Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a visão | de Deus

   Dado que Deus está em todo o lado, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? São estas as perguntas que fazemos diariamente. A primeira é fácil de resolver; os nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os tornam impróprios para verem certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente à nossa vista e aos nossos instrumentos de análise e, no entanto, não duvidamos da sua existência. Vemos os efeitos da peste e não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos moverem-se sob a influência da força da gravidade e não vemos essa força.

   As coisas de essência espiritual não podem ser apercebidas pelos órgãos materiais; é só com visão espiritual que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; só a alma pode então ter a percepção de Deus. Ela vê-o imediatamente após a morte? É o que só as comunicações de além-túmulo nos podem ensinar. Através delas, sabemos que a visão de Deus é privilégio unicamente das almas mais depuradas e que, assim, bem poucos possuem, ao abandonar o seu invólucro terrestre, o grau de desmaterialização necessário. Uma comparação vulgar fará com que seja facilmente entendido.

   Quem se encontra ao fundo de um vale, mergulhado numa bruma espessa, não vê o sol; no entanto, na luz difusa, tem a percepção da presença do sol. Se subir a montanha, à medida que vai subindo, o nevoeiro vai aclarando, a luz vai-se tornando cada vez mais viva, mas ainda não vê o sol. Só depois de se ter completamente elevado acima da camada de bruma, encontrando-se numa atmosfera perfeitamente pura, o vê em todo o seu esplendor.

   É também assim com a alma. O invólucro de perespírito, apesar de invisível e impalpável para nós, é ela uma autêntica matéria, ainda demasiado grosseira para determinadas percepções. Este invólucro espiritualiza-se à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como camadas nebulosas que obscurecem a sua visão; cada uma das imperfeições de que se desfaz é uma mancha a menos, mas só depois de se ter totalmente depurado goza da plenitude das suas faculdades.

   Sendo Deus a essência divina por excelência, só pode ser visto em todo o seu esplendor pelos Espíritos que tenham atingido o mais elevado grau de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o vêem, não é por estarem maisafastados que os outros; como eles, como todos os seres da natureza, estão mergulhados no fluido divino tal como nós o estamos na luz. Simplesmente, as suas imperfeições são vaporosas que lhe ocultam a visão; depois de o nevoeiro se ter dissipado, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não terão necessidade nem de subir nem de o ir procurar às profundezas do infinito; estando a visão espiritual liberta das teias morais que a obscurecem, vê-la-ão em qualquer lugar onde se encontrem, até mesmo sobre a Terra, pois ele está em todo o lado.

   O Espírito só se purifica a longo termo e as diferentes encarnações são os alambiques no fundo dos quais deixa de cada uma das vezes algumas impurezas. Ao deixar o seu invólucro corporal não se despoja instantaneamente das suas imperfeições; é por isso que alguns, depois da morte, não vêm Deus melhor do que quando vivos; mas, à medida que se vão purificando, têm dele uma intuição mais distinta; se não o vêem, compreendem-no melhor: a luz é menos difusa.Então, quando os Espíritos dizem que Deus os proíbe de responderem a esta ou a àquela pergunta, não é que Deus lhes apareça ou lhes dirija a palavra para lhes prescrever ou proibir isto ou quilo, não; mas eles sentem-no; recebem oseflúvios do pensamento tal como nos acontece a respeito dos espíritos que nos envolvem com o seu fluido, apesar de não os vermos.

   Nenhum homem pode então ver Deus com os olhos da carne. Se este favor fosse concedido a alguns, seria só no estado de êxtase, quando a alma está tão separada dos laços da matéria que o torna possível durante a encarnação. Um tal privilégio não seria de resto o das almas de elite, encarnadas para cumprirem uma missão e não para expiação. Mas como os Espíritos de ordem mais elevada resplendem com um brilho ofuscante, pode acontecer que os Espíritos menos elevados, encarnados ou não encarnados, atingidos pelo esplendor que os rodeia, tenham julgado ver o próprio Deus. É também assim que, às vezes, tomamos um ministro pelo seu soberano.

   Sob que aparência se apresenta Deus aos que se tornaram dignos deste favor? Sob uma forma humana ou como uma fogueira resplandecente de luz? É o que a língua humana é impotente para descrever, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação que nos possa dar uma ideia; nós somos como cegos a quem se tentasse em vão fazer compreender o brilho do Sol. O nosso vocabulário está limitado às nossas necessidades e ao círculo das nossas ideias; o dos primitivos não podia depender das maravilhas da civilização; o dos povos mais civilizados é demasiado pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência demasiado limitada para os entender e a nossa visão demasiado fraca ficaria perturbada com ele.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus | – A visão de Deus (de 31 a 37) 18º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

o sentido da vida ~


Sobrevivência e Imortalidade ~

Prega a ciência moderna, como já vimos, baseada nos seus resultados materialistas, a imortalidade do homem e de todas as coisas através da eternidade do Universo. A imagem do mar, eterno no seu conteúdo, e no seu aspecto, e variável na sucessão das ondas, dá-nos maior compreensão desse quadro transcendente e supranormal que a ciência materialista nos pinta. Os homens e as coisas são como simples vagas, que aparecem e desaparecem. Não têm qualquer espécie de forma permanente. Só a água, o conteúdo universal, é que sobrevive através dos tempos, renovando as formas, sem qualquer continuidade daquelas em si mesmas.

Essa visão, que muito se assemelha à do antigo panteísmo e à de certas escolas de ocultismo, que consideram o homem como fagulha divina momentaneamente destacada de Deus, e que a Ele voltará depois da morte – excluindo-se naturalmente as que assim pensam dentro da linha reencarnacionista – já foi estudada por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos.

Em certo momento pergunta ali o codificador:

“Que nos importa ter uma alma, se, extinguindo-se-nos a vida, ela desaparece na imensidade, como as gotas d’água no oceano? A perda da nossa individualidade não equivale, para nós, ao nada?”

Realmente, duas concepções existem, que conduzem o homem à desesperança. A de aniquilamento total do ser por meio da morte física e a dessa imortalidade por transmissão, que nada significa. Também a ideia da imortalidade através da sobrevivência de um princípio místico e misterioso, que seria a alma destinada ao inferno ou ao céu, não satisfaz a nenhuma inteligência racionalista. Somente a concepção espírita, aliás, comprovada pela observação, que nos fala da imortalidade pessoal, oferece ao homem a visão real do seu destino e, mais do que isso, da sua responsabilidade em face da vida e do mundo.

Entre os que aceitam o Espiritismo, subsiste, entretanto, uma pequena divergência de opinião, no tocante à interpretação do sentido imortalista da sobrevivência. Provamos, através das comunicações e dos fenómenos espíritas, a sobrevivência do homem. Provamos que a morte física não é o fim do indivíduo consciente. Provamos mesmo, que essa morte não chega a modificar o homem, pois ele continua, na vida espiritual, com todas as suas características individuais da vida material. A perda do corpo unicamente priva o indivíduo do contacto visível com a matéria. Assemelha-se extraordinariamente ao abandono do escafandro pelo escafandrista, que, longe de perder em si mesmo alguma coisa com isso, readquire a sua agilidade corporal e perde apenas a capacidade de viver no fundo do mar.

Entretanto, isso não nos prova a imortalidade, que implica na eternidade do ser. Imortalidade pessoal, portanto, é um termo com o qual se procura interpretar uma suposição, decorrente da verificação do facto real da sobrevivência. Nesse caso, dizem alguns, o que está provado é a sobrevivência, não a imortalidade.

Os espíritos que transmitiram a Kardec as linhas mestras da doutrina ensinaram que o homem é imortal. Seguiram, aliás, a linha tradicional dos ensinamentos superiores, das revelações dadas ao homem em todos os tempos, pelas forças do Alto. Todas as religiões afirmam o carácter imortalista do homem e as ordens ocultas e esotéricas do passado, algumas das quais ainda sobrevivem, também ensinaram sempre a mesma coisa. A revelação espírita não fugiu a essa norma geral e o simples facto dessa concordância nos faz pensar na possibilidade de se tratar de um facto real.

Do ponto de vista espírita, entretanto, essa questão não tem razão de ser. O Espiritismo não se perde em cogitações dessa natureza, tão semelhante às infindáveis controvérsias escolásticas da idade média. Se não temos recursos para investigar a possibilidade dessa coisa que mal podemos compreender, a imortalidade, que equivale à eternidade, como poderemos manter discussões estéreis a respeito? Basta-nos, evidentemente, saber que há a sobrevivência. E é indiscutível que a sobrevivência nos autoriza a super-existência ilimitada, pelo menos com os seus limites muito além das possibilidades de verificação.

No primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos, questão nº 14, título Panteísmo, os espíritos que orientavam Kardec deixaram de maneira clara, bem definida, a posição do Espiritismo em face desses enigmas escolásticos.

Respondendo a uma pergunta do codificador sobre a natureza de Deus, responderam eles:

“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não avanceis além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois, de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretender penetrar no que é impenetrável.”

Afirma a ciência moderna que o homem é limitado na sua capacidade de conhecimento. O Espiritismo concorda com essa afirmação, não procurando iludir-se e iludir os demais a respeito de coisas inverificáveis. A natureza experimental da doutrina não nos permite essas fugas para o mais além. E embora os materialistas nos acusem de desertores, repetindo, como papagaios, que não sabemos enfrentar a realidade, os que se derem ao trabalho de estudar a doutrina verificarão que, pelo contrário, procuramos enfrentar a realidade num sentido muito mais amplo, racional e coerente do que o defendido pelos materialistas.

