Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 8 de junho de 2018

o sentido da vida ~


Sobrevivência e Imortalidade ~

Prega a ciência moderna, como já vimos, baseada nos seus resultados materialistas, a imortalidade do homem e de todas as coisas através da eternidade do Universo. A imagem do mar, eterno no seu conteúdo, e no seu aspecto, e variável na sucessão das ondas, dá-nos maior compreensão desse quadro transcendente e supranormal que a ciência materialista nos pinta. Os homens e as coisas são como simples vagas, que aparecem e desaparecem. Não têm qualquer espécie de forma permanente. Só a água, o conteúdo universal, é que sobrevive através dos tempos, renovando as formas, sem qualquer continuidade daquelas em si mesmas.

Essa visão, que muito se assemelha à do antigo panteísmo e à de certas escolas de ocultismo, que consideram o homem como fagulha divina momentaneamente destacada de Deus, e que a Ele voltará depois da morte – excluindo-se naturalmente as que assim pensam dentro da linha reencarnacionista – já foi estudada por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos.

Em certo momento pergunta ali o codificador:

“Que nos importa ter uma alma, se, extinguindo-se-nos a vida, ela desaparece na imensidade, como as gotas d’água no oceano? A perda da nossa individualidade não equivale, para nós, ao nada?”

Realmente, duas concepções existem, que conduzem o homem à desesperança. A de aniquilamento total do ser por meio da morte física e a dessa imortalidade por transmissão, que nada significa. Também a ideia da imortalidade através da sobrevivência de um princípio místico e misterioso, que seria a alma destinada ao inferno ou ao céu, não satisfaz a nenhuma inteligência racionalista. Somente a concepção espírita, aliás, comprovada pela observação, que nos fala da imortalidade pessoal, oferece ao homem a visão real do seu destino e, mais do que isso, da sua responsabilidade em face da vida e do mundo.

Entre os que aceitam o Espiritismo, subsiste, entretanto, uma pequena divergência de opinião, no tocante à interpretação do sentido imortalista da sobrevivência. Provamos, através das comunicações e dos fenómenos espíritas, a sobrevivência do homem. Provamos que a morte física não é o fim do indivíduo consciente. Provamos mesmo, que essa morte não chega a modificar o homem, pois ele continua, na vida espiritual, com todas as suas características individuais da vida material. A perda do corpo unicamente priva o indivíduo do contacto visível com a matéria. Assemelha-se extraordinariamente ao abandono do escafandro pelo escafandrista, que, longe de perder em si mesmo alguma coisa com isso, readquire a sua agilidade corporal e perde apenas a capacidade de viver no fundo do mar.

Entretanto, isso não nos prova a imortalidade, que implica na eternidade do ser. Imortalidade pessoal, portanto, é um termo com o qual se procura interpretar uma suposição, decorrente da verificação do facto real da sobrevivência. Nesse caso, dizem alguns, o que está provado é a sobrevivência, não a imortalidade.

Os espíritos que transmitiram a Kardec as linhas mestras da doutrina ensinaram que o homem é imortal. Seguiram, aliás, a linha tradicional dos ensinamentos superiores, das revelações dadas ao homem em todos os tempos, pelas forças do Alto. Todas as religiões afirmam o carácter imortalista do homem e as ordens ocultas e esotéricas do passado, algumas das quais ainda sobrevivem, também ensinaram sempre a mesma coisa. A revelação espírita não fugiu a essa norma geral e o simples facto dessa concordância nos faz pensar na possibilidade de se tratar de um facto real.

Do ponto de vista espírita, entretanto, essa questão não tem razão de ser. O Espiritismo não se perde em cogitações dessa natureza, tão semelhante às infindáveis controvérsias escolásticas da idade média. Se não temos recursos para investigar a possibilidade dessa coisa que mal podemos compreender, a imortalidade, que equivale à eternidade, como poderemos manter discussões estéreis a respeito? Basta-nos, evidentemente, saber que há a sobrevivência. E é indiscutível que a sobrevivência nos autoriza a super-existência ilimitada, pelo menos com os seus limites muito além das possibilidades de verificação.

No primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos, questão nº 14, título Panteísmo, os espíritos que orientavam Kardec deixaram de maneira clara, bem definida, a posição do Espiritismo em face desses enigmas escolásticos.

Respondendo a uma pergunta do codificador sobre a natureza de Deus, responderam eles:

“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não avanceis além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois, de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretender penetrar no que é impenetrável.”

Afirma a ciência moderna que o homem é limitado na sua capacidade de conhecimento. O Espiritismo concorda com essa afirmação, não procurando iludir-se e iludir os demais a respeito de coisas inverificáveis. A natureza experimental da doutrina não nos permite essas fugas para o mais além. E embora os materialistas nos acusem de desertores, repetindo, como papagaios, que não sabemos enfrentar a realidade, os que se derem ao trabalho de estudar a doutrina verificarão que, pelo contrário, procuramos enfrentar a realidade num sentido muito mais amplo, racional e coerente do que o defendido pelos materialistas.

Basta-nos, pois, verificar o facto, já agora incontestável, da sobrevivência, que continuaremos a chamar de imortalidade porque ela representa, na verdade, a negação da morte.

Aos conceitos pretensamente científicos de imortalidade-cósmica, num sentido geral e não individual, opomos o resultado das nossas experiências, que demonstram à saciedade a sobrevivência pessoal. Contra factos não há argumentos, nem prevalecem os raciocínios, por mais bem tecidos que se nos apresentem.

Os espíritas não inventaram uma explicação para os fenómenos; foram estes mesmos que revelaram a sua natureza íntima. Os próprios espíritos desencarnados se incumbiram de dizer aos homens, por múltiplas formas e em múltiplas ocasiões, dirigindo-se a sábios, filósofos, teólogos e simples curiosos, que eram eles os agentes, conscientes e intencionais, dos fenómenos observados. Eles mesmos se incumbiram de provar que não eram entidades misteriosas, pertencentes a qualquer escala desconhecida de seres infernais ou celestiais, mas simplesmente as almas daqueles que haviam morrido.

A nossa crença na imortalidade pessoal não se baseia, pois, em suposições, mas em factos concretos, mil vezes repetidos e comprovados e, cuja ocorrência jamais se interrompeu na face da Terra.

A essa convicção, que podemos sem a menor dúvida chamar de científica, pretendem alguns eruditos de hoje opor, em nome da própria investigação científica, o absurdo da imortalidade cósmica, através dos elementos naturais e da sua constante transformação. Não se baseiam, para isso, em nenhuma experiência demonstrativa. Partem apenas da base frágil das suposições e, mais espantoso é que, defendendo os métodos científicos, não se lembram de que toda a teoria contraditada pelos factos não pode subsistir.

Uma das teses mais recentes e perigosas é a de que a imortalidade individual contradiz o princípio da evolução geral. Afirma-se isso com foros de grande e profunda verdade, com a intenção evidente de fechar a porta, de uma vez por todas, a qualquer tentativa de esclarecimento do assunto. Mas temos o direito de perguntar ainda aqui os motivos dessa contradição e, de afirmar justamente o inverso do que pretendem dizer os defensores ilustres desse ponto de vista. Para isso, não precisamos de silogismos de espécie alguma. Basta-nos lembrar que toda a evolução das coisas, à nossa volta e nas imensas extensões do Universo conhecido, se processa através de um único método, firmado pela natureza em toda a parte, sem excepção: o da evolução individual.

Evoluem os espécimes, para que evolua a espécie. Evoluem os homens, evoluem os povos, uns se adiantando aos outros para que evolua a humanidade. Evoluem os elementos, para que evolua a Terra. Evoluem os mundos no espaço para que, certamente, evoluam os sistemas planetários e o próprio cosmos. Por que estranha razão, mais uma vez encontramos o pensamento humano deslocado da ordem geral, no momento em que tem de encarar o problema da própria evolução? Por que motivo misterioso a evolução individual, unicamente no tocante ao problema da sobrevivência, teria de contrariar o princípio da evolução geral? Mistérios, ou melhor, delícias da caturrice humana.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Sobrevivência e Imortalidade, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

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