Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a visão | de Deus

   Dado que Deus está em todo o lado, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? São estas as perguntas que fazemos diariamente. A primeira é fácil de resolver; os nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os tornam impróprios para verem certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente à nossa vista e aos nossos instrumentos de análise e, no entanto, não duvidamos da sua existência. Vemos os efeitos da peste e não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos moverem-se sob a influência da força da gravidade e não vemos essa força.

   As coisas de essência espiritual não podem ser apercebidas pelos órgãos materiais; é só com visão espiritual que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; só a alma pode então ter a percepção de Deus. Ela vê-o imediatamente após a morte? É o que só as comunicações de além-túmulo nos podem ensinar. Através delas, sabemos que a visão de Deus é privilégio unicamente das almas mais depuradas e que, assim, bem poucos possuem, ao abandonar o seu invólucro terrestre, o grau de desmaterialização necessário. Uma comparação vulgar fará com que seja facilmente entendido.

   Quem se encontra ao fundo de um vale, mergulhado numa bruma espessa, não vê o sol; no entanto, na luz difusa, tem a percepção da presença do sol. Se subir a montanha, à medida que vai subindo, o nevoeiro vai aclarando, a luz vai-se tornando cada vez mais viva, mas ainda não vê o sol. Só depois de se ter completamente elevado acima da camada de bruma, encontrando-se numa atmosfera perfeitamente pura, o vê em todo o seu esplendor.

   É também assim com a alma. O invólucro de perespírito, apesar de invisível e impalpável para nós, é ela uma autêntica matéria, ainda demasiado grosseira para determinadas percepções. Este invólucro espiritualiza-se à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como camadas nebulosas que obscurecem a sua visão; cada uma das imperfeições de que se desfaz é uma mancha a menos, mas só depois de se ter totalmente depurado goza da plenitude das suas faculdades.

   Sendo Deus a essência divina por excelência, só pode ser visto em todo o seu esplendor pelos Espíritos que tenham atingido o mais elevado grau de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o vêem, não é por estarem maisafastados que os outros; como eles, como todos os seres da natureza, estão mergulhados no fluido divino tal como nós o estamos na luz. Simplesmente, as suas imperfeições são vaporosas que lhe ocultam a visão; depois de o nevoeiro se ter dissipado, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não terão necessidade nem de subir nem de o ir procurar às profundezas do infinito; estando a visão espiritual liberta das teias morais que a obscurecem, vê-la-ão em qualquer lugar onde se encontrem, até mesmo sobre a Terra, pois ele está em todo o lado.

   O Espírito só se purifica a longo termo e as diferentes encarnações são os alambiques no fundo dos quais deixa de cada uma das vezes algumas impurezas. Ao deixar o seu invólucro corporal não se despoja instantaneamente das suas imperfeições; é por isso que alguns, depois da morte, não vêm Deus melhor do que quando vivos; mas, à medida que se vão purificando, têm dele uma intuição mais distinta; se não o vêem, compreendem-no melhor: a luz é menos difusa.Então, quando os Espíritos dizem que Deus os proíbe de responderem a esta ou a àquela pergunta, não é que Deus lhes apareça ou lhes dirija a palavra para lhes prescrever ou proibir isto ou quilo, não; mas eles sentem-no; recebem oseflúvios do pensamento tal como nos acontece a respeito dos espíritos que nos envolvem com o seu fluido, apesar de não os vermos.

   Nenhum homem pode então ver Deus com os olhos da carne. Se este favor fosse concedido a alguns, seria só no estado de êxtase, quando a alma está tão separada dos laços da matéria que o torna possível durante a encarnação. Um tal privilégio não seria de resto o das almas de elite, encarnadas para cumprirem uma missão e não para expiação. Mas como os Espíritos de ordem mais elevada resplendem com um brilho ofuscante, pode acontecer que os Espíritos menos elevados, encarnados ou não encarnados, atingidos pelo esplendor que os rodeia, tenham julgado ver o próprio Deus. É também assim que, às vezes, tomamos um ministro pelo seu soberano.

   Sob que aparência se apresenta Deus aos que se tornaram dignos deste favor? Sob uma forma humana ou como uma fogueira resplandecente de luz? É o que a língua humana é impotente para descrever, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação que nos possa dar uma ideia; nós somos como cegos a quem se tentasse em vão fazer compreender o brilho do Sol. O nosso vocabulário está limitado às nossas necessidades e ao círculo das nossas ideias; o dos primitivos não podia depender das maravilhas da civilização; o dos povos mais civilizados é demasiado pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência demasiado limitada para os entender e a nossa visão demasiado fraca ficaria perturbada com ele.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus | – A visão de Deus (de 31 a 37) 18º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

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