Basta-nos, pois, verificar o facto, já agora incontestável, da sobrevivência, que continuaremos a chamar de imortalidade porque ela representa, na verdade, a negação da morte.

Aos conceitos pretensamente científicos de imortalidade-cósmica, num sentido geral e não individual, opomos o resultado das nossas experiências, que demonstram à saciedade a sobrevivência pessoal. Contra factos não há argumentos, nem prevalecem os raciocínios, por mais bem tecidos que se nos apresentem.

Os espíritas não inventaram uma explicação para os fenómenos; foram estes mesmos que revelaram a sua natureza íntima. Os próprios espíritos desencarnados se incumbiram de dizer aos homens, por múltiplas formas e em múltiplas ocasiões, dirigindo-se a sábios, filósofos, teólogos e simples curiosos, que eram eles os agentes, conscientes e intencionais, dos fenómenos observados. Eles mesmos se incumbiram de provar que não eram entidades misteriosas, pertencentes a qualquer escala desconhecida de seres infernais ou celestiais, mas simplesmente as almas daqueles que haviam morrido.

A nossa crença na imortalidade pessoal não se baseia, pois, em suposições, mas em factos concretos, mil vezes repetidos e comprovados e, cuja ocorrência jamais se interrompeu na face da Terra.

A essa convicção, que podemos sem a menor dúvida chamar de científica, pretendem alguns eruditos de hoje opor, em nome da própria investigação científica, o absurdo da imortalidade cósmica, através dos elementos naturais e da sua constante transformação. Não se baseiam, para isso, em nenhuma experiência demonstrativa. Partem apenas da base frágil das suposições e, mais espantoso é que, defendendo os métodos científicos, não se lembram de que toda a teoria contraditada pelos factos não pode subsistir.

Uma das teses mais recentes e perigosas é a de que a imortalidade individual contradiz o princípio da evolução geral. Afirma-se isso com foros de grande e profunda verdade, com a intenção evidente de fechar a porta, de uma vez por todas, a qualquer tentativa de esclarecimento do assunto. Mas temos o direito de perguntar ainda aqui os motivos dessa contradição e, de afirmar justamente o inverso do que pretendem dizer os defensores ilustres desse ponto de vista. Para isso, não precisamos de silogismos de espécie alguma. Basta-nos lembrar que toda a evolução das coisas, à nossa volta e nas imensas extensões do Universo conhecido, se processa através de um único método, firmado pela natureza em toda a parte, sem excepção: o da evolução individual.

Evoluem os espécimes, para que evolua a espécie. Evoluem os homens, evoluem os povos, uns se adiantando aos outros para que evolua a humanidade. Evoluem os elementos, para que evolua a Terra. Evoluem os mundos no espaço para que, certamente, evoluam os sistemas planetários e o próprio cosmos. Por que estranha razão, mais uma vez encontramos o pensamento humano deslocado da ordem geral, no momento em que tem de encarar o problema da própria evolução? Por que motivo misterioso a evolução individual, unicamente no tocante ao problema da sobrevivência, teria de contrariar o princípio da evolução geral? Mistérios, ou melhor, delícias da caturrice humana.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Sobrevivência e Imortalidade, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Victor Hugo e o invisível ~


A consciência palingenésica nos homens | e nos povos

   Sem dúvida alguma, é no Oriente que a concepção palingenésica do ser tem as suas mais profundas raízes. Embora a sua interpretação seja tristemente estática entre os orientais, a ideia dos renascimentos é uma realidade espiritual e religiosa. Países como a Índia e o Japão têm-na como "base moral" do mundo. No Egipto e na Grécia, a ideia paligenésica do homem é interpretada como uma sucessão de provas planetárias, o que fornece ao Ocidente bases para os primeiros vislumbres de um conceito reexistencialista do Ser.

   Na Grécia, a ideia de reencarnação expressou-se através desse luminoso fenómeno poético que são os poemas órficosOs poetas dessa escola, sentiam em si mesmos, o imperativo moral das vidas sucessivas, que lhes surgia inesperadamente dos extractos mais profundos do subconsciente. Filósofos como Sócrates, Platão, Pitágoras, Apolónio de Tiana e, Empédocles apresentaram-se como uma realidade nas suas concepções filosóficas. Em quase toda a filosofia órfica e druídica está presente essa ideia do renascimento do Ser que Nietzsche denominou "eterno retorno".

   Platão escreve com toda a clareza a ideia da reencarnação em A Répública, Fedra, Timeu e em Fédon. Em Fedra lê-se: "É certo que os vivos nascem dos mortos e que as almas dos mortos renascem ainda". Em Fédon"A alma é mais velha que o corpo. As almas renascem sem cessar do Hado, para voltar à vida actual".

   Este pensamento socrático-platónico sobre a reencarnação não foi valorizado ontologicamente nem teologicamente como seria correcto, fazendo com que caísse como que um véu sobre a mentalidade do Ocidente. A história da filosofia não penetrou, como era de esperar, na exposição palingenésica de SócratesPlatão e de PitágorasAs chamadas ''reminiscências platónicas'' deveriam ter penetrado fundo no pensamento filosófico do cristão; ter-se-ia evitado assim, a tragédia agonística e existencial de homens como Pascal, Nietzsche, Kierkegaard, Chestov, Unamuno e, de existêncialistas como Sartre, Camus, Berdiaev e até de alguns tomistas contemporâneos. O homem como expressão da existência, ou seja, com a lei da reencarnação teria dado ao pensamento do Ocidente um novo sentir sobre a vida e a história. Um novo dinamismo moral teria surgido do chamado sentido trágico da existência. A vida como prova planetária do Ser estaria assente na sucessão de existências vividas pelo espírito. O homem, como acontece agora, não seria um Ser espiritual alheio aos variados processos da história; seria uma potência que do visível e do invisível manejaria conscientemente toda a realidade histórica.

   Isso daria um novo sentido às responsabilidades morais dos actores intervenientes no drama universal.

   palingenesia expressou-se no Egipto através dos chamados mistérios de Ísis, onde seres preparados para isso estavam destinados a revelar os segredos das vidas passadas do homem. Por isso, toda a ciência egiptológica se viu na necessidade de voltar ao passado em busca das verdadeiras raízes do Ser e da pessoa humana. Na Grécia, as vidas sucessivas do homem e dos seres era ensinada nos mistérios de Elêusis, tão profundos como os de Ísis. Mas, nos segredos eleusinos intervinham os mistérios de Perséfone, que simbolizavam a representação existencial dos renascimentos do homem.

   Toda a arte grega está impregnada dessa beleza espiritual cuja origem se encontra na mentalidade palingenésica, que prevalecia entre os maiores pensadores da antiga HéladeA beleza entre os gregos não era apenas uma idealização do Ser, mas uma expressão divina da vida como função vivente dos actos morais do homem. A beleza era entre os antigos gregos um estado superior da alma, que se engrandecia cada vez mais pela prática do Bem e da Verdade.

   Mas esta ideia palingenésica do homem encontrou também o seu clima favorável no império romano. Os homens mais destacados desse período, como OvídioCícero e Virgílio, sustentaram-na nas suas obras literárias. Virgílio cantou-a em Eneida, dizendo que a alma ao fundir-se com a carne perde a noção de si mesma. Embora não se tenha expandido muito na cultura romana, os seus mais ilustres pensadores consideraram a ideia palingenésica como uma realidade necessária para explicar os variados assuntos psicológicos do Ser.

   A fortaleza e têmpera dos antigos romanos deveu-se a esse conhecimento da lei da reencarnação que possuíam. César, nos seus "Comentários sobre a guerra das Gálias", fez alusão ao carácter imperturbável que possuíam os druídas frente à morte, tendo como causa a consciência palingenésica que haviam atingido. O historiador francês Arbois de Jubainville assim se expressou: "Nos combates contra os romanos, os druídas permaneciam imóveis como estátuas, recebendo as feridas sem fugir nem defender-se. Sabiam que eram imortais e esperavam encontrar noutra parte do mundo um corpo novo e sempre jovem". Tácito confirmou também esse carácter palingenésico que se havia desenvolvido.

   A ideia palingenésica do Ser e da História há de reaparecer com a mesma intensidade que possuía nas idades passadas. O génio poético será um meio para atingir esse fim; os poetas contemporâneos inspirar-se-ão nesta nova visão do Ser, tal como o génio de Victor Hugo o fez na sua época.

