, qual animal acusado no reduto em que se refugia, sem sol, prepara-se para desferir a agressão do desforço. Serás a sua primeira vítima… Reveste-te, porém, de coragem para o supremo holocausto. Os filhinhos amados estão também no seu plano… Pagareis, todos, assim, velho débito ao sofredor que se torna algoz. É claro que as Leis Superiores da Vida dispõem de meios eficazes para a justa cobrança, sem a necessidade de novos verdugos… Enfermidade, luto e dor, desastre e acidente, amor e bondade., renúncia e abnegação, sacrifício e devotamento são também instrumentos superiores de que se utilizam os Mensageiros Divinos no acerto de contas das diversas consciências em falta com a Consciência Cósmica… No entanto, precípites e desequilibrados, não compreendem os homens que somente as virtudes evangélicas, quando praticadas, poderão redimir e salvar a criatura humana. Estaremos contigo, com todos…

   “Bom ânimo, filha! Jesus na manjedoura é um poema de amor falando às belezas da vida; Jesus na cruz é um poema de dor falando sobre as grandezas da Eternidade.

   “Não recusemos o cálice. Roguemos forças para sorvê-lo, se necessário, até a última gota.

   “Jesus, o Amigo dos sofredores, e a Senhora das Dores nos ajudarão.

   “Coragem, filha, coragem! Confia e ama!...”

   A visão celeste se desfez e Lúcia subitamente despertou. Banhada em suores, fitou os vitrais da janela ogival, parecendo ver ainda, em névoa clara e flutuante, o amado rosto, repetindo: “Ama, ama…”

   Levou a mão à cabeça e, assistida pela companheira devota, enxugou o pranto e o suor, recobrando paulatinamente a lucidez. Desejou narrar o sonho ditoso que a arrebatara, mas preferiu silenciar.

   Da parte inferior da casa, escutou os lamentos e as vozes desesperadas das carpideiras, que se deixaram conduzir por histeria profissional. Compreendeu que terminara o ofício fúnebre e que logo mais ocorreria o sepultamento na capela, em cujo solo jaziam os despojos da Senhora duquesa.

   Amparada pela serva amiga e companheira, desceu as escadas do hall, algo enfraquecida pelas últimas experiências de que se vira objecto.

   O esquife estava sendo erguido por Girólamo e os diversos membros da confraria da Madonna Assunta, de Siena. Repicaram dolentes os sinos; a gritaria infrene estrugia no ar.

   Recobrou as forças e avançou.

   À porta, ajoelhou-se para acompanhar com afecto os despojos humanos do seu benfeitor e se surpreendeu ante o olhar feroz do sobrinho do Senhor di Bicci di M., que a varara implacável. Pálido e de olheiras fundas, era a expressão da alucinação recalcada. Imediatamente, Lúcia recordou-se da visão dominadora que a visitara e baixou a cabeça.

O Bispo, momentaneamente emocionado, começou a litania do “De profundis”:
“Muitas vezes me angustiaram desde a minha mocidade,
“Diga, agora, Israel:
“Muitas vezes me angustiarm desde a minha mocidade,
“Contudo não prevaleceram contra mim.
“Sobre as minhas costas lavraram os aradores;
“Prolongaram os seus sulcos.
“Jeová é justo:
“Ele corta as cordas dos perversos.
“Sejam envergonhados e repelidos para trás…”
“… A bênção de Jeová seja sobre vós;
“Nós vos abençoamos em nome de Jeová.” (*)

   O cortejo atravessou o átrio, vencendo a distância entre o palácio e a capela gótica, de portas abertas de par em par.

   No mausuléu de mármore de Carrera, trabalhando, para guardar os despojos da família, a lápide paralela à da Senhora duquesa estava aberta e pedreiros se encontravam a postos.

   Depois da aspersão da água benta e das palavras finais, o ataúde foi colocado e a laje cimentada, sendo posteriormente aposto o selo com as armas da casa.

   Estavam concluídas as homenagens àquele que fora o duque Giovanni di Bicci di M.

   Mergulhada em sombras, a torre alta do palácio, símbolo do poder dos senhores, parecia uma sentinela triste e solitária.

   As entidades religiosas recolheram os estandartes, foram retirados os paramentos, começou-se a desmontar o catafalco e os primeiros convidados deram início à partida. Lentamente, o silêncio se foi abatendo sobre o solar, enquanto a chuva, miúda e impertinente, acompanhada de trovões e relâmpagos ao longe, oferecia o lúgubre espectáculo da Natureza em convulsão. O dia sombrio passou, vagaroso, e, quando a noite desceu fragorosa sobre o burgo, todos, cansados e opressos, buscaram o repouso mais cedo.

   As crianças participaram das exéquias do genitor sem a perfeita compreensão do que ocorrera. Ficaram retidas, quanto possível, na parte superior da casa, evitando-se, por orientação de Lúcia, tudo quanto as pudesse perturbar. Carinhosa, a serva recolhera os pequerruchos logo após o falecimento do amo e dissera, em linguagem compatível à idade deles, o que ocorrera, prometendo-lhes a sua dedicação integral até à morte. Afeiçoadas à ama zelosa, com a mente povoada de sonhos e a imaginação sôfrega, os filhinhos do Senhor duque experimentaram as lágrimas da tristeza momentânea e foram recolhidos ao leito pelo cuidado da moça diligente. O dia longo e triste, passaram-no, ora fitando das escadas altas o que ocorria na parte inferior, ora assistidas por dedicada serva, designada especialmente para tal fim.

   Com os crepes pesados da noite e a boca silenciosa da sombra, o palácio somente escutava a tempestade que não amainava, de todo, lá fora.

   No amplo quarto de Girólamo, encontraram-se o moço agitado e Assunta, ardente de paixão pelo enamorado, cujas migalhas de afecto e ternura disputava leonicamente, de alma e encrespada pela febre tormentosa da ânsia de tudo liquidar, o jovem despediu a companheira e rogou-lhe soledade para pensar. No dia imediato, necessitaria definir situações para o tentame contava, desde já, com a sua valiosa quão indisfeita ordem, de modo a que se pudesse comprovar a sua inocência. Nada poderia falhar. O repouso, portanto, era-lhe ala dos servidores e procurou o repouso.

   Girólamo, todavia, não conseguiu conciliar o sono. As mãos frias e trémulas atestavam-lhe a tensão emocioal. O suor lhe escorria em bagas. Embora recolhido no leito, quase delirando sob e expectativa de como concretizar os planos que lhe ardiam nalma, experimentava a pressão da própria insânia. 

(*) Salmo 129, também chamado da Penitência; versículos 1 a 5 e 8.

/…

VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 2 de 4) texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, Edgar Maxence)

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O Materialismo e o Positivismo


   Como o oceano, o pensamento tem seu fluxo e refluxo. Quando a Humanidade entra, sob qualquer ponto de vista, no domínio das exagerações, produz-se, cedo ou tarde, uma reacção vigorosa. Os excessos provocam excessos contrários. Depois dos séculos de submissão e de fé cega, a Humanidade, cansada do sombrio ideal de Roma, atirou-se às teorias do nada. As afirmações temerárias trouxeram negações furiosas. Empenhou-se o combate, e o alvião do materialismo fez brecha no edifício católico.



   As idéias materialistas ganham terreno. Repelindo os dogmas da Igreja como inacessíveis, grande número de espíritos cultivados desertaram da crença espiritualista e, ao mesmo tempo, da crença em Deus. Afastando as concepções metafísicas, procuraram a verdade na observação directa dos fenómenos, no que se convencionou chamar o método experimental.

