Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

agonia das religiões ~


Religião | como facto social

O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise universal, determinada por mudanças rápidas em todos os campos de sua actividade, defronta-se com um grave problema subjectivo: ser ou não ser religioso. Os estudos sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, a sua natureza, a sua significação para o comportamento humano, os seus efeitos na dinâmica social e nos processos de renovação das estruturas económicas e administrativas da sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe opções contraditórias que não levam a nenhuma solução, agravando a crise com o levantamento de novos conflitos aparentemente insanáveis.

Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento, a Religião se transformou numa questão opinativa. Para os materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado supersticioso; para os pragmáticos, uma questão de conveniência; para os espiritualistas, um problema vital, do qual depende a própria sobrevivência da Humanidade. As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a desconfiança e a indiferença no seio das massas populares, desprovidas de elementos para uma avaliação do problema e muito menos para a sua equação.

O que hoje se convencionou chamar de Ciência da Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa em diversas perspectivas científicas, fora do campo religioso, se apresenta como análise fria do processo religioso, com base nos dados objectivos da História. Mesmo a Psicologia das Religiões se vê obrigada a pairar no plano das estruturas das escolas psicológicas, sem mergulhar na essência do fenómeno religioso, sob pena de perder a sua qualificação científica.

Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no pressuposto de que o impulso vital se origina no campo dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte de toda a energia – apesar da comprovação cientifica actual de que é o produto da acumulação energética – mantém-se na posição de geradora da vida. Assim também se busca o segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se originasse das entranhas do homem e não das profundezas do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o pensamento não seriam mais do que epifenómenos, eclosões efémeras do fenómeno orgânico, destinadas a desaparecer com este.

Não pretendo promover uma revolução copérnica no assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião como um facto social, segundo a tese de Durkheim, sem nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e funcionais do facto em si, para que as perspectivas da análise se tornem mais amplas e flexíveis. Religião e Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico de Abraão, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia, veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel fundamental no desenvolvimento da civilização. Ambas, sociedade e religião, nasciam no seio de outra sociedade e outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se distinguiam pelas características étnicas e pela destinação histórica tipicamente carismática, determinada pela tendência monoteísta do clã, sob o impulso de crenças que se corporificavam nas manifestações de entidades mitológicas. Abraão, Isaac e Jacob assumiram a direcção do clã e o levariam, através do Egipto, às terras de Canaã, na Palestina, na sangrenta epopeia dos relatos bíblicos.

Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados que provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o elemento étnico, determinante do agrupamento social; segundo, o elemento mítico, determinante da nova orientação religiosa. Este último não se mostra como subjectivo, mas caracteriza-se pela sua objectividade. É a intervenção activa de influências exógenas na vida do clã, provenientes de manifestações concretas de entidades espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos da interpretação psicológica dos factos, que só aceitam as manifestações espirituais como de ordem subjectiva, os resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no campo das Ciências Psíquicas, actualmente confirmadas pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior comprovação das pesquisas metapsíquicasmostram que a intervenção espiritual poderia ter sido objectiva, segundo a descrição dos relatos bíblicos.

Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta, que corresponde a milhares de outras verificadas em todas as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de que as religiões se originam de uma conjugação de factores humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído da análise honesta do facto social, sem que se pratique uma violência contra a realidade mundialmente comprovada. Os fenómenos paranormais aparecem então como o elemento básico do facto social a que chamamos religião. E não é possível, nas condições actuais do desenvolvimento das Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa realidade o simples desmentido dos argumentos, sem provas científicas evidentes da sua impossibilidade.

Assim, a colocação do problema religioso de maneira opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural, corresponderia a uma verdadeira heresia científica. Não obstante, o desenvolvimento das religiões e a sua institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos de suspeita aos espíritos objectivos, que pretendem analisá-las no seu estado actual. Nesse processo histórico inserem-se naturalmente os elementos do psiquismo comum, nas suas manifestações puramente subjectivas e não raro de ordem patológica. Inserem-se também os elementos psicológicos, hoje bem conhecidos, que determinam a criação do sectarismo religioso e das ordenações institucionais, cujos objectivos são característicos dos interesses sociais. Posições psicológicas individuais ou de grupos, tradições, interesses políticos, preconceitos, superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo pessoais e outros são elementos que se mesclam no processo de institucionalização das religiões, não raro a partir do próprio momento e da própria fonte em que elas nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-los e precisar a importância que tiveram no processo histórico.

As religiões dividem-se em duas categorias fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou artificiais. Independentemente das classificações existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de análise. A religião natural, neste caso, é a que surge espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados, a partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas no meio civilizado, em momentos de crise religiosa, como no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião da Humanidade, de Auguste Comte. As reformas religiosas não criam tipos novos, apenas modificam os já existentes em virtude de divergências ou da verificação de distorções havidas no processo de institucionalização. A religião individual, da tese de Bergson, que corresponde à Moralidade da tese anterior de Pestalozzi, não se enquadra nesse panorama por constituir uma superação do plano social e uma libertação total de todo o condicionamento institucional. Não obstante, pela sua conotação inevitável com a realidade social em que se insere, embora individualmente, não escapa à classificação geral de facto social.

Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o que se pode entender por religião como facto social. Não é apenas um facto isolado que ocorre na dinâmica de uma sociedade, mas um facto que brota da realidade social como expressão de sua própria alma, de suas tendências e de suas aspirações, na forma de uma síntese conceptual que engloba, nas suas representações simbólicas e na sua estrutura racional, os elementos básicos do todo social concreto e os vectores ou direcções do psiquismo colectivo. Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do facto social da religião, todas as formas de encarar e interpretar o fenómeno religioso nos levarão fatalmente a condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos na colocação do problema.

Essa complexidade do fenómeno religioso parece ,explicar de maneira mais profunda a marginalização cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras, abastardada pelo profissionalismo clerical, transformada em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais profundamente injustas, catalogada entre os produtos espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à condição de promotora de guerras, massacres e asfixia das liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a Religião se constituiu em barreira de todo o progresso cultural e foi excluída do mundo da Cultura como indesejável.

Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas formais das religiões e à conotação vital dos seus princípios com as exigências naturais da consciência humana, a sua posição no processo cultural moderno e contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. A sua exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas políticas dominadas pelo materialismo ideológico. Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou na interpretação pragmática, utilitária, de mal necessário, o salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos meios culturais da actualidade.

Por outro lado, a sua presença nos meios culturais é sempre conflitiva. Não há possibilidade de harmonização perfeita entre cultura religiosa e cultura secular, a não ser no plano da religião individual, que rompe o envoltório formal das religiões sociais e é encarada por estas como uma aberração. O resultado mais negativo dessa situação conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as possibilidades de reelaboração da experiência religiosa pelas novas gerações e determinou a sedimentação interesseira da sua posição de ambivalência no mundo contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma, levou a proporções catastróficas a crise das religiões nos nossos dias.

Felizmente a natureza vital da Religião, as suas profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicase a sua inelutável condição de síntese de toda a realidade social, determinaram o aparecimento de uma síntese cultural em que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação institucional das religiões, ressurge entranhada na substância do progresso cultural. Não podemos tratar da crise das religiões no nosso tempo sem enquadrá-la nas dimensões desse facto cultural, onde todos os seus problemas se esclarecem de maneira coerente e profunda. As pessoas integradas no formalismo cultural do século, apegadas a princípios exclusivistas e alheias à recomendação cartesiana contra o preconceito e a precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial a posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva realidade cultural dos nossos dias com as perspectivas científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte realizadas, asseguram a validade desta interpretação, acima de qualquer facciosismo. Não seria possível desprezar a evidência dos factos e das conotações de princípios filosóficos e científicos com o panorama real, objectivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia aos nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas normas convencionais. Acima das convenções transitórias e das conveniências de acomodação ao impreciso espírito da época, deve prevalecer o amor à verdade.

Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das actividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de segurança em todas as instituições. As religiões até ontem mais sólidas e poderosas agonizam nos seus leitos de riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até ontem inabaláveis, como estrelas fixas do pensamento religioso, estremecem como a unidade pitagórica para desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra, nervoso e inquieto, na fímbria tenuíssima da crosta planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos abismos do microcosmo e do macrocosmo.

Não é esta a hora de concessões à ignorância (ilustrada ou não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições claras e precisas, da posição destemida de alerta e vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição e da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do xadrez cultural estão sendo mudadas no tabuleiro do mundo. Não há mais lugar para as contemporizações tranquilas do passado, que acobertavam piedosamente os germes dos conflitos actuais. Agora os conflitos explodem e temos de enfrentá-los face a face.

Encarando a crise das religiões como um processo sócio-cultural integrado na realidade imediata, não podemos escamotear a verdade das soluções que já foram propostas para ela com grande antecedência histórica. Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade na crise actual: a violenta ampliação das dimensões da crise, que se abre para visões dantescas do passado e do futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões infernais percorridas pelo génio de Dante; no futuro, com as revoadas angélicas da criação artística de Gustave DoréNão há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais. Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e as constelações já brilham aos nossos olhos.

/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 2 – Religião como Facto Social, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

terça-feira, 20 de setembro de 2016

O Espiritismo na Arte ~


A Música | parte III
Apresentação das comunicações do Espírito Massenet

(Setembro de 1922)

Após o estudo da música terrestre, passaremos ao estudo das harmonias do espaço e, para isso, resumiremos as instruções que nos foram dadas pelo Espírito Massenet no decorrer de várias sessões. Neste ensinamento, o ilustre compositor age como o fazia sobre a Terra, aplicando o mesmo método dos seus cursos do Conservatório.