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, A consciência palingenésica nos homens e nos povos, 18º fragmento, o último desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

segunda-feira, 14 de maio de 2018

~~~Párias em Redenção~~~


INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(I)

   Na superlativa angústia em que se encontrava, hipnotizado pelo ódio de Dom Giovanni, Girólamo, que oscilava na demência, entre as alucinações e o remorso que lhe deixavam o travo do desespero, não pôde reflectir quanto ao gesto nefando da destruição da própria vida física, permitindo-se arrastar ao crime mais grave que o ser pode cometer contra si mesmo e a Divindade: o autocídio.

   Sem qualquer reflexão, porquanto as forças infelizes acalentadas na mente em desalinho e no coração rebelde produzem constrição impiedosa, que termina por vencer aqueles que as cultivam, arrojara-se desde cedo na mais infeliz das situações, qual a que ora o surpreendia.

   O suicídio revela no homem civilizado o estado aviltante a que ele relega a existência planetária, conduzido ao supremo ódio às Leis Divinas, por ver-se atingido pela inapelável força da evolução, cobrando ao infractor as dívidas não resgatadas. Nesse mister, o tempo não tem qualquer significação, importando não o período transcorrido entre o débito e o ressarcimento mas a dívida em si mesmo.

   O suicida é um espírito soberbo e calceta (i) que, na impossibilidade de atingir o fulcro da Divindade que lhe não permite continuar semeando destruição, alucinado pelas ambições crescentes e selvagens, se destrói, tentando, desse modo, alcançar o Sumo Espírito da Vida. Odiento e infeliz, arroja-se, porém, nos mais fundos despenhadeiros, cujo anteparo não consegue encontrar, experimentando inominável dor, enquanto perduram as novas impressões que se lhe adicionam às angústias das quais desejou fugir e que o enlouquecem, sem roubar-lhe a consciência da própria insânia.

   Os séculos de civilização, de ética e cultura não conseguiram fazer que o instinto de autodestruição – que apenas no homem se manifesta, já que os demais animais, não raciocinando, não se fazem vítimas do hediondo crime – fosse dominado pela análise fria e nobre da razão. Pelo contrário: parece que nas nações chamadas super-civilizadas, pelo abuso das faculdades que revestem o ser, o homem se atira cada vez mais opiado (i) no sorvedouro da autodestruição, consumido pelos excessos de todo o porte, ensoberbecido pela técnica e amolentado pela comodidade perniciosa.

   Se anteriormente a força anunciava a presença da civilização numa cidade, o alto índice de suicídios num povo, actualmente, revela a sua elevada cultura. Cultura, no entanto, pervertida, sem Deus nem amor, sem vida nem sentimento. Cultura da inteligência, com amarguras do sentimento, altas aquisições externas sem qualquer conquista interior. Vitórias sobre as realidades de fora e escravidão aos impositivos de dentro.

   Face às concessões facultadas pela moderna tecnologia e graças à decadência ética do mundo, favorecida pelo desgoverno e empobrecimento da fé nas grandes massas humanas, o ser marcha sob o azorrague (i) de mil angústias, encontrando no suicídio a porta falsa para a equação de problemas que a ele compete resolver pelos processos da não-violência, perseverando no dever sob o recto amparo do tempo. Impaciente, por acomodação ao imediatismo, cujos frutos sempre colhe na árvore da oportunidade ligeira, transforma a paisagem íntima num inferno e, entre as labaredas da inquietação levanta a mão que converte em sicário da vida e atira-se na inditosa loucura da morte voluntária, em busca de nada que seria o repouso eterno, numa violação das mais graves ao Estatuto Divino.

   Preferindo aceitar que o ser humano é um acidente biológico na escala zoológica, por retirar da sua consciência as responsabilidades para consigo mesmo o homem cultiva o orgulho, a soberba, desenvolve a ferocidade, a rebeldia e jacta-se (i) de ser o senhor do mundo, sempre menos, senhor de si mesmo.

   Vivendo na condição predatória de explorar a mãe-Terra quanto lhe facultam as possibilidades, faz-se ingrato, esquecendo de retribuir todas as concessões gratuitas que usufrui sem a menor consideração: a vida física e mental, o ar, a água refrescante, o fruto silvestre, a paisagem rica de colorido e perfume, a maravilha do sol, a bênção da noite, a dádiva das tempestades que lhe renovam a atmosfera… para somente pensar em si mesmo e nas baixas expressões do prazer animalizante.

   Escravo nas paredes celulares, encarcerado nas limitações do sentimento, entorpece-se cada vez mais, até que um último grito de dor o arroja do acume da vida – que deve sempre ser cultivada a qualquer preço de sacrifício e sofrimento –, ao abismo em que se consumirá sem extinguir-se, enquanto lentos, pela dor aumentada, correrão os tempos, realizando o seu abençoado trabalho purificador.

   Louca Humanidade! Conquista o mundo, transforma condições climáticas, corrige o terreno, arrasa montanhas, rectifica ilhas e as faz penínsulas, vence abismos com pontes audaciodas, reduz distâncias com aparelhos velozes, envia imagens sonoras e visuais a qualquer parte do orbe, graças aos satélites artificiais, atinge a Lua, mas prefere adiar o encontro com a consciência.

   Vã cultura! Estuda a História do passado e do presente, vaticina o futuro, arregimenta princípios de escolaridade intelectual, procede a julgamentos de vultos que foram factores lídimos da Civilização, examina estratégias bélicas e recompõe monumentos de arte, na pintura, na estatuária, na arquitectura, na arqueologia, ressuscita partituras que trazem a música dos Mundos Felizes e, no entanto, prossegue descontrolada, estiolando (i) esperanças e espalhando pessimismo, sem penetrar no imortal conceito do “Nosce te ipsum” (*), mediante o qual poderia resolver os magnos problemas da vida, pelo auto-descobrimento das virtudes e dos defeitos, desenvolvendo as primeiras e limando os segundos, em incessante labor de superação dos males acarretados pelas mesclas renascentes dos erros pretéritos, na busca da luz futura.

   Insensata Tecnologia! Invade o microcosmo e decifra milhares de enigmas que antes infelicitavam a vida organizada no mineral, no vegetal, no animal e no homem, e criavam graves desconcertos nas formas vivas, identificando germens, vírus, flora e fauna de estrutura infinitesimal, adentrando-se pelos laboratórios para proceder à elaboração de fórmulas e soluções capazes de aniquilar os focos pestilenciais (i) que fazem sucumbir o corpo, não conseguindo, porém, estancar as fontes do ódio, da inveja, da malquerença, do ciúme, do despeito, da intriga, da impiedade, da ira, do orgulho, do egoísmo – esses semens de acção corrosiva, por criarem campo de proliferação nos tecidos subtilíssimos da alma. Irrompe pelo macrocosmos e mede as estrelas, sonha com as colmeias globulares e as ilhas interplanetárias, identificando-as, classificando-as, conhecendo-as mediante os sinais de rádio, amando-as; prevê-lhes a idade, a distância em que se encontram, o envelhecer paulatino, a transformação pelo desgaste da energia em que se consomem e, até as visualiza nos movimentos célicos, em órbitas inconcebíveis, mas não utiliza as lunetas que penetram no continente do espírito, para escudar os centros de vida que gravitam em torno da nebulosa excelsa que envolve todo o Cosmo, como continente e conteúdo.

   Após quase dose mil anos de Civilização, o homem parece apetecer em ser não apenas “o lobo do homem” mas o chacal de si mesmo.

   O suicida é o imaturo desajustado na escola da vida, fugindo da consciência culpada para despertar de coração e mente estraçalhados.

   Enquanto não rutilar a fé poderosa e pura, que traduza a verdade maior do Amor no coração da Humanidade, o homem fugirá da vida para a Realidade, afogando-se nos rios da Imortalidade, sem consumir-se no aniquilamento que tanto persegue, não colimando o cobiçado objectivo.

   A ética, que na Antiguidade oriental afirmava o “espírito e negava o mundo”, renasceu no Cristianismo, oferecendo no pessimismo, em relação ao imediato, o optimismo de referência à Imortalidade, com as credenciais da esperança e da paz.

   No Espiritismo, o mais eficiente antídoto contra o suicídio – suicídio em cujo corpo sempre se encontram as fortes amarras da obsessão pertinaz, em conúbio danoso, de consequências imprevisíveis –, o optimismo no tocante à vida real e indestrutível estabelece uma ligação entre a cultura actual e as culturas pretéritas, em perfeita sintonia de ideias, dos quais a técnica e as modernas conquistas podem extrair os frutos óptimos a beneficio da Civilização contemporânea.

   Provenientes de séculos de nefasta ignorância e contínuo primitivismo do sentimento, em que a força sobrepairou à legalidade e o absolutismo do poder esteve em mãos fortes e ingratas, engendrando misérias colectivas, infindáveis, renascem aqueles que foram factótum dos males, embrulhados nos tecidos dos resgates, experimentando, entre revoltas injustificáveis, o clima de dor e sombra que produziram para si mesmos.

   Ambientados à dominação e açoitados pelas vítimas que demoram em outra vibração da vida, raramente têm o carácter capaz de suportar os impositivos evolutivos, deixando-se solapar pelo desânimo e pela acrimónia (i), que culminam no suicídio enganoso e cruel.

   Verdadeira chaga social, na velha Roma constituía honra dar a sua pela vida do Imperador e, não poucas vezes homens ilustres foram convidados ao suicídio, porque discordassem das diatribes e loucuras da sua época: Petrónio, o arbiter elegantiarum, Séneca, o filósofo, passando à imortalidade o exemplo de Sócrates, o pai da Filosofia, que vem da Grécia, condenado a beber cicuta. Todos eles, no entanto, sacrificados pela ferocidade do poder desmedido, tornaram as suas vidas alicerces para as construções da dignidade humana, que sempre soube, também, expulsar do dorso os usurpadores e criminosos.

