Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 19 de julho de 2016

O sentido da vida ~


Cérebro e Espírito

Não está totalmente errada a ciência moderna, ao considerar o homem sob o aspecto monista definido por Espinoza. O Espiritismo, na sua função de síntese dos conhecimentos humanos, abre largas perspectivas novas ao pensamento do século, permitindo sobretudo o esclarecimento de velhas questões e velhas rixas, que pareciam para sempre insolúveis. Assim, enquanto os defensores da biologia moderna acham intransponível o abismo que separa o dualismo de Descartes do monismo de Espinoza, o Espiritismo entende que tudo não passa de simples jogo de palavras, facilmente desfeito à luz dos seus princípios. De facto, se o biólogo afirma que o corpo e espírito são um todo único e, o teólogo responde que, pelo contrário, o espírito é independente do corpo, o Espiritismo não tem dificuldades em conciliar essas aparentes contradições, lembrando que, segundo um princípio de fisiologia, cada coisa pode mostrar-nos, de um ângulo diverso, uma diversa aparência. Nem por isso, entretanto, a realidade deixa de ser uma só.

O biólogo diz que o corpo e o espírito formam uma unidade indissolúvel e que não pode entender outra coisa. Do seu ponto de vista, ele está certo. Entramos aí no terreno da relatividade e precisamos compreender que a verdade do biólogo é relativa. Ele só estudou e conhece os processos vitais de natureza orgânica. Para ele, o espírito é o cérebro ou um simples complexo de funções vitais do córtex cerebral. As crianças prodígio romperam há muito a velha teoria do paralelismo psicofisiológico, mas o biólogo encontrou uma porta de escape nas curvas surpreendentes da hereditariedade. Ele é um homem que joga com dados materiais e que está firmemente disposto a negar qualquer possibilidade de fuga à realidade, para a explicação dos problemas que tem diante dos olhos. Para ele, a independência do espírito seria a negação de todo o seu aprendizado, tão laboriosamente efectuado até agora. A sua reacção é quase orgânica, instintiva, contra a ameaça dessa nova teoria.

Para o teólogo, o problema se apresenta da mesma maneira, mas de ângulo oposto. Enquanto o biólogo olha o indivíduo humano de baixo para cima, o teólogo o vê de cima para baixo. Ele não pode dizer a mesma coisa que diz aquele, nem pode concordar com a descrição que aquele lhe faz, de um fenómeno que ele “sabe” ser de outra maneira. A conciliação entre os dois é absolutamente impossível, enquanto não se conseguir arredar o biólogo e o teólogo dos seus respectivos lugares, para juntá-los num outro, que poderíamos considerar o interior do fenómeno. Só então eles poderiam verificar, directamente, que muitos dos seus dados estavam errados, sofrendo de um desvio de visão, embora muitos outros continuassem certos.

Espiritismo realiza precisamente esse milagre. Não endossando o ponto de vista do biólogo, nem aceitando a posição do teólogo, ele se coloca em outro ângulo e consegue chegar à equação que parecia impossível. Pois, de facto, o corpo e o espírito são uma e a mesma coisa, desde o momento em que se verificou o fenómeno da encarnação, desde o instante em que eles se fundiram, para a experiência da vida terrena. Quando, porém, um novo processo se verifica – o da morte –, eles deixam de constituir a unidade transitória do indivíduo biológico, voltando cada qual à sua independência natural.

O apego dos biologistas à tese monista faz-nos lembrar o perigo de certas ilusões científicas que chegaram a durar séculos. Poderíamos citar, a propósito, a velha teoria geocêntrica ou a da invisibilidade atómica. Temos, assim, uma ilusão antiga e outra moderna. Mas comentemos um pouco mais a primeira, que serve admiravelmente aos nossos desígnios. Durante séculos, os homens se apegaram à ideia de que a Terra era o centro do Universo. Ainda hoje, são inúmeros os que defendem a tese da habitabilidade exclusiva do nosso pequeno planeta, negando a possibilidade da existência humana em outros corpos celestes. Mas o progresso dos conhecimentos levou a ciência a não mais admitir o geocentrismo, que é hoje uma teoria de museu.