Primeiro, ele se ocupará do instrumento e dos meios de percepção. Porém, na vida espiritual não se trata já de instrumentos de cordas nem de sopro, como na Terra. Acontece o mesmo com as percepções, que não são já localizadas, como no corpo humano e, se estendem a todo o corpo espiritual.

A música terrestre não é mais que um eco enfraquecido e ofuscado da música celeste; é a melodia eólica produzida por pesados e grandiosos instrumentos de madeira ou de metal; é o sonho estrelado e divino expresso por formas de uma vida inferior e material. Porém, neste caso, o sonho é uma elevada realidade.

Se os nossos meios de execução, bastante rudimentares, não nos podem dar uma ideia nítida e clara das supremas harmonias, a dificuldade não é menor quando se trata de explicar, através de linguagem vulgar, as regras e as leis da grande sinfonia eterna. Esta dificuldade revelou-se-nos, principalmente no decurso das lições que recebemos do Espírito Massenet e que vamos reproduzir a seguir. Daí resulta que os termos pobres da nossa linguagem humana são impróprios para traduzir todas as belezas da obra divina.

Para exprimir as sublimidades da arte, seria necessária a própria arte, com os seus mais altos e poderosos recursos e os seus mais subtis procedimentos.

Primeira lição do Espírito Massenet
– O papel do perispírito
– Vida espiritual, instrumento e meios de percepção

“Eu me servirei dos termos e das imagens mais simples para vos fazer compreender os fenómenos do espaço. Quando desencarnardes, verificareis que radiações de uma intensidade desigual escapam do perispírito e podem atingir velocidades consideráveis.

Cada espírito, segundo o seu grau de evolução, possui um aparelho vibratório, mais ou menos perfeito, isto é, um instrumento adaptado ao seu ser. Do ser material emanam raios fluídicos pouco subtis, não azulados, cujas vibrações são quase nulas; no ser evoluído, ao contrário, o raio fluídico pode comparar-se a uma corda de um dos vossos instrumentos, muito fina, muito sensível e cujas vibrações são excessivamente agudas. O ser não evoluído possuirá essa mesma corda, como se ela estivesse mergulhada em pez (i).

Eis, agora, o ser desencarnado no espaço. Quando as suas tendências o levarem em direcção à matéria, os seus raios fluídicos transmitirão ao perispírito apenas sensações materiais. Porém, quanto mais a evolução se acentua, mais as sensações materiais se atenuam e se apagam, o feixe de raios fluídicos adquire mais subtileza, potência, delicadeza, suavidade.

Sob a influência da prece, com os conselhos e a assistência dos seus guias, esse espírito irá evoluir em uma atmosfera totalmente fluídica. As suas próprias radiações se encontrarão com as correntes fluídicas do espaço e daí resultarão sensações maravilhosas de sonoridade, percebidas por todo o ser.

ser evoluído vive em esferas fluídicas onde reinam correntes de uma intensidade inegável e de composição diversa. As ondas musicais anulam-se ao contacto imediato com o vosso planeta, cujos fluidos são demasiado materiais. É preciso subir mais alto para perceber os acordes da lira celeste. Existem mesmo seres que, sob o ponto de vista moral, são perfeitos, mas não sentem as vibrações. É necessária uma educação estética; em breve falaremos disso.”

– Comentário

O corpo humano é um instrumento complexo e maravilhoso, que se adapta ao meio terrestre e às nossas múltiplas necessidades. Porém, ele é apenas um revestimento material, relativamente grosseiro, desse corpo subtil, o perispírito, do qual Massenet nos fala e que todos nós possuímos durante a vida, como também depois da morte.

A existência desse perispírito é demonstrada pelos fenómenos de exteriorização dos vivos e pelas aparições fotografadas dos mortos, frequentemente relatadas nesta revista (ii).

Esse corpo subtil, admirável por sua flexibilidade e sensibilidade, é o envelope imperecível da alma e, da mesma forma que ela; susceptível de depuração e progresso. Ele vibra aos menores impulsos do espírito e dele transmite ao corpo físico as vibrações inevitavelmente diminuídas. Eis por que, na vida do espaço, durante o sono, assim como depois da morte, o perispírito sente mais vivamente as influências dos meios em que penetra. (iii) Ele possui recursos mais amplos, meios de percepção desconhecidos dos homens, mas, dos quais certas pessoas conservam a intuição ao despertar, depois do desprendimento e nas viagens espirituais durante a noite.

Neste conjunto que constitui o homem, a alma ou inteligência é a nota dominante. A correlação entre os dois invólucros, físico e perispiritual, relaciona-se a uma única lei: a das vibrações.

O papel e o funcionamento do perispírito permanecem como um dos problemas mais interessantes do Espiritismo; ele contém, em gérmen, todos os segredos da fisiologia e da psicologia, que se esclarecerão à medida que as nossas relações com os desencarnados se forem ampliando e multiplicando. Por este meio, obteremos novos dados sobre as condições da vida no Além e, em geral, sobre o modo de acção do espírito liberto do corpo material.

/…

(i) Pez: designação comum de substâncias betuminosas, sólidas ou semi-sólidas, naturais ou artificiais, resíduo da destilação de líquidos densos, de alcatrões, etc.; piche. (N.T.)
(ii) Trata-se da Revue Spirite, onde estes artigos foram publicados originalmente. (N.T.)
(iii) E, o que pensar da "Cremação" no contexto?!... Nota desta publicação.


Ainda no tema "Cremação" e, no contexto, dois aditamento como Nota desta publicação:

1. Em “O Livro dos Espíritos” questão 164. Kardec pergunta – A perturbação que se segue à separação da alma e do corpo é do mesmo grau e da mesma duração para todos os Espíritos?

A resposta dos Espíritos – Não; depende da elevação de cada um. Aquele que já está purificado reconhece-se quase imediatamente, visto que se libertou da matéria antes que cessasse a vida do corpo; ao passo que o homem carnal, aquele cuja consciência ainda não está pura, guarda durante muito mais tempo a impressão da matéria.

2. Em “Rumo às Estrelas” de Dennis Bradley, Livro 3 – Diálogos com Johannes / Capítulo VI – Destruição da religião do Cristo / 192. Bradley, questiona o Espírito Johannes:

Bradley – E sobre a cremação, que nos diz? Para mim isso não representa nenhum problema, já que pouco me importa o que suceda ao corpo depois que o espírito o abandona. Pergunto-o em atenção aos que pensam de modo diferente.

Johannes – Faço-o saber, meu filho, que você tem o hábito de tirar conclusões muitas vezes bem prematuras. Em certo sentido equivoca-se quanto à cremação dos cadáveres. Aos meus olhos é um crime conservar o envoltório (*) que reveste a alma e o espírito, mas por outro lado você não tem razão em crer que a súbita destruição do corpo pelo fogo não seja prejudicial. Em parte o é. Porque, como sabe, existe um frágil envoltório que rodeia a alma, o qual se dissipa pouco depois da morte. Algo parecido com uma membrana e que adquire grande sensibilidade dentro de uma semana depois da morte. Se se destrói de modo completo o corpo, esta membrana, que de certo modo ainda está ligada ao corpo, sofre grave dano e, o seu sofrimento transmite-se à parte desencarnada. Assim, portanto, não deveis sorrir dos chamados ignorantes que não crêem que o corpo se separe inteiramente do resto depois da morte. Antes que a alma e o espírito deixem as trevas para onde vão logo que deixam o corpo, essa membrana se dissipa – mas não imediatamente.

Neste ponto da comunicação alguém o interrompeu com uma pergunta: “Corpo astral?”

Johannes – Não. Tolice. Não se trata de um corpo. É algo perecível, meio corporal, meio mental, uma coisa que se dissipa depois da morte mas que os clarividentes podem ver a rodear a alma.

(*) Alusão aos egípcios, conservadores de cadáveres.



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VIII A Música (Parte 3) – Apresentação das comunicações do Espírito Massenet; Primeira lição do Espírito Massenet – O papel do perispírito – Vida espiritual, instrumento e meios de percepção – Comentário, 26º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

domingo, 11 de setembro de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~

Natureza da Revelação Espírita (XII, Resumo)

   Uma das questões mais importantes entre as que são colocadas a abrir este capítulo é esta: qual a autoridade da revelação espírita, uma vez que emana de seres cujo saber é limitado e que não são infalíveis?

   A objecção seria séria se esta revelação só consistisse nos ensinamentos dos Espíritos, se tivéssemos de a receber através deles exclusivamente e aceitá-la de olhos fechados; deixa de ter valor a partir do momento em que o homem lhe junta o concurso da sua inteligência e da sua avaliação; porque os Espíritos se limitam a colocá-lo no caminho e das deduções que pode fazer pela observação dos factos. Ora, as manifestações e as suas inúmeras variedades são factos; o homem estuda-as e procura-lhes a lei; é ajudado neste trabalho pelos Espíritos de todas as ordens, que são mais colaboradores do que reveladores, no sentido usual do termo; submete as suas falas ao controlo da lógica e do bom senso: desta maneira, beneficia dos conhecimentos especiais que devem à sua posição, sem abdicarem do uso da sua própria razão.