   Podem-se resumir assim as doutrinas materialistas: “Tudo é matéria. Cada molécula tem suas propriedades inerentes em virtude das quais se formou o Universo com os seres que em si contém. É uma hipótese a idéia de um princípio espiritual governando a matéria, pois esta se governa a si própria por leis fatais, mecânicas. A matéria é eterna, e só ela é eterna. Saídos do pó, voltaremos ao pó. O que chamamos alma, o conjunto das nossas faculdades intelectuais, a consciência, mais não é que uma função do organismo e esvai-se com a morte.”
“O pensamento é uma secreção do cérebro”, disse Carl Vogt, e o mesmo autor acrescenta: “As leis da Natureza são inflexíveis; não conhecem moral nem benevolência.”

   Se a matéria é tudo, que é pois a matéria? Os próprios materialistas não poderiam dizê-lo porque a matéria, desde que é analisada em sua essência íntima, subtrai-se, escapa e foge como enganadora miragem.

   Os sólidos transformam-se em líquidos, os líquidos em gases; após o estado gasoso vem o estado radiante; depois, por depurações inumeráveis, cada vez mais subtis, a matéria passa ao estado imponderável. Torna-se então essa substância etérea que enche o espaço, e de tal sorte ténue que se tomaria pelo vácuo absoluto, se a luz, atravessando-a, não a fizesse vibrar. Os mundos banham-se em suas ondas, como nas de um mar fluídico.

   Assim, de grau em grau, a matéria se dissipa em poeira invisível. Tudo se resume em força e movimento.

   Os corpos, orgânicos ou inorgânicos – diz-nos a Ciência –, minerais, vegetais, animais, homens, mundos, astros, mais não são que agregações de moléculas, as quais são a seu turno compostas de átomos, separados uns dos outros, em estado de movimento constante e de renovamento perpétuo.

   O átomo é invisível, mesmo com o auxílio dos mais poderosos microscópios. Apenas pode ser concebido pelo pensamento, de tal sorte é sua extrema pequenez.  E essas moléculas, esses átomos, agitam-se, movem-se, circulam, evolucionam em turbilhões incessantes, no meio dos quais a forma dos corpos só se mantém em virtude da lei de atracção.

   Pode-se, pois, dizer que o mundo é composto de átomos invisíveis, regidos por forças imateriais. A matéria, examinada de perto, esvai-se como fumaça; não tem mais que uma realidade aparente, e base alguma de certeza nos pode oferecer. Realidade permanente, certeza, só há no espírito. Unicamente a este é que o mundo se revela em sua unidade viva, em seu eterno esplendor. Somente este é que pode apreciar e compreender a sua harmonia. É no espírito que o Universo se conhece, se reflecte, se possui.

   O espírito é mais ainda. É a força oculta, a vontade que governa e dirige a matéria – Mens agitat molem – e lhe dá a vida. Todas as moléculas, todos os átomos, dissemos, agitam-se, renovam-se incessantemente. No corpo humano há uma torrente vital comparável ao curso das águas. Cada partícula retirada da circulação é substituída por outras partículas. O próprio cérebro está submetido a estas mudanças e o nosso corpo inteiro renova-se em alguns meses.

   É portanto inexacto dizer que o cérebro produz o pensamento, pois ele não passa de um instrumento deste. Através das modificações perpétuas da carne, mantém-se a nossa personalidade e com ela a nossa memória e a nossa vontade. Há no ser humano uma força inteligente e consciente que regula o movimento harmónico dos átomos materiais de acordo com as necessidades da existência; há um princípio que domina a matéria e lhe sobrevive.

   O mesmo sucede com o conjunto das coisas. O mundo material não é senão o aspecto exterior, a aparência móbil, a manifestação de uma realidade substancial e espiritual que nele existe. Assim como o eu humano não está na matéria variável, e sim no espírito, assim o eu do Universo não está no conjunto dos globos e dos astros que o compõem, mas sim na Vontade oculta, na Potência invisível e imaterial que dirige as suas molas secretas e regula a sua evolução.

   A ciência materialista só vê um lado das coisas. Em sua impotência para determinar as leis do Universo e da vida, depois de haver proscrito a hipótese, é obrigada, ela também, a sair da sensação, da experiência, e recorrer à hipótese para dar uma explicação das leis naturais. É o que ela faz tomando por base do mundo físico o átomo, que os sentidos não alcançam.

   Jules Soury, um dos mais autorizados escritores materialistas, na análise que fez dos trabalhos de Haeckel, não hesita em confessar esta contradição: “Nada podemos conhecer, diz ele, da constituição da matéria.”

   Se o mundo fosse somente um composto de matéria, governado pela força cega, isto é, pelo acaso, não se veria essa sucessão regular, contínua, dos mesmos fenómenos, produzindo-se segundo uma ordem estabelecida; não se veria essa adaptação inteligente dos meios aos fins, essa harmonia de leis, forças e proporções, que se manifesta em toda a Natureza. A vida seria um acidente, um facto de excepção e não de ordem geral. Não se poderia explicar essa tendência, esse impulso, que, em todas as idades do mundo, desde a aparição dos seres elementares, dirige a corrente vital, em progressos sucessivos, para formas cada vez mais perfeitas. Cega, inconsciente, sem fito, como poderia a matéria se diversificar, se desenvolver sob o plano grandioso, cujas linhas aparecem a qualquer observador atento? Como poderia coordenar seus elementos, suas moléculas, de maneira a formar todas as maravilhas da Natureza, desde as esferas que povoam o espaço infinito até os órgãos do corpo humano; o cérebro, os olhos, o ouvido, até os insectos, até os pássaros, até as flores?

   Os progressos da Geologia e da Antropologia pré-histórica lançaram vivas luzes sobre a história do mundo primitivo. Mas foi erradamente que os materialistas acreditaram achar na lei da evolução dos seres um ponto de apoio, um socorro para as suas teorias. Uma coisa essencial se deduz destes estudos. É a certeza de que a força cega em parte nenhuma domina de modo absoluto. Ao contrário, o que triunfa e reina é a inteligência, a vontade, a razão. A força brutal não tem bastado para assegurar a conservação e o desenvolvimento das espécies. Os seres que tomaram posse do globo e avassalaram a Natureza não foram os mais fortes, os mais bem armados fisicamente, mas sim os mais bem dotados do ponto de vista intelectual.

   Desde a sua origem, o mundo encaminha-se para um estado de coisas cada vez mais elevado. Através dos tempos afirma-se a lei do progresso nas transformações sucessivas do globo e das quadras da Humanidade. Um alvo se revela no Universo, alvo para o qual tudo tende, tudo evoluciona, seres e coisas; esse alvo é o Bem, é o Melhor. A história da Terra é o mais eloquente testemunho desta verdade.

   Sem dúvida nos objectarão que a luta, o sofrimento e a morte estão no fundo de tudo. Mas o esforço e a luta são as próprias condições do progresso e, quanto à morte, ela não é o nada, como provaremos mais adiante, porém a entrada do ser em uma fase nova de evolução. Do estudo da Natureza e dos anais da história do mundo, um facto capital se destaca; é que em tudo quanto existe há uma Causa e para conhecer-se essa Causa é preciso avançar além da matéria, até essa Lei viva e consciente que nos explica a ordem do Universo, assim como as experiências da Psicologia moderna nos demonstram o problema da vida.

