Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 21 de abril de 2019

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XVII

~~~ O Espiritismo e a renovação das vidas anteriores |

(Setembro de 1918)

De entre as experiências que diariamente vêm aumentando o número das provas e dos testemunhos com que se fortalece o Espiritismo, devem ser citadas as que visam a renovação da memória, isto é, a reconstituição no ser humano das lembranças anteriores ao nascimento. Mergulhado num sono hipnótico, o indivíduo se desprende do seu invólucro físico, se exterioriza e, nesse estado psíquico, sente que o círculo de sua memória normal se dilata. Todo o seu passado remoto se desenrola diante dele, em sucessivas fases, podendo reproduzir; reviver as suas cenas principais e mesmo os mais simples acontecimentos, à vontade do experimentador.

Há pouco chamei a atenção do coronel de Rochas para os factos dessa espécie, conseguidos por experimentadores espanhóis e apresentados ao Congresso Espírita e Espiritualista de 1900, realizado em Paris. O coronel, já conhecido pelos seus trabalhos sobre a exteriorização da sensibilidade e da motricidade, prosseguiu as suas pesquisas no sentido que eu lhe indicara e alcançou notáveis resultados. O conjunto desses factos está narrado em sua obra As Vidas Sucessivas.

Os factos obtidos em Aix-en-Provence, na presença do Dr. Bertrand, prefeito da cidade, e do Sr. Lacoste, engenheiro, cujos testemunhos posteriores recolhi no decorrer de uma série de conferências, possuem sérias garantias de autenticidade.

Nessas sessões, a pessoa adormecida era uma jovem de 18 anos, que falava a respeito das suas existências passadas, revivendo-lhe os acontecimentos com realismo e com uma vivacidade de impressões e de sensações que não podem ser fingidas, porque para tanto seriam necessários profundos conhecimentos de patologia, que a pessoa não podia possuir, segundo todas as testemunhas.

As experiências de Grenoble, com outra pessoa, de nome Josephine, permitiram a verificação das condições no tempo e nos lugares onde viveu uma das suas existências anteriores com o nome de Bourdon.

Em compensação, algumas narrativas do livro nos parecem muito menos certas, menos aceitáveis, devidas, em grande parte, à imaginação da sujet, elemento contra o qual devemos estar sempre prevenidos no trato com esses fenómenos. O coronel de Rochas nem sempre foi feliz na escolha dos seus médiuns.

As informações colhidas em Valence e em Hérault mostram que algumas delas não são dignas de confiança. Desse livro colhemos certas observações que achamos poder reproduzir aqui:

“As lembranças – diz o autor – concentram-se em factos mais ou menos distantes, à medida que a hipnose se aprofunda.

A sugestão tem menos domínio quando o sono é mais profundo e, ao despertar, o indivíduo não guarda nenhuma recordação do que disse ou do que fez em transe. Cada vez que o indivíduo passa por uma vida diferente, a sua fisionomia fica de acordo com a personalidade manifestada. Tratando-se de um homem, a palavra, o tom e as maneiras diferem sensivelmente do tom e dos gestos de uma mulher. O mesmo acontece quando passa pela fase infantil.”

Os experimentadores espanhóis, dos quais já falamos, haviam feito a mesma verificação, pois à medida que os seus pacientes remontavam às existências passadas, a expressão do seu olhar se tornava cada vez mais selvagem.

O coronel de Rochas narra as impressões pessoais que teve em Roma e em Tivoli, a respeito do que ele considera lembranças de vidas passadas, terminando a sua obra dizendo o seguinte:

“A teoria espírita baseia-se em fundamentos sólidos e, em qualquer caso, é a melhor das hipóteses de estudo que temos formulado.”

Devo confessar que participei em experiências dessa espécie por muito tempo, com a diferença de que, ao contrário de agir fluidicamente sobre os médiuns, deixava que os meus protectores invisíveis os adormecessem, limitando-me a estimulá-los com as minhas perguntas e observações. Com efeito, seria errado acreditar que a presença de um magnetizador seja imprescindível. Ao contrário, se a pureza das suas intenções não é completa, a sua intervenção pode ser prejudicial, pois introduz nas sessões um elemento de perturbação que compromete a veracidade dos resultados.

Quando estamos certos de uma protecção segura do Além, é melhor entregarmos a direcção das experiências às entidades invisíveis. Os meus guias deram-me tais provas do seu poder, do seu saber e de sua elevação que a minha confiança neles foi absoluta.

Deixo por relatar aqui os pormenores dos factos obtidos nessas condições, porque com eles se mistura um elemento pessoal e muito íntimo que me tira a liberdade de os divulgar.

As experiências do coronel de Rochas, assim como as da mesma natureza que acabamos de apresentar, devem ser consideradas como ensaios, tentativas de reconstituição de lembranças de vidas passadas, porque os resultados ainda são parciais e limitados. Mesmo que não se veja nelas senão experiências, deve reconhecer-se que nos dão indicações valiosas sobre os processos a serem empregados e nos demonstram que existe ali um vasto campo de investigações, um conjunto de elementos capazes de renovar toda a Psicologia, desfazendo o mistério vivo que trazemos em nós.

Essas experiências são delicadas e complicadas; exigem muita prudência, em virtude das inúmeras dificuldades com que nos deparamos. Pode ler-se na Revue Spirite, de Julho de 1918 (i), as instruções do espírito William Stead (*) sobre os processos aplicáveis a tal género de pesquisas. Não insistiremos mais nesse ponto, todavia voltaremos às enormes consequências que tais estudos terão quando adquiram desenvolvimento suficiente, não se podendo negar que existe ali o gérmen de uma verdadeira revolução no conhecimento do ser.

É um fenómeno que impressiona (nas experiências bem dirigidas) vermos o passado aparecer, pouco a pouco, dos cantos obscuros de nossa memória e, nos seus acontecimentos, acompanhar o rigoroso encadeamento das causas e dos efeitos que regem todos os nossos actos, que dominam o mundo moral tanto quanto o mundo físico e que representam a trama, a própria lei dos nossos destinos. Nela aparece evidente a lei de justiça e ninguém a pode contestar.

Essas experiências ainda têm outra consequência, não menos importante: ensinam que a personalidade humana é muito mais vasta e mais profunda do que se pensava. O homem possui não apenas elementos vitais pouco conhecidos, mas também faculdades latentes, desconhecidas, cuja manifestação, plena e total, o nosso organismo não permite, mas em certos casos se revelam: a telepatia (i), a premonição (i) e a visão à distância (i). O mesmo acontece com as camadas de nossa memória onde dorme o passado; no decorrer das experiências de que falamos este reaparece saindo da sombra.

A nossa própria história se desenvolve automaticamente e as recordações acordam aos montes, revelando energias ocultas. Podemos apoderar-nos delas, colocá-las em acção para uma boa direcção de nossa vida, para a transformação do nosso porvir e de nosso destino.

Ali, na imortal consciência individual, reside a sanção de todas as coisas. A consciência se recupera no Além, não limitada e abafada como no mundo terreno, mas na sua plenitude, tal qual se nos aparece no transe, com uma tamanha intensidade que o ser evolvido revive o seu passado nas suas alegrias e dores, com tal poder, que se torna para ele uma fonte de venturas ou de tormentos.

Eis aí o que todo o homem deve saber, e um dia saberá, esse conhecimento profundo do ser que o Espiritismo proporcionou. Ele foi o primeiro a orientar a atenção dos experimentadores para esse conhecimento, mostrando-lhe os lados misteriosos, inexplorados da nossa natureza, ensinando o homem a medir a extensão do seu poder, de toda a sua grandeza e de todo o seu porvir.

Não existe, portanto, exagero ao dizer que o Espiritismo, depois de 50 anos de vida, exerce e exercerá, cada vez mais, uma crescente influência, trazendo transformações consideráveis à Ciência, à Literatura e até às Igrejas, como o apresentaremos em próximo artigo.

A grande doutrina das vidas sucessivas da alma, divulgada na França por todos os espíritos nas suas mensagens e comunicações, constitui uma revelação, um ensinamento filosófico de grande importância.

Ela também se apoia em testemunhos quase universais, porque, com excepção do neocristianismo, todas as religiões e quase todas as filosofias, em princípio, a admitem.

Além disso, se beneficia com a possibilidade, que só ela possui, de resolver logicamente os antagonismos aparentes e os obscuros problemas da vida. É verdade que, no campo das provas e dos factos, essa doutrina, até aqui, não possuía senão as reminiscências de alguns homens especialmente dotados, recordações infantis e renascimentos ocorridos em condições anunciadas e bem marcadas.

Graças aos fenómenos de renovação da memória, abre-se, proveitosamente, um vasto campo de observações e nessas experiências se obterá a força e a certeza necessárias para enfrentar e desafiar todas as críticas e ataques.

À medida que as etapas se desenrolam, enquanto o sujet se encontra em transe, entendemos melhor o encadeamento dos destinos do ser. A lei do progresso, por exemplo, destaca-se com mais evidência no conjunto de nossas vidas individuais do que na história das nações que, muitas vezes, são levadas para abismos, pela cobiça desmedida dos seus soberanos e dos seus déspotas, como actualmente está a suceder.

Nos fenómenos tratados, é interessante verificar-se a personalidade humana sair, gradativamente, da vida selvagem e da barbárie e ir se esclarecendo, aos poucos, com a civilização.

livre-arbítrio do homem frequentemente se exerce ao contrário da lei do progresso, prejudicando-a; entretanto as suas consequências são mais sensíveis para o indivíduo do que para a colectividade, que se renova de tempos em tempos por elementos inferiores, provenientes de mundos mais atrasados do que a Terra.

Sucede o mesmo, como já afirmámos, com a ideia de justiça, encontrada, em inteira aplicação, na sucessão de novas vidas. As recordações comprovam que todas as nossas vidas são solidárias umas com as outras e unidas entre si pelo liame de causa e efeito.

Poderíamos comparar cada uma delas a uma corrente que carrega ora o lodo do fundo, ora as pepitas de ouro e as pedras preciosas que trazemos das nossas vidas passadas.

Qualquer acto importante, cedo ou tarde, tem inevitável influência nos nossos destinos. Um devasso sedutor renascerá no outro sexo, para sofrer, por sua vez, os danos que causou.

Um homem que detinha um segredo de Estado e o divulgando, traiu o seu país, retornará surdo e mudo noutra existência. Outros, ainda mais culpados, desde a infância serão feridos pela cegueira, porque cada falta grave determina uma privação de liberdade que se traduz pela colocação de nossas almas em corpos disformes, doentes e miseráveis.