   Não sendo os Espíritos mais do que as almas dos homens, ao comunicarmos com eles não saímos da humanidade, circunstância capital a considerar. Os homens de génio, que foram os archotes da humanidade, saíram portanto do mundo dos Espíritos, assim como lá entraram depois de deixarem a Terra. Dado que os Espíritos podem comunicar com os homens, estes mesmos génios podem dar-lhes instruções sob a forma espiritual tal como o fizeram enquanto vivos; são invisíveis em vez de serem visíveis e é essa toda a diferença. A sua experiência e o seu saber não devem ser menores e se a sua palavra, como homens, tiver autoridade, não a deverá ter em menor grau por estarem no mundo dos Espíritos.

   Mas não só os Espíritos superiores que se manifestam, mas também os Espíritos de todas as ordens; isso foi necessário para nos iniciar no verdadeiro carácter do mundo espiritual, mostrando-o sob todos os seus aspectos; com isso, as relações entre o visível e o mundo invisível ficam mais íntimas, a conexão é mais evidente; vemos mais claramente de onde vimos e para onde vamos: é essa a finalidade essencial destas manifestações. Todos os Espíritos, seja qual for o grau que atingiram, nos ensinam portanto qualquer coisa, mas como são mais ou menos esclarecidos, compete-nos a nós discernir o que há neles de bom ou de mau e retirar o benefício que os seus ensinamentos comportam; ora todos, sejam eles quais forem, podem ensinar-nos ou revelar-nos coisas que ignoramos e que, sem eles, não saberíamos.

   Os grandes espíritos encarnados são individualidades poderosas, sem dúvida, mas cuja acção está restringida e é necessariamente lenta a propagar-se. Se um só de entre eles, fosse ele Elias ou Moisés, Sócrates ou Platão, tivesse vindo nestes últimos tempos revelar aos homens o estado do mundo espiritual, quem teria provado a verdade dessas afirmações nesta época de cepticismo? Não o teriam considerado um sonhador ou um utópico? E admitindo que era detentor da verdade absoluta, teriam decorrido séculos antes das suas ideias serem aceites pelas massas. Deus, na sua sabedoria, não quis que assim fosse; quis que os ensinamentos fossem prestados pelos próprios Espíritos e não pelos encarnados, para convencer da sua existência, e que acontecesse simultaneamente em toda a Terra, quer para os propagar mais rapidamente, quer para que se visse na coincidência do ensino uma prova da verdade, possuindo assim cada um os meios para se convencer sozinho.

   Os Espíritos não vêm libertar o homem do trabalho do estudo e das investigações; não lhes trazem nenhuma ciência já acabada; naquilo que pode encontrar por si, deixam-no entregue a si próprio; é o que hoje os Espíritos sabem perfeitamente. Desde há muito que a experiência demonstrou o erro da opinião que atribuía aos Espíritos todo o conhecimento e toda a sabedoria e que bastava dirigir-se ao primeiro Espírito a aparecer para ficar a saber todas as coisas. Saídos da humanidade, os Espíritos são uma das suas faces; tal como na Terra há os superiores e os vulgares. Portanto, muitos sabem filosoficamente menos que certos homens; dizem o que sabem, nem mais nem menos; tal como, entre os homens, os mais evoluídos podem instruir-nos sobre muitas coisas, dar-nos conselhos mais judiciosos que os atrasados. Pedir conselhos aos Espíritos não é de modo nenhum dirigirmo-nos a forças sobrenaturais, mas sim aos nossos iguais, aqueles mesmos a quem nos dirigíamos quando vivos: aos pais, aos amigos ou aos indivíduos mais esclarecidos que nós. É disto que nos devemos convencer e o que é ignorado pelos que, não tendo estudado o espiritismo, têm uma ideia completamente falsa da natureza do mundo dos espíritos e das relações de além-túmulo.

   Qual é então a utilidade destas manifestações ou, se quisermos, desta revelação, se os Espíritos não sabem mais do que nós ou se não nos dizem tudo o que sabem?

   Primeiro, conforme dissemos, abstêm-se de nos dar o que podemos conseguir com o trabalho; em segundo lugar, há coisas que não lhes é permitido revelar, porque o nosso grau de evolução não comporta. Mas, independentemente disto, as condições da sua nova existência ampliam o círculo das suas percepções; vêem o que não viam na Terra; ultrapassados os entraves da matéria, libertados dos cuidados da vida corporal, avaliam as coisas sob um ponto de vista mais elevado e, por isso, de forma mais sã; a sua perspicácia abarca um horizonte mais vasto; compreendem os seus erros, rectificam as suas ideias e libertam-se dos preconceitos humanos.

   É nisto que consiste a superioridade dos Espíritos sobre a humanidade corporal e no que os seus conselhos podem ser, consoante o seu grau de evolução, mais sensatos e mais desinteressados que os dos encarnados. Além disso, o meio em que se encontram permite-lhes iniciar-nos nas coisas da vida futura, que desconhecemos e que não podemos aprender naquele em que nos encontramos. Até esse dia, o homem só tinha criado hipóteses sobre o futuro; é por isso que as suas convicções sobre o futuro eram partilhadas em teorias tão numerosas e divergentes, desde as teorias da negação até às fantásticas concepções do inferno e do Paraíso. Hoje, são os testemunhos oculares, os próprios autores da vida de além-túmulo, que nos vêm dizer do que se trata e estes são os únicos a poder fazê-lo. Estas manifestações serviram portanto para nos darem a conhecer o mundo invisível que nos rodeia e de que não suspeitávamos e só este conhecimento já seria de importância capital, partindo do princípio que os Espíritos são incapazes de nos ensinar alguma coisa mais.

   Se fosseis para um país novo para vós, recusaríeis as indicações do mais humilde camponês que encontrásseis? Recusar-vos-íeis a questioná-lo sobre o estado da estrada, por não ser mais que um camponês? Certamente não esperaríeis dele esclarecimentos de muito elevado alcance, mas tal como é na sua esfera poderá, em certos pontos, elucidar-vos melhor que um sábio que não conheça a região. Retirareis das suas indicações consequências que ele mesmo não poderia retirar, mas não deixou por isso de ser um instrumento útil para as vossas observações, mesmo que só tivesse servido para ficardes a conhecer melhor os hábitos dos camponeses. Passa-se o mesmo nos contactos com os Espíritos, onde o mais pequeno pode servir para nos ensinar qualquer coisa.

   Uma comparação vulgar fará com que se compreenda melhor a situação.

   Um navio carregado de emigrantes parte para um destino longínquo; leva homens de todas as condições, parentes e amigos dos que ficam. Vimos a saber que esse navio naufragou; não ficou qualquer rasto, nenhumas notícias chegaram sobre a sua sorte; pensa-se que todos os viajantes morreram e o luto reside em todas as famílias. No entanto, toda a tripulação, sem uma excepção, arribou a uma Terra desconhecida, abundante e fértil, onde todos vivem felizes sob um céu clemente; mas nada se sabe. Ora, um certo dia, outro navio aborda essa Terra; encontra ali todos os náufragos sãos e salvos. A feliz notícia espalha-se com rapidez de um relâmpago; cada qual diz para consigo: «Os nossos amigos não estão perdidos!» e louvam a Deus. Não podem ver-se, mas correspondem-se; trocam mensagens de afecto e eis que a alegria sucede à tristeza.

   É assim a imagem da vida terrestre e da vida de além-túmulo, antes e depois da revelação moderna; esta, semelhante ao segundo navio, traz-nos a boa-nova da sobrevivência dos que nos são queridos e a certeza de um dia nos reencontrarmos; a dúvida quanto à sua sorte e sobre a nossa deixa de existir; o desalento apaga-se face à esperança.

   Mas outros resultados vêm fecundar esta revelação. Deus, considerando a humanidade madura para penetrar no mistério do seu próprio destino e contemplar com sangue-frio novas maravilhas, permitiu que o véu que separava o mundo invisível do mundo visível se levantasse. As manifestações nada têm de extra-humano; é a humanidade espiritual que vem conversar com a humanidade corporal e dizer-lhe:

   «Nós existimos; portanto, o vazio não existe; é isto que nós somos e é isto que vós sereis; o futuro pertence-vos tal como nos pertence a nós. Caminháveis nas trevas; nós vimos iluminar o vosso caminho e torná-lo praticável. Caminháveis ao acaso; nós mostramo-vos o objectivo. A vida terrestre era tudo para vós, porque não víeis nada para lá; nós vimos dizer-vos, mostrando-vos a vida espiritual, que a vida terrestre não é nada. A vossa visão parava no túmulo; nós mostramo-vos para além dele um horizonte esplêndido. Não sabíeis por que sofríeis na Terra; agora, no sofrimento, vedes a justiça de Deus. O bem não dava frutos visíveis para o futuro; passará agora a ter uma finalidade e será uma necessidade. A fraternidade não passava de uma bela teoria, mas está agora assente sobre uma lei da natureza. Sob o império da convicção de que tudo acaba com a vida, a imensidão está vazia, o egoísmo reina como senhor entre vós e a vossa palavra de ordem é: "Cada um por si"; com a certeza no futuro, os espaços infinitos povoam-se infinitamente, o vazio e a solidão não estão em lado nenhum, a solidariedade une todos os seres para cá e para lá do túmulo; é o reino da caridade com a divisa: "Cada um por todos e todos por um." Enfim, no fim da vida dizíeis um eterno adeus aos que vos são queridos; agora dir-lhes-eis um "até à vista".»