   Julga-se principalmente uma doutrina filosófica por suas consequências morais, pelos efeitos que produz sobre a vida social. Consideradas sob este ponto de vista, as teorias materialistas, baseadas no fatalismo, são incapazes de servir de incentivo à vida moral, de sanção às leis da consciência. A idéia, inteiramente mecânica, que dão do mundo e da vida, destrói a noção de liberdade e, por conseguinte, a de responsabilidade.  Fazem da luta pela vida uma lei inexorável, pela qual os fracos devem sucumbir aos golpes dos fortes, uma lei que bane para sempre da Terra o reinado da paz, da solidariedade e da fraternidade humana. Penetrando os espíritos, tais teorias só podem acarretar, aos infelizes, a indiferença e o egoísmo; aos deserdados, o desespero e a violência, a todos a desmoralização.

   Sem dúvida, há materialistas honestos e ateus virtuosos, mas não se dá isto em virtude da aplicação rigorosa das suas doutrinas. Se são assim é apesar de suas opiniões e não por causa delas; é por um impulso secreto de sua natureza, é porque sua consciência soube resistir a todos os sofismas. Não menos logicamente daí se depreende também que o materialismo, suprimindo o livre-arbítrio, fazendo das faculdades intelectuais e das qualidades morais a resultante de combinações químicas, de secreções da substância parda do cérebro, considerando o Génio como uma nevrose, degrada a dignidade humana, e rouba à existência todo o carácter elevado.

   Com a convicção de que nada mais há além da vida presente e que não existe outra justiça superior à dos homens, cada qual pode dizer: Para que lutar e sofrer? Para que a piedade, a coragem, a retidão? Por que nos constrangermos e domarmos nossos apetites e desejos? Se a Humanidade está abandonada a si própria, se em nenhuma parte existe um poder inteligente e equitativo que a julgue, a guie e sustente, que socorro pode ela esperar? Que auxílio lhe tornará mais leve o peso das suas provações?

   Se não há no Universo razão, justiça, amor, nem outra coisa além da força cega prendendo os seres e os mundos ao jugo de uma fatalidade, sem pensamento, sem alma, sem consciência, então o ideal, o bem, a beleza moral são outras tantas ilusões e mentiras. Não é mais aí, porém na realidade bruta; não é mais no dever, mas sim no gozo, que o homem precisa ver o alvo da vida e, para realizá-lo, cumpre passar por cima de toda a sentimentalidade vã.

   Se viemos do nada para voltar ao nada, se a mesma sorte, o mesmo olvido, espera o criminoso e o homem dedicado; se, conforme as combinações do acaso, uns devem ser exclusivamente votados aos trabalhos e outros às honras; então, cumpre ter-se a ousadia de proclamar que a esperança é uma quimera, visto não haver consolação para os aflitos, justiça para as vítimas da sorte. A Humanidade rola, arrastada pelo movimento do planeta, sem fito, sem luz, sem moral, renovando-se pelo nascimento e pela morte, dois fenómenos entre os quais o ser se agita e passa, sem deixar outro vestígio mais do que uma faísca na noite.

   Sob a influência de tais doutrinas, a consciência só tem que emudecer e dar margem ao instinto brutal; o espírito de cálculo deve suceder ao entusiasmo, e o amor do prazer substituir as generosas aspirações da alma. Então cada um só cuidará de si próprio. O desgosto da vida, o pensamento do suicídio virão perseguir os desgraçados. Os deserdados só terão ódio para os que possuem bens e, em seu furor, reduzirão a pedaços esta civilização grosseira e material.

   Mas não, o pensamento e a razão erguem-se frementes e protestam contra essas doutrinas de desolação, afirmando que o homem luta, trabalha e sofre, não, porém, para acabar no nada; dizendo que a matéria não é tudo, que há leis superiores a ela, leis de ordem e de harmonia, e que o Universo não é somente um mecanismo inconsciente.

   Se tudo é matéria, qual a causa porque, sendo ela cega, mostra obedecer a leis inteligentes e sábias? Como, desprovida de razão, de sentimento, poderia a matéria produzir seres racionais e sensíveis, capazes de discernir o bem do mal, o justo do injusto? Pois quê! o ente humano é susceptível de amar até ao sacrifício, acha-se nele gravado o ideal do bem e do belo, e teria saído de um elemento que não possui estas qualidades em nenhum grau? Sentimos, amamos, sofremos e emanaríamos de uma causa inconsciente e insensível, de uma causa que é surda, inexorável e muda? Seríamos mais perfeitos ou melhores que ela?

   Tal raciocínio é um ultraje à lógica. Não se poderia admitir que a parte seja superior ao todo, que a inteligência derive de uma causa ininteligente, que de uma natureza sem intuitos possam sair seres susceptíveis de almejarem um alvo.

   Ao contrário, o senso comum diz-nos que, se a inteligência, se o amor do bem e do belo existem em nós, mister se faz que aí tenham sido colocados por uma causa que os possua em grau superior. E, se em todas as coisas se manifesta a ordem, se um plano se revela no mundo, cumpre também que um pensamento os tenha elaborado, que uma razão os tenha concebido.

   Mas não insistamos em problemas sobre os quais precisaremos fazer exame mais demorado e abordemos uma doutrina que com o Materialismo tem numerosos pontos de contacto. Queremos falar do Positivismo.

   Mais subtil, ou menos franca que o Materialismo, essa filosofia nada afirma, nada nega. Afastando qualquer estudo metafísico, qualquer investigação das causas primárias, ela estabelece que o homem nada pode saber do princípio das coisas; que, por conseguinte, é supérfluo o estudo do mundo e da vida. Todo o seu método refere-se à observação dos factos verificados pelos sentidos e das leis que o ligam. Só admite a experiência e o cálculo.

   Mas o vigor deste método teve de dobrar-se perante as exigências da Ciência, e o Positivismo, como o Materialismo, apesar do seu horror à hipótese, foi constrangido a admitir teorias não verificáveis pelos sentidos. É assim que raciocina sobre a matéria e a força, cuja natureza íntima lhe é desconhecida; que admite a lei da atracção, o sistema astronómico de Laplace, a correlação das forças, coisas estas impossíveis de demonstração experimental. Mais ainda, viu-se o fundador do Positivismo, Auguste Comte, depois de ter eliminado todos os problemas religiosos e metafísicos, voltar às qualidades ocultas e misteriosas das coisas,  e terminar sua obra estabelecendo o culto da Terra. Este culto tinha suas cerimónias e seus sacerdotes assalariados. É verdade que os positivistas renegaram essas aberrações.

   Não insistiremos sobre este ponto, nem mesmo sobre a particularidade que apresenta a vida de Littré, sábio eminente, chefe venerado do ateísmo moderno, que é a de se ter feito baptizar em seu leito de morte, depois de haver aceito as visitas frequentes de um sacerdote católico. Tal desmentido, feito por ele aos princípios da sua vida inteira, deve entretanto ser assinalado. Esses dois exemplos, dados pelos mestres do Positivismo, demonstram a impotência das doutrinas que não se interessam pelas aspirações do ser moral e religioso. Provam que a negação e a indiferença nada fundam; que, apesar de todos os sofismas, chega a hora em que, diante dos mais endurecidos cépticos, ergue-se o pensamento de além-túmulo.

   Todavia, não se pode desconhecer que tenha o Positivismo tido sua razão de ser e prestado incontestáveis serviços ao Espírito humano, constrangendo-o a fortificar mais seus argumentos, a determinar melhor suas teorias, a fazer maiores concessões à demonstração. Os seus fundadores, fatigados das abstrações metafísicas e das discussões de escola, quiseram firmar a Ciência em terreno sólido.