No tocante ao problema do corpo e espírito, acontece coisa semelhante. Os homens continuam esposando uma teoria que poderíamos chamar, por analogia, de organocêntrica. Para eles, só há vida em organismos materiais, a possibilidade vital está centralizada nas chamadas formas vivas. Fora dessas formas, a vida é absolutamente impossível. Entretanto há factos que atestam o contrário. E não está longe o dia em que esses factos se imporão ao raciocínio científico, descentralizando-o dos chamados organismos vivos, a manifestação do fenómeno vital. As mesas giram, dizia Kardec. E as mesas aí estão, juntamente com a causa que as faz girar...

No livro A nossa vida mental, da série A ciência da vida, de H. G. WellsJulian Huxley e G. P. Wells, encontramos um interessante capítulo sobre a questão espírita. Os autores colocam-se no ponto de vista materialista e, condenando a imaginosa explicação espírita dos fenómenos, que não negam, chegam por sua vez a imaginar explicações, negativas as mais curiosas e, a fazer afirmações nitidamente anti-científicas. Uma delas é a de que as materializações dos primeiros tempos do Espiritismo eram românticas, como a focalizada num célebre quadro de Tissot e, as de hoje são informes e rígidas. A fotografia informe que o livro estampa é uma das mais belas conquistas da fotografia psíquica, pertencente ao acervo dos trabalhos de Schrenck-Notzing e Madame Bisson. Mostra uma cabeça materializada em processo de elaboração, o que é altamente significativo. Isso demonstra, sobretudo, que o fenómeno pode ser observado nas suas diferentes fases. Mas os materialistas não entenderam assim e inventaram que agora só obtemos figuras hediondas e abomináveis. Foi, sem dúvida, uma conclusão apressada. Mesmo porque, a fotografia pertence aos primórdios do Espiritismo científico, não é de hoje. E, todos nós, que lidamos com os fenómenos espíritas, sabemos de materializações tão “românticas” quanto as de Tissot, assistidas no presente.

Outras conclusões interessantes desse livro referem-se às comunicações psicográficas. Segundo os autores, tais comunicações são desinteressantes e fúteis. Citam mesmo o caso de Raymond, de sir Oliver Lodge, frisando a diferença existente entre as cartas do jovem soldado e as suas comunicações. Não parece evidente que a avaliação de interesse pode variar de pessoa para pessoa e, que as diferenças notadas devem corresponder à diferença de vida neste plano e no outro? Mas os autores fazem questão de manter o seu ponto de vista materialista e, para isso chegam a dizer que as descrições do outro lado, feitas pelos espíritos, variam ao infinito, sendo incompatíveis umas com as outras, a tal ponto, que reciprocamente se destroem. Ora, todos os que já estudaram o assunto sabem que as coisas se passam de maneira exactamente contrária.

As descrições de Raymond, por exemplo, coincidem com as obtidas por Ochorowicz, as anotadas por Denis Bradley, as espontaneamente dadas por numerosos espíritos ao doutor Carl A.Wikland, em Los Angeles, ao doutor Oscar Parkes, em Londres, com as descrições feitas, aos milhares, nas sessões espíritas de vários países, os relatos publicados pela Revue Spirite, de Kardec, ao registado pela Society for Psychical Research, de Londres e, por último com as comunicações recebidas no Brasil pelo médium Chico Xavier. Poderíamos esgotar várias páginas de citações. Justamente o que mais impressiona, em tais casos, é a identidade, a confirmação de aspectos de um relato por outro, em lugares, épocas e através de médiuns diversos.