   São estes, em resumo, os resultados da nova revelação; ela veio preencher o vazio cavado pela incredulidade, levantar as coragens abatidas pela perspectiva do vazio e dar a todas as coisas a razão de ser. Não terá este resultado então importância só porque os Espíritos não vêm resolver os problemas da ciência, dar saber aos ignorantes e aos preguiçosos os meios de se enriquecerem sem esforço? No entanto, os frutos que o homem daí deve retirar não são só para a vida futura; usufruirá deles na Terra pela transformação que essas novas crenças devem necessariamente operar no seu carácter, nos seus gostos, nas suas tendências e, por consequência, sobre os hábitos e as relações sociais. Pondo um fim ao reino do egoísmo, do orgulho e da incredulidade, preparam o do bem, que é o reino de Deus anunciado por Cristo (i).

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(i) O uso do artigo antes da palavra Cristo (do grego Christosunção), empregue num sentido absoluto, é mais correcto, atendendo que este nome não é o do Messias de Nazaré, mas uma qualidade tomada substantivamente. Diremos então: Jesus era Cristo; era o Cristo anunciado; a morte do Cristo e não de Cristo enquanto se diz: a morte de Jesus e não do Jesus. Em Jesus Cristo, os dois nomes reunidos formam um só nome próprio. É pela mesma razão que dizemos que o Buda Gautama adquiriu a dignidade de Buda devido às suas virtudes e às suas austeridades; a vida do Buda, tal como dizemos o exército do Faraó e não de Faraó; Henrique IV era rei; o título de rei; a morte do rei e não de rei(N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 57 a 62 e, últimos (XII), 14º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Inquietações Primaveris ~


os voluntários | da morte

A tendência para o suicídio caracteriza os candidatos ao voluntariado da morte. A necrofilia é uma componente natural do psiquismo de todos os seres vivos. A teoria, antiga e actual, da existência de povos necrófilos, como os egípcios e os japoneses, por exemplo, é discriminativa e exagerada. Mas não há dúvida de que a necrofilia, como todas as variantes psico-afectivas, se acentua mais em alguns povos, em razão de concepções religiosas, tradições de honra, condicionamentos culturais e morais, heranças tribais sobreviventes e até mesmo condições mesológicas, como nas regiões sujeitas a catástrofes geológicas periódicas. A verdade é que em todos os povos, como o revelam as estatísticas do suicídio em todo o mundo, as ocorrências dessa natureza se verificam com alternativas de crescimento e, também, de diminuição. É evidente a existência de uma repercussão social do suicídio no nosso tempo, mais acentuada agora pela divulgação mais intensa dos meios de comunicação. A teoria parapsicológica de Jung, sobre as coincidências significativas, sugere a presença de uma forma de contágio mental e afectivo nos meios sociais. Seja como for, a existência do suicídio no reino animal, como elemento ligado à própria reprodução da espécie – como nas aranhas, escorpiões e abelhas – prova que a tendência para o suicídio existe em todos nós e pode ser intensificada não só por factores individuais, mas também por factores de ordem exterior. A concepção antropomórfica de Deus, levou as religiões a considerarem geralmente o suicídio como um acto de rebeldia e desobediência a Deus. Disso resultam as condenações assustadoras das religiões que negam o socorro dos sacramentos à alma do suicida. Essa também é uma manifestação da necrofilia nas religiões, que nega o amparo e a ajuda precisamente aos seres mais necessitados, procurando matar a própria alma do suicida, numa exasperação sádica do instinto da morte. Disso resultam as condenações assustadoras das religiões que negam o socorro dos sacramentos à alma do suicida. Embora essa medida seja, duma maneira geral, tomada no sentido de repressão ao suicídio, a impiedade é chocante para com as vítimas do suicídio e para com as suas famílias, que se sentem impedidas de dar ao suicida o menor dos consolos. Essa medida extrema, como alias todas as dessa ordem, servem apenas para exasperar o instinto de morte nos meios atingidos pela desgraça. Do ponto de vista da Ciência, da Parapsicologia e do Espiritismo, o suicídio, que interrompe de maneira brusca o processo vital, causa transtornos graves a quem o pratica. A mente se conturba já antes da prática do acto criminoso, pois o suicídio é um auto-assassínio, não raro longamente meditado. Seja dessa natureza ou determinado por condições patológicas, loucura ou decepções violentas, é sempre uma interrupção brusca do curso vital de uma existência necessária. Esse corte violento de todas as possibilidades em curso produz um choque reversivo na estrutura psicológica mental e afectiva do suicida, levando-o a um estado de confusão e angústia que pode durar longo tempo. Deus não castiga o suicida, é ele mesmo, o suicida, que se castiga no próprio acto de se suicidar. Negar socorro religioso a um espírito nessas condições é uma impiedade, é abandonar a si mesmo o espírito em desequilíbrio. Pensar no suicida como num condenado eterno é aumentar a sua angústia e o seu desespero, colocando-nos na posição de torturadores cruéis. Além disso, há suicídios que se justificam, como no caso de imolação voluntária para salvar outras pessoas. Essa intenção, se for justa e real, e não apenas fantasiosa ou criada por precipitações, abranda o chamado martírio dos suicidas, tão insistentemente divulgado no meio espírita com a finalidade de evitar esses actos. Cada pensamento, cada palavra, cada gesto nosso tem as suas repercussões inevitáveis no curso existencial. As leis naturais, que tanto são materiais como espirituais, não podem ser violadas sem que essa violação nos acarrete as consequências do abuso. A ordem universal, instituída em todo o Universo, não se comprova apenas na vida carnal, mas em todos os planos existenciais. Não se deve temer no suicídio o suposto castigo de Deus, mas as consequências naturais do acto de violação de um processo vital. Temos de compreender a dinâmica da Natureza, tanto para viver como para morrer. Temos de inteirar-nos do aspecto racional da realidade em que vivemos e morremos, para escaparmos à ilusão do antropomorfismo religioso, carregado de misticismo e de medo, que nos faz ver nos processos naturais a mão oculta de um Deus que não usa as mãos mas o seu poder mental para nos levar ao conhecimento de nós mesmos, dos nossos deveres e dos compromissos espirituais. Só assim poderemos racionalizar a nossa vida de maneira espontânea e clara, evitando os caminhos tortuosos de crenças e descrenças antigas. O acto de crer é emotivo e antecede a razão. A fé nascida da crença é sugestiva e, portanto, emocional. Pode levar-nos à paixão e ao fanatismo, gerando os monstros sagrados dos torturadores e assassinos ao serviço de Deus. Só a razão, assente na experiência objectiva e em princípios lógicos pode dar-nos a fé verdadeira que nos permite dizer, como Dennis Bladley: “Eu não acredito, eu tenho a certeza.” O saber é superior ao crer, pois é uma conquista da experiência individual no trato directo com os factos reais. O voluntariado da morte não cresce nas searas positivas do saber, mas nos campos fantasiosos da ilusão. Quando a razão periclita e desfalece ao impacto das emoções tumultuadas, nos embates do mundo, podemos perder os freios da razão e entregar-nos ao desespero. Nesse caso a razão só poderá restabelecer o seu controlo se for socorrida pela vontade amadurecida no tempo.

Acusa-se a razão de frieza e insensibilidade, mas a razão possui o calor do entusiasmo e a sensibilidade da justiça sem venda nos olhos. A visão clara, precisa e serena da realidade pode explodir na razão, em surtos de indignação contra os corruptores da verdade. Podemos aferir esse facto nas páginas do Evangelho, nas passagens decisivas em que o Cristo desferiu os raios da sua indignação contra a hipocrisia e a astúcia interesseira dos fariseus. Os que amam a verdade não podem tolerar a mentira nem se fazerem cúmplices dos exploradores da mentira.

A morte não é uma porta de escape para os fracos, mas a catapulta da transcendência para os bravos que enfrentam as batalhas da vida sem se acobardarem. Ninguém é obrigado a amadurecer antes do tempo, mas os que já estão maduros não podem regredir sem trair a si mesmos e à verdade.

Se existem as atenuantes do suicídio, como já vimos, a verdade é que elas são mais rigorosas do que as exigências da vida. Isto porque a programação de cada vida está incluída no processo da evolução geral do planeta. Temos as nossas obrigações a cumprir na encarnação, não somente em nosso benefício, mas também a favor dos que foram designados para participar das nossas lutas. Não podemos pensar no suicida que escapou aos seus deveres, sem nos lembrarmos também dos que ficaram abandonados a si mesmos perante a fuga e a deserção, ante o engolfar-se o suicida no seu egoísmo, como se não tivesse com eles nenhum compromisso. Por essas razões colectivas, e não por motivos particulares, nem pelo pressuposto absurdo da Ira de Deus é, que o crime da fuga se transforma em traição, que pesará fatalmente na consciência culpada. O voluntariado da morte não é desastroso por ser da morte – pois todos morremos – mas por ser a legião dos traidores da vida e dos que ficaram vivos na Terra.