   A liberdade humana num crescendo transformou-se em degradante libertinagem, nos dias modernos e, fez-se factor preponderante para tornar o suicídio uma solução, considerando que o desvitalizar da pujança do carácter faz que o homem seja somente o seu exterior dourado e enganoso, não as suas qualidades morais elevadas.

   Período cíclico, que representa trânsito na evolução do ser e do planeta que o agasalha, o apagar das luzes da cultura optimista sob as sombras destrutivas do pessimismo impõe que surja um claro-escuro, uma fímbria representativa do acender de novas luzes que significam a madrugada do Novo Dia, no qual o aforismo latino Veneratio vitas (**) estabelecerá novas linhas de comportamento humano e social, facultando ao homem a vitória sobre as tentações da fuga, o primitivismo das sensações – altos objectivos que devem caracterizar a própria Humanidade.

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(*) Conceito que se encontrava inscrito no pórtico do Santuário de Delfos, em grego: “Gnothi seauton” e que significa: “Conhece-te a ti mesmo”, estrutura moral da filosofia de Sócrates, na sua escola maiuêutica.
(**) Conceito básico da ética latina, que significa “Respeito pela vida”, em toda e qualquer manifestação.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (1 de 3) 34º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

domingo, 29 de abril de 2018

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo IX

Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte
(III)

   A questão do culto dos mortos entre os celtas está ligada à lembrança de Carnac com os seus monumentos megalíticos.

   Todos os celtistas conhecem esta imensa necrópole, que se estendia por muitas léguas de comprimento desde Locmariaquer até Erdeven. Os alinhamentos de menires, hoje em parte destruídos, contavam ainda com milhares de pedras levantadas na Idade Média. Deve ver-se nessas longas filas sombrias outros tantos monumentos funerários? Tem-se duvidado, porque, nas escavações praticadas ao pé dos menires, somente foram encontrados raros fósseis humanos. O espírito Allan Kardec assegura-nos que, escavando-se mais profundamente, ter-se-ia encontrado mais ossadas. As grutas sepulcrais de Locmariaquer, os dolmens de Erdeven e de outros lugares não deixam dúvidas quanto ao destino desse vasto campo fúnebre. Os menires constituíam os túmulos de chefes políticos ou religiosos, enquanto que as grutas e os dolmens recebiam os restos mortais de personagens menos elevados na ordem social.

   Na sua Histoire de la Gaule, Camille Jullian escreveu que os cortejos fúnebres se dirigiam para essa região vindos de vários pontos da Gália.

   Qual era, então, o pensamento mestre que agrupava todos esses mortos na extremidade do continente? Muitos escritores tentaram descobri-lo, sem o conseguir. Entretanto, a explicação parece ser a seguinte:

   Perante os horizontes infinitos do mar e do céu, acreditava-se, então, que o voo das almas era mais fácil na direcção desses mundos que brilham no além, no seio das noites, ou em direcção aos lugares que se sombreiam, durante o entardecer, nas brumas do poente. Essas praias varridas pelas ondas, essas fronteiras de uma vastidão desconhecida tinham, para os nossos antepassados, um carácter misterioso e sagrado.

   Camille Jullian e outros historiadores atribuem o levantamento dos monumentos megalíticos a povos anteriores aos celtas e particularmente aos lígures, povo meridional de cabelos marrons e de pequena estatura. Ora, esses escritores esquecem que esses monumentos se elevam em todo o ocidente da Europa até nas Ilhas Órcades e Shetland, situadas na ponta extrema da Escócia, nas brumas do mar do Norte. Podem contar-se 145 monumentos em todo o arquipélago. O grupo de pedras de Stonehenge, na Câmbria, Inglaterra, compreende 144 pedras elevadas, formando um conjunto que parece ser o complemento dos alinhamentos de Carnac (França).

   Pode também assinalar-se o “túmulo de Taliésin”, situado na base do maciço de Plynlimmon, cercado de dois círculos de pedras e, o grande dólmen da península de Gower, no País de Gales. Na entrada de Clyde todos os picos são rodeados por megálitos. Mencionamos ainda os monumentos da Escócia, chamados “Casa dos Pictos”; e na Irlanda, no Donegal, 67 pedras elevadas formando um grupo comparável ao de Stonehenge.

   Nessas sepulturas – dolmens, grutas funerárias e túmulos pré-históricos de todas as dimensões – se encontram objectos diversos misturados com restos humanos calcinados ou com esqueletos inteiros. São sílex brutos ou polidos, urnas, armas e até foices de ouro que serviam para o culto. Esses objectos pertenciam, portanto, a todas as épocas, desde priscas eras: paleolíticas, neolíticas, idades do bronze e do ferro. É preciso então atribuir esses vestígios aos celtas e não aos lígures ou pelasgos, povos pouco conhecidos, dos quais se ignora a língua e mesmo a localização exacta.

   Crer que esses monumentos sejam obra sua seria pretender que os gauleses, tão laboriosos e engenhosos noutras matérias, não tenham deixado nenhum rasto no país que eles habitaram durante séculos.

   Os megálitos não consistem somente em sepulturas, mas também em monumentos consagrados ao culto. Os mais importantes são os “cromlechs”, ou círculos de pedras, no centro dos quais se ergue geralmente um grande menir. Alguns são duplos e triplos e representam, então, os três círculos da vida universal, conforme as indicações das Tríades. Nesses lugares praticavam-se os ritos divinos e se evocavam as almas dos mortos.

   Entre essas pedras, algumas representavam o mesmo papel que o das mesas falantes de nossos dias e respondiam, pelos seus movimentos, às questões dos assistentes. Assim, o Manuel pour servir à l’étude de l’antiquité celtique, na página 253, cita a pedra falante “cloch labhrais”, que dava respostas, como a “lech lavar” dos gauleses.

   Acrescentamos, de memória, que os autores antigos atribuíam aos druidas uma potente mágica, completamente esquecida actualmente e, da qual se encontram somente resquícios nas práticas do hipnotismo, do magnetismo e do faquirismo. Plínio denominava os druidas de “Magi”, nome que lhes é constantemente dado nos textos latinos e irlandeses, afirma Dom Gougaud, beneditino inglês, no seu livro Les Chrétientés Celtiques. (*)

   Segundo esse autor, os druidas tinham os seguintes poderes: “condensações da neblina, precipitações atmosféricas, tempestades sobre o mar e sobre a terra, etc”. Ele acrescenta que “o druida Fraechan Mac Tenuisain protegia a armada do rei da Irlanda, Diarmait Mac Cerbaill contra o inimigo, por meio de uma barreira mágica (airbe druad) que ele traçou em frente dela. Todos os que atravessavam essa muralha fluídica eram feridos de morte. Todos os velhos textos irlandeses estão repletos de feitos semelhantes.”

   Quase sempre, os círculos de pedras dos quais falamos estavam dispostos nas clareiras das florestas, porque, em matéria religiosa, a floresta guarda sempre para os celtas o seu prestígio augusto e sagrado.

   Na época dos druidas a natureza não estava ainda alterada pela influência nociva, pela corrente destruidora das paixões. Ela era como o grande médium, o intermediário poderoso entre o Céu e a Terra. Os druidas, sob a abóbada das árvores seculares, cujos cumes eram como antenas que atraíam as radiações do espaço, recebiam mais facilmente as intuições, as inspirações, os ensinamentos do alto. Ainda hoje, apesar de tantas destruições sofridas, a floresta não nos causa uma impressão salutar e reconfortante pelos seus eflúvios, uma espécie de dilatação da alma? É, pelo menos, o que eu experimentei tantas vezes.

   Certas pessoas, privadas de faculdades mediúnicas, perguntam-me como fazer para entrar em relação com o invisível. Sobre isso respondo: “Afastai-vos do barulho das cidades, entrai numa floresta, é na solidão dos grandes bosques que se julga melhor a vaidade das coisas humanas e a loucura das paixões. Nessas horas de recolhimento, parece que um diálogo interior se estabelece entre a alma humana e as potências do além. Todas as vozes da natureza se unem, os murmúrios que a Terra e o espaço sussurram para o ouvido atento, tudo nos fala das coisas divinas, nos esclarece com conselhos de sabedoria e nos ensina o dever. É o que dizia Jeanne d’Arc aos seus interrogadores de Rouen que lhe perguntavam se ela ouvia sempre as suas vozes: “O barulho das prisões me impede de as perceber, mas se me levarem para qualquer floresta eu as ouvirei bem.

   O mesmo acontece com a ciência dos mundos; é uma fonte incomparável de elevação, porque ela nos revela todo o génio do Criador. No interior dos recintos sagrados, os druidas se dedicavam a observações cuidadosas e para esse objectivo possuíam meios que provocavam a admiração dos antigos.

   É um facto que o desfile imponente dos astros, durante as noites claras de inverno, se torna um dos espectáculos mais impressionantes que a alma humana pode apreciar. Uma paz serena desce do espaço, parece que se está num imenso templo, o pensamento, então, se eleva num impulso mais rápido para essas regiões superiores e interroga esses milhares de mundos cujas subtis radiações parecem responder aos seus apelos.

   A aplicação das forças radiantes aos usos terrestres permite crer que uma transmissão, mesmo física, não é impossível através dos abismos do espaço.

   As estradas do destino que nos são abertas ligam-nos estreitamente a esse esplêndido Universo, do qual somos, como espíritos, um elemento imperecível; o seu futuro é o nosso, nós prosseguimos com ele e nele está a nossa evolução, nós participaremos de sua obra, de sua vida, de modo sempre crescente.

/…