   Era porém tão limitada a base por eles escolhida que, ao seu edifício, faltaram simultaneamente amplidão e solidez. Querendo restringir o domínio do pensamento, aniquilaram as mais belas faculdades da alma. Repelindo as idéias sobre o espaço, sobre o infinito, sobre o absoluto, tiraram a certas ciências, à Matemática, à Geometria, à Astronomia, toda a possibilidade de se desenvolverem e progredirem. Com referência a isso, há um facto muito significativo: é no campo da Astronomia Estelar, ciência proscrita por Auguste Comte como sendo do domínio do incognoscível, que as mais belas descobertas têm sido realizadas.

   O Positivismo está na impossibilidade de fornecer à consciência uma base moral. Neste mundo o homem não tem só direitos a exercer, tem também deveres a cumprir; é a condição iniludível de qualquer ordem social.

   Mas, para preencher os deveres, cumpre conhecê-los; e como possuir esses conhecimentos sem indagar-se o alvo da vida, das origens e dos fins do ser? Como conformarmo-nos com a regra das coisas, segundo a própria expressão de Littré, se a nós mesmos nos interdizemos de explorar o domínio do mundo moral e o estudo dos factos da consciência?

   Com louvável intuito, certos pensadores, materialistas e positivistas, quiseram instituir o que chamaram a moral independente, isto é, a moral desprendida de qualquer concepção religiosa. Acreditaram achar assim um terreno neutro em que todos os bons espíritos poderiam reunir-se. Porém, os materialistas não reflectiram que, negando a liberdade, tornavam impotente e vã toda a moral. Teria também sido preciso que, para ser eficaz, a noção do dever fosse aceita por todos, mas poderia essa noção ser apoiada numa teoria mecânica do mundo e da vida?

   A moral não pode ser tomada por base, por ponto de partida. Ela é a consequência de princípios, o coroamento de uma concepção filosófica. Eis por que a moral independente ficou sendo uma teoria estéril, uma ilusão generosa, sem influência sobre os costumes.

   Com o estudo atento e minucioso da matéria, as escolas positivistas contribuíram para enriquecer certos ramos de conhecimentos humanos, mas perderam de vista o conjunto das coisas e as leis superiores do Universo. Encerrando-se no seu domínio exclusivo, imitaram o mineiro que se aprofunda mais e mais nas entranhas da terra, que aí descobre tesouros ocultos, mas que, ao mesmo tempo, perde de vista o grande espectáculo da Natureza que se mostra imponente sob os raios do Sol.

   Essas escolas nem mesmo têm sido fiéis ao seu programa, porque, depois de terem proclamado o método experimental como o único meio de se conhecer a verdade, deram desmentido a si próprias negando a priori toda a espécie de fenómenos, de manifestações psíquicas, que vamos examinar. Coisa notável, assim como os mais intolerantes homens da Igreja, elas também mostraram os mesmos preceitos e a mesma desdenhosa incredulidade perante esses factos que vinham aluir as suas teorias. O Positivismo, portanto, não pode ser considerado como a última fase da ciência, porque esta é essencialmente progressiva e sabe completar-se avançando. O Positivismo não é senão uma das formas temporárias da evolução filosófica, pois os séculos não sucederam aos séculos, não se acumularam as obras dos sábios e dos filósofos para tudo ficar limitado à teoria do incognoscível. O pensamento humano avança, desenvolve-se e, dia a dia, penetra mais além. O que hoje é desconhecido não o será amanhã. A carreira do Espírito humano não está terminada. Fixar-lhe um limite é desconhecer a lei do progresso, é falsear a verdade.

   Tempo chegará em que todos esses vocábulos: materialista, positivista, espiritualista, perderão sua razão de ser, porque o pensamento estará livre das peias e barreiras que lhe impõem escolas e sistemas. Quando perscrutamos o fundo das coisas, reconhecemos que matéria e espírito não passam de meios variáveis e relativos para expressão do que existe unicamente de positivo no Universo, isto é – a força e a vida, que, achando-se em estado latente no mineral, se vão desenvolvendo progressivamente do vegetal ao ente humano e, mesmo acima deste, nos degraus inumeráveis da escala superior.



LÉON DENIS in Depois da Morte, Primeira Parte Crenças e Negações VII – O MATERIALISMO E O POSITIVISMO.
(imagem: The Light of the Harem  1880, pintura de Lord Frederick Leighton)

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Dedicatória







Dedicatória

"Aos nobres e grandes espíritos que me revelaram o mistério augusto do destino, a lei do progresso na imortalidade, cujos ensinos consolidaram em mim o sentimento da justiça, o amor da sabedoria, o culto do dever, cujas vozes dissiparam as minhas dúvidas, apaziguaram as minhas inquietações; às almas generosas que me sustentaram na luta, consolaram na prova e elevaram meu pensamento até às alturas luminosas em que se assenta a Verdade, eu dedico estas páginas."
Léon Denis

LÉON DENIS, Depois da Morte, Dedicatória.
(imagem: All Saints' Day, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Estudo da alma pelo magnetismo ~ Modernamente hipnotismo ~


Capítulo II

Estudo da alma pelo magnetismo ~

Acabamos de ver, no capítulo precedente, que a ideia de uma certa corporeidade, inseparável da alma, constituiu crença quase geral da antiguidade e a de uma multidão de pensadores até à nossa época.  É evidente que essa concepção resulta da dificuldade que experimentamos em imaginar uma entidade puramente espiritual. Os nossos sentidos só nos dão a conhecer a matéria e mister se torna nos utilizemos a vista interior, para sentirmos que há em nós algo mais do que esse princípio. O pensamento, por si só, nos faz admitir, dada a sua carência de caracteres físicos, a existência de alguma coisa que difere do que cai sob a apreciação dos sentidos. 

Mas, a ideia de um corpo fluídico também resulta das aparições. É manifesto que, quando se vê a alma de uma pessoa morta, forçoso é se lhe reconheça uma certa objectividade, sem o que ela se conservaria invisível. Ora, esse fenómeno se há produzido em todos os tempos e nas histórias religiosas e profanas formigam exemplos dessas manifestações do além. 

Não ignoramos que a crítica contemporânea fez tábua rasa desses factos, atribuindo-os em bloco a ilusões, a alucinações, ou à credulidade supersticiosa dos nossos avós. Strauss, Taine, Littré, Renan, etc., sistematicamente passam em silêncio todos os casos que poderíamos reivindicar. Semelhante processo não se justifica, porquanto, nos dias actuais, dados nos é comprovar as mesmas aparições e por métodos que permitem submetê-las a uma fiscalização severa. Assim sendo, assiste-nos o direito de concordar em que esses sábios se enganaram e que merecem atenção as narrativas de antanho. 

Aliás, é facto positivo que não são novos os fenómenos do Espiritismo. Produziu-se em todos os tempos. Sempre houve casas mal-assombradas e aparições.  Concebe-se, pois, que a ideia de que a alma não é puramente imaterial haja podido manter-se, a despeito do ensino em contrário das filosofias e das religiões. 

Era, porém, muito vaga, muito indeterminada a noção de um envoltório da alma. Esse corpo fluídico formar-se-ia subitamente, no instante da morte terrena? Seria para sempre, ou por tempo determinado, que a alma se revestia dessa substância subtil? Ou, então, essa aparência vaporosa seria devida apenas a uma acção momentânea, transitória, da alma sobre a atmosfera, acção destinada a cessar com a causa que a produzira? Eram questões essas que permaneceriam insolúveis, enquanto não se pudessem observar à vontade as aparições. 