Os batalhões de voluntários da morte são sempre seguidos, em todo o mundo, pelo cortejo dos frustrados da vida. É um cortejo esfarrapado, esquálido, formado pelos milhões de crianças natimortas ou que não conseguiram sobreviver ao nascimento mais do que alguns dias. Pode deduzir-se, da lei de causa e efeito, que esses bandos anónimos, procedentes, em geral, dos subúrbios miseráveis das metrópoles ricas, se constituem de ex-voluntários que voltam à encarnação ansiosos por retomar as oportunidades de realização que desprezaram no acto do suicídio. Numa reunião mediúnica de que participávamos, manifestou-se um espírito que, a princípio, parecia de um brincalhão. Reclamava por o terem convencido, no plano espiritual, a reencarnar-se para aliviar na vida terrena a consciência pesada. E explicava: “Aceitei a proposta, submeti-me a todos os preparativos, suportei pacientemente os pesados meses de uma gestação em que eu e a minha nova mãe passamos momentos difíceis. Por fim, nasci, mas não tive a possibilidade de sentir o gosto da nova vida. Morri e voltei imediatamente para o mundo espiritual. De que me serviu todo esse sacrifício? Quero que vocês me expliquem, pois aqui não tenho possibilidade de conversar com ninguém que entenda deste assunto. Aí na Terra vivemos em cambulhada, mas aqui a situação é diferente, cada qual tem de se ajeitar no meio que lhe é próprio.” Nesse momento o médium tomou uma posição estática, parecia caído em êxtase. Logo a seguir voltou à naturalidade e disse: “O sujeito que me fez passar por essa chegou e está a explicar-me que ganhei tempo. Passei por tudo isso para aliviar a minha consciência do remorso do suicídio. Já me sinto mais aliviado.”

Esta história, real, levanta uma ponta do véu que oculta, aos nossos olhos, o mistério das mortes prematuras. Não existe acaso nos processos da natureza. Existem leis. Pelos dados fornecidos pelo espírito frustrado, foi relativamente fácil, comprovarmos a realidade dos factos. Nenhum dos participantes da reunião, conhecia nenhuma das pessoas vivas relacionadas com o caso, mas os factos-chave do suicídio e do nascimento frustrado, foram comprovados. Nos anais das Sociedades de Pesquisas Psíquicas da Europa e da América, há numerosos registos de casos desta natureza. Todas as interpretações teóricas contrárias à teoria espírita, parecem arranjos, mal costurados, ante a evidência e a coerência das provas obtidas.

Há pessoas, que não aceitam estes factos mediúnicos, alegando que tudo neles se passa de maneira muito semelhante aos factos da vida terrena. Não percebem, que estão condicionadas pelas fantasias do maravilhoso, oferecidas pelas religiões de que já se desligaram sem abandonar os seus fardos. A ideia de que o morto é uma alma do outro mundo, transformou-se numa entidade mitológica, continua a funcionar, no inconsciente dessas criaturas, que são contraditórias sem o perceber. Os reflexos mentais, condicionados, exigem maravilhas dos pobres mortos, humanos, que continuam humanos, por não terem conseguido ainda alcançar os planos da angelitude. Os espíritos humanos, são almas humanas, que animaram corpos humanos na Terra. Quando os espíritos, se apresentam de maneira mirabolante, não merecem o crédito dos estudiosos do assunto, mas conseguem, facilmente, encantar e fascinar os amantes do maravilhoso. Essa, como assinalou Kardec desde meados do século XIX, é a maior dificuldade para a aceitação da realidade espiritual.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 17 – Os Voluntários da Morte, 22º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 14 de agosto de 2016

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XII
Autoridade e Liberdade (1)

|Julho de 1917|

   Já faz três anos que estamos assistindo a um dos maiores dramas da História. Dois mundos, ou melhor, dois grandes princípios – autoridade e liberdade – se entrechocam, estremecendo a Terra inteira.

   Debaixo da anarquia aparente, no meio do caos das paixões, estão em actividade forças criadoras, trabalhando para uma nova ordem. A consciência do mundo se desenvolve e se afirma por intermédio das humilhações que recebe. Através das vicissitudes dos tempos o homem se encaminha para uma forma de vida mais completa; o ideal se realiza e a marcha para o absoluto continua.

   Os acontecimentos históricos mais importantes são apenas uma revelação dessa luta, ora surda, ora violenta, entre o espírito de dominação e os esforços tentados para a conquista da liberdade.

   No seu aparecimento, o Cristianismo não foi apenas um grande movimento religioso, porque, convocando todos os homens, até os escravos, para os bens celestes, tornava-os iguais perante Deus e perante as leis deste mundo. Graças a isso os pequenos e os deserdados o abraçaram com ardor. As primitivas comunidades representaram a forma mais completa do socialismo cristão.

   Será um efeito da lei dos refluxos? O Cristianismo, que é, na sua origem, de fundo democrático, se tornou, pelos concílios e pela constituição da Igreja Romana, sob o nome de Catolicismo, uma teocracia autoritária e despótica. O domínio temporal do padre é o mais pesado de todos os jugos, pois oprime, simultaneamente, o corpo e o espírito, impõe dogmas, recusados pela razão, exigindo que sejam considerados verdadeiros.

   O poder dos papas dominou a Europa durante séculos, anulando a vida do pensamento e dobrando o Ocidente com a ameaça do inferno ou da excomunhão. Depois veio a Reforma, que entreabriu as portas do penumbroso cárcere, dando à alma um pouco de ar e de luz.

   A Revolução Inglesa de 1688 e, um século depois, a Revolução Francesa constituem uma terceira grande etapa para a liberdade. Apartando-se os erros e os excessos perpetrados, o sangue derramado nesses lamentáveis acontecimentos, é preciso reconhecer-se que as ideias então surgidas germinaram e se expandiram em fartas messes democráticas.

   Inicialmente as campanhas de Napoleão e, depois, a guerra actual, se constituíram em regressos ofensivos da autocracia, porém a tentativa orgulhosa de Guilherme II para dominar o mundo parece que vai terminar, por ironia do destino, na definitiva libertação dos povos.

   Na guerra actual, os elementos que se confrontam têm um carácter mais marcante do que nos conflitos anteriores, pois não se trata já de uma luta de raças, de línguas ou de religiões; tanto dos conflitantes como dos neutros, dois partidos se erguem um contra o outro.

   De uma parte, encontram-se todos os fermentos do absolutismo monárquico ou clerical, todos quantos se apegam ao espírito de casta e às tradições da autoridade sob todas as formas: administrativa, militar e eclesiástica; todos os que admiram, sem reservas, o imperialismo alemão, as suas instituições, a sua organização sábia, a sua forte disciplina e o seu sistema educativo.

   Do outro lado se colocam todas as pessoas e as colectividades desejosas de independência, revoltadas contra a opressão e a falsa infalibilidade, colocando acima de tudo o direito dos povos e da justiça social.

   O entusiasmo que alguns têm pelos impérios centrais, por outros é reservado para a França, considerada como a campeã da liberdade do mundo e que, a seus olhos, se ofereceu em sacrifício pela salvação das nações.

   A esse respeito, são expressivas as opiniões e os testemunhos que nos chegam de todas as partes do globo e o nosso país já começa a ser ressarcido pelas humilhações e fracassos sofridos durante 50 anos.

   À medida que a verdade se espalha, as causas reais e as responsabilidades dessa guerra aparecem mais claramente. A opinião e a consciência das Américas tornam-se cada vez mais favoráveis à França. O apoio e a ajuda recebidos são acrescidos da simpatia.

   O drama inicial, o assassinato de Sarajevo (do arquiduque da Áustria, Francisco Ferdinando e, de sua esposa, a princesa de Hohenberg), permanece envolto em mistério e ainda não se conhecem os seus verdadeiros instigadores, porém quaisquer que eles sejam, a brutal agressão contra uma sérvia disposta a todas as concessões permanecerá como um acto odioso.

   A declaração de guerra à França por motivos falsos e pueris, inventados sem motivo e, principalmente o atentado contra uma Bélgica inocente, apesar de solenes compromissos assumidos, o carácter de ferocidade que os alemães imprimiram à luta, o sacrifício dos pequenos povos vencidos por ela, tudo isso determinou um sentimento universal de reprovação e horror.

   Caso tais factos inqualificáveis não tivessem ocorrido, nem a Inglaterra, nem a Itália e nem os Estados Unidos se teriam envolvido na luta e, a França teria de suportar sozinha a investida formidável dos alemães.

   Existe, portanto, um elemento moral de fundamental importância, parecendo que nessa luta, onde as forças materiais conseguem o seu máximo poder, serão as forças imponderáveis que dirão a última palavra.

   Neste mundo de ferro, onde o método de esmagamento parecia soberano, a lei moral reaparece e o direito recupera a sua força. Aqueles países que acreditam estar com a verdade e a justiça, que disso se encontram compenetrados e que conseguem fazer com que todos participem desse sentimento, podem contar com uma solução favorável do conflito. Ao contrário, há muito tempo a incerteza, quanto à legitimidade de sua causa, vem se infiltrando na alma alemã. Nos povos do além Reno, aparece a certeza de que chefes orgulhosos e cegos os obrigam a sacrifícios rudes e privações duras, sem compensação alguma.

   Pouco a pouco os gritos de vitória se transformam em maldições. O Kaiser vê erguer-se contra ele o fantasma da revolução. Os espectros da abdicação, da fome e da ruína rondam as suas noites.

   Por sua vez, a situação da Rússia tornou-se um problema aflitivo, pois o poder dos czares, carcomido pelas intrigas alemãs e pela traição, desmoronou diante do impulso robusto do povo.

   O colosso de pés de barro despedaçou-se em poucos instantes, nascendo uma nova democracia.

   Saberá ela organizar-se, disciplinar-se, estabelecer-se em bases sábias e permanentes ou, caindo na demagogia e no anarquismo, determinará a desagregação daquele vasto império? As desconfianças e paixões que reinam nos meios políticos, o estado de insubordinação do exército, justificam todos os receios.