(*) Edição Gabalda, Paris, e Edição Lecoffre, 1911, Paris, 410 páginas.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo IX Religião dos celtas, o culto, os sacrifícios, a ideia da morte (3 de 3), 31º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da liberdade, OssianDesaixKléberMarceauHocheChampionnet, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

terça-feira, 17 de abril de 2018

o grande desconhecido ~


– Epistemologia Espírita |

Na aparente simplicidade da sua forma escrita, o Espiritismo abrange todos os campos do Conhecimento; não o faz de maneira sistemática, mas espontânea, numa espécie de improvisação determinada pelas exigências do borbulhar dos factos e da escassez do tempo. Kardec já tinha feito 50 anos de idade e não dispunha de recursos financeiros e meios técnicos, nem de auxiliares preparados para a execução da obra imensa e urgente que o desafiava. Estava só diante daquela erupção de fenómenos que tinha de controlar na formulação de uma doutrina que os tornassem acessíveis a todos. Dispunha apenas dos seus conhecimentos científicos, da visão pedagógica herdada de Rousseau e Pestalozzi, dos instrumentos humanos de pesquisa que eram as jovens Boudin, de 14 e 16 anos e dos recursos da sua didáctica, desenvolvidos nos Institutos que fundara e dirigira, nas obras que publicara e nos serviços prestados à Universidade de França como director de estudos. Valeu-lhe o seu temperamento calmo, ponderado, que lhe permitiu dominar as circunstâncias e organizar uma nova ciência apoiada em pesquisas dotada de métodos próprios, entrosada nas exigências cientificas da época, amparada numa instituição científica por ele mesmo fundada e pelos meios de divulgação, pesquisa de opinião e possibilidade de debates no plano mundial, que criou com as suas obras e a fundação e manutenção da Revista Espírita. Uma epopeia cultural silenciosa, que não obstante se expandiu em todas as direcções culturais, abalando o mundo.

Essa façanha homérica não dispensou o auxílio clássico dos deuses - aqueles mesmos que Tales de Mileto dizia encherem o mundo em todas as suas dimensões - os Espíritos. Esses deuses, que ele humanizou ao invés de os divinizar, enfunaram as velas do seu barco e o levaram, solitário, à conquista de mares e terras desconhecidas envoltos nos mistérios de todas as mitologias e magias religiosas. Teve de enfrentar, como Ulisses, os báratros e os monstros do mar e os guerreiros entrincheirados nas muralhas das tróias culturais da Terra.

A Epistemologia Espírita, estudo e crítica do Conhecimento Científico à luz do Espiritismo, não é sequer mencionada na obra de Kardec, mas está nela integrada e, é um dos problemas fundamentais da doutrina, indispensável à sua compreensão. Na Antiguidade, com algumas excepções do mundo clássico grego-romano (as observações empíricas dos filólogos gregos e posteriormente de Aristóteles), todo o Conhecimento Humano decorria das tradições religiosas e se processava por dedução. Com ou sem o esquema lógico aristotélico, os sábios serviam-se de um único instrumento de pesquisa, que era o silogismo. Só nos princípios do Século XIV surgiram em Itália as primeiras tentativas de interrogar a Natureza para se conhecer a realidade. Daí por diante a Ciência desenvolveu-se, através de penosos episódios históricos como os de Galileu e Giordano Bruno, pois qualquer descoberta que contrariasse a Bíblia era logo motivo de perseguição e condenação por heresia. Para se dar o passo lógico da dedução para a indução foram necessários quatro séculos. Basta lembrarmos o episódio de Descartes, que no seu "Tratado do Mundo" teve de usar um expediente curioso. Para dizer que a Terra girava em torno do Sol, afirmou que a Terra era fixa no espaço, envolta na sua atmosfera, mas esta girava em torno do Sol. Apesar disso, Descartes acabou fugindo para a Holanda, país protestante, a fim de livrar-se das condenações da Igreja. Ele usava no seu emblema a palavra "caute", significando a cautela que devia ter na exposição das suas ideias. Nesse ambiente opressivo a Ciência era uma erva daninha que só crescia às ocultas. No Século XVIII, chamado o Século de Ouro das Ciências, a opressão clerical afrouxara-se na medida em que as invenções, mais do que as descobertas, lhes davam prestígio. No Século XIX a situação mudara bastante, mas só em meados desse século o clima se tornara propício ao emprego atrevido do uso da indução científica, que consiste na pesquisa de vários fenómenos para deles se obter a lei geral que os rege. Antes disso seria impossível a pesquisa espírita, que além de condenada em si mesma como profanação da morte, seria também condenada por contrariar a sabedoria infusa dos teólogos, procedente de Deus através da Bíblia e do milagre das intuições reveladoras. Apesar da liberdade já conquistada, a Inquisição Espanhola, não podendo condenar Kardec à fogueira, pois ele estava na França, condenou a sua obra e queimou-a com todos os rituais da Inquisição em Barcelona. Kardec comentou o facto na Revista Espírita, num artigo intitulado "A Cauda da Inquisição", aproveitando o facto para rasgar mais amplamente a pesada cortina da censura eclesiástica no mundo. A França marchava na vanguarda da libertação, enquanto a cauda da opressão ainda se arrastava, eriçada de ameaças e eivada de crimes, em terras de Portugal e Espanha. Só na França seria possível, naquela fase de transição histórica e cultural, o desenvolvimento do Espiritismo. Não obstante, ali mesmo se ergueram as ondas da reacção, sopradas pelos vendavais do fanatismo religioso, dos preconceitos culturais e do exclusivismo científico. Foi no estudo sereno dessa reacção, no meio do furor dos elementos desencadeados, que Kardec deu início à Epistemologia Espírita. Sozinho a princípio, eram ainda poucos os seus companheiros. Repetia-se no antigo e carismático solo das Gálias o mesmo quadro palestino de Jesus com os seus poucos discípulos a enfrentar os poderes do mundo. O panorama histórico, porém, modificara-se e Kardec podia usar com mais eficácia as armas da razão. O Renascimento prepara a França para esse momento glorioso.

Kardec examina a posição epistemológica do Espiritismo na Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita que abre O Livro dos Espíritos, obra fundamental da Doutrina. Espiritismo é uma Ciência que se defronta com as outras ciências em pé de igualdade e não pode ser julgada pelos cientistas que não a conhecem. Os sábios são dignos de admiração e respeito, quando se pronunciam sobre o que sabem. Mas quando opinam sobre o que não sabem igualam-se ao vulgo, dando simples opiniões desprovidas de valor. O que vale na Ciência são os factos e não as opiniões. Só é válido no campo científico o veredicto das provas. A rejeição dos factos "a priori" não tem valor científico, por mais reputado que seja o cientista que emitiu um julgamento. E acrescenta: “Quando a Ciência sai da observação material dos factos para apreciá-los e explicá-los, abre-se para os cientistas o campo das conjecturas. Cada um constrói o seu sistemazinho, que deseja fazer prevalecer e sustenta-o encarniçadamente. Os factos são o verdadeiro critério dos nossos julgamentos sem réplica. Na ausência dos factos, a dúvida é a opinião do homem prudente.”

A posição de Kardec era assim de uma clareza e positividade absoluta. Espiritismo nascia como Ciência, dentro dos quadros da evolução científica e, ao mesmo tempo assumia uma posição epistemológica realista, criticando os desvios individualistas à realidade objectiva. Aos que o criticaram alegando que o objecto da sua doutrina não era objectivo, Kardec lembrava que o conceito espírita de Espírito não era vago, indefinido, mas rigorosamente objectivo. “'O Espírito é um ser concreto e circunscrito – afirmava – um ser real, definido, que em certos casos pode ser apreendido pelos nossos sentidos da vista, da audição e do tacto.” A natureza objectiva do Espírito não podia ser confundida com a dos objectos lógicos, matemáticos ou mitológicos e imaginários, pois as suas manifestações permitiam a verificação científica de sua realidade objectiva e de sua capacidade de produzir efeitos materiais das mínimas às máximas proporções. Por isso o Espiritismo exigia atitude científica no seu estudo, pesquisas objectivas na comprovação das leis naturais que regem as suas relações com o mundo sensível e com os homens encarnados.

A maioria dos cientistas criticava o facto de o Espiritismo haver nascido da observação da chamada dança das mesas. Kardec perguntava se a movimentação espontânea de objectos materiais, rigorosamente constatada, era mais ridícula que a dança das rãs que dera a Galvani a possibilidade de descobrir a electricidade. Negar esses factos sem observá-los e pesquisá-los era anti-científico, revelava a persistência de preconceitos na Ciência e exigia, por isso mesmo, a pesquisa séria e metódica dos cientistas sérios. A Ciência da época fechara-se sobre as suas conquistas primárias e com elas se julgava na posse do conhecimento total. Caíra num mecanicismo simplório e alienava-se num solipsismo arrogante. Quando a Academia reconheceu a existência do HipnotismoKardec lembrou, num artigo crítico e irónico da Revista Espírita, que o Sr. Magnetismo tentara numerosas vezes entrar na Academia pela porta da frente, mas sempre rejeitado, até que resolveu trocar de nome e entrar pela porta dos fundos, sendo bem recebido e adquirindo a sua desejada cidadania científica. A Ciência dava mais importância às aparências formais do que à substância. Kardec assinalava que o Espiritismo não era uma questão de forma, mas de fundo.

A sua crítica epistemológica desenvolveu-se implacável através dos anos sucessivos de pesquisa na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que ele estruturara e dirigia como instituição científica de pesquisas. Quando os cientistas voltavam à carga contra o EspiritismoKardec declarava francamente a impotência da Ciência para opinar sobre questões que os cientistas simplesmente desconheciam. Respeitava os cientistas sérios e prudentes, mas não poupava os levianos e atrevidos que se julgavam, como ele dizia, monopolizadores do bom senso e da verdade.

Charles Richet, Prémio Nobel de Fisiologia, reconheceu-lhe o valor e a sua capacidade de pesquisador, embora não aceitasse a Doutrina Espírita, que considerava precipitada. William Crookes aceitou a incumbência da Sociedade Dialéctica de Londres, de demolir o Espiritismo e, após três anos de pesquisas, com resultados assombrosos, proclamou a veracidade inegável dos fenómenos espíritas. A luta solitária de Kardec deu resultados inesperados: Os trabalhos de Friedrich Zöllner e do Barão Von Schrenck-Notzing na Alemanha, de Ernesto Bozzano e Chiaia na Itália, que dobraram a resistência férrea de Cesare Lombroso, com várias materializações incontestáveis da mãe do grande antropólogo, o aparecimento da Metapsíquica, da Ciência Psíquica Inglesa, da antiga Parapsicologia Alemã, as pesquisas que levaram Friederic Myers a publicar o seu tratado "A Personalidade Humana e a sua Sobrevivência", o desenvolvimento da Psicologia Experimental e por fim o aparecimento da Parapsicologia Moderna de Rhine e McDougall provaram a legitimidade da Ciência Espírita e da crítica epistemológica, de Kardec. Mas como o Espiritismo não mudou de nome, conservando-se fiel à sua origem e a si mesmo, intransigente na sua clara e precisa posição epistemológica, não foi admitido na Academia nem recebeu a cidadania científica a que tinha e tem o mais absoluto e inegável direito. Kardec, que faleceu em 1869, não teve a oportunidade de ver, em vida, os lances mais importantes da sua vitória sobre o carrancismo e o radicalismo do mundo científico oficial.

Hoje, arrastada pela corrente da evolução, a Ciência teve de mergulhar no oceano invisível dos átomos e nas suas partículas, da percepção extra-sensorial e do poder insuspeitado do pensamento, precipitando-se na voragem das pesquisas sobre a reencarnação, ao absurdo das múltiplas dimensões da matéria, dos mundos interpenetrados, da antimatéria, da pluralidade dos mundos habitados, da assustadora problemática filosófica da concepção existencial do homem, da realidade ontológica considerada como subjectividade pura e assim por diante, negando-se a si mesma para poder sobreviver como sobrevivem os homens e todas as coisas e seres, segundo Kardec afirmava.

Kardec podia opinar com autoridade sobre a Ciência, porque era professor de Ciências. Mas por isso mesmo negava à Ciência o direito de opinar sobre o Espiritismo, que ela não conhecia e os cientistas o encaravam através de preconceitos, numa atitude anti-científica. A sua rejeição ao juízo científico da época, nesse sentido, é um veredicto: “A Ciência propriamente dita, como Ciência, é incompetente para se pronunciar sobre a questão do Espiritismo e, o seu pronunciamento a respeito, qualquer que seja, favorável ou não, nenhum peso teria”. Essa declaração de incompetência é válida ainda hoje, quando vemos a Ciência confirmar o Espiritismo sem querer e sem o saber. A ignorância dos sábios a respeito, como dizia Kardec, não se modificou. A posição realista de Kardec prova a sua segurança absoluta no tocante à legitimidade das suas pesquisas. O Espiritismo sustentava-se nas suas bases experimentais e lógicas, sem necessitar de aprovações estranhas, mesmo porque essas aprovações não provinham de quem tivesse conhecimento suficiente para opinar a respeito.

Por outro lado, a posição epistemológica do Espiritismo não podia ser criticada. O seu objecto era inegável: a realidade psíquica do homem e os fenómenos que a demonstravam através dos tempos. O seu método de investigação era perfeito e bem integrado nas exigências científicas, adequado ao objecto; a orientação das pesquisas era feita por um mestre capacitado e reconhecido como tal; os resultados obtidos eram interpretados com critério rigorosamente científico; a divulgação das experiências, observações e pesquisas era feita através de órgão específico e especializado, com todas as informações e minúcias das ocorrências; nenhuma experiência conseguira cientificamente negar a realidade dos fenómenos ou contrariar a validade das interpretações. Se a Ciência não reconhecia a validade científica da pesquisa espírita, não era por desmenti-la ou pô-la em cheque com outras experiências, mas por simples atitude preconceituosa, que não podia pesar em considerações realmente científicas. Restava ainda o facto importante da comprovação dos fenómenos por cientistas eminentes da época e conhecidamente contrários ao Espiritismo.

As alegações de que o Espiritismo se apresentava à Ciência como um produto híbrido, em que problemas científicos, filosóficos e religiosos se misturavam, tornando-o indefinido, não passava de manobra, pois a sequência natural dessas áreas, no plano do desenvolvimento cultural, corresponde exactamente ao esquema espírita. A magia primitiva corresponde ao fazer experimental, portanto à Ciência; a Filosofia era a concepção do mundo dada pela experiência em que se conjugam teoria e prática; a moral decorria do comportamento determinado pela mundividência e a religião surgia como imperativo das conquistas do saber adquirido. Toda a História do Mundo Antigo testemunhava isso. As próprias culturas teológicas fizeram esse caminho. O Positivismo de Auguste Comte, que se apresentava como Filosofia Científica, seguiria o mesmo esquema da Teoria Geral do Conhecimento, acabando por desembocar na Religião da Humanidade. Epistemologicamente nada havia a censurar ou condenar no contexto do Espiritismo. Comentando a fatuidade humana, Kardec lembra que os homens mais sábios se deixam embaraçar por coisas insignificantes. O que impediu a expansão do Espiritismo na Europa do século passado, de maneira a poder renovar a velha criminosa concepção do mundo ainda hoje dominante, foi simplesmente o seu aspecto religioso. Como no Cristianismo Primitivo, o Espiritismo foi acolhido com ansiedade pelas camadas pobres da população, que o converteram por toda a parte numa nova seita cristã. Nesse aspecto devocional as camadas superiores viam apenas o religiosismo popularesco, dotado da mesma fé ingénua de toda a religiosidade massiva. Contra essa avalanche de crentes humildes, predispostos ao beatismo, surgiram pequenos grupos de pessoas cultas, que lutaram muitas vezes com entusiasmo, mas acabaram cedendo à pressão dos preconceitos. Esses grupos fecharam-se em sociedades de elite, desligados do povo, ou simplesmente desapareceram por falta de elementos dispostos ao trabalho árduo e à luta constante em defesa da doutrina. Padres e médicos aproveitaram-se disso para tentar asfixiar, acompanhados por pastores protestantes de produtivos rebanhos, o Renascimento Cristão. A palavra Cristianismo gerara um estereótipo enriquecido pelo duplo prestígio das classes dominantes e das igrejas tradicionais. As corporações científicas e as associações profissionais de médicos representavam a reacção científica e as igrejas cristãs a cólera divina, disparando os raios do Olimpo contra os renegados. Apesar desses fogos cruzados sobre as suas cabeças descobertas, os espíritas conseguiram compreender os princípios fundamentais da doutrina, a sua luta pacífica no desespero das guerras impiedosas.

Mas a actualidade oferece-nos perspectivas inteiramente diversas das que predominaram até agora. Graças à sua própria ignorância do assunto, os cientistas entraram a fundo no esquema de pesquisas da Ciência Espírita e comprovaram a sua veracidade. Chegamos assim a um momento crucial. E se os homens não clamarem, como advertiu Jesus, as pedras clamarão. Na verdade já estão a clamar, pois é precisamente do minério que se levanta sobre o mundo a alvorada da concepção atómica, dissipando as trevas da falsa cultura materialista, em que o espírito fora substituído pelo pó dos túmulos. O poder atómico é ao mesmo tempo ameaça e consolo. E está nas mãos dos homens para que eles decidam por si mesmos o que desejam ser. A opção do Espiritismo continua aberta para todos. Quem quiser semear bombas e destruição poderá fazê-lo, mas os que optarem pela semeadura da luz, da compreensão real do homem e do Universo, do verdadeiro sentido da vida e do destino superior da Humanidade, verão na concepção espírita a solução do "Grande Enigma" sobre o qual Léon Denis escreveu um dos seus livros mais profundos.

A critica de Kardec à Ciência do seu tempo continua válida nos nossos dias. A Epistemologia Espírita assemelha-se, neste momento, às profecias apocalípticas da Antiga Israel. Não é apenas uma crítica do Conhecimento e dos processos da Ciência, mas uma crítica do Homem, pois é ele quem busca o Conhecimento e quem faz a Ciência. A estrutura científica dá-nos a imagem do Homem, do seu fazer e de como ele a fez. Voltado para fora de si mesmo, estimulado pelo fascínio da Natureza, o homem esqueceu a sua própria natureza – a natureza humana – e coisificou-se. Esse homem-coisa perdeu-se no orgulho das suas conquistas materiais e rejeitou os anseios espirituais. Por isso desenvolveu a Técnica e atrofiou a Religião. A eclosão espírita do Século XIX foi desencadeada pelos Espíritos para despertar os homens da sua apatia espiritual, lembrando-lhes que a euforia material os levaria à sua própria destruição. Descartes já lembrara que é mais fácil conhecermos as coisas exteriores do que a nós mesmos. Francis Bacon advertira que só atingimos o poder científico obedecendo a Deus. Mas Deus e as suas leis foram considerados indignos do laboratório e jogados na sacristia, entregues à quinquilharia devocional das medalhas, escapulários, imagens para a idolatria e ameaças demoníacas.

Kardec estruturou a Ciência do Espírito e instituiu a pesquisa mediúnica, porque a mediunidade é a janela aberta no paredão dos fenómenos materiais para mostrar uma nesga do Infinito aos homens imantados ao finito. A sua crítica à Ciência é um acto de transcendência: liga-se em conflito a concepção do homem e do mundo, para que ambos recobrem a sua unidade e possam livrar-se da hipnose atómica. Mas os próprios espíritas, em geral, ao tentarem compreendê-lo, retornam às fontes mágicas do beatismo religioso, esquecidos de que religião sem ciência é superstição e ciência sem religião é loucura. Deus é a Fonte da Sabedoria e os homens a procuram na matéria. Esse engano vaidoso e fatal levou-nos à beira da destruição do planeta. O Espiritismo é um esforço para nos devolver à condição humana, salvando-nos do robô. A Terra está sendo destruída pela técnica da voracidade sem limites. O Espiritismo oferece-nos a única via de escape: a unidade do espírito em contraposição à fragmentação da matéria. Só a visão monista do mundo que Kardec nos oferece pode salvar-nos do caos.

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, X – Epistemologia Espírita, 10º fragmento da obra.
(imagem: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Deus na Natureza ~


A Vida ~ Circulação da Matéria ~
(II)

  Se seguirmos a elevação gradativa da matéria, haveremos de reconhecer com os fisiologistas em geral, com Moleschott em particular, o seguinte processo das permutas materiais:

  O amoníaco, o ácido carbónico, a água e alguns sais, eis toda a série das matérias com as quais a planta constrói o próprio corpo. A albumina e a dextrina formam-se à custa destas combinações simples, por efeito de constante dispêndio de oxigénio. Essas duas substâncias dissolvem-se nos sucos da planta, que se tornam por isso mesmo capazes de transportar-se às mais diversas regiões, através das hastes, das folhas, ou dos frutos. Mercê da albumina, engendram-se outros corpos albuminosos, quais a legumina, o glúten e a albumina vegetal coagulada. Estas duas últimas substâncias se depositam, indissolúveis, na semente. A albumina, o açúcar e gordura são os materiais construtivos do animal, cujo sangue é um soluto de albumina, gordura, açúcar e sais. Uma absorção mais forte de oxigénio transforma a albumina em fibrina muscular, em elementos redutíveis, cola de cartilagens e ossos, substância dérmica ou pilosa. Estas substâncias aliadas à gordura, aos sais e à água, constituem a totalidade do organismo animal. Tanto quanto a recomposição progressiva, a desassimilação é o fenómeno de evolução gradativa.

  Na planta a albumina, o açúcar e a gordura se decompõem em alcalóides, ácidos, matérias corantes, óleos voláteis, resina, azoto, ácido carbónico e água. No animal as mesmas substâncias se resolvem em leucina, sirosina, criatina, hipoxantina, ácido úrico, fórmico, oxálico, ureia, amoníaco, ácido carbónico e água. Fora do corpo a ureia decompõe-se em ácido carbónico e amoníaco.

  Assim, graças à vida em si, as plantas e os animais revertem às suas fontes. Após a morte, a desassimilação é ainda uma evolução, não menos regular que durante a vida. O que se dá, apenas, é que percorre outros graus, até que chegue ao termo da decomposição.

  A putrefacção não é mais que uma combustão lenta das matérias orgânicas, a operar-se fora do corpo vivo. Ela representa uma espécie de respiração depois da morte e cada átomo vai conformar ou entreter outros corpos.

  Tal o esboço químico da permuta vital nos dois reinos orgânicos. Agora, abordemos o assunto particular da vida no reino animal. Nestes novos factos observados, tanto como nos anteriores, estamos de acordo com os adversários. Entretanto, vamos ver as consequências.

  Aqui temos, segundo o próprio autor de A Circulação da Vida, baseado em recentes trabalhos de fisiologistas alemães, o processo geral de desassimilação no animal, ou, para falar mais claramente, os principais fenómenos de permuta das matérias que constituem a vida. Tratemos aqui, particularmente, do corpo humano, por ser o que mais nos interessa (i).

  Sabemos hoje que a história da evolução dos alimentos e das matérias rejeitadas depois de servirem à assimilação é a mesma essência da fisiologia da permuta material.

  A digestão e formação dos tecidos estão compreendidas entre dois limites: as substâncias alimentícias e as partes constitutivas das secreções.

  Assim é que todos os elementos anatómicos do corpo se decompõem para se rejuvenescerem sem cessar. O oxigénio aspirado passa da boca pela traqueia arterial, esta se ramifica e os seus últimos ramúnculos desligados são providos de vesículas laterais e terminais, que só se intercomunicam pelo ramúnculo do tubo aéreo que as contém.

  Deste tubo, o oxigénio passa às vesículas pulmonares e destas ao sangue, através da parede dupla de vesículas e vasos capilares, até que entra, com o sangue, no coração.

  Em seguida, o coração impele o sangue oxigenado a todo o território orgânico, através das artérias da grande circulação, que mantém todo o corpo debaixo da sua dependência.

   Finalmente, o oxigénio penetra os tecidos através das paredes de vasos capilares, que terminam nas artérias.

  Enquanto isso, um fenómeno inverso se verifica. O ácido carbónico proveniente do sangue e o ar atmosférico aspirado se transformam, segundo a lei das permutas de gases, ao penetrarem as cavernas pulmonares, os brônquios e a própria traqueia.

  Depois, o ritmo respiratório, produzindo a retracção do peito, expele uma coluna de ar carregado de ácido carbónico. Uma curta pausa e a essa expiração sucede a aspiração, dilata-se o peito, um ar rico de oxigénio substitui o ar expirado, que perdera uma parte desse oxigénio e, o fenómeno prossegue.

   Podemos comparar os pulmões a um banco: o ácido carbónico é entregue à circulação externa, para alimento das plantas, em troca do oxigénio recebido. O sangue provido de oxigénio escoa-se dos pulmões para o ventrículo esquerdo do coração, daí derivando-se para todos os sectores do organismo. Começa, então, aí, a combustão geral que, sob a forma de nutrição aqui, de eliminação acolá, vai accionando as primeiras funções.

  É possível medir a intensidade de permuta das matérias de um organismo humano pela quantidade de ácido carbónico, água e ureia eliminados em dado tempo. A rapidez das permutas dá a medida da vida. A sua maior actividade verifica-se dos 30 aos 40 anos. Termo médio, é nessa fase que as energias criadoras do homem atingem o apogeu.

  Os pulmões e os rins não são os únicos órgãos eliminadores; a eles devemos juntar a pele e o recto. Os cabelos que caem, a epiderme que se escama no interior como no exterior, as unhas que aparamos, multiplicam os pontos de eliminação dos princípios azotados.

  A actividade eliminatória dos pulmões e dos rins atinge um quinze avos do peso total das excreções e ultrapassa em muito a dos intestinos. Quanto maior actividade, mais rápida a eliminação.

  Os homens entregues a trabalhos de movimento activo eliminam pela epiderme, em 9 horas, tanto ácido carbónico quanto o correspondente a 24 horas de repouso. Num cavalo a trote, a eliminação é 117 vezes mais copiosa do que em repouso. Um parelheiro inglês, que percorrera em 100 horas uma extensão correspondente a 500 horas de marcha ordinária, não perdeu menos de 14 quilos depois do feito.

  O trabalho mental fatiga tanto ou mais que o corporal. A expressão que utilizamos, referindo-nos a criaturas de pensamento ardente, é justa. Qualquer acréscimo de trabalho espiritual produz aumento de apetite, qual se dá com o intenso trabalho muscular. O apetite não é mais que o sinal de empobrecimento do sangue e dos tecidos, manifestando-se por meio de uma sensação. A actividade cerebral, assim como a dos membros do corpo, aumenta a eliminação através da pele, dos pulmões, dos rins.

  O sangue, por sua vez, abandona constantemente aos órgãos do corpo os seus componentes, que a actividade dos tecidos vai decompondo em ácido carbónico, ureia e água.

  Por fim, as matérias excrementícias atravessam continuamente a corrente circulatória para atingir os pulmões, os rins, a pele e o recto, de onde se eliminam.

  Torna-se necessário, pois, que os tecidos e o sangue experimentem, no curso regular da vida, uma perda de substâncias só compensada pelo processo alimentar.

  É notável a rapidez com que se opera esse intercâmbio de matéria.

  A duração média da vida dos que sucumbem por inanição atinge a duas semanas. Mas, desde que um vertebrado, seja qual for, morra de inanição, o seu corpo terá perdido quatro dez avos do peso normal.

  Nos indivíduos alimentados convenientemente, a permuta se opera mais rápida que nos esgotados pela abstinência. Moleschott e outros fisiologistas acreditaram poder concluir de certos factos que o corpo renova a maior parte de sua substância num período de 20 a 30 dias.

  Impondo-se um regime regular, diversos observadores verificaram uma perda, em média, de um vinte avos do seu peso, em 24 horas.

  O alimento ingerido e o oxigénio aspirado contrabalançam essa perda. O sangue, com efeito, não provém apenas das substâncias alimentares, mas, simultaneamente, da alimentação e da respiração. É uma verdade que mais avulta no concernente aos tecidos orgânicos.

  Perdendo o corpo diariamente um doze avos e no Estio um catorze avos do seu peso, todo o corpo estaria renovado dentro de 12 ou 14 dias. Pelos resultados obtidos com o último observador, seriam precisos vinte e dois dias.

  Liebig deduziu dessa rapidez de permutas uma outra consideração. Pode, sem maior dúvida, atribuir-se a um homem idoso 24 libras de sangue. O oxigénio por nós absorvido em 4 ou 5 dias basta para transformar pela combustão todo o carbono e hidrogénio dessas 24 libras de sangue em ácido carbónico e água. Mas o sangue corresponde mais ou menos a um quinze avos do peso do corpo: se, pois, 5 dias bastam para substituir o sangue, com a troca dos elementos, pode inferir-se que o corpo inteiro se renova em 25 dias.

  Moleschott e Malerf verificaram que corpúsculos de carneiro, profusamente injectados na circulação de rãs, desapareciam completamente ao fim de 17 dias. Ora, como a permuta nas rãs se opera mais lenta que nos animais de sangue quente, somos levados a crer que os glóbulos vermelhos do sangue humano se renovam totalmente em menos de 17 dias.

  O autor de A Circulação da Vida declara, portanto, que a concordância dos resultados obtidos, partindo de três pontos de vista diferentes, é uma garantia positiva de veridicidade da hipótese dos 30 dias necessários à renovação completa do organismo. Os sete anos que a crença popular fixava a essa operação, seriam um exagero colossal. “Por surpreendente que possa parecer, à primeira vista, essa rapidez – diz – concorda com a experiência em todos os pontos. Para Stahl, as andorinhas perdem num dia a gordura aprovisionada durante a noite. O desenvolvimento das células opera-se, no sangue, em 7 ou 8 horas, a expensas das matérias fornecidas por quilo. De resto, quem ignora bastarem poucos dias para que um homem emagreça ao ponto de tornar-se irreconhecível?

  “A rapidez da permuta das matérias, demonstrada em todas as experiências, é o que há de mais próprio para diminuir a nossa admiração.

  “Essas experiências nos ensinam que um adulto, pesando 128 libras, elimina em 24 horas cerca de 3 libras de saliva, duas e meia de bílis, no mínimo e, mais de 28 de suco gástrico; de sorte que um fumador, com o mau hábito de escarrar seguidamente, pode, durante o dia, expelir 85 partes do seu peso. No período de 24 horas, corre no nosso corpo perto de um quarto do seu peso, de suco gástrico a circular do sangue para o estômago e vice-versa.

  “A celeridade das permutas difere de indivíduo para indivíduo.

  “O homem, a mulher, a criança, o velho, manifestam aptidões diferentes: assim, o homem tem a propriedade de permutar maior quantidade que a mulher e, o adulto mais que os idosos e as crianças. O operário e o pensador recompõem o corpo em tempo mais curto que os ociosos e inactivos.

  “Há criaturas de vida acelerada: nelas a esperança, a paixão e o medo, que se transformam rapidamente em confiança e alegria, precipitam a circulação do sangue. Vivem apressadas, porque depressa se executa o seu metabolismo. Enquanto se mantém equilibrado o regime de permutas, o corpo não sofre alteração no seu aprovisionamento. É, ordinariamente, esse, o ritmo do adulto, que se altera com os anos, para romper-se na velhice.

  Também a digestão vigorosa é privilégio da criança. A absorção de sólidos e líquidos igualmente se regula, muito rapidamente, no trabalho digestivo. A acção do oxigénio e a desassimilação dos tecidos, a ela consequente, nunca se interrompem. Daí resulta, imediata, uma diminuição do suco nutritivo, que se pode verificar não só pelo peso, como por inspecção directa. Na idade avançada, sofrem tal ou qual depressão, retraem-se. A córnea achata-se, a miopia atenua-se e pode mesmo chegar ao efeito contrário – à presbiopiaOs ossos, com a velhice, perdem a elasticidade, sobretudo nos menos ricos de água, como na juventude.

  “Uma vez rompido o equilíbrio, o desgaste dos tecidos processa-se inevitavelmente. O maxilar inferior diminui de volume, a pele das mãos e do rosto torna-se mais flácida, enruga-se, e aos músculos adelgaçados diminui a contractilidade. Não podem os idosos flectir a medula espinal e a fronte lhes pende para adiante.

  “Também as cordas vocais, como que se tornam mais secas, perdem em flexibilidade e elasticidade; a voz é rouca, surda, ou metálica e áspera. Depois dos 50 anos o peso do cérebro também começa a diminuir.

  “Tudo deve contribuir, na velhice, para avolumar a desproporção entre a sanguificação e a desassimilação. Com a matéria, a força decresce. Suavemente, aproxima-se o fim; a morte é um esgotamento resultante do empobrecimento material.” (ii)

  Estas alegações são contestáveis. Ainda não está provado que o corpo humano se renova completamente no período de um mês. Tecidos há que só se renovam muito lentamente, dado que todos eles se renovem.

   Em todas as idades se têm encontrado células embrionárias que, no entanto, se destinam a desaparecer no próprio feto. Os tumores da pálpebra, sequentes a pequenas inflamações (terçolhos), em regra não são reabsorvidos antes de um ano. As unhas não se renovam em menos de seis meses. No estado normal de saúde, o seu crescimento é de 2 milímetros por mês, assim, se guardássemos a unha do indicador num estojo cilíndrico, durante sessenta anos – tal como fazemos para conservar plantas raras – teríamos afinal uma garra excedente de um metro e meio. Assim, poderíamos contraditar os 25 dias e pedir maior lapso de tempo para a renovação do organismo. Não é, porém, de um mês ou de um ano que se trata. O tempo não vem ao caso, como diz a sátira francesa, e, muito pelo contrário, quanto mais rápida e vultosa se faça a renovação da matéria corporal, mais aproveita à nossa teoria.

  Os materialistas deduzem dos factos aqui exarados a sua famosa assertiva, declarando provada a inexistência da alma, mediante essas transformações químicas. Para nós, ao contrário (note-se o contraste), essas mesmas transformações induzem-nos a declarar demonstrada, doravante, a existência da alma. Antes, porém, de argumentar, apraz contrapor um simples reparo a tão categórica afirmativa adversa, que proclama com tamanha segurança e com verdade incontestável a só existência das moléculas materiais e que só elas constituem o ser vivente, do berço ao túmulo.

  Por um lado, afirmais que o corpo vivo não passa de um conjunto de moléculas e, por outro, dizeis que todo esse corpo se rejuvenesce mensalmente... Ao nosso ver, são duas proposições difíceis de conciliar. Como explicar o envelhecimento, se esse corpo material, na sua qualidade de moléculas químicas, nunca teve mais que um mês de idade? O turbilhão vital, na frase de Cuvier, o qual se sucede constante sob e sobre a nossa pele, a nossa própria carne, sangue, ossos, cabelos, todo o corpo, é qual vestimenta que se renova de si mesma. O corpo do sexagenário, ou do octogenário, não tem mais que um mês, assim como o da criança que apenas começa a andar. São, assim, sempre novos, os corpos e, certo, não podemos deixar de admirar essa engenhosa lei da Natureza. Entretanto, é também indubitável haver no mundo pessoas de todas as idades, na escala dos anos. O Sr. Moleschott conta, ao que presumo, 45 e o Sr. A. Comte deveria estar pelos seus 79. Vós, Sr. Vogt, nascestes no ano da graça de 1817. Temos assim, cada qual, a nossa idade. Cá por mim, sei que carrego menos de 20 lustros, que o Sr. Schopenhauer registaria muito em breve. Ora, se é verdade que o nosso corpo se renova mensalmente, ou anualmente – se assim o preferirem – o que é que envelhece em nós?

  Digamo-lo uma vez mais: não serão essas moléculas constitutivas do corpo, que ainda há pouco não nos pertenciam e se integravam num frango ou numa perdiz, num grão de trigo ou de sal, numa gota de vinho ou de café, por nós absorvidos e, que, ao demais, são imutáveis e, como coisa morta, não podem envelhecer. Logo, existe em nós alguma coisa além dessas moléculas. O nosso organismo tem envelhecido.

  Prossigamos e entremos agora no âmago da questão. Permiti, antes de tudo, assinalar que a todo o instante a fraqueza do vosso sistema se traduz pela inconsequência forçada das expressões.

  Sois os primeiros a conceituar a velhice como uma falta de equilíbrio entre a recomposição e a eliminação. À vida, plena, normal, chamais equilíbrio funcional. Ensinais que, havendo equilíbrio de sanguificação e eliminação, o corpo não se altera na sua provisão geral de matéria. Esse equilíbrio mantém-se na idade adulta. É possível pesar um homem de 30 a 40 anos, a longos intervalos, sem constatar qualquer alteração de peso que se não explique por ganho ou perda imediatamente precedente.

  Pois, muito bem: mas, pergunto eu, quem organiza esse equilíbrio?

  Pretendeis, bem sei, que não há força alguma interior a presidir a essa renovação molecular, mas tenho essa vossa pretensão como vanidade insustentável. A hipótese puramente materialista, da vida, a assimilação circulatória das moléculas ao movimento do vapor no alambique ou da electricidade nos tubos de Geissier, não explica o crescimento nem a vida, nem a decadência, a senectude, a morte.

  Para que haja equilíbrio, para que haja organização no agenciamento das moléculas, é preciso que haja direcção. De resto, tanto como Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, não negais essa direcção. Mas, como conceber uma direcção sem uma força motriz? Ousareis negá-lo? Essa força directriz não é uma amálgama de propriedades confusas, antes é soberana, necessária, pois é quem rege o turbilhão vital, assim como a atracção rege o turbilhão de esferas planetárias.

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(i) Brief – Kreislauf des Lebens (A Circulação da Vida), 12º.
(ii) Eis como se exprime Moleschott, sem uma palavra que venha coroar a aridez dessa descrição. Pedimos licença para compará-la ao fecho de capítulo análogo, de outro fisiologista alemão – Schleiden – e perguntar para que lado pendem as aspirações da alma. “A nossa percepção da vida e da morte – diz este – torna-se, na velhice, outra. Que não a da mocidade. Os elementos acumulam-se no corpo, progressivamente; os órgãos flácidos, flexíveis, enrijam-se, ossificam-se, recusam-se a trabalhar; a Terra atrai o corpo sempre maioritariamente, até que a alma fatigada desse constrangimento lhe abandona o invólucro já insustentável. Abandona o corpo de barro, nascido do pó, à combustão lenta, a que chamamos putrefacção. Só a alma, imortal e incorruptível, deixa a servitude das leis materiais e volve-se ao Regulador da liberdade espiritual.


Camille FlammarionDeus na Natureza, Segunda Parte – A Vida 1, Circulação da Matéria (2 de 5), 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)