Não se conclua daí que todos os doentes são criminosos do passado! Muitos bons espíritos, sabendo que as provações ajudam o nosso aperfeiçoamento, escolhem existências difíceis e dolorosas, para alcançar um grau a mais na hierarquia espiritual.

Compete, sabermos, sofrer para nos juntarmos às almas nobres que progrediram pela dor; sabermos sofrer para conseguir o direito de participar da existência delas, do seu trabalho e da sua missão. Além disso, a vida é um meio de educação e de progresso, sendo a provação um cadinho onde se aperfeiçoam as criaturas.

Diante de nós, não temos os notáveis exemplos dos mártires de todas as grandes causas, os exemplos de Jeanne d’Arc na prisão e o de Jesus no calvário, estendendo os braços sobre o mundo, do alto da cruz, perdoando e abençoando? Eles não eram culpados, porém espíritos heróicos que desejavam subir mais alto na vida celestial, dando-nos uma grande lição!

A reconstituição das reminiscências está concorde com as revelações dos espíritos, apresentando-nos no padecimento humano, em muitos casos, o resgate das faltas cometidas, a reparação do passado, através do meio por onde se realiza a soberana justiça.

Realizado o resgate, a criatura se prepara para novos progressos, porém a sua memória não desaparece integralmente e os nossos actos surgem e revivem, ao comando do espírito, com espantosa intensidade. Quanta emoção, quando, invocando o passado, desfila perante o tribunal da consciência o cortejo das desagradáveis recordações! Como fugir de tal obsessão, das tristezas e remorsos e dos sofridos arrependimentos?

No ocaso da vida, o homem passa em revista os actos que constituíram o seu curso. Quantos motivos para a amargura e sofrimento moral vai neles encontrar!

O que não representará para o espírito, na análise da sua longa série de existências passadas, a recordação de seus pormenores?

Pouquíssimas almas jovens no início, na sua fraqueza e na sua ignorância, conseguiram evitar as quedas, os desfalecimentos e até os crimes. Para tais males só existe um remédio: juntar tantas vidas úteis e proveitosas, tantas obras de dedicação e de sacrifício que, comparadas às faltas primitivas, estas passem a ter pouco valor.

As reminiscências mais distantes permanecem vivas para o espírito, da mesma forma que as impressões da infância para o velho. É que, na sua essência, o espírito escapa ao tempo; volvendo à vida do espaço, o tempo já não existe para ele; o passado e o futuro se misturam no eterno presente.

Tal constância das recordações tem valor moral: durante o seu progresso o espírito adquire faculdades e poderes dos quais se envaideceria, caso não se lembrasse do pouco que foi e do mal que praticou.

Tais lembranças são uma punição para o orgulho e, ao mesmo tempo, motivo de indulgência para com os erros e os desfalecimentos do próximo. Realmente, como poderíamos ser duros e inclementes com os outros, por causa de suas fraquezas, se nós mesmos as cometemos?

Geralmente as vidas culpadas, pelas reparações que acarretam, convertem-se, para o ser, noutros tantos estimulantes, noutras tantas provações, obrigando-o a se adiantar na senda do progresso, sendo que as vidas apáticas, incolores, vacilantes entre o bem e o mal, são de pouco proveito para ele.

Graças às vidas de lutas e provações, os caracteres se fortalecem, a experiência se consegue, as riquezas da alma se desenvolvem. O mal transforma-se, aos poucos, em força para o bem. Na imensa evolução humana tudo se transforma, se depura e se eleva. Tão logo chegados às celestes alturas, os elementos das nossas vidas sucessivas se fundem em uma unidade harmoniosa e divina.

/…
(*) William Thomas Stead (1849-1912), foi um editor de um jornal inglês, pioneiro do jornalismo investigativo (i) e pacifista. Stead estava a bordo do RMS Titanic (i) e morreu durante o naufrágio do transatlântico (i). Era considerado um dos mais famosos ingleses a bordo. Na década de 1890, Stead, se foi tornando cada vez mais interessado no espiritualismo (i). Fonte: Wikiwand, ver notícia completa (i). Nota desta publicação.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XVII O Espiritismo e a Renovação das Vidas Anteriores, Setembro de 1918, 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Willim Stead, foi um editor de um jornal inglês, pioneiro do jornalismo investigativo, pacifista, interessado espiritualista pesquisador e editor, que ia a bordo do Titanic e morreu no naufrágio do transatlântico.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Da sombra do dogma à luz da razão ~


O instinto e a inteligência ~

     Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma fatalidade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

   O instinto é a força oculta que instiga os seres orgânicos a actos espontâneos e involuntários para a sua conservação. Nos actos instintivos não há nem reflexão, nem combinação, nem premeditação.

   É assim que a planta procurara o ar, se volta para a luz, orienta as suas raízes para a água e para a Terra alimentadora; que a flor se abre e se fecha alternadamente consoante a necessidade; que as plantas trepadeiras se enrolam à volta do suporte ou se agarram com as gavinhas. É por instinto que os animais são prevenidos quanto ao que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações para os climas propícios; que constroem, sem lições prévias, com mais ou menos arte, consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura, dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados; que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e que estes procuram o seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente o início da vida; é por instinto que a criança faz os seus primeiros movimentos, que toma os primeiros alimentos, que chora para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são instintivos; são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para respirar, etc.

   A inteligência revela-se por actos voluntários, reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

   Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela reflexão, combinação, uma deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o é.

   O instinto é um guia seguro que nunca engana; já a inteligência, pelo facto de ser livre, está por vezes sujeita ao erro.

   Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente, revela pelo menos uma causa inteligente essencialmente previdente. Se admitirmos que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos de admitir que a matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e previdente do que a alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a inteligência se engana.

   Se considerarmos o instinto como uma inteligência rudimentar como é que, em certos casos, é superior à inteligência reflectida? Que lhe permite fazer coisas que a inteligência não pode produzir?

   Se é atributo de um princípio espiritual especial, que acontece a esse princípio? Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria então anulado? Se os animais só são dotados de instinto, o seu futuro não tem portanto saída; os seus sofrimentos não têm qualquer compensação. Não estaria conforme com a justiça nem com a bondade de Deus (Capítulo II, n.º 19).

   Segundo uma outra teoria, o instinto e a inteligência teriam um só e igual princípio, chagado a um certo grau de desenvolvimento, este princípio, que primeiro só teria possuído as qualidades do instinto, sofreria uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.

   Se assim fosse, no homem inteligente que perde a razão e já só é guiado pelo instinto, a inteligência regressaria ao seu estado primitivo; e quando recuperasse a razão o instinto tornar-se-ia de novo inteligência e assim alternadamente em cada acesso, o que não é admissível.

   De resto, a inteligência e o instinto mostram-se muitas vezes simultaneamente no mesmo acto. No andamento, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem coloca um pé à frente do outro instintivamente, sem pensar nisso; mas quando quer acelerar ou retardar o andamento, levantar um pé ou voltar-se para evitar um obstáculo, há nisso cálculo, combinação; age deliberadamente. O impulso involuntário do movimento é o acto instintivo; a direcção calculada do movimento é o acto inteligente. O animal carnívoro é levado pelo instinto a alimentar-se de carne; mas as precauções que toma consoante as circunstâncias para apanhar a presa, a sua previsão das eventualidades, são actos da inteligência.

   Outra hipótese que aliás se alia perfeitamente à ideia de unidade do princípio, resulta do carácter essencialmente previdente do instinto, e estou de acordo com o que o Espiritismo nos ensina no que se refere às relações do mundo espiritual com o mundo corporal.

   Sabemos agora que Espíritos não encarnados têm por missão velar pelos encarnados de que são os protectores e os guias; que os rodeiam com os seus eflúvios; que o homem age muitas vezes de forma inconsciente sob a acção destes eflúvios.

   Sabemos além disso que o instinto, que produz ele mesmo actos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres de razão fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria um atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria exclusivamente ao ser vivo, mas seria um efeito da acção directa dos protectores invisíveis que compensariam a imperfeição da inteligência provocando eles mesmos os actos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria como os suspensórios com a ajuda dos quais sustentamos a criança que não sabe ainda andar. Mas, tal como suprimimos gradualmente o uso dos suspensórios à medida que a criança se sustem sozinha, os Espíritos protectores, à medida que estes se vão podendo orientar pela sua própria inteligência, deixam os seus protegidos entregues a si mesmos.

   Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, seria produto de uma inteligência estranha na plenitude da sua força; inteligência protectora, suprindo as influências tanto de uma inteligência mais jovem que influenciaria para fazer inconscientemente, para seu bem, o que ela é ainda incapaz de fazer por si, como as de uma inteligência madura, mas momentaneamente impedida do uso das suas faculdades, tal como acontece no homem durante a infância e nos casos de idiotice ou de afecções mentais.

    Dizemos proverbialmente que há um Deus para as crianças, para os loucos e para os bêbados; este ditado é mais verdadeiro do que julgamos; este Deus não é outro se não o Espírito protector que vela pelo ser incapaz de se proteger pela sua própria razão.

   Por esta ordem de ideias, podemos ir mais longe. Esta teoria, por muito racional que seja, não explica todas as dificuldades da questão.

   Se observarmos os efeitos do instinto, começamos por notar uma unidade de ideias e de conjunto, uma segurança de resultados que deixa de existir quando o instinto é substituído pela inteligência livre; além disso, na adequação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie, reconhecemos uma profunda sabedoria. Esta unidade de ideias não poderia existir sem unidade de pensamentos, e a unidade de pensamentos é incompatível com a diversidade de aptidões individuais; só ela poderia produzir este conjunto tão perfeitamente harmonioso que se manifesta desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e uma precisão matemáticas, sem nunca falhar. A uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um facto característico que implica forçosamente a unidade da causa; se esta causa fosse inerente a cada individualidade haveria tantas variedades de instintos como há de indivíduos, desde a planta até ao homem. Um efeito geral, uniforme e constante; um efeito que acusa sabedoria e precaução deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa sábia e previdente, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material.

   Não encontrando nas criaturas, encarnadas ou não, as qualidades necessárias para produzirem um resultado assim, é necessário ir mais alto, isto é, até ao próprio Criador. Se nos limitamos à explicação que foi dada sobre a maneira como podemos conceber a acção providencial (Capítulo II, n.º 24); se imaginarmos todos os seres penetrados de fluído divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de ideias que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Esta solicitude é tanto mais activa quanto menos recursos o indivíduo possui em si e na sua inteligência; é por isso que se revela maior e mais absoluto nos animais e nos seres inferiores do que nos homens.