   A crise russa, realmente, é de autoridade e de liberdade, e não basta conquistar a liberdade, é preciso maturidade para saber praticá-la. No perpétuo conflito das coisas do mundo nenhum desses princípios (autoridade e liberdade) é vitorioso a não ser com o prejuízo do outro. Quando não se alcançam a paz e a harmonia social pelo entendimento, com um acordo perfeito das duas forças, unidas equilibradamente, uma das duas prevalece quase sempre, com prejuízo da ordem e da actividade individual.

   A excessiva liberdade gera a anarquia que, por sua vez, traz consigo o despotismo. A humanidade, então, se agita num círculo vicioso, por falta de sabedoria e de equilíbrio moral.

   Alguns povos pequenos, como a Suíça, a Noruega e a Dinamarca, se aproximam notavelmente desse perfeito acordo entre a autoridade e a liberdade, sob diversas formas, monarquia ou república. Neles, a instrução geral, um sentimento religioso elevado e uma forte educação popular favoreceram a prática daqueles meios, mas o mesmo não acontece nos grandes Estados, onde as paixões políticas, a ambição e o desejo de expansão e de dominação mundial monopolizaram as forças vitais em prejuízo da paz interior e do legítimo progresso.

   Então, onde buscar um exemplo, um modelo e uma regra certa para conseguir a estabilidade e o equilíbrio das instituições humanas?

   Só o estudo da vida invisível nos poderá tornar conhecido um mundo em que a autoridade e a liberdade se combinem e se completem harmonicamente. As revelações dos espíritos nos mostram, claramente, a existência, no Além, de uma hierarquia de poderes e de inteligências que vão se escalonando até Deus, mas essas revelações também nos ensinam que, na vida espiritual, todos os seres gozam de uma liberdade proporcional ao seu estado de adiantamento.

   A hierarquia das almas é sempre relacionada com os seus méritos, não sendo possível enganarmo-nos a esse respeito porque a sua irradiação é a característica da sua elevação moral. Na medida em que o espírito ultrapassa os degraus da vida celeste, torna-se mais brilhante, mais luminoso e a sua vontade se impõe magneticamente, aumentando com o seu poder de irradiação. Assim, permanecemos longe das condições da pobre sociedade terrena, onde é tão fácil a velhacaria, o vício e a mentira, que se dissimulam sob aparências bem cuidadas, maneiras sedutoras ou a palavra fácil. Enquanto as organizações sociais não estiverem em adequação com as leis do espaço, a perturbação, a desordem e a confusão permanecerão na Terra.

   Na vida universal tudo se regulamenta para a evolução. Cada uma de nossas encarnações terrestres e cada uma de nossas existências planetárias é uma etapa da nossa caminhada eterna. Viemos do infinito aos mundos materiais para prosseguir na nossa educação e depois voltaremos para a vida espiritual, estando assim sujeitos a recomeçar a vida terrena até que os progressos necessários se realizem.

   A ordem social deve, portanto, estar organizada de modo que faculte a cada um de nós a maior soma de resultados do ponto de vista evolutivo. Sendo bastante variadas as situações das almas, as condições sociais também devem sê-lo, igualmente.

   As condições elevadas são relativamente raras, pois são perigosas para o espírito encarnado na Terra rodeado com as tentações da riqueza e do poder e cujo orgulho elas provocam.

   As situações inferiores, ao contrário, são incontáveis, porque as necessidades, as duras exigências que trazem consigo obrigam o espírito ao trabalho, desenvolvem o seu interior, a sua personalidade, a sua consciência, aumentando-lhe as energias latentes. Dores físicas e da alma, necessidade do trabalho, domínio da matéria, da doença e da morte, eis os meios pelos quais o espírito consegue compreender as rígidas disciplinas e praticar a lei do dever. A vida terrena é o crisol, onde a alma se transforma e se aparelha para as grandes missões futuras.

   A nossa existência actual, considerada isoladamente, parece obscura e sem sentido para a maior parte dos homens, todavia, se a examinarmos no seu conjunto, relacionada com a que a precedeu e com a que a seguirá, ela se nos apresenta como um esplêndido campo, onde o ser constrói o seu destino, edifica a sua crescente personalidade, chegando a tornar-se totalmente livre, ao dominar o mal e vencer os maus instintos.

   Em face das visões de horror que a guerra apresenta aos nossos olhos, diante dos milhões de túmulos cuja terra recém-revolvida ainda desnivela as planícies da Europa; ante os pedaços enegrecidos de parede, únicos vestígios das inúmeras aldeias que ainda ontem ressoavam com os ruídos da vida campestre, com o alegre som dos campanários e com os saudáveis risos das crianças, convém se afirme que o homem, na sua essência, é imortal e que se recorde que, as vicissitudes, os prazeres, as provações e as dores, tudo contribui para o nosso progresso e elevação.

   Acima dessas cenas de tristeza e de luto, a vida invisível prossegue em sua serena majestade. Vivos ou mortos, somos arrebanhados pela grande força evolutiva para uma vida melhor, no seio do Universo ilimitado e da divina harmonia!

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XII Autoridade e Liberdade (1) Julho de 1917, 28º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

terça-feira, 19 de julho de 2016

O sentido da vida ~


Cérebro e Espírito

Não está totalmente errada a ciência moderna, ao considerar o homem sob o aspecto monista definido por Espinoza. O Espiritismo, na sua função de síntese dos conhecimentos humanos, abre largas perspectivas novas ao pensamento do século, permitindo sobretudo o esclarecimento de velhas questões e velhas rixas, que pareciam para sempre insolúveis. Assim, enquanto os defensores da biologia moderna acham intransponível o abismo que separa o dualismo de Descartes do monismo de Espinoza, o Espiritismo entende que tudo não passa de simples jogo de palavras, facilmente desfeito à luz dos seus princípios. De facto, se o biólogo afirma que o corpo e espírito são um todo único e, o teólogo responde que, pelo contrário, o espírito é independente do corpo, o Espiritismo não tem dificuldades em conciliar essas aparentes contradições, lembrando que, segundo um princípio de fisiologia, cada coisa pode mostrar-nos, de um ângulo diverso, uma diversa aparência. Nem por isso, entretanto, a realidade deixa de ser uma só.

O biólogo diz que o corpo e o espírito formam uma unidade indissolúvel e que não pode entender outra coisa. Do seu ponto de vista, ele está certo. Entramos aí no terreno da relatividade e precisamos compreender que a verdade do biólogo é relativa. Ele só estudou e conhece os processos vitais de natureza orgânica. Para ele, o espírito é o cérebro ou um simples complexo de funções vitais do córtex cerebral. As crianças prodígio romperam há muito a velha teoria do paralelismo psicofisiológico, mas o biólogo encontrou uma porta de escape nas curvas surpreendentes da hereditariedade. Ele é um homem que joga com dados materiais e que está firmemente disposto a negar qualquer possibilidade de fuga à realidade, para a explicação dos problemas que tem diante dos olhos. Para ele, a independência do espírito seria a negação de todo o seu aprendizado, tão laboriosamente efectuado até agora. A sua reacção é quase orgânica, instintiva, contra a ameaça dessa nova teoria.

Para o teólogo, o problema se apresenta da mesma maneira, mas de ângulo oposto. Enquanto o biólogo olha o indivíduo humano de baixo para cima, o teólogo o vê de cima para baixo. Ele não pode dizer a mesma coisa que diz aquele, nem pode concordar com a descrição que aquele lhe faz, de um fenómeno que ele “sabe” ser de outra maneira. A conciliação entre os dois é absolutamente impossível, enquanto não se conseguir arredar o biólogo e o teólogo dos seus respectivos lugares, para juntá-los num outro, que poderíamos considerar o interior do fenómeno. Só então eles poderiam verificar, directamente, que muitos dos seus dados estavam errados, sofrendo de um desvio de visão, embora muitos outros continuassem certos.

Espiritismo realiza precisamente esse milagre. Não endossando o ponto de vista do biólogo, nem aceitando a posição do teólogo, ele se coloca em outro ângulo e consegue chegar à equação que parecia impossível. Pois, de facto, o corpo e o espírito são uma e a mesma coisa, desde o momento em que se verificou o fenómeno da encarnação, desde o instante em que eles se fundiram, para a experiência da vida terrena. Quando, porém, um novo processo se verifica – o da morte –, eles deixam de constituir a unidade transitória do indivíduo biológico, voltando cada qual à sua independência natural.

O apego dos biologistas à tese monista faz-nos lembrar o perigo de certas ilusões científicas que chegaram a durar séculos. Poderíamos citar, a propósito, a velha teoria geocêntrica ou a da invisibilidade atómica. Temos, assim, uma ilusão antiga e outra moderna. Mas comentemos um pouco mais a primeira, que serve admiravelmente aos nossos desígnios. Durante séculos, os homens se apegaram à ideia de que a Terra era o centro do Universo. Ainda hoje, são inúmeros os que defendem a tese da habitabilidade exclusiva do nosso pequeno planeta, negando a possibilidade da existência humana em outros corpos celestes. Mas o progresso dos conhecimentos levou a ciência a não mais admitir o geocentrismo, que é hoje uma teoria de museu.

No tocante ao problema do corpo e espírito, acontece coisa semelhante. Os homens continuam esposando uma teoria que poderíamos chamar, por analogia, de organocêntrica. Para eles, só há vida em organismos materiais, a possibilidade vital está centralizada nas chamadas formas vivas. Fora dessas formas, a vida é absolutamente impossível. Entretanto há factos que atestam o contrário. E não está longe o dia em que esses factos se imporão ao raciocínio científico, descentralizando-o dos chamados organismos vivos, a manifestação do fenómeno vital. As mesas giram, dizia Kardec. E as mesas aí estão, juntamente com a causa que as faz girar...