A vidente de Prévorst

O magnetismo foi o primeiro a fornecer meio de penetrar-se no domínio inacessível do amanhã da morte. O sonambulismo, descoberto por de Puységur, constituiu o instrumento de investigação do mundo novo que se apresentava. Submetidos a esse estado nervoso, puderam os sonâmbulos pôr-se em comunicação com as almas desencarnadas e descrevê-las minuciosamente, de modo a deixar convencidos os assistentes de que, na realidade, conversavam com os Espíritos. 

O Dr. Kerner, tão reputado pelo seu saber, quanto pela sua perfeita honestidade, escreveu a biografia da Sra. Hauffe, mais conhecida sob a designação de A vidente de Prévorst.  Não precisava ela adormecer, para ver os Espíritos. Sua natureza delicada e refinada pela enfermidade lhe facultava perceber formas que se conservavam invisíveis às outras pessoas presentes. Teve a sua primeira visão na cozinha do castelo de Lowenstein. Era um fantasma de mulher, que ela tornou a ver alguns anos depois. 

Dizia, porém só quando a interrogavam com insistência, nunca espontaneamente, ter sempre junto de si, como o tiveram Sócrates, Platão e outros, um anjo ou daimon, que a advertia dos perigos a serem evitados não só por ela, como também por outras pessoas. Era o Espírito de sua avó, a Sra. Schmidt Gall. Apresentava-se revestida, como, aliás, todos os Espíritos femininos que lhe apareciam, de uma túnica branca com cinto e um grande véu igualmente branco. 

Declarava que, após a morte, a alma conserva um espírito nérvico, que é a sua forma. Era esse envoltório que ela possuía a faculdade de ver, sem estar adormecida e muito melhor à claridade do Sol ou da Lua, do que na obscuridade. 

“As almas, dizia, não produzem sombra. Têm forma acinzentada. Suas vestes são as que usavam na Terra, mas também acinzentadas, quais elas próprias. As melhores trazem apenas grandes túnicas brancas e parecem voejar, enquanto que as más caminham penosamente. São brilhantes os seus olhos. Elas podem, além de falar, produzir sons, tais como suspiros, ruge-ruge de seda ou papel, pancadas nas paredes e nos móveis, ruídos de areia, de seixos, ou de sapatos a roçar o solo. São também capazes de mover os mais pesados objectos e de abrir e fechar as portas.” 

Eram objectivas essas visões? Quer dizer: verificavam-se algures, que não no cérebro da Sra. Hauffe? O Dr. Kerner procedeu a muitas investigações para se certificar da realidade desses Espíritos, que só a vidente percebia. 

“Em Oberstenfald, uma dessas almas, a do conde Weiler, que assassinara seu irmão, apresentou-se à Sra. Hauffe, até sete vezes. Somente ela a viu; mas, vários parentes seus ouviram uma explosão, viram ladrilhos, móveis e candelabros se deslocarem, sem que pessoa alguma os tocasse, sempre que o fantasma vinha. 

Outra alma de assassino, vestindo um hábito de frade, perseguiu a vidente, durante todo um ano, a lhe pedir, tal qual o fizera o conde Weiler, preces e lições de catecismo. Essa alma abria e fechava violentamente as portas, removia de um lugar para outro a louça, derribava pilhas de lenha, dava fortes pancadas nas paredes e parecia brincar de mudar, a todo momento, de lugar. Vinte pessoas respeitáveis a ouviram, ora dentro de casa, ora na rua, e atestariam o facto, se fosse preciso. 

Um fantasma de mulher, trazendo nos braços uma criança, se mostrou muitas vezes à Sra. Hauffe. Como isso se desse com mais frequência na cozinha, fez que levantassem uma laje e a uma grande profundidade foi achado o cadáver de uma criança. 

Em Weinsperg, a alma de um guarda-livros, que cometera algumas infidelidades durante a vida, lhe apareceu, de sobrecasaca preta surrada, pedindo dissesse à sua viúva que não ocultasse mais os livros em que se encontravam suas escriturações falsas e indicou os lugares onde eles estavam, para que os entregasse à justiça. Ela atendeu ao pedido e com o auxílio daqueles livros foram reparadas algumas fraudes do morto. 

Em Lenach, foi a alma de um burgomestre chamado Bellon, morto em 1740 com a idade de 79 anos, quem se lhe apresentou a pedir conselhos para escapar à perseguição de dois órfãos. Ela lhe deu os conselhos solicitados e, ao cabo de seis meses, a alma não mais voltou. 

Essa morte está mencionada nos registos da paróquia de Lenach, com uma nota assinalando que o burgomestre causara dano a muitas crianças das quais era tutor.” 

Acrescenta o Doutor Kerner que poderia citar uma vintena de aparições, cuja autenticidade foi depois verificada. Estando perfeitamente reconhecida a honradez desse doutor e achando-se quase sempre de cama a Sra. Hauffe, sem poder locomover-se e cercada de membros de sua família, nenhum embuste fora possível. São, pois, reais os factos e, se bem hajam ocorrido muito antes que se falasse de Espiritismo, guardam as maiores analogias com os que presentemente se observam.


GABRIEL DELANNE, A Alma é Imortal, Primeira parte – A observação, Capítulo II ESTUDO DA ALMA PELO MAGNETISMO, fragmento.
(imagem: Marquês de Puységur 1751-1825)

sábado, 22 de outubro de 2011

Deus e o mar...


   – A Natureza estava atenta ao derradeiro adeus, que o príncipe da luz enviava ao mundo, antes que descesse do seu trono para sumir-se no horizonte líquido. Calma e concentrada, ela assistia à prece universal dos seres, pois que eles a fazem – a santa prece do reconhecimento – ao receberem os últimos olhares do Sol. E todos, desde a flébil e solitária medusa e a estrela-do-mar policroma, até os gafanhotos saltitantes e os alcíones de neve; todos lhe agradecem piedosamente. Era, então, um como incenso a subir das vagas e dos montes, parecendo que os ruídos temperados da plaga, a brisa que soprava do continente, a atmosfera embalsamada, a luz palescente na serenidade do céu azul, o refrigério crepuscular e tudo o mais vinha, naquele sítio, consciência de vida, comungando contrita e amorosamente da adoração universal.

   Mentalmente, nesse holocausto da Terra, eu sentia as recíprocas atracções dos mundos; não apenas as que alternativamente afastam e aproximam nosso orbe do foco solar, como as de todos os astros que gravitam na imensidão dos céus.

   Acima de minha cabeça desdobravam-se as sublimes harmonias e as gigantescas translacções dos corpos celestes! A Terra era qual átomo flutuante no infinito! Deste átomo, porém, a todos os sóis do espaço, àqueles cuja luz leva milhões de anos para chegar até nós, aos que jazem desconhecidos para além da nossa visibilidade, eu sentia um laço invisível abrangendo, num só halo vivificante, todos os universos e todas as almas.

   E a prece celestial, grandiosa, imensurável, tinha a sua repercussão, a sua estrofe, a sua representação visível naquela vida terrena que palpitava em torno de mim, no rugido do mar, no perfume das selvas, no canto das aves, na melodia confusa dos insectos, no conjunto emocionante do cenário e, sobretudo, na luminosa tonalidade daquele extraordinário crepúsculo!

   Fitava-o embevecido, sim... mas sentia-me tão pequeno no meio de tantas graças e grandezas, que acabei por entristecer-me. Senti como que esvanecer-se a minha personalidade diante da imensidade da Natureza.