   Segundo esta teoria, compreendemos que o instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atraentes da matéria, encontra-se elevado e enobrecido. Devido às suas consequências, não podia ser deixado às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Através do organismo da mãe, Deus vela pelas suas criaturas que vão nascer.

   Esta teoria não destrói de modo nenhum o papel dos Espíritos protectores cujo concurso é um facto adquirido e provado pela experiência; mas é de notar que a acção destes é essencialmente individual, que se modifica consoante as qualidades próprias do protector e do protegido e que em sítio nenhum tem a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, na sua sabedoria, conduz ele mesmo os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de conduzir os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade dos seus actos. A missão dos espíritos protectores é um dever que aceitam voluntariamente e que é para eles um meio de evolução, consoante a forma como a cumprem.

   Todas estas formas de considerar o instinto são necessariamente hipotéticas e nenhuma tem um carácter de autoridade suficiente para ser dada como solução definitiva. A questão será certamente solucionada um dia, quando tivermos reunido os elementos de observação que ainda nos faltam; até lá, temos de nos limitar a submeter as várias opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que se faça luz; a solução que mais se aproxima da verdade será necessariamente aquela que corresponde melhor aos atributos de Deus, isto é, à soberana bondade e à soberana justiça (Capítulo II, n.º 19).

   Sendo o instinto o guia e as paixões a energia das almas no primeiro período do seu desenvolvimento, confundem-se às vezes nos seus afectos. Há no entanto entre estes dois princípios diferenças que é essencial considerarmos. O instinto é um guia seguro, sempre bom; numa determinada altura, pode tornar-se inútil, mas nunca prejudicial; enfraquece com a predominância da inteligência.

   As paixões, nos primeiros anos da alma, têm isto de comum com o instinto, no que os seres são para isso solicitados por uma força igualmente inconsciente. Nascem mais particularmente das necessidades do corpo e estão mais ligadas ao organismo do que o instinto. O que sobretudo as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais uniformes, pelo contrário, vemo-las variar de intensidade e de natureza consoante os indivíduos. São úteis como estimulante até à eclosão do sentido moral que, de um ser passivo, faz um racional; nesse momento, não só se tornam inúteis como são prejudiciais à evolução do Espírito, a que retardam a desmaterialização; enfraquecem com o desenvolvimento da razão.

   O homem que agisse constantemente por instinto poderia ser muito bom, mas deixaria a sua inteligência adormecer, seria como uma criança que não largasse os suspensórios e não soubesse servir-se dos seus membros. Quem não domina as suas paixões pode ser muito inteligente mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto anula-se por si; as paixões só se dominam com força de vontade.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – O instinto e a inteligência (de 11 a 19), 20º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 24 de março de 2019

o sentido da vida ~


Do Empirismo | à Ciência (II)

E chegamos, assim, ao ponto em que os podemos defrontar com a religião no próprio terreno da ciência, que lhe parecia antagónico. Do empirismo supersticioso até ao limiar da ciência, que longo percurso tivemos de fazer! Mas ainda não estamos livres das práticas empíricas. Estas, pelo contrário, continuam a exercer poderosa atracção sobre os próprios adeptos do Espiritismo.

Diz um velho ditado que o uso do cachimbo faz a boca torta. E muitos espíritas, não podendo deixar de aceitar os factos e as verdades com que tiveram de se defrontar, mas não tendo forças para sair prontamente dos hábitos adquiridos, procuram introduzir no Espiritismo práticas e sistemas alheios à natureza real da doutrina. O Espiritismo não é uma igreja, os centros e sedes de outras associações doutrinárias não são templos ritualistas, nem possuem sacerdotes para ministrar sacramentos, mas o espírita de boca torta não concebe um casamento sem a bênção da igreja ou um nascimento sem as águas lustrais do baptismo.

E então se apega ao médium, tábua de salvação para vivos e mortos e, apela ao mundo dos espíritos, que lhe envie – eterna simplicidade do povo! – um espírito de padre, para ministrar os sacramentos que ele se recusa a tomar na própria fonte de origem, aqui na Terra!

Mas ainda não é só. Alguns adeptos, inconformados com a simplicidade racional da doutrina, viciados ainda no transcendentalismo artificial das religiões ritualistas, procuram refúgio noutras concepções, que parecem mais vastas, mais profundas e mais ricas. É ainda a atracção do maravilhoso. Allan Kardec diz:

“O sobrenatural se esvai à luz da ciência, da filosofia e do raciocínio, como os deuses do paganismo desapareceram à luz do Cristianismo.”

Esses adeptos, porém, ainda não receberam luz suficiente das verdades espíritas e continuam fascinados pelo sobrenatural, maravilhoso.

Alegam então que a Teosofia não se restringe aos problemas da sobrevivência e da intercomunicação, indo muito mais longe, na interpretação da própria natureza de Deus e na explicação de mistérios que os espiritistas ainda ignoram por completo. Afirmam que os rosa-cruzes possuem uma visão mais dinâmica e profunda do Universo, que certas escolas esotéricas e mentalistas possuem fórmulas capazes de resolver mais prontamente, do que pelos meios espíritas, os graves problemas do psiquismo. E há os que preferem as fórmulas nebulosas de sincretismo religioso, formas híbridas de ritualismo e de sistemas sacramentais, como as correntes de Umbanda, em que as superstições afro-caboclas se misturam exuberantemente aos elementos do culto católico-romano. E há os que, ansiosos por descobrir “mistérios” que o Espiritismo não aceita, se apegam a interpretações confusas, como as do chamado Redentorismo, ou ao misticismo incoerente e artificioso de Roustaing.

A todos esses espíritas desprevenidos devemos lembrar que o esforço maior do Espiritismo é realizado no sentido de libertar o homem das suposições sem base, das explicações transcendentes, das superstições de tabus religiosos. O Espiritismo não deseja reforçar as tendências instintivas do homem para o maravilhoso, mas conduzi-lo com mão firme, segura e serenamente, para o conhecimento real das verdadeiras maravilhas do Universo, tanto as da natureza exterior quanto as do plano espiritual.

A imaginação humana é muito fértil e não é difícil, a qualquer homem dotado de grandes recursos de inteligência, arquitectar um sistema de explicações do Universo, desde as formas rudimentares da matéria até aos esplendores da natureza divina. Também do espaço, muitos sistemas dessa espécie podem ser-nos transmitidos por espíritos “esclarecidos”, a título de revelação. Mas Kardec já nos deu a lição, dos seus ensinamentos e do seu exemplo, no tocante a essas revelações do tipo roustainguista.

Há uma pauta segura para a avaliação das coisas, venham elas de cima ou aqui de baixo mesmo. Há uma linha de raciocínio que nos serve de guia seguro no labirinto das suposições e das teorias. E há o critério científico de observação, de comparação e de análise, que deve presidir ao trabalho do homem no terreno espiritual, como em qualquer outro. Por isso mesmo, no campo da religião, domínio aberto do empirismo e do maravilhoso, o Espiritismo nos oferece o antídoto da fé raciocinada, verdadeira vacina contra os exageros místicos e a chave de controlo para o desenvolvimento equilibrado da era da intuição, da qual se aproxima a humanidade.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do Empirismo à Ciência 2 de 2, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quarta-feira, 6 de março de 2019

~~~Párias em Redenção~~~


~~~ INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(III)
  Aquele era o estranho mundo dos desencarnados. Sociedade idêntica à terrena, pela proximidade do veículo das sensações, de que somente alguns, poucos, conseguiam libertar-se, continuavam os Espíritos imanados aos hábitos da ociosidade perniciosa e das paixões degradantes.

  Associados em magotes que se caracterizam pelas preferências em que longamente se comprazem, formam bandos e legiões que povoam as cidades, ou se congregam em regiões que infestam de forças deletérias, formando comunidades perniciosas, estabelecendo organizações de mando, nas quais se destacam os mais perversos, que passam à condição de condutores e administradores dos seus destinos.

  Nessas colmeias de suprema miserabilidade moral e espiritual, o regime da força e da degradação consome multidões desvairadas, que se vão reduzindo às mínimas manifestações da racionalidade, em círculo de infelicidade que conduz, incessantemente, à demência, à bestialidade todos aqueles que se vinculam às suas tenazes… Dir-se-ia que ali não penetram a Misericórdia Excelsa do Amor, nem as bagas de luz da esperança. Repetir-se-ia a visão dolorosa das palavras que Dante divisara gravadas à entrada dos Infernos: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!” (*)

  Naquelas desoladas e inenarráveis regiões, em que se aglomeram os trânsfugas, a mais fértil imaginação não concebe os dramas e as tragédias, os suplícios com que se lapidam, auto-afligindo-se e afligindo-se uns aos outros, em sede incomensurável de reparação. O acontecimento, embora inconcebível pela dor que produz, é parte da Divina Mercê, que se utiliza de todas as circunstâncias de tempo e lugar, situação e forma para despertar os profundamente anestesiados nos centros da lucidez, hipnotizados pela febre dos desejos, que gravitam apenas nos instintos, ferreteados pela lancinante agonia, única linguagem que lhes pode chegar à acústica do espírito infeliz, impulsionando-os pelo incontido desejo de paz na desgraça em que padecem, para sair dos bastardos estados de primitivismo.

  Entretanto, até que muitos despertem, passam-se séculos, que não são consumidos nos submundos edificados pelas mentes terreficadas pelo mal e agrilhoadas às sensações selvagens, já que essas esferas de sombra e punição se espalham pela mesma Terra, em purgatórios e infernos temporários, mas de longa duração, justificando as consciências obliteradas e os corações empedernidos.

  Nesses lugares edificam os seus sórdidos e infectos pardieiros, utilizando-se da própria exteriorização mental, carregada de fluidos danosos, em que as emanações pestilenciais formam a atmosfera quase irrespirável para eles mesmos, que assim, lentamente, despertam para valorizar as bênçãos do ar puro da Natureza, nos futuros cometimentos reencarnatórios, a que serão compelidos pelo império da Lei, que um dia os alcançará.