No livro A nossa vida mental, da série A ciência da vida, de H. G. WellsJulian Huxley e G. P. Wells, encontramos um interessante capítulo sobre a questão espírita. Os autores colocam-se no ponto de vista materialista e, condenando a imaginosa explicação espírita dos fenómenos, que não negam, chegam por sua vez a imaginar explicações, negativas as mais curiosas e, a fazer afirmações nitidamente anti-científicas. Uma delas é a de que as materializações dos primeiros tempos do Espiritismo eram românticas, como a focalizada num célebre quadro de Tissot e, as de hoje são informes e rígidas. A fotografia informe que o livro estampa é uma das mais belas conquistas da fotografia psíquica, pertencente ao acervo dos trabalhos de Schrenck-Notzing e Madame Bisson. Mostra uma cabeça materializada em processo de elaboração, o que é altamente significativo. Isso demonstra, sobretudo, que o fenómeno pode ser observado nas suas diferentes fases. Mas os materialistas não entenderam assim e inventaram que agora só obtemos figuras hediondas e abomináveis. Foi, sem dúvida, uma conclusão apressada. Mesmo porque, a fotografia pertence aos primórdios do Espiritismo científico, não é de hoje. E, todos nós, que lidamos com os fenómenos espíritas, sabemos de materializações tão “românticas” quanto as de Tissot, assistidas no presente.

Outras conclusões interessantes desse livro referem-se às comunicações psicográficas. Segundo os autores, tais comunicações são desinteressantes e fúteis. Citam mesmo o caso de Raymond, de sir Oliver Lodge, frisando a diferença existente entre as cartas do jovem soldado e as suas comunicações. Não parece evidente que a avaliação de interesse pode variar de pessoa para pessoa e, que as diferenças notadas devem corresponder à diferença de vida neste plano e no outro? Mas os autores fazem questão de manter o seu ponto de vista materialista e, para isso chegam a dizer que as descrições do outro lado, feitas pelos espíritos, variam ao infinito, sendo incompatíveis umas com as outras, a tal ponto, que reciprocamente se destroem. Ora, todos os que já estudaram o assunto sabem que as coisas se passam de maneira exactamente contrária.

As descrições de Raymond, por exemplo, coincidem com as obtidas por Ochorowicz, as anotadas por Denis Bradley, as espontaneamente dadas por numerosos espíritos ao doutor Carl A.Wikland, em Los Angeles, ao doutor Oscar Parkes, em Londres, com as descrições feitas, aos milhares, nas sessões espíritas de vários países, os relatos publicados pela Revue Spirite, de Kardec, ao registado pela Society for Psychical Research, de Londres e, por último com as comunicações recebidas no Brasil pelo médium Chico Xavier. Poderíamos esgotar várias páginas de citações. Justamente o que mais impressiona, em tais casos, é a identidade, a confirmação de aspectos de um relato por outro, em lugares, épocas e através de médiuns diversos.

Só mesmo o desejo de negar a evidência, ou de pelo menos confundi-la, pode levar os nossos homens de ciência e de letras a tais atitudes. Mas quem quiser, por cima dos informantes suspeitos, verificar o que de real se passa no terreno das informações espíritas sobre o outro lado da vida, por certo há de ver que elas coincidem tão bem como as impressões de vários viajantes sobre um mesmo país estrangeiro.

É pena que os defensores extremados do “milagre” do córtex cerebral não tenham compreendido que as suas teorias sobre a imortalidade da espécie e sobre um outro aspecto perceptivo da matéria são muito mais complicadas e altamente improváveis do que a tantas vezes comprovada imortalidade pessoal.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Cérebro e Espírito, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

| o grande enigma ~

as leis | universais ~

Repitamos: todas as obras científicas produzidas há meio século nos demonstram a existência e a acção das leis naturais. Essas leis estão ligadas por uma outra, superior, que as abrange inteiramente, regularizando-as e elevando-as à unidade, à ordem e à harmonia. É por essas leis, sábias e profundas, ordenadoras e organizadoras do Universo, que a Inteligência Suprema se revela.

Certos sábios objectam, na verdade, que as leis universais são cegas. Mas, de que forma leis cegas poderiam dirigir a marcha dos mundos no Espaço, regular todos os fenómenos, todas as manifestações da vida e, isso com precisão admirável? Se as leis são cegas, diremos, evidentemente, devem agir ao acaso. Mas o acaso é a falta de direcção é a ausência de toda inteligência actuante. É, pois, o acaso inconciliável com a noção de ordem e de harmonia.

A ideia da Lei parece-nos, portanto, inseparável da ideia da Inteligência, porque é obra de um pensamento. Somente ele pode dispor e ordenar todas as coisas no Universo. E o pensamento não pode produzir-se sem a existência de um ser que seja o seu gerador.

Não há lei possível fora e sem o concurso da inteligência e da vontade que a dirige. De outra forma, a lei seria cega, como opinam os materialistas; iria ao acaso, à mercê da corrente. Seria exactamente qual um homem que quisesse seguir certa estrada sem o auxilio da vista: cairia em qualquer fosso, depois de dar alguns passos. Assim é-nos permitido afirmar que uma lei cega não seria mais uma lei.

Acabámos de ver que as pesquisas da Ciência demonstram a existência das leis universais. Todos os dias essa ciência se adianta, não raro a contragosto, é verdade; mas, enfim, avança, pouco a pouco, para a grande unidade que entrevemos no fundo das coisas.

Não há, sem exceptuar mesmo os próprios positivistas e os materialistas, quem não seja arrastado por esse movimento de ideias. Se encaminham, sem disso se aperceberem, para a percepção grandiosa que reúne todas as forças, todas as leis do Universo. Com efeito, poder-se-ia provar que Auguste ComteLittré, o Dr. Robinet, toda a escola positivista, em suma, se entrega, a respeito desses assuntos, às mais flagrantes contradições. Rejeitam a ideia do absoluto, a de uma causa geradora e, proclamam e até provam que “a Matéria é a manifestação sensível de um princípio universal”. Na opinião deles, “todas as ciências se superpõem e acabam reunindo-se numa generalidade suprema que põe o selo na sua unidade”. Segundo Burnouf, “a Ciência está prestes a chegar a uma teoria, cuja fórmula geral confirmaria a unidade da substância, a invariabilidade da vida e a sua união indissolúvel com o pensamento”.

Ora, que vem a ser essa trilogia da substância, da vida, do pensamento, essa “generalidade suprema, essa lei universal, esse princípio único”, que preside a todos os fenómenos da Natureza, a todas as metamorfoses, a todos os actos da vida, a todas as inspirações do Espírito? Que é, pois, um centro no qual se resume e se confunde tudo – que é tudo que vive, tudo que pensa? Que é, senão o absoluto, senão o próprio Deus?! É verdade que se obstinam a recusar a inteligência e a consciência a esse absoluto, a essa causa suprema; mas ficará sempre por explicar de que modo uma causa inteligente – cega, inconsciente – pôde produzir todas as magnificências do Cosmos, todos os esplendores da inteligência, da luz, da vida, sem saber que o fazia. Como – sem consciência nem vontade, sem reflexão nem julgamento – pôde produzir seres que reflectem, querem, julgam, dotados de consciência e de razão?!

Tudo vem de Deus e remonta a Ele. Um fluido mais subtil que o éter emana do pensamento criador. Esse fluido muito quintessenciado para ser apreendido pela nossa compreensão, em consequência de combinações sucessivas, tornou-se o éter. Do éter saíram todas as formas graduadas da matéria e da vida. Chegadas ao ponto extremo da descida, à substância e à vida remontam ao ciclo imenso das evoluções.

Já o vimos, a ordem e a majestade do Universo não se revelam somente no movimento dos astros, na marcha dos mundos; revelam-se também, de modo imponente, na evolução e no desenvolvimento da vida na superfície desses mundos. Hoje, pode estabelecer-se que a vida se desenvolve, se transforma e se apura segundo um plano preconcebido; se aperfeiçoa à medida que percorre a sua órbita imensa. Começa a compreender-se que tudo está regulado com vista a um fim, e esse fim é a progressão do ser, é o crescimento contínuo e a realização de formas, sempre mais perfeitas, de beleza, de sabedoria, de moralidade.

Pode observar-se em torno de nós essa lei majestosa do progresso, através de todo o lento trabalho da Natureza; desde as formas inferiores, desde os infinitamente pequenos, os infusórios que flutuam nas águas, elevando-se, de grau em grau, na escala das espécies, até ao homem. instinto torna-se sensibilidadeinteligênciaconsciência, razão. Sabemos também que essa ascensão não pára aí. Graças aos ensinamentos do Além, aprendemos que prossegue, através dos mundos invisíveis, sob formas cada vez mais subtis, e prossegue, de potência em potência, de glória em glória, até ao Infinito, até Deus. E essa ascensão grandiosa da vida só se explica pela existência de uma causa inteligente, de uma energia incessante, que penetra e envolve toda a Natureza: é quem rege e estimula essa evolução colossal da vida para o Bem, para o Belo, para o Perfeito!

O mesmo acontece no domínio moral. As nossas existências sucedem-se e se desenrolam através dos séculos. Os acontecimentos acontecem sem que consigamos ver o laço que os liga. Mas a justiça imanente paira sobre todas as coisas: fixa a nossa sorte, segundo uma Lei, segundo um princípio infalível. Pensamento, palavras, acções, tudo se encadeia, tudo está ligado por uma série de causas e efeitos que formam a trama de nossos destinos. (*) Insistamos neste ponto: é graças à revelação dos Espíritos que a Lei de Justiça nos apareceu com esse carácter imponente, com as suas vastas consequências e o encadeamento prodigioso das coisas que domina e rege.