   Não me tardou a impressão de já não poder falar, nem pensar.

   – O vasto mar fugia para o infinito. – Eu não mais existia, meus olhos se velavam... E, como as faces se me inundavam de pranto, sem que me pudesse explicar porque chorava, ajoelhei-me e, prosternado ante o céu, confundi minha fronte com as ervas... – o mar fugia sempre e os seres continuavam em prece.


CAMILLE FLAMMARION, Deus na Natureza, Tomo V – DEUS (3 de 4 fragmento)
(imagem: pintura de Hans Zatzka)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A vontade de Deus


   Temos constan-
temente debaixo dos olhos um exemplo que nos pode dar uma ideia da maneira como a vontade de Deus se pode exercer sobre as partes mais íntimas de todos os seres e, consequentemente, como as impressões mais subtis da nossa alma chegam até ele. Foi retirado duma instrução dada por um Espírito a este respeito.

   «O homem é um pequeno mundo cujo dirigente é o Espírito e o corpo o principio dirigido. Neste Universo, o corpo representará uma criação em que o espírito será Deus (percebereis que não se pode tratar aqui mais que de uma analogia e não de uma identidade). Os membros deste corpo, os diferentes órgãos que o compõem, os seus músculos, os seus nervos, as suas articulações são outras tantas individualidades materiais, se assim podemos dizer, localizadas num sítio especial do corpo; apesar de o número das suas partes constituintes, de natureza tão variada e tão diferente, ser considerável, não oferece no entanto dúvidas a ninguém que não pode produzir movimentos, que uma qualquer impressão não pode dar-se num sítio particular sem que o Espírito tenha disso consciência. Há sensações diversas em vários sítios simultaneamente? O Espírito sente-as todas, percebe-as, analisa-as, atribui a cada uma a sua causa e o seu lugar de acção por intermédio do fluido do perespírito.

   »Um fenómeno análogo dá-se entre a Criação e Deus. Deus está em todo o lado na natureza, tal como o Espírito está em todo o corpo; todos os elementos da Criação estão em contacto constante com ele, tal como todas as células do corpo humano estão em contacto imediato com o ser espiritual; não há portanto razão nenhuma para que os fenómenos da mesma ordem não se produzam da mesma maneira, num e noutro caso.

   »Um membro agita-se: o Espírito sente; uma criatura pensa: Deus sabe-o. Todos os membros estão em movimento, os diferentes órgãos são postos em movimento: o Espírito sente cada manifestação, distingue-a e localiza-a. As diferentes criações agitam-se, pensam, agem de forma diversa e Deus sabe tudo o que se passa, atribuindo a cada uma o que lhe é particular.

   »Podemos deduzir daqui igualmente a solidariedade da matéria e da inteligência, a solidariedade entre os seres de um mundo e, enfim, entre as criações e o Criador.»

Quinemant, Sociedade Espírita de Paris, 1867


ALLAN KARDEC in A GÉNESE, Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo II, DEUS, A Providência 26 e 27.
(imagem: Winding the Skein – 1878, pintura de Frederic Leighton)

sábado, 15 de outubro de 2011

O antigo Egipto


IV - A Civilização Egípcia

Os egípcios

    Dentre os Espíritos degredados na Terra, os que constituíram a civilização egípcia foram os que mais se destacavam na prática do Bem e no culto da Verdade.

   Aliás, importa considerar que eram eles os que menos débitos possuíam perante o tribunal da Justiça Divina. Em razão dos seus elevados patrimónios morais, guardaram no íntimo uma lembrança mais viva das experiências de sua pátria distante.

   Um único desejo os animava, que era trabalhar devotadamente para regressar, um dia, aos seus penates resplandecentes.

   Uma saudade torturante do céu foi a base de todas as suas organizações religiosas.

   Em nenhuma civilização da Terra o culto da morte foi tão altamente desenvolvido. Em todos os corações morava a ansiedade de voltar ao orbe distante, ao qual se sentiam presos pelos mais santos afectos. Foi por esse motivo que, representando uma das mais belas e adiantadas civilizações de todos os tempos, as expressões do antigo Egipto desapareceram do plano tangível do planeta. Depois de perpetuarem nas Pirâmides os seus avançados conhecimentos, todos os espíritos daquela região africana regressaram à pátria sideral.

A ciência secreta

   Em virtude das circunstâncias mencionadas, os egípcios traziam consigo uma ciência que a evolução da época não comportava.

   Aqueles grandes mestres da antiguidade foram, então, compelidos a recolher o acervo de suas tradições e de suas lembranças no ambiente reservado dos tempos, mediante os mais terríveis compromissos dos iniciados nos seus mistérios. Os conhecimentos profundos ficaram circunscritos ao círculo dos mais graduados sacerdotes da época, observando-se o máximo cuidado no problema da iniciação.

   A própria Grécia, que aí buscou a alma de suas concepções cheias de poesia e de beleza, através da iniciativa dos seus filhos mais eminentes, no passado longínquo, não recebeu toda a verdade das ciências misteriosas. Tanto é assim, que as iniciações no Egipto se revestiam de experiências terríveis para o candidato à ciência da vida e da morte – factos esses que, entre os gregos, eram motivo de festas inesquecíveis.

   Os sábios egípcios conheciam perfeitamente a inoportunidade das grandes revelações espirituais naquela fase do progresso terrestre; chegando de um mundo de cujas lutas, na oficina do aperfeiçoamento, haviam guardado as mais vivas recordações, os sacerdotes mais eminentes conheciam o roteiro que a humanidade terrestre teria de realizar. Aí residiam os mistérios iniciáticos e a essencial importância que lhes era atribuída no ambiente dos sábios daquele tempo.

O politeísmo simbólico

   Nos círculos esotéricos, onde pontificava a palavra esclarecida dos grandes mestres de então, sabia-se da existência do Deus único e absoluto, Pai de todas as criaturas e Providência de todos os seres, mas os sacerdotes conheciam, igualmente, a função dos Espíritos prepostos de Jesus, na execução de todas as leis físicas e sociais da existência planetária, em virtude das suas experiências pregressas.

   Desse ambiente reservado de ensinamentos ocultos, partiu, então a ideia politeísta dos numerosos deuses, que seriam os senhores da Terra e do Céu, do Homem e da Natureza.

   As massas requeriam esse politeísmo simbólico, nas grandes festividades exteriores da religião.

   Já os sacerdotes da época conheciam essa fraqueza das almas jovens, de todos os tempos, satisfazendo-as com as expressões exotéricas de suas lições sublimadas.

   Dessa ideia de homenagear as forças invisíveis que controlam os fenómenos naturais, classificando-as para o espírito das massas, na categoria dos deuses, é que nasceu a mitologia da Grécia, ao perfume das árvores e ao som das flautas dos pastores, em contacto permanente com a Natureza.

O culto da morte e a metempsicose

   Um dos traços essenciais desse grande povo foi a preocupação insistente e constante com a morte. A sua vida era apenas um esforço para bem morrer. Seus papiros e frescos estão cheios dos consoladores mistérios do além-túmulo.

   Era natural. O grande povo dos faraós guardava a reminiscência do seu doloroso degredo na face obscura do mundo terreno. E tanto lhe doía semelhante humilhação, que na lembrança do pretérito, criou a teoria da metempsicose era o fruto da sua amarga impressão, a respeito do exílio penoso que lhe fora infligido no ambiente terrestre.