Só mesmo o desejo de negar a evidência, ou de pelo menos confundi-la, pode levar os nossos homens de ciência e de letras a tais atitudes. Mas quem quiser, por cima dos informantes suspeitos, verificar o que de real se passa no terreno das informações espíritas sobre o outro lado da vida, por certo há de ver que elas coincidem tão bem como as impressões de vários viajantes sobre um mesmo país estrangeiro.

É pena que os defensores extremados do “milagre” do córtex cerebral não tenham compreendido que as suas teorias sobre a imortalidade da espécie e sobre um outro aspecto perceptivo da matéria são muito mais complicadas e altamente improváveis do que a tantas vezes comprovada imortalidade pessoal.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Cérebro e Espírito, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 1 de julho de 2016

| o grande enigma ~

as leis | universais ~

Repitamos: todas as obras científicas produzidas há meio século nos demonstram a existência e a acção das leis naturais. Essas leis estão ligadas por uma outra, superior, que as abrange inteiramente, regularizando-as e elevando-as à unidade, à ordem e à harmonia. É por essas leis, sábias e profundas, ordenadoras e organizadoras do Universo, que a Inteligência Suprema se revela.

Certos sábios objectam, na verdade, que as leis universais são cegas. Mas, de que forma leis cegas poderiam dirigir a marcha dos mundos no Espaço, regular todos os fenómenos, todas as manifestações da vida e, isso com precisão admirável? Se as leis são cegas, diremos, evidentemente, devem agir ao acaso. Mas o acaso é a falta de direcção é a ausência de toda inteligência actuante. É, pois, o acaso inconciliável com a noção de ordem e de harmonia.

A ideia da Lei parece-nos, portanto, inseparável da ideia da Inteligência, porque é obra de um pensamento. Somente ele pode dispor e ordenar todas as coisas no Universo. E o pensamento não pode produzir-se sem a existência de um ser que seja o seu gerador.

Não há lei possível fora e sem o concurso da inteligência e da vontade que a dirige. De outra forma, a lei seria cega, como opinam os materialistas; iria ao acaso, à mercê da corrente. Seria exactamente qual um homem que quisesse seguir certa estrada sem o auxilio da vista: cairia em qualquer fosso, depois de dar alguns passos. Assim é-nos permitido afirmar que uma lei cega não seria mais uma lei.

Acabámos de ver que as pesquisas da Ciência demonstram a existência das leis universais. Todos os dias essa ciência se adianta, não raro a contragosto, é verdade; mas, enfim, avança, pouco a pouco, para a grande unidade que entrevemos no fundo das coisas.

Não há, sem exceptuar mesmo os próprios positivistas e os materialistas, quem não seja arrastado por esse movimento de ideias. Se encaminham, sem disso se aperceberem, para a percepção grandiosa que reúne todas as forças, todas as leis do Universo. Com efeito, poder-se-ia provar que Auguste ComteLittré, o Dr. Robinet, toda a escola positivista, em suma, se entrega, a respeito desses assuntos, às mais flagrantes contradições. Rejeitam a ideia do absoluto, a de uma causa geradora e, proclamam e até provam que “a Matéria é a manifestação sensível de um princípio universal”. Na opinião deles, “todas as ciências se superpõem e acabam reunindo-se numa generalidade suprema que põe o selo na sua unidade”. Segundo Burnouf, “a Ciência está prestes a chegar a uma teoria, cuja fórmula geral confirmaria a unidade da substância, a invariabilidade da vida e a sua união indissolúvel com o pensamento”.

Ora, que vem a ser essa trilogia da substância, da vida, do pensamento, essa “generalidade suprema, essa lei universal, esse princípio único”, que preside a todos os fenómenos da Natureza, a todas as metamorfoses, a todos os actos da vida, a todas as inspirações do Espírito? Que é, pois, um centro no qual se resume e se confunde tudo – que é tudo que vive, tudo que pensa? Que é, senão o absoluto, senão o próprio Deus?! É verdade que se obstinam a recusar a inteligência e a consciência a esse absoluto, a essa causa suprema; mas ficará sempre por explicar de que modo uma causa inteligente – cega, inconsciente – pôde produzir todas as magnificências do Cosmos, todos os esplendores da inteligência, da luz, da vida, sem saber que o fazia. Como – sem consciência nem vontade, sem reflexão nem julgamento – pôde produzir seres que reflectem, querem, julgam, dotados de consciência e de razão?!