Quando estudamos o problema da vida futura, quando examinamos a situação do Espírito depois da morte – e é esse o objecto capital das pesquisas psíquicas –, encontramo-nos em presença de um facto considerável, pleno de consequências moraisVerifica-se um estado de coisas que é regulado por uma lei de equilíbrio e de harmonia.

Logo que a Alma transpõe a morte, desde que desperta no mundo dos Espíritos, o quadro de suas vidas passadas se desenrola, pouco a pouco, à sua vista. Ela se vê como que num espelho que reflecte fielmente todos os actos passados, para a acusar ou glorificar. Nada de distracção, nada de fuga possível. O Espírito é obrigado a contemplar-se, primeiramente, para se reconhecer ou para sofrer e, mais tarde, para se preparar. Daí, para a maior parte, o remorso, a vergonha e a amargura!

Os ensinamentos de Além-Túmulo fazem-nos saber que nada se perde, nem o bem, nem o mal; que tudo se inscreve, se repara, se resgata, por meio de outras existências terrestres, difíceis e dolorosas.

Aprendemos igualmente que nenhum esforço é perdido e que nenhum sofrimento é inútil. O dever não é palavra vã, e o Bem reina sem partilha acima de tudo. Cada um constrói dia a dia, hora a hora, muitas vezes sem o saber, o seu próprio futuro. A sorte que nos cabe na vida actual foi preparada pelas nossas acções anteriores; da mesma forma edificamos no presente as condições da existência futura. Daí, para o sábio a resignação ao que lhe é inevitável na vida presente; daí também, o estimulante poderoso para agir, devotar-se, preparando para si próprio um destino melhor.

Quantos conhecendo isso não se encherão de medo, pensando no que está reservado à sociedade actual, cujos pensamentos, tendências e actos são muitas vezes inspirados pelo egoísmo ou por paixões más; à sociedade actual, que acumula, assim, acima dela, sombrias nuvens fluídicas que trazem a tempestade ao seu dorso?

Como não estremecermos em presença de tantos desfalecimentos morais, diante de tantas corrupções ostensivas? Como não estremecer, verificando que o sentimento do bem encontra tão pouco lugar em certas consciências? Como não estremecer, enfim, ao constatar, no fundo de tantas Almas, o amor desenfreado pelos gozos, a cupidez ou o ódio?! E se sentimos isso, como hesitar na afirmativa, à face de todos, para fazer conhecida de toda essa Lei de justiça que os ensinamentos do Além nos mostram tão grande, tão importante; essa Lei que se executa por si mesma, sem tribunal e sem julgamento, mas à qual não escapa, no entanto, nenhum de nossos actos; Lei que nos revela uma Inteligência directora do mundo moral; Lei viva, razão consciente do Universo, fonte de toda a vida, de todas as leis, de toda a perfeição!

Eis o que é Deus. Quando essa ideia de Deus tiver penetrado no ensino e, daí, nos espíritos e nas consciências, compreender-se-á que o espírito de justiça não é mais do que o instrumento admirável pelo qual a causa suprema leva tudo à ordem e à harmonia e, sentir-se-á que essa ideia de Deus é indispensável às sociedades modernas, que se abatem e perecem moralmente, porque, não compreendendo Deus, não se podem regenerar. Então, todos os pensamentos e todas as consciências se voltarão para esse foco moral, para essa fonte de eterna justiça, que é Deus, e ver-se-á transformar a face do mundo.

A justiça não é somente de origem social, como a revolução de 1789 procurou estabelecer. Ela vem de mais alto: é de origem divina. Se os homens são iguais diante da lei humana é porque são iguais diante da Lei eterna.

E assim é porque saímos todos da mesma fonte de inteligência e de consciência; somos todos irmãos, solidários uns com os outros, unidos em nossos destinos imortais – porque a solidariedade e a fraternidade dos seres só são possíveis quando estes se sentem ligados a um mesmo centro comum.

Somos filhos de um mesmo Pai, porque a alma humana é emanação da Alma Divina, uma centelha do Pensamento Eterno.

Tudo nos fala de Deus, o visível e o invisível. A inteligência o discerne; a razão e a inteligência o proclamam.

Mas o homem não é somente razão e consciência: é também amor. O que caracteriza o ser humano, acima de tudo, é o sentimento, é o coração. O sentimento é privilégio da Alma; por ele a Alma se liga ao que é bom, belo e grande, a tudo que merece a sua confiança e pode ser sustentáculo na dúvida, consolação na desgraça. Ora, todos esses modos de sentir e de conceber nos revelam igualmente Deus, porque a bondade, a beleza e a verdade só se encontram no ser humano em estado parcial, limitado, incompleto. A bondade, a beleza e a verdade só podem existir sob a condição de encontrar o seu princípio, plenitude e origem em um ser que as possua no estado superior, no estado infinito.

ideia de Deus impõe-se por todas as faculdades do nosso Espírito, ao mesmo tempo que nos fala aos olhos por todos os esplendores do Universo. A Inteligência suprema revela-se a causa eterna, na qual todos os seres vêm haurir a força, a luz e a vida. Aí está o Espírito Divino, o Espírito Potente, que veneramos sob tantas denominações; mas, sob todos esses nomes, é sempre o centro, a lei viva, a razão pela qual os seres e os mundos se sentem viver, se conhecem, se renovam e se elevam.

Deus fala-nos por todas as vozes do Infinito. E fala não em uma Bíblia escrita há séculos, mas em uma bíblia que se escreve todos os dias, com esses característicos majestosos que se chamam oceanos, montanhas e astros do céu; por todas as harmonias, doces e graves, que sobem do imo da Terra ou descem dos espaços etéreos. Fala ainda no santuário do ser, nas horas de silêncio e de meditação. Quando os ruídos discordantes da vida material se calam, então a voz interior, a grande voz desperta e se faz ouvir. Essa voz sai das profundezas da consciência e fala-nos dos deveres, do progresso, da ascensão da criatura. Há em nós uma espécie de retiro íntimo, uma fonte profunda de onde podem jorrar ondas de vida, de amor, de virtude, de luz. Ali se manifesta esse reflexo, esse gérmen divino, escondido em toda a Alma humana.

Por isso a Alma humana constitui-se o mais belo testemunho que se eleva em favor da existência de Deus; é uma irradiação da Alma Divina. Contém, em estado de embrião, todas as potências e, o seu papel, o seu destino consiste em valorizá-las no decurso de inúmeras existências, em suas transmigrações através dos tempos e dos mundos.

O ser humano, dotado de razão, é responsável, é susceptível de conhecer-se e tem o dever de se governar. Como disse João Evangelista: “A razão humana é essa verdadeira luz que esclarece todo o homem que vem ao mundo.” (João, 1:9). A razão humana, dissemos, é uma centelha da Razão Divina.

É subindo à sua origem, é comunicando com a Razão Absoluta, Eterna, que a Alma humana descobre a Verdade e compreende a Ordem e a Lei universais. Assim, direi a todos: Homens, filhos da luz, ó meus irmãos! Lembremo-nos da nossa origem; lembremo-nos do fim, durante a viagem da vida! Desprendamo-nos das coisas que passam! Liguemo-nos às que permanecem!

Não há dois princípios no mundo: o Bem e o Mal. O Mal é o efeito de contraste, qual a noite o é do dia. Não tem existência própria. O Mal é o estado de inferioridade e de ignorância do ser a caminho da evolução. Os primeiros degraus da escada imensa representam o que se chama o mal; mas, à medida que o ser se eleva, realiza o bem em si e em torno de si; o mal vai-se atenuando e, depois desvanece. O mal é a ausência do bem. Afigura-se dominar ainda no nosso planeta, é porque este é um dos primeiros anéis da cadeia, morada de Almas elementares que se estreiam na rude senda do conhecimento, ou, então, de Almas culpadas, a caminho de reparação. Nos mundos mais adiantados, o Bem expande-se e, de degrau em degrau, acaba reinando sem partilha.

Bem é indefinível por si mesmo. Defini-lo seria minorá-lo. É preciso considerá-lo, não na sua natureza, mas nas suas manifestações.

Acima das essências, das formas e das ideias, paira o princípio do Belo e do Bem, o último termo que sou capaz de atingir pelo pensamento, sem o abranger, todavia. Reside na nossa pequenez a impossibilidade de apreender a existência última das coisas; mas, a sensibilidade, a inteligência e o conhecimento são outros tantos pontos de apoio, que permitem à Alma desprender-se do seu estado de inferioridade e de incerteza, e convencer-se de que tudo no Universo, as forças e os seres, tudo é regido pelo Bem e pelo Belo. A ordem e a majestade do mundo, ordem física e a ordem moral, a justiça, a liberdade, a moralidade, tudo repousa sobre leis eternas; não há leis eternas sem um Princípio superior, sem uma Razão primeira, causa de toda a Lei. Também o ser humano, tanto quanto a sociedade, não pode engrandecer-se e progredir sem a ideia de Deus, isto é, sem justiça, sem liberdade, sem respeito por si mesmo, sem amor; porque Deus, representando a perfeição, é a última palavra, a suprema garantia de tudo quanto constitui a beleza, a grandeza da vida, de tudo que faz a potência e a harmonia do Universo!

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(*) Vide Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, VI As leis universais, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)