  Ali proliferam subtipos, em experiência nas primeiras tentativas da evasão, infensos ao sentimento, mergulhando no corpo e dele retomando pelo automatismo do Estatuto Divino em funcionamento coercitivo. Os albores da inteligência neles se fazem acompanhar das primeiras experiências na sociedade humana, em cujas oportunidades iniciam o progresso ou se demoram na condição primária. Sempre chega, porém, o momento do despertar e a todos são facultadas sublimes concessões para o aprimoramento e a felicidade.

  Os bandos que se arrastam inermes ou se tragam em fúria, deambulando pelas ruas e lugares onde podem exercitar a vampirização, por sintonia dos propósitos mantidos pelos encarnados, demoram-se entre os homens em perfeita comunhão mental, arrancando-lhes, por exorbitância, as energias físicas e psíquicas, no mais hediondo comércio que se possa imaginar.

  Participando activamente das tragédias que enlutam as criaturas, comprazem-se ante os infaustos acontecimentos, pelos lucros que podem fruir, vampirizando, normalmente, os que partem da Terra sem as armas de defesa da vida – que são as lâmpadas da caridade, as luzes do amor, as bênçãos da honradez, as energias da renúncia, as forças da humanidade, que não conseguem sobrepujar, pois que fogem espavoridos ante o grandioso argumento do valor intransferível. Além disso, os Espíritos felizes, reconhecidos e amorosos, cercam aqueles que se lhes fizeram afins, protegendo-os das surtidas dos salteadores do Espaço, impondo-lhes a retirada…

  Nos suicídios, no entanto, que pressentem, pois que são atraídos pela mente desvairada do desafortunado que o engendra, inevitavelmente se associam para o banquete hediondo da vampirização. O mesmo acontece no homicídio, quando a vítima desguarnecida dos recursos libertadores se vincula, pelo ódio ou pelas vibrações nefastas, ao que lhe arranca a vida, caindo nos círculos desses vândalos desencarnados.

  Girólamo oferecera o corpo em estertores à chusma de vampiros, cujas impressões dolorosas só mais tarde viriam atormentá-lo, adicionadas às supremas aflições que já o laceravam.

  Vivendo no trânsito entre o animal e o homem primário, jamais cuidara da realidade do espírito, não produzindo qualquer fortaleza para se agasalhar, além da sepultura, dos tormentos gerados pela infame tragédia do suicídio em que se atirara. Transladou-se sem qualquer recurso de defesa ou título de merecimento que lhe facultassem repouso. Consciência obliterada para as manifestações do belo, do nobre e da virtude, despertava, agora, no país da realidade, com os destroços acumulados na avareza e reunidos pela criminalidade.

  Na sucessão de vagados em que, alucinado, caía em exaustão, para acordar sob as mós das dores acumuladas, começou a sentir o cadáver no mausoléu em que se desagregava, atado pelos laços poderosos que a rebeldia não conseguiu atingir. Deu-se conta, então, a pouco e pouco, do grotesco infortúnio em cujo fosso se arrojara irremediavelmente…

  Em bestial angústia, percebeu-se no desgaste orgânico que o afectava cruelmente, sentindo os milhões e milhões de vibriões que lhe percorriam as células, voluptuosos, como se estivessem na intimidade do espírito, e, por mais que desejasse evadir-se do local, era compelido a continuar sem o amparo de qualquer lenitivo.

  Simultaneamente, a sufocação, o enfraquecimento pela perda das energias de sustentação das forças psíquicas vampirizadas, as dores na cabeça, que se dilatava grotesca, pelo impedimento da circulação no cérebro, produziam-lhe indizível sensação. Só então, (quanto tempo transcorrera!) experimentou nos ouvidos, que pareciam destroçados por um petardo que espocasse dentro, incessantemente, as objurgatórias, as acusações, a mofa, a zombaria infernal dos que se nutriam da sua desdita.

  – E agora, suicida? – interrogavam em zombaria desrespeitosa. – Para onde vais? Eis aí a morte! Estamos todos mortos. Onde esconderás a vergonha, o cinismo, a hediondez? Fala!

  Gargalhadas de impiedade e cinismo explodiram, ensurdecedoras.

  Pretendeu falar, furioso, açulado em toda a sua miséria, mas não pôde. Os centros da fala haviam sido atingidos profundamente e ele se sentiu impossibilitado de pronunciar qualquer palavra.

  A mente aturdida, no entanto, espicaçada pela gritaria, reflectia: “Morto?! Aquilo era a vida, não a morte. Fora, possivelmente, atirado a um cárcere imundo e estava a apodrecer, ao abandono. Não sabia, no entanto, como tal acontecera. O certo é que a Corda se partira…”

  – Enganas-te, sicário dos outros. Morreste! Isto é a morte. Suicida, suicida! Pagarás, agora, todos os teus monstruosos crimes contra a Humanidade. Nada passa despercebido dos olhos vigilantes da vida. Aqui estamos. Somos a consciência do mundo, em regime de justiça, colhendo os desgraçados como tu para cobrar-lhes os crimes que têm passado impunes. Por que te apressaste em regressar? Não sabias que cada minuto no corpo oferece ocasião de reparar os males praticados? Agora, é tarde. Muito tarde!

  Girólamo rebolcava-se, semi-obnubilado e semiconsciente, sem entender.

  – Desperta para o resgate, infeliz, desnaturado que és, como nós. Desperta para começar o martírio. Estás vivo e pagarás todos os teus crimes.

  Muito lentamente, nas sombras densas passou a ver as figuras hediondas, as formas grotescas e, dominado pelo estarrecimento, planejou fugir, arrancar em disparada loucura. Não pode fazê-lo. As amarras que o jungiam, ao cadáver não o permitiram. Os liames perispirituais restringiam-lhe os movimentos, impelindo-o à participação consciente da responsabilidade. A justiça alcançava o criminoso evadido da organização física, mas não da vida!...

  Nesse comenos, em que se sucedem as volumosas e contínuas desventuras, Girólamo vê, e estarrece-se, as figuras de Dom Giovanni e Assunta, suas vítimas, seus verdugos.

  A máscara de dor e ódio das personagens enfurecidas e descompostas levam-no a demorado desmaio.

  Tão pronto recobra a consciência naquele hórrido martírio, ouve com infinito pavor:

  Somos os teus actuais juízes, – diz-lhe o Duque. – Serás julgado e devidamente punido. Ainda não começaram os teus padecimentos. Disse-te que não ficarias impune, miserável. Acorda, logo, para a recuperação. Seremos os teus acusadores. Esperemos que se afrouxem mais os laços que te atam a esses restos, após o que serás transladado ao Tribunal. Não fugirás, pois não tens onde esconder-te.

  Surpreendi-te, infame. Ninguém ou nada interferirá a teu favor, pois, além de tudo, és suicida. Acorda para pagar!

/...
(*) “Deixai qualquer esperança, vós que entrais!” – Cante III, v. 9 – Inferno – Divina Comédia, Dante Alighieri.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (3 de 3) 36º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo X

Considerações Políticas e Sociais  O papel da Mulher  A influência Céltica  As Artes  A Liberdade e o livre-arbítrio ~
(II de II)

 Os nossos antepassados, dizíamos, tinham feito do princípio da liberdade a base das suas instituições sociais e, ao mesmo tempo, o coroamento da sua filosofia, visto que a liberdade social ocasiona, logicamente, a liberdade moral, a da alma na Terra e no espaço. Aqui aparece a questão, tão controvertida, da liberdade e do livre-arbítrio, duas palavras para uma mesma ideia, porque o livre-arbítrio é a aplicação individual do princípio da liberdade.

 A liberdade é a condição essencial do desenvolvimento, do progresso e da evolução do homem. A lei da evolução, deixando-nos o cuidado de edificarmos, através dos tempos, a nossa personalidade, a nossa consciência e, portanto, o nosso destino, deve dar-nos os meios para isso, assegurando-nos o exercício da nossa livre escolha entre o bem e o mal, visto que os méritos adquiridos constituem o preço da nossa elevação.

 O mesmo acontece quanto à consequência dos actos, o encadeamento das causas e dos efeitos que recaem sobre nós. Daí a nossa responsabilidade, inseparável do nosso livre-arbítrio, sem o qual o ser não seria mais do que um joguete, uma espécie de marionete nas mãos de uma potência externa, por consequência, um ser desprovido de originalidade e sem grandeza.

 Tendo em vista a imensa trajectória que a alma deve realizar através do tempo e do espaço, ela deve possuir o livre-exercício das suas faculdades, a inteira disposição das energias que Deus nela colocou, com os meios de as desenvolver. Que confiança poderíamos ter no futuro, se nós nos sentíssemos joguetes cegos de uma força desconhecida, sem vontade, sem energia moral?

 Eis por que os druidas afirmavam o princípio de liberdade desde a primeira Tríade e, mais explicitamente, nas Tríades 22, 23 e 24:

22 – Três primeiras coisas simultaneamente criadas: o homem, a liberdade, a luz.

23 – Três necessidades do homem: sofrer, renovar-se (progredir), escolher.

24 – Três alternativas do homem: “Abred” e “Gwynfyd”, necessidade e liberdade, mal e bem, todas as coisas estando em equilíbrio, e o homem tendo o poder de se ligar a uma ou a outra, conforme a sua vontade.

 Vão-me contrapor, certamente, a diferença das faculdades nos homens; das vontades, dos caracteres, a força moral de uns e a fraqueza de outros. Em face de um acto desleal, mas vantajoso, ou perante a sedução das paixões, um homem poderá deixar-se seduzir enquanto que o outro ficará inabalável, firme. Como medir a parte da liberdade atribuída a cada um, como conciliar o problema do livre-arbítrio com as teorias do determinismo?

 Neste assunto, como em tudo o que se relaciona com a natureza íntima do ser, é preciso elevar-se acima dos horizontes estreitos da vida presente e considerar as enormes perspectivas da evolução da alma. É o que os druidas souberam fazer com a sua doutrina, e o que, a seu exemplo, repetem os espiritualistas modernos, pelo menos os da escola de Allan Kardec.

 O círculo estreito dos conhecimentos, a exiguidade do nosso campo de observação, a ignorância geral das origens e dos fins, são obstáculos à solução dos grandes problemas. É preciso, para resolvê-los, elevar-mo-nos bem alto pelo pensamento e considerar o conjunto das vidas da alma, a sua lenta ascensão através dos séculos; então, tudo o que parecia confuso, obscuro, inexplicável, se dissipa, se aclara.

 Compreendemos como a nossa personalidade se engrandece, pouco a pouco, pelas relações sucessivas das nossas vidas; como a experiência e o julgamento se desenvolvem, e como a nossa liberdade se afirma, cada vez mais, à medida que a nossa evolução se acentua e que participamos mais intimamente na comunhão universal.

 No início da sua imensa trajectória, o ser ignorante, inexperiente, é submetido firmemente às leis universais que lhe comprimem e limitam a acção. É o período inferior. Mas, à medida que ele se eleva na escala dos mundos, o seu livre-arbítrio adquire uma amplitude sempre maior, até que, tendo atingido as alturas celestes, o seu pensamento, a sua vontade e as suas vibrações fluídicas se encontram em harmonia perfeita, isto é, em sincronismo com o pensamento e a vontade divina; o seu livre-arbítrio é definitivo, ele já não falhará mais.

 Àqueles que exigem axiomas ou fórmulas científicas, pode dizer-se: o livre-arbítrio está, para cada um de nós, em relação directa com as perfeições conquistadas; enquanto que o determinismo está na razão inversa para com o progresso da evolução.

 Apresentam-nos como oposição a previsão do futuro entre certas pessoas. Mergulhando-se até às causas do passado; é possível deduzir-lhe o porvir e predizer os acontecimentos futuros na medida em que eles são a resultante lógica dos actos livremente cumpridos, o feixe dos factos anteriores que se desenrolam, através dos tempos, na sua ordem lógica e implacável. Ora, a reconstituição do passado pode ser obtida nos fenómenos de exteriorização, (i) como também nas revelações dos espíritos, bastante evoluídos para reencontrar, na memória subconsciente dos pacientes, o encadeamento das suas vidas anteriores.

 É assim que o espiritualismo experimental nos demonstra, por factos, a existência do livre-arbítrio e nos fornece a prova de que, sobre este ponto, como em tantos outros, os nossos antepassados não se enganaram.

 Entretanto, é preciso reconhecer que, com o nosso planeta ocupando um grau pouco elevado na escala da evolução, o ser humano – ainda que desfrutando de uma parte de liberdade suficiente para lhe ocasionar a responsabilidade dos seus actos – não saberia possuir um livre-arbítrio absoluto. É isso que os druidas definiram nestes termos, desde a primeira Tríade, fazendo figurar entre as três unidades primitivas: “Um ponto de liberdade, onde se equilibram todas as oposições.”

 Esta fórmula exprime a acção das leis universais que comprimem e restringem os nossos meios de acção. Nenhum ser está abandonado a si mesmo; a influência providencial age sobre ele de duas maneiras: pela consciência ela nos comunica as inspirações, as intuições necessárias, tanto mais claras e precisas quanto mais aptos estivermos para recebê-las pela orientação do nosso pensamento e da nossa vida; em seguida, pela acção dos invisíveis, que se estende sobre nós, às vezes, intensamente, para que se possa dizer que são os mortos que governam os vivos.

 Cada um de nós pertence a um grupo espiritual, uma família de almas em que todos os membros são solidários e evoluem em comum. Todos estes espíritos, encarnados ou desencarnados (i), desempenham, uns para com os outros, alternadamente, a função de protectores ou de protegidos. Os que permanecem no espaço ajudam, inspiram, sustentam aqueles que vivem e sofrem na Terra. Se os homens soubessem quanta assistência lhes vem do Alto e quanta doce solicitude os envolve, eles teriam mais segurança, mais confiança na lei superior de justiça e de harmonia que rege os seres e os mundos. Eles dariam mais atenção às sugestões benéficas das quais eles são objecto, em vez de permanecerem insensíveis e indiferentes a elas, por efeito de uma liberdade mal empregada. Estas sugestões foram tais que se pode afirmar que, por intermédio da nossa consciência, entrámos em contacto com as coisas divinas.

 Cada grupo de almas é dirigido e inspirado por um ou mais espíritos eminentes cujos méritos os fizeram chegar às alturas celestes, ao círculo de “Gwynfyd”, de onde a irradiação de sua sabedoria e de sua experiência se estende, através das distâncias, até aos membros de sua família ainda atrasados nos mundos da matéria.

 Noutra parte descrevemos, conforme as lições dos nossos guias, as condições da vida celeste, as grandes tarefas e as missões nobres que ela comporta; o crescimento gradual das percepções e das sensações, a participação sempre mais intensa na obra eterna de poder e de beleza que é o Universo e as felicidades obtidas ao preço de numerosas existências de trabalho, de estudo e de provas.

 Deus, dizem as Tríades, atribui a cada alma nova o “Awen”, uma parcela do génio que ela é chamada a desenvolver, na sequência dos tempos, de modo a transformar, pouco a pouco, essa centelha primitiva num foco radiante que dote o espírito de uma luz imperecível.

/…
(i) Ver O Problema do Ser e do Destino, capítulo XIV.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda parte, Capítulo X Considerações políticas e sociais, o papel da mulher, a influência céltica, as artes, a liberdade e o livre-arbítrio (II de II), 33º fragmento e o último desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da liberdade; Ossian, Desaix, Kléber, Marceau, Hoche, Championent, pintura de Anne-Luis Girodet-Trioson)

domingo, 20 de janeiro de 2019

o grande desconhecido ~


Colaboração Inter-Existencial

A Filosofia actual, representativa do nosso século, é a Existencial. Dela derivou o movimento existencialista, por uma interpretação espúria do pensamento de Jean-Paul Sartre. Mas o pensamento deste famoso filósofo francês nada tem a ver com as extravagâncias de Juliette Gréco, que se aproveitou do renome de Sartre para criar no Café de Flore (i), em Paris, um movimento juvenil em que se atribuiu o título de Musa do Existencialismo, dando a Sartre o título de Papa do Existencialismo. Simone de Beauvoir, discípula e companheira do filósofo, perguntou-lhe porque aceitara esta situação. Sartre encolheu os ombros, dizendo que nada tinha a ver com o movimento da cantora e nem se interessava por ele. O famoso autor de O Ser e o Nada e da Crítica da Razão Dialéctica costumava escrever numa das mesas do Café, e ali continuou a trabalhar, indiferente aos shows da artista. A Filosofia Existencial desfigurou-se na opinião dos leigos, mas não abalou o seu prestígio no meio intelectual. Fundada por Kierkegaard, teólogo dinamarquês, que não pretendia filosofar, a Filosofia Existencial dominou o pensamento filosófico mundial e permanece como o marco de uma profunda revolução filosófica, semelhante à de Copérnico na Astronomia. O conceito existencial do homem foi desenvolvido pelos maiores filósofos contemporâneos, como Martin HeideggarKarl JaspersGabriel MarcelSimoneCamus e outros. Este conceito corresponde ao espírita, formulado por Kardec na Filosofia Espírita. O homem é um projecto, um Ser que se lança na existência e a atravessa como uma flecha em direcção à transcendência que é o objectivo da existência. Para Sartre, materialista, a morte é a frustração do homem. Para Heideggar, metafísico, o homem se completa na morte. A Filosofia Existencial admite, em geral, que o Ser é um embrião lançado à existência para desenvolver as suas potencialidades. Há uma diferença essencial entre Vida e Existência. Todos os seres vivem, mas só o Ser humano existe, porque existir é ter consciência de si mesmo e viver em ritmo de ascensão, buscando superar a condição humana e atingir a divina. O homem é o único existente. Esta palavra, existente, designa o homem como Ser na existência.

Vejamos o sentido tipicamente espírita desta concepção do homem. Antes de Ser; o homem é apenas um vir-a-ser, uma coisa misteriosa fechada em si mesma. Ansiando por relação, essa coisa projecta-se na existência e abre-se na relação, encontrando nela os elementos que a despertam e a transformam num Ser. Este toma consciência de sua própria natureza de Ser e como tal busca superar-se. No trânsito existencial desenvolve a sua essência e abre no maciço do mundo, feito de leis rígidas e fatalistas, a única brecha de liberdade, que é o homem com o seu livre-arbítrio. Para Sartre, ao chegar à morte o homem já elaborou a sua essência na existência, mas esta não subsiste porque o homem desaparece na morte: o homem é uma frustração. Para Heidegger, o Ser desenvolve-se na existência e completa-se na morte: é uma realização. Para Jaspers, o desenvolvimento do Ser na existência faz-se em duas etapas:

1ª) a transcendência horizontal, no plano social;
2ª) a transcendência vertical, em busca de Deus.

Sartre aplica ao existente a dialéctica de Hegel:

a) o homem antes da existência é o em-si;
b) o homem na existência é o para-si;
c) o homem na morte é o em-si-para-si.

Como vemos, o em-si-para-si é a síntese dialéctica em que o em-si, (fechado em si mesmo) e o para-si, (aberto na relação social), que é a transcendência, horizontal de Jaspers, resolve-se no em-si-para-si, que é a condição divina atingida na transcendência vertical.

O conceito filosófico de existência difere profundamente do conceito de vida. Enquanto a vida se define como o elã de Bergson, um impulso, uma força que penetra na matéria e, segundo a ideia hegeliana, modela as formas, a existência é subjectividade pura, o que vale dizer espírito. Assim, não vivemos como as plantas e os animais, integrados na matéria, mas como espíritos ligados à matéria para usá-la em função dos seus interesses subjectivos. Vivemos na psique e não no corpo. A nossa vida não é propriamente vida, mas um existir independente das coisas e dos seres materiais, cuja única aspiração verdadeira é a liberdade, que só podemos de facto ter e gozar na interioridade de nós mesmos. Mesmo encarnados, não saímos do plano espiritual, continuamos nele, o nosso habitat natural, como sonâmbulos. A matéria não nos absorve, apenas se reflecte na nossa sensibilidade. O dia e a noite, a vigília e o sono, como Jaspers observou, marcam o ritmo existencial da relação alma-corpo. Durante o repouso do corpo, para se refazer, voltamos ao mundo espiritual no veículo do perispírito, e mesmo em plena vigília escapamos da matéria através das fugas psíquicas, das projecções telepáticas, das várias modalidades da percepção extra-sensorial. A hipnose prova o sentido ilusório do viver. No estado sonambúlico ou hipnótico, semi-desligados do corpo, vagamos no intermúndio e aceitamos facilmente as sugestões de uma situação irreal: tocamos violino sem violino, sentimos calor e transpiramos sem calor, resistimos ao fogo sem nos queimar, regressamos no tempo e projectamo-nos no futuro através da memória e assim por diante. A Gestalt mostra-nos a ilusão da forma na percepção normal do mundo, em que as aparências pregnantes cobrem a realidade material precipitando-nos em quedas e frustrações. A evolução da Física roubou-nos o mundo sólido e opaco do passado e lançou-nos no torvelinho dos átomos e das partículas nucleares. A matéria esfarelou-se nas mãos dos físicos e obrigou-nos a reconhecer, como Seres evanescentes, que vivemos num mundo mágico de estruturas imponderáveis.

Diante desta realidade fantástica, as leis físicas às quais Bertrand Roussel se apegou para não naufragar no irreal, impõe-se a realidade-real das leis psíquicas, do espírito que domina, estrutura e ordena a matéria. O que chamamos de vida transforma-se em existência, e esta não é mais do que a curta medida do tempo necessário para nos libertar de um condicionamento mental determinado pela ilusão dos sentidos, como Descartes já verificara e demonstrara nas suas tentativas de nos dar a Ciência Admirável que o Espírito de Verdade lhe revelara em sonhos. O cogito ergo sum do filósofo aparece-nos hoje como um traço de união entre o Cristianismo puro do Cristo e o Espiritismo, em que a verdade revelada se restabelece na sua realidade incompreendida, como uma ponte fluídica e indestrutível que liga duas partes do real, separadas pelo abismo de quase dois milénios de loucura, de esquizofrenia religiosa. Ao descobrir que esta frase cartesiana – penso, logo existo – foi o abre-te Sésamo de um filósofo mágico que não queria ilusionar mas atingir a Verdade, compreendemos que a ponte cartesiana passou sobre um abismo onde espumou por milénios à voragem de sangue e impiedade de um pesadelo mundial. E tão hipnótica foi esta voragem que os cientistas e os filósofos ainda resistem ao chamado da nova concepção do homem e do mundo que o Espírito de Verdade nos oferece. O próprio Descartes, apegado aos ídolos de Bacon, saiu do seu deslumbramento para uma peregrinação ao ídolo de Nossa Senhora de La Saletti, no cumprimento de uma promessa. Repetiu-se neste episódio histórico a mensagem do Mito da Caverna na República de Platão. Um escravo escapou dos grilhões e foi ver à luz do Sol a realidade que só conhecia através das silhuetas das sombras. E quando voltou e contou o que vira lá fora, os demais consideraram-no perturbado. No entanto, a partir das suas obras iniciava-se no mundo a Renascença Cristã, que se completaria mais tarde numa eclosão mediúnica em que as línguas de fogo do Pentecostes se acenderiam de novo sobre a cabeça dos Apóstolos da Nova Era. O conceito de existência é o carisma do Século XX, da fase mais aguda da transição planetária para um grau superior na Escala dos Mundos. As inteligências terrenas foram convocadas para a nova batalha cristã, em que os Mártires da Verdade não sofreriam mais as penas cruentas do passado tenebroso, mas enfrentariam as angústias da incompreensão e o martírio inevitável da marginalização cultural. Os construtores da nova cultura, nascida dos princípios cristãos, iniciariam sob escárnio e calúnias a construção da Civilização do Espírito. Este o grave problema que os espíritas precisam encarar com a maior seriedade no nosso tempo, pois somos herdeiros desta causa e os continuadores desta obra. Se não nos empenharmos nela com a devida consciência da sua importância, se não formos capazes de sacrifício e abnegação em favor dos novos tempos, assumiremos também a nossa parte de responsabilidade nos fracassos que poderão levar-nos a uma catástrofe planetária.

Mas é bom lembrar que não estamos sós. Ao conceito de existência dos filósofos actuais o Espiritismo acrescenta o conceito da solidariedade existencial entre os espíritos e os homens. Provada a sobrevivência dos mortos pela pesquisa científica e demonstrada a interpretação dos mundos material e espiritual – que se evidência na nossa própria organização psicofísica –, impõe-se naturalmente o conceito espírita da inter-existência. Já vimos que não vivemos apenas no plano material, que não estamos fundidos no corpo carnal, mas apenas ligados a ele como o condutor ao seu veículo. Nos estudos do Hipnotismo aprendemos que a nossa vida diária também se processa simultaneamente em dois planos. O mesmo acontece com os espíritos, que não estão isolados no plano espiritual, mas passam constantemente do seu plano para o nosso, como vemos no caso das comunicações mediúnicas, das aparições, das materializações e até mesmo, de maneira espontânea e concreta, visível e palpável, no caso dos agéneres. Assim, a interpenetração do plano espiritual inferior com o plano material superior (a crosta terrena e a sua atmosfera), constitui a zona planetária a que chamamos de intermúndio. Os gregos antigos diziam que os seus deuses viviam no Intermúndio, entre o Céu e a Terra. O Espiritismo permite-nos compreender esta verdade de maneira clara e racional: para eles, os espíritos eram os deuses bons e maus que se comunicavam através dos oráculos e das pitonisas. Eles também conheciam os agéneres, pois os seus deuses podiam descer do Olimpo e aparecer aos homens como homens. O conceito de inter-existência deriva do conceito de intermúndio formulado pelos gregos.

E no Espiritismo estes conceitos se ampliam através das pesquisas mediúnicas, revelando as leis da colaboração inter-existencial a que naturalmente se entregam os espíritos e os homens, em todos os tempos, desde os primitivos até ao nosso. Contamos, pois, com a colaboração constante dos nossos companheiros de humanidade na batalha cristã de elevação da Terra.

Anotemos a importância que, neste contexto, adquirem as sessões mediúnicas de orientação e esclarecimento de espíritos sofredores ou malfeitores. A doutrinação espírita, sempre auxiliada pelos Espíritos Superiores e os Espíritos Bons que os servem, é um trabalho humilde de caridade que, no entanto, não se limita aos efeitos pessoais em favor do socorrido e das suas vítimas, pois a sua contribuição maior é a da renovação consciencial ou o despertar das consciências humanas para as responsabilidades do Ser na existência. Pouco pode fazer uma sessão de doutrinação, diante da extensão dos desequilíbrios, a multidão de sofredores e malfeitores que nos rodeiam. Mas cada espírito que se esclarece é uma nova irradiação nas trevas conscienciais. Além disso, numa pequena sessão não temos o esclarecimento apenas das entidades comunicantes. Em geral, é maior o número de espíritos assistentes, que se beneficiam com a doutrinação dos que se encontram na sua mesma situação. Por outro lado, o ambiente espiritual da sessão irradia as suas luzes muito para além do recinto estreito em que se realiza. O milagre da multiplicação dos pães repete-se em cada sessão de humildes servidores da causa que é de toda a Humanidade. Os resultados positivos das sessões vão muito para além do que podemos perceber, espalhando os seus benefícios no intermúndio, no Espaço e na Terra. Note-se ainda que estas sessões representam a colaboração humana nos trabalhos de esclarecimento e orientação que os Espíritos realizam incessantemente no plano espiritual. Esta participação dos homens nas tarefas espirituais restabelece os elos de fraternidade desfeitos pelo formalismo igrejeiro. E desfaz a fábula do ciúme dos anjos, que se teriam rebelado contra Deus pela encarnação de Jesus como homem, pela concessão aos padres do direito de perdoar pecados, que os anjos não possuem. Fábulas desta espécie, criadas pela pretensiosa imaginação teológica, dão-nos a medida do desconhecimento dos clérigos mais ilustrados e prestigiados sobre a realidade espiritual. Os anjos não são mais do que espíritos humanos que se sublimaram em encarnações sucessivas. O Espiritismo coloca o problema da Criação em termos evolutivos, à luz da concepção monista e monoteísta. Nas sessões mediúnicas de caridade, anjos, espíritos humanos e espíritos diabólicos participam como orientadores, doutrinadores e necessitados de doutrinação. Não sendo o Diabo mais do que uma alegoria, um mito representativo dos espíritos inferiores voltados para o mal, a presença dos impropriamente chamados espíritos diabólicos nas sessões de socorro espiritual é justa e necessária. Ninguém necessita mais do socorro humano do que estas criaturas transviadas. Quando elas não estão em condições de aproveitar a oportunidade, não lhes é facultada a comunicação mediúnica. Permanecem no ambiente como observadores, vigiados pelos espíritos guardiões, e aprendem, aos poucos, como alunos ouvintes, a prepararem-se para o tratamento de que necessitam. Muitas pessoas não gostam destas sessões de comunicações desagradáveis, onde a caridade brilha no seu mais puro esplendor. É nelas que os pretensos diabos, deixam cair as suas fantasias infelizes para vestir de novo a roupagem comum dos homens; voltando ao convívio dos que seguem a senda da evolução espiritual. Os grupos que se recusam a realizar estes trabalhos de amor acabam por cair nas mistificações de espíritos pseudo-sábios e pagam caro o seu comodismo e a sua pretensão.

A colaboração inter-existencial iniciada pelo Espiritismo estabeleceu a verdadeira fraternidade espiritual na Terra. Este facto marca um momento sublime nos rumos da transcendência humana. O planeta das sombras, cuja História é um terrível caleidoscópio de atrocidades e maldades, brutalidades e miséria moral, ganhou um ponto de luz celeste com esta reviravolta nas suas precariíssimas condições religiosas. O desenvolvimento das práticas de socorro espiritual indiscriminado, oferecido a todos os tipos de necessitados, dará condições à Terra para se libertar das sombras e elevar-se aos planos de luz. O lema espírita: Fora da Caridade não há Salvação é o passaporte da Terra para a sua escalada aos planos superiores. Os médiuns que trabalham nestas sessões de socorro, ao invés de preferirem aquelas em que só se interessam por mensagens de Espíritos Superiores, estão mais próximos dos planos elevados e das entidades realmente superiores. Não foi para os elegantes e vaidosos rabinos do Templo que Jesus veio à Terra, mas, como ele mesmo disse, para as ovelhas transviadas de Israel. Os que pensam que só devem tratar com Espíritos Superiores provam, por esta pretensão, a incapacidade de compreender a elevação espiritual.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XII – Colaboração Inter-existencial, 12º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Deus na Natureza ~

A Vida ~ Circulação da Matéria ~
(IV)

 Bichat definiaa vida como o conjunto de funções que resistem à morte. Sem tomarmos puerilmente, à letra, esta definição, perguntamos: qual é a primeira imagem que nos oferece o exame da estrutura de um vegetal ou de um animal? Certo, é a coordenação das funções orgânicas que constituem o ser vivente. E o que será esta coordenação, senão um sistema de forças destinadas a movimentar a máquina animada?

 Deste ponto de vista, o que a tudo sobreleva é a ideia dinâmica. Banida esta, o que nos fica é nada mais que um cadáver.

  Se, da descrição do órgão apropriado ao seu funcionamento e desse conceito de forças particulares remontarmos ao do seu conjunto e à sua conservação, desde o começo ao fim da vida, concluiremos com Cuvier que “a vida é um turbilhão contínuo, cuja directiva, por mais complexa que seja, permanece constante, tal como a espécie de moléculas que consigo arrasta, mas não as moléculas individuais em si mesmas”. Aqui, ainda há que reconhecer a presença da força, que, através da incessante mutação dos corpos, lhes assegura e conserva a identidade da forma. Ela – essa força – é pois a característica principal de todo o organismo. E frisamos estas palavras de Cuvier: “as moléculas individuais circulam perpetuamente, mas a espécie permanece sempre idêntica”. Essa permanência devemo-la à força.

  Que sucederia, por exemplo, se apenas a forma se salvaguardasse e nenhuma direcção virtual presidisse à eleição das moléculas químicas? Teríamos, a breve trecho, o mais heterogéneo dos corpos imagináveis, ainda que guardando a perfeição da sua formação.

 Imaginai, por exemplo, que o elemento essencial de uma face clara como a neve, que o coralino de uns lábios, a gracilidade de uma boca, o matiz expressivo de uns olhos pulcros, fossem, ocasionalmente, refeitos por moléculas de outra espécie, como, por exemplo, do iodo, que se torna negro ao contacto da luz, do ácido butírico, fundente ao Sol, ou de um sal qualquer, solúvel pela humidade, etc... Que belos espécimes daria assim a Humanidade! E contudo, eis aí ao que se chega, quando negamos a existência de uma força vital.

 Passando do indivíduo à espécie, ainda aí notamos o predomínio necessário da força. Se cada indivíduo se mantém vivo, é graças à sua dinâmica íntima. Se as espécies vegetais ou animais permanecem, é graças à força inicial que, só ela, pode caracterizar a identidade da espécie, transmissível à descendência e existente em estado latente, ou sensível, no óvulo vegetal como no óvulo animal.

 Como pôde um carvalho enorme sair da ínfima bolota caída no solo? Como se fez carvalho, ao lado de uma vagem que expeliu a faia; da pinha, que engendrou o pinheiro; da amêndoa, que se fez tumba do pilriteiro desdobrando-se em bagas escarlate; ou ainda, ao lado do grão de trigo e de aveia, na mesma terra, com o mesmo sol e a mesma chuva; em suma: nas mesmíssimas condições?

 Porque será que os elefantes de hoje são exactamente idênticos aos de que Pyrrhus se utilizava, há 20 séculos, e o corvo de Noé (se é que Noé existiu) se vestia do mesmo luto destes que aí sulcam os nossos céus de Setembro? Certo, porque o germe orgânico não reside somente na estrutura anatómica, mas, também e sobretudo, numa força especial que se encarrega, sem enganos possíveis, da organização do ser, de modo a não dar a um cavalo uma cabeça de carneiro, nem a um coelho uns pés de pato!

 Afirmando tão apaixonadamente a inexistência de uma força especial nos seres vivos e que a vida mais não é que o resultado da presença simultânea das moléculas constitutivas do animal ou vegetal, justo seria procurassem, os arautos de tão audaciosas afirmativas, comprová-las experimental e ainda que modestamente. Improvisai um único, e o mais ínfimo ser vivo, e... nós nos renderemos. Vejamos: aqui está uma garrafa com carbonato de amoníaco, cloreto de potássio, fosfato de soda, cal, magnésio, ferro, ácido sulfúrico e sílica.

 Sois vós mesmos a confessá-lo (i) que neste frasco está contido o princípio vital, completo, de plantas e animais. Fazei, portanto, uma plantinha, um só bichinho... Como assim? Calai-vos? Nada obstante, sois patrícios de Goethe! Não vos lembrais do lúgubre laboratório de Wagner, atochado de aparelhos esquisitos, disformes; de fornos e cubos destinados a fantásticas experiências? Ele, Wagner, já tem nas mãos a garrafa.

 Apelai à vossa memória e ouvi a cena maravilhosa do eterno Mefistófeles a dialogar com o alquimista.

 Wagner, atento ao forno: “O sino tocou, uma percussão formidável! Abalou as paredes negras, ferrugentas. Oh! a incerteza desta expectativa tão solene não pode prolongar-se mais. As trevas como que se desfazem, estou a ver no fundo da lente algo que reluz (ii) como o carbono vivo, ou, melhor, como esplêndido diamante, a clarear de mil facetas a escuridão ambiente. Agora, uma luz pura, branquíssima. Bem, desta vez espero que não escapará... ah! maldição, quem bate assim à porta, justamente...

 Mefistófeles: (entrando) – Que há?

 Wagner: (baixinho) – Está a fabricar-se um homem...

 Mefistófeles: – Um homem? Mas, que amoroso casal meteste aí nessa chaminé?

 Wagner: – Ora, valha-me Deus! Essa velha fórmula de procriar já foi, há muito, considerada de mero gracejo. O foco subtil de onde brotava a vida, a força suave que de si exalava, dava e voltava a dar, destinada a formar-se por si só, alimentando-se a princípio das substâncias circunvizinhas e, a seguir, de substâncias estranhas, tudo isso caducou e perdeu o seu prestígio. Se o animal ainda lhe encontra prazer, ao homem convém, por dotado de mais nobres qualidades, uma origem mais pura e mais alta. (Voltando-se para a fornalha) Quanto brilho! veja... De agora em diante, é lícito esperar que, se de cem matérias, e por mistura – pois tudo depende da mistura – conseguimos com facilidade preparar a massa humana, aprisioná-la num alambique, o "cohober" a preceito, a obra se completará em silêncio.(Voltando-se de novo para a fornalha) É o que está a acontecer: ela se clareia e mais convencido me deixa, a cada instante. Tentamos, judiciosamente, experimentar o que se chamava – mistérios da Natureza – e o que ela produzia outrora, organizando, fazemo-lo hoje cristalizando.

 Mefistófeles: – A experiência vem com a idade e a quem quer que tenha vivido o bastante, nada acontece de novo, na Terra. Por mim, confesso que nas minhas viagens encontrei, variadíssimas vezes, muita gente cristalizada...

 Wagner: (que não tirara o olho de sua lente) – A coisa está crescendo, brilhando, fervendo... Um instante mais e a obra estará pronta. Não há ideal grandioso que à primeira vista não pareça insensato; contudo, doravante, queremos enfrentar a chance e dessa arte, futuramente, um pensador não deixará de fabricar um cérebro pensante...

 (Contemplando a redoma extasiado) O cristal retine, vibra; comove-o uma força encantadora, ele como que se perturba e se aclara, o sucesso não tarda. Já estou a ver a forma elegante de um homenzinho gesticulando... Que mais desejar? Que pode o mundo querer de melhor? Eis o mistério a desnudar-se! Atenção! Esse timbre se articula, vozeia, fala!

  Homúnculo: (de dentro da redoma, para Wagner)

 – Bom dia, papá! então sempre era verdade, hein? Toma-me, aconchega-me nos teus braços com ternura, mas, olha, não me apertes muito, senão... quebras o vidro. Isso é a propriedade das coisas: ao que é natural, só o Universo pode bastar; mas o artificial, ao contrário, reclama o limitado. (Voltando-se para Mefistófeles) Tu aqui? Velhaco... Mas, ainda bem que o momento é azado e dou graças porque a boa estrela te trouxe até nós. Já que estou no mundo, quero agir e meter desde logo mãos à obra. Hábil és tu para me desbravares o caminho.

 Wagner: – Uma palavra ainda... Até aqui, muitas vezes me vi indeciso, quando jovens e velhos me vêm acumular de problemas. Ninguém, por exemplo, ainda compreendeu como a alma e o corpo, tão intimamente conjugados e ajustados entre si, ao ponto de os julgarmos para sempre inseparáveis, vivem em luta sem tréguas e chegam a envenenar a própria existência... e depois...

 Mefistófeles: – Alto lá! Eu antes quisera saber a razão por que o homem e a mulher não se entendem. Esta é uma questão que te há de custar a resolver. Isso é o que vale tentar e o petiz deseja fazê-lo...“

 Voltai, porém, à página do libreto. Vamos ao 1º acto, é Fausto, é a velha e a nova Ciência quem fala:

 "Como tudo se movimenta para o trabalho universal! Como operam e cooperam as actividades todas, umas pelas outras! Como sobem e descem as forças, a permutar de mão em mão os seus vasos de ouro, a tocá-los com as suas asas que exalam, neste vaivém, do céu à Terra, como uma bênção de universal harmonia!

 “Estupendo espectáculo! Mas... ó tortura! nada mais que espectáculo! Onde apreender-te, ó Natureza! Ó fontes de toda a vida! que abranjeis e nutris céus e terras, onde estais? Para vós se voltam os seios desnutridos, correis aos borbotões, inundais o mundo, enquanto em vão me consumo.”

 Sim. Em vão vos consumis, tentando reivindicar para o homem a obra do Criador. E em vão que escreveis: A omnipotência criadora é a afinidade da vida... Com todo o vasto conhecimento da matéria e das suas propriedades, não conseguistes engendrar sequer um cogumelo.

 Creio, porém, que de os fazeres decimais vos desculpais. O que não podemos, pode a Natureza, visto que ela ainda é mais hábil que nós. (Bela modéstia, na verdade.) Mas, então, que fazeis da inteligência, uma vez que, por outro lado, presumis não haver espírito na Natureza? Mas vamos adiante. Ao demais – acrescentais argutamente –, se ainda não produzimos seres vivos por processos químicos, temos, todavia, produzido matérias como, por exemplo, o ácido característico da urina, e o óleo essencial da mostarda (éter alilsulfociânico), o que muito nos lisonjeia. Detenhamo-nos, pois, um instante, nas decisivas manipulações destes ilustres químicos.

 A partir dos fins do último século, como adverte Alfred Maury (iii), tem-se reconhecido que as matérias que se desenvolvem nos vegetais e nos animais, recolhidas dos seus restos, encerram quase exclusivamente carbono, oxigénio, hidrogénio e azoto. Daí se concluiu serem estes quatro corpos os princípios básicos elementares de todas as substâncias orgânicas e que se encontram muitas vezes combinados com alguns outros corpos simples e diversos sais minerais.

 Este primeiro resultado nos ensinou que, se vegetação e vida são forças à parte, insusceptíveis de se confundirem com o simples movimento, com a afinidade e a coesão, elas de si nada criam e apenas apropriam o material do reino mineral que as rodeia. De facto, os quatro elementos orgânicos existem inteiramente formados na atmosfera. O ar é um composto de oxigénio e azoto, associados à pequena porção de ácido carbónico, ou seja de carbono combinado com o oxigénio. A atmosfera tem, ao demais, em suspensão, o vapor de água e ninguém ignora que a água é um composto de oxigénio e hidrogénio. Portanto, as matérias orgânicas tiram desta massa fluídica e inorgânica que as envolve e compenetra o nosso globo os elementos de sua composição. Quanto às outras substâncias encontradas, por assim dizer, acidentalmente, na sua trama, são apropriadas ao solo. As plantas os sugam e os animais, nutrindo-se das plantas, os assimilam.

 A Química pode criar imediatamente esses elementos orgânicos e foi o Sr. Büchner o primeiro a proclamá-lo, com entusiasmo. Os químicos fizeram o açúcar de uva bem como vários ácidos orgânicos. Criaram, dizem, diferentes bases orgânicas e entre elas a ureia, substância orgânica por excelência, em desmentido aos médicos que os acusavam de incapazes de obter produtos do organismo. Dia a dia vemos aumentarem as experiências químicas no sentido de criar combinações. O Sr. Berthelot conseguiu engendrar, de corpos inorgânicos, os derivados das combinações de carbono e hidrogénio e esta descoberta, mau grado ao seu desacordo com a natureza orgânica, forneceu um ponto de partida para a composição artificial dos corpos orgânicos.

 Hoje se fabrica o álcool e perfumes preciosos do carvão vegetal; da ardósia extraem-se velas; o ácido prússico, a ureia, a taurina e quantidade de outros corpos, havidos outrora por só criados de substâncias vegetais ou animais, tornam-se obteníveis de simples elementos da Natureza inorgânica. Assim, se apagou, graças as estas manipulações, a clássica distinção entre a Natureza orgânica e inorgânica.

 Em 1828, produzindo ureia artificial, Wöhler derrubou a velha teoria que sustentava só possíveis as combinações orgânicas engendradas por corpos orgânicos. Em 1856, Berthelot criou o ácido fórmico com substâncias inorgânicas, isto é, óxido carbónico e água, aquecendo estas matérias com a potassa cáustica e sem cooperação de quaisquer plantas ou animais. Logo após, conseguiram directamente destes elementos a síntese do álcool. Chegaram mesmo a produzir a gordura artificial do ácido oléico e da glicerina, duas substâncias que se podem obter por processos exclusivamente químicos, e aí temos um dos resultados mais extraordinários até hoje conseguidos na Química sintética.

  Destes dados, o autor de Força e Matéria (Büchner) concluiu que importa banir da vida e da Ciência a ideia de uma força orgânica, produtora dos fenómenos da vida, de maneira arbitrária e independente das leis da Natureza. Tal como ele, também repelimos o arbitrário, mas guardamos a força. Ele nos garante que a pretendida distinção rigorosa entre o orgânico e o inorgânico é meramente arbitrária. Mas, nisso, tem contra si os representantes da vida terrena, na sua totalidade.

 Sem embargo, Carl Vogt acrescenta que, “alegar a força vital, não passa de circunlóquio para mascarar a ignorância, espécie de alçapões de que a Ciência está cheia e pelos quais se salvam sempre os espíritos superficiais, que recuam perante o exame de uma dificuldade, para somente se contentarem com milagres imaginários”.

 Neste caso, a doutrina da força vital representaria hoje uma causa perdida. “Nem os esforços dos naturalistas místicos, no intuito de reanimar essa sombra; nem os lamentos dos metafísicos esconjurando as pretensões e a irrupção iminente do materialismo fisiológico e contestando-lhe o contingente filosófico; nem as vozes isoladas que assinalam os factos da Fisiologia ainda obscuros; nada disso pode salvar a força vital de próxima e completa ruína.

 Há alguns anos, Bunsen e Playfer mostraram – diz o autor de A Circulação da Vida, e Rieken confirmou logo após – que é possível obter cianogénio (combinação de azoto e hidrogénio) à custa de substância inorgânica. Por outro lado, sabemos que o hidrogénio, no momento em que se separa das suas combinações, pode unir-se ao azoto para formar o amoníaco. De resto, pode-se ir do cianogénio ao amoníaco. Basta expor ao ar o cianogénio dissolvido em água, para que se vejam flocos pardacentos desagregando-se do líquido, sinal de decomposição, em seguida à qual encontramos o ácido carbónico, o prússico, amoníaco, oxalato de amoníaco e ureia, dissolvidos no líquido. O ácido oxálico é uma combinação de carbono e oxigénio que, pela mesma quantidade de carbono, não contém senão três quartos do peso de oxigénio e ácido carbónico. O ácido oxálico é o causador do paladar acidulado de azeda, da oxálida e de muitas outras plantas. É um ácido orgânico que, conforme acabamos de dizer, podemos preparar mediante corpos simples, sem o concurso de qualquer organismo.

 “Assim, ficamos agora a conhecer três substâncias – exclama Moleschott –: uma base orgânica – o amoníaco; um principio acidulante orgânico – o cianogénio, e um ácido orgânico – o oxálico, que podemos fabricar com corpos simples.

 “Não há muitos anos, acreditava-se possível preparar um e outro mediante decomposição de combinações orgânicas as mais complexas, mas ninguém imaginaria obtê-las de elementos simples. No amoníaco temos uma combinação de azoto e hidrogénio, sem partilha de corpos orgânicos. Este enigma, que a esfinge da força vital nos antepunha como espantalho, para impedir o nosso avanço na preparação artificial das combinações orgânicas, foi resolvido por Berthelot. Ele derrubou a esfinge e os seus adoradores, substituindo-os por uma plêiade de investigadores, a cujas mãos passou os fios que lhes deverão servir para levar por diante a trama das descobertas, a fim de reproduzirem todas as peças do mundo orgânico.”

 Acrescentamos que se obtém hoje o ácido acético, fazendo passar por três estados um combinado de cloro e carbono, que são: percloreto de carbono, ácido cloracético e cloreto de carbono, bem como que a combinação directa de carbono e hidrogénio dá a síntese do acetileno (iv).

 Mais fácil ainda é preparar o ácido fórmico só com o auxílio de corpos simples, qual o conseguiu o professor do Colégio de França, operando com a potassa húmida sobre o gás óxido-carbónico, num globo de vidro à prova de fogo e por espaço de setenta e duas horas, à temperatura de 100 graus (v).

 De resto, a Natureza extrai as substâncias orgânicas da mesma fonte a que recorrem os químicos nas suas experiências de laboratório.

 Certamente, palmeamos a duas mãos (mesmo porque com uma só fora impossível) essas admiráveis tentativas da Ciência e não é a nós que poderiam imputar embargos ao génio criador do homem. Ele, o homem, está na Terra para conhecer a Natureza e assenhorear a matéria. O conhece-te a ti mesmo dos antigos se traduz nos nossos dias pelo estudo do mundo exterior e é por este estudo fecundo que verdadeiramente aprenderemos a conhecer-nos a nós mesmos.

 Acreditamos, com o Sr. Maury, que o alcance de tantas descobertas compensa de sobejo o esforço para as compreender. Que ciência nos poderá mais cativar do que a que nos revela a matéria de que nos constituímos e nos alimentamos; as substâncias com as quais estamos em contacto, os efeitos físicos que se operam dentro e fora de nós, onde transitam e como rejeitamos as partículas incessantemente assimiladas?

 Não são assuntos de somenos, estes, particularismos e instantâneos: antes são problemas que abrangem a humanidade física na sua totalidade, é o mundo dos seres a que pertencemos que está em jogo.

 Despendendo amiúde muito trabalho e inteligência para penetrar no labirinto de mesquinhas controvérsias e factos insignificantes, como descurarmos o que mais interessa, ou seja, esta maravilhosa Natureza no seio da qual nascemos, vivemos e morremos; que nos precede e nos sobrevive, fornecendo a todas as gerações os princípios essenciais de sua própria existência?

 Mas, nem por isso nos associamos às pretensas consequências que os senhores materialistas deduzem, consequências que os senhores BerthelotPasteur, e os químicos práticos são os primeiros a repudiar. Os materialistas presumem ter a chave mais difícil do enigma, uma vez que podem produzir gás artificial com os corpos simples. Misturando-se cianato de potassa e sulfato de amoníaco, a potassa combina-se com o ácido sulfúrico e o ácido ciânico com o amoníaco. Esta última combinação não é cianeto de amoníaco mas sim ureia. Admirai agora a ilação: “É graças a esta brilhante descoberta que Liebig e Wöhler abriram dilatadas perspectivas nessa via e conquistaram um eterno galardão, dando, um tanto involuntária e não preconcebidamente, a prova de que, doravante, a flama da vida se resolve em forças físicas e químicas.” Que honra para Liebig e Wöhler o serem assim arrastados para as nascentes do Aqueronte. Os nossos adversários gostam desse rio e das suas margens sombrias. “Certo – acrescentam –, o químico isento de preconceitos, que não fala ao serviço do trono e do altar, contando tranquilamente com a vitória certa, pode sorrir do pobre filósofo, cujo saber não ultrapassa o conhecimento da ureia e que acredita impor limites ao poder do fisiologista.” Que altar e que trono nomeariam ministros uns tais lógicos? A própria Ciência vive retraída no seu santuário e os deixa rondar o templo, ao repicar dos sinos e fazer evoluções.

 Que conclusão definitiva tira a escola materialista destas manipulações? A de que a Química e a Física nos oferecem provas evidentes de que as forças conhecidas, das substâncias inorgânicas, exercem a sua acção, tanto na Natureza viva como na morta.

 Pela mesma razão que os obrigou a divinizar a matéria, em substituição a Deus, vemo-los animar, sem cerimónias, a matéria para destronar a vida.

/…
(i) Circulation de la Vie, T. 2º, carta 15º.
(ii) A ideia de enclausurar Espíritos em frascos é muito comum na feitiçaria medieval. O Papa Benedito IX expeliu sete Espíritos de um açucareiro.
(iii) Revue des Deux Mondes – 1º de Setembro de 1865.
(iv) Berthelot – Chimie Organique Fondée sur la Synthèse.
(v) Sobre os recentes progressos da Química orgânica, convém consultar os interessantes relatos das sessões da Academia, principalmente nestes últimos tempos.


Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (4 de 5), 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva)_1895, pintura de James Jebusa Shannon)