   Inventou-se, desse modo, uma série de rituais e cerimónias para solenizar o regresso dos seus irmãos à pátria espiritual.

   Os mistérios de Ísis e Osíris mais não eram que símbolos das forças espirituais que presidem aos fenómenos da morte.

/…

ESPÍRITO EMMANUEL, A Caminho da Luz, IV - A Civilização Egípcia, (fragmento 1 de 2) texto mediúnico ditado em 1938 a FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: Ísis com os atributos de Hathor – pintura mural)

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Victor Hugo...


"Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história. (…)
Felicito a vossa nação.
Portugal dá o exemplo à Europa.
Desfrutai de antemão essa imensa glória.
A Europa imitará Portugal.
Morte à morte!
Guerra à guerra!
Viva a vida!
Ódio ao ódio.
A liberdade é uma cidade imensa da qual todos somos concidadãos"

Victor Hugo

- Victor Hugo, 1876, a propósito da abolição da pena de morte em Portugal (o primeiro país europeu a fazê-lo).
(imagem: Young Girl with a Doll, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON 1767-1824)

domingo, 9 de outubro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


2. ALUCINAÇÃO E CRIME

   O ofício fúnebre, terminado o longo velório, tem início na manhã cinzenta, quebrada por violentas descargas da tempestade que estruge, intérmina. Plangem sinos de finados e, por momentos, as atenções se concentram na

figura do Bispo, paramentado, que dá início ao réquiem. Diante do altar improvisado, a figura do Crucificado, em prata e ouro, imóvel, pregada em madeira preciosa da região, brilha ante o fulgor dos círios acesos em abundância. O coro, vindo especialmente da Catedral de Siena, entoa um cantochão. Incenso, mirra e nardo embalsamam o ambiente, de modo tocante.

   Em meio às exéquias, o Bispo pronuncia o sermão laudatório da personalidade do extinto, lamentando não lhe ter podido aplicar a extrema-unção, no termo da jornada carnal. Exora, todavia, socorro ao Senhor da Vida e da Morte, enquanto lhe encomenda o corpo, seguindo os tradicionais rituais da Igreja Romana. O sacrifício da missa de corpo presente prossegue. As vozes se alteiam ou murmuram, cantando. Soluços discretos irrompem dos sentimentos do povo humilde das redondezas, que ali se aglutina para render as últimas homenagens ao seu benfeitor. Nuvens de fumo se levantam, perfumadas, agitadas por turíbulos prateados e com brasas vivas.

   A pequena distância, oculta discretamente e enlutada, Lúcia, de joelhos, soluça, dominada por fortes emoções. Repassam pelo seu pensamento todos os lances da sua vida no palácio que a acolheu. Seus pais entregaram-na pequena à família da Senhora duquesa, a fim de que fosse preparada para dama de companhia. Ali recebera todo o carinho, cultivara os dotes do sentimento e suas mãos se exercitaram na arte dos bordados e tecelagens, em que se fizera mestra. Os gobelins por ela tecidos ao lado da Senhora Ângela enriqueciam diversas peças do imponente lar.

   À lembrança da benfeitora, porém, teve a impressão de que se lhe dilatavam as pupilas e estranhos sentimentos lhe assomaram ao espírito inquieto. Latejaram-lhe as artérias nas têmporas, suor glacial inundou-a e frequente tremor se lhe apossou das carnes. Teve a sensação de que ia morrer. Um vágado inesperado fê-la cair sobre as lajes de pedra. Servidores apressados conduziram-na, inconsciente, ao quarto de dormir, colocando-a sobre o leito fofo e macio. Odores fortes foram aplicados às narinas; resinas perfumadas foram friccionadas nos pulsos e na testa… Ofegante, de peito descompassado, continuou vencida pelos choques nervosos que a sacudiam. Chamado o médico, este aplicou, a muito custo, a ingestão de medicamento calmante, solicitando a todos que a deixassem assistida apenas por uma das suas amigas-camareiras, de modo a que pudesse repousar…

   Entrementes, ao experimentar a cabeça atordoada, e quando perdia o equilíbrio das próprias forças, sentiu-se flutuar no ar, fora do corpo, divagando, numa visão entre névoas claras, a veneranda figura da duquesa, que lhe alongava as mãos generosas, albergando-a no seio maternal. A forma diáfana recordava as telas clássicas da pintura renascentista, em que matronas em luz faziam evocar a Senhora de Nazaré, Mãe do Sublime Crucificado. As lágrimas brotaram-lhe abundantes e, vencida pela felicidade do reencontro inesperado, naquela esfera desconhecida, teve a impressão de que se libertara do pesado fardo da carne, demandando às gloriosas regiões celestes. Desejou falar, dizer todas as inquietudes e os anseios que lhe rebentavam no coração sensível, a saudade imensa e destruidora, os últimos acontecimentos e os presságios que a martirizavam… Não pôde fazê-lo. A expressão de quase angelitude da senhora terminou por apaziguar-lhe as tempestades interiores. O sorriso triste que lhe ornava a face e a inefável luz que se derramava de toda ela, envolta em auréola resplendente, tocaram o espírito da servidora fiel.

   – Confia, minha filha, – murmurou a visão espiritual, quase sorridente – e não desfaleças! Levanta o espírito abatido e ergue-te acima das vicissitudes do caminho. Lutar é sofrer, e ninguém conseguirá felicidade sem o largo património das lágrimas e renúncias…

   “Todos nascemos e morremos para renascer, rectificando numa existência as imperfeições noutra contraídas. O curso incessante das vidas forma o rio da santificação que desagua no oceano da Eternidade.

   “Pesados cúmulos se associam hoje sobre o tecto do nosso lar, exigindo-nos inomináveis agonias e demorados sofrimentos. É, todavia, necessário que nos submetamos aos desígnios divinos. Nenhum de nós está esquecido das Leis Excelsas. Embora nos encontremos aparentemente abandonados, fracos de forças, desempenhando árduas tarefas que nos exigem imensa colheita de dor, Espíritos angelicais e benfeitores, em nome do Soberano Pai, nos acompanham e ajudam. Não te desesperes nem te desgovernes emocionalmente.

   “Velhas dívidas do passado remoto, que recuam ao século XIII, nos atam indelevelmente uns aos outros, exigindo regaste. Não nos reencontramos por caprichos do Destino. O Destino, conforme todos apregoam, não existe. Ele seria a negação de Deus, das leis de mérito e débito. O que consideramos Destino é o resultado de muitas actividades que culminam num momento, para nós inesperado, mas que, para os arquitectos da Vida, está adredemente programado. Amores, adversários, felicidade e desdita são peças da rede da vida imperecível, atando e desatando suas teias incessantemente, até ao instante da libertação definitiva de todo o sofrer. E o repetir de amargas experiências são oportunidades de que desfrutamos para nos alçarmos às regiões da ventura, que não se podem definir nem descrever por enquanto, por limitação da linguagem humana e por impossibilidades de entendimento da humana capacidade.

   “Ainda não tive a ventura de acolher nos meus braços saudosos o companheiro, por enquanto em processo de libertação. Amarrado a injustificável angústia, que a nossa separação física momentaneamente causou, ele vinculou-se fortemente ao corpo transitório, esquecendo-se das paisagens fulgurantes da Imortalidade, de que nos falam as valiosas lições do Evangelho e que a Religião, embora velando-as com imagens pesadas e pouco reais, nos apresenta, indicando rumos.

   “A morte, por isso mesmo, não é o fim. E a vida, que dela se desenlaça, não migra para os ajustes imediatos sob a assistência severa do Senhor, que nos recebe para punir ou premiar. Cada um morre como viveu e viverá conforme foi recebido pela morte. Imprescindível, pois, viver de modo a poder enfrentar a vida que a todos nos aguarda, quando a cortina de sombras se levanta, deixando aparecer a madrugada da Imortalidade.”

   Uma pausa refrescante silenciou a mensageira espiritual.

   Lúcia, deslumbrada, continuou de olhar cintlilante, fixo na face de luz e ouro da Senhora di Bicci di M. O orvalho das lágrimas nos seus olhos pareciam brilhantes finos, engastados nos cílios negros e longos. Após o silêncio expressivo, o semblante da Senhora duquesa nublou-se rapidamente, e ela falou, como se antecipasse no tempo e no espaço os acontecimentos de dor e luto que logo mais adviriam, convocando a moça ao testemunho...
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 2. ALUCINAÇÃO E CRIME (fragmento 1 de 4). Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence) 

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Incitações…


I - As Religiões, A Doutrina Secreta
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   Pergunta-se algumas vezes se a religião é necessária. A religião (do latim religare, ligar, unir), bem compreendida, deveria ser um laço que prendesse os homens entre si, unindo-os por um mesmo pensamento ao princípio superior das coisas. Há na alma um sentimento natural que a arrasta para um ideal de perfeição em que se identificam o Bem e a Justiça. Este sentimento, o mais nobre que poderemos experimentar, se fosse esclarecido pela Ciência, fortificado pela razão, apoiado na liberdade de consciência, viria a ser o móbil de grandes e generosas acções; mas, manchado, falseado, materializado, tornou-se, muitas vezes, pelas inquietações da teocracia, um instrumento de dominação egoística.

   A religião é necessária e indestrutível porque se baseia na própria natureza do ser humano, do qual ela resume e exprime as aspirações elevadas. É, igualmente, a expressão das leis eternas e, sob este ponto de vista, tende a confundir-se com a filosofia, fazendo com que esta passe do domínio da teoria ao da execução, tornando-se vivaz e activa.

   Mas, para exercer uma influência salutar, para voltar a ser um incitante de progresso e elevação, a religião deve despojar-se dos disfarces com que se revestiu através dos séculos. Não são os seus elementos primordiais que devem desaparecer, mas, sim, as formas exteriores, os mitos obscuros, o culto, as cerimónias. Cumpre evitar confundir coisas tão dessemelhantes. A verdadeira religião é um sentimento; é no coração humano, e não nas formas ou manifestações exteriores, que está o melhor templo do Eterno. A verdadeira religião não poderia ser encerrada dentro de regras e ritos acanhados; não necessita de sacerdotes nem de fórmulas nem de imagens.

   Pouco se inquieta com simulacros e modos de adorar; só julga os dogmas por sua influência sobre o aperfeiçoamento das sociedades. Abraça todos os cultos, todos os sacerdócios, eleva-se bastante e diz-lhes: A Verdade ainda está muito acima!

   Entretanto, deve compreender-se que nem todos os homens se encontram em vias de atingir esses píncaros intelectuais. Eis por que a tolerância e a benevolência são coisas que se impõem. Se, por um lado, o dever nos convida a desprender os bons espíritos dos aspectos vulgares da religião, por outro, é preciso nos abstermos de lançar a pedra às almas sofredoras, lacrimosas, incapazes de assimilar noções abstractas, mas que encontram arrimo e conforto na sua cândida fé.

   Verifica-se, porém, que, de dia para dia, diminui o número dos crentes sinceros. A ideia de Deus, outrora simples e grande nas almas, foi desnaturada pelo temor do inferno e perdeu o seu poder. Na impossibilidade de se elevarem até ao absoluto, certos homens acreditaram ser necessário adaptar à sua forma e medida tudo o que queriam conceber. Foi assim que rebaixaram Deus ao nível deles próprios, atribuindo-lhe as suas paixões e fraquezas, amesquinhando a Natureza e o Universo, e, sob o prisma da ignorância, decompondo em cores diversas os argênteos raios da verdade. As claras noções da religião natural foram obscurecidas ao seu belo prazer. A ficção e a fantasia engendraram o erro e este, preso ao dogma, ergueu-se como um obstáculo no meio do caminho. A luz ficou velada para aqueles que se acreditavam os seus depositários e as trevas, com que pretendiam envolver os outros, fizeram-se em si próprios e ao seu redor. Os dogmas perverteram o critério religioso, e o interesse de casta falseou o senso moral. Daí um acervo de superstições, de abusos e práticas idólatras, cujo espectáculo lançou tantos homens na negação.

   A reacção, porém, anuncia-se. As religiões, imobilizadas nos seus dogmas como as múmias nas suas faixas, agora agonizam, abafadas nos seus invólucros materiais, enquanto tudo caminha e evolve em torno delas. Perderam quase toda a influência sobre os costumes, sobre a vida social, e estão destinadas a perecer. Mas, como todas as coisas, as religiões só morrem para renascer. A ideia que os homens fazem da Verdade modifica-se e dilata com o decorrer dos tempos. Eis por que as religiões, manifestações temporárias, vistas parciais da eterna Verdade, tendem a transformar-se desde que já tenham cumprido a sua tarefa, e não mais correspondam aos progressos e às necessidades da Humanidade. À medida que esta caminha, são precisas novas concepções, um ideal mais elevado, e isso só poderá ser encontrado nas descobertas da Ciência, nas intuições crescentes do pensamento.

   Chegamos a uma época da História em que as religiões encanecidas aluem-se pelas suas bases, época em que se prepara uma renovação filosófica e social. O progresso material e intelectual desafia o progresso moral. Na profundeza das almas agita-se um mundo de aspirações, que faz esforços por tomar forma e aparecer à vida. O sentimento e a razão, essas duas grandes forças imperecíveis como o Espírito humano, de que são atributos, forças hostis até hoje e que perturbavam a sociedade com os seus conflitos, semeando por toda a parte a discórdia, a confusão e o ódio, tendem, finalmente, a se conciliarem. A religião deve perder o seu carácter dogmático e sacerdotal para tornar-se científica; a ciência libertar-se-à dos baixios materialistas para esclarecer-se com um raio divino. Surgirá uma doutrina, idealista nas suas tendências, positiva e experimental no seu método, apoiada sobre factos inegáveis. Sistemas opostos na aparência, filosofias contraditórias e inimigas, o Espiritismo e o Naturalismo, entre outras, acharão, afinal, um terreno de reconciliação. Síntese poderosa, ela abraçará e ligará todas as concepções variadas do mundo e da vida, raios dispersos, faces variadas da Verdade.

   Será a ressurreição, sob forma mais ampla e a todos acessível, dessa doutrina que o passado conheceu, será o aparecimento da religião natural que renascerá simples, sem cultos nem altares. Cada pai será sacerdote na sua família, ensinará e dará o exemplo. A religião passará para os actos, para o desejo ardente do bem; o holocausto será o sacrifício das nossas paixões, o aperfeiçoamento do Espírito humano. Tal é a doutrina superior, definitiva, universal, no seio da qual serão absorvidas, como os rios pelo oceano, todas as religiões passageiras, contraditórias, causas frequentes de dissidência e dilaceração para a Humanidade.


LÉON DENIS, Depois da Morte, Primeira Parte / Crenças e Negações (2 de 2), fragmento.
(imagem de contextualizaçaõ: Invocation, pintura de Lord Frederic Leighton 1830-1896)