Tudo vem de Deus e remonta a Ele. Um fluido mais subtil que o éter emana do pensamento criador. Esse fluido muito quintessenciado para ser apreendido pela nossa compreensão, em consequência de combinações sucessivas, tornou-se o éter. Do éter saíram todas as formas graduadas da matéria e da vida. Chegadas ao ponto extremo da descida, à substância e à vida remontam ao ciclo imenso das evoluções.

Já o vimos, a ordem e a majestade do Universo não se revelam somente no movimento dos astros, na marcha dos mundos; revelam-se também, de modo imponente, na evolução e no desenvolvimento da vida na superfície desses mundos. Hoje, pode estabelecer-se que a vida se desenvolve, se transforma e se apura segundo um plano preconcebido; se aperfeiçoa à medida que percorre a sua órbita imensa. Começa a compreender-se que tudo está regulado com vista a um fim, e esse fim é a progressão do ser, é o crescimento contínuo e a realização de formas, sempre mais perfeitas, de beleza, de sabedoria, de moralidade.

Pode observar-se em torno de nós essa lei majestosa do progresso, através de todo o lento trabalho da Natureza; desde as formas inferiores, desde os infinitamente pequenos, os infusórios que flutuam nas águas, elevando-se, de grau em grau, na escala das espécies, até ao homem. instinto torna-se sensibilidadeinteligênciaconsciência, razão. Sabemos também que essa ascensão não pára aí. Graças aos ensinamentos do Além, aprendemos que prossegue, através dos mundos invisíveis, sob formas cada vez mais subtis, e prossegue, de potência em potência, de glória em glória, até ao Infinito, até Deus. E essa ascensão grandiosa da vida só se explica pela existência de uma causa inteligente, de uma energia incessante, que penetra e envolve toda a Natureza: é quem rege e estimula essa evolução colossal da vida para o Bem, para o Belo, para o Perfeito!

O mesmo acontece no domínio moral. As nossas existências sucedem-se e se desenrolam através dos séculos. Os acontecimentos acontecem sem que consigamos ver o laço que os liga. Mas a justiça imanente paira sobre todas as coisas: fixa a nossa sorte, segundo uma Lei, segundo um princípio infalível. Pensamento, palavras, acções, tudo se encadeia, tudo está ligado por uma série de causas e efeitos que formam a trama de nossos destinos. (*) Insistamos neste ponto: é graças à revelação dos Espíritos que a Lei de Justiça nos apareceu com esse carácter imponente, com as suas vastas consequências e o encadeamento prodigioso das coisas que domina e rege.

Quando estudamos o problema da vida futura, quando examinamos a situação do Espírito depois da morte – e é esse o objecto capital das pesquisas psíquicas –, encontramo-nos em presença de um facto considerável, pleno de consequências moraisVerifica-se um estado de coisas que é regulado por uma lei de equilíbrio e de harmonia.

Logo que a Alma transpõe a morte, desde que desperta no mundo dos Espíritos, o quadro de suas vidas passadas se desenrola, pouco a pouco, à sua vista. Ela se vê como que num espelho que reflecte fielmente todos os actos passados, para a acusar ou glorificar. Nada de distracção, nada de fuga possível. O Espírito é obrigado a contemplar-se, primeiramente, para se reconhecer ou para sofrer e, mais tarde, para se preparar. Daí, para a maior parte, o remorso, a vergonha e a amargura!

Os ensinamentos de Além-Túmulo fazem-nos saber que nada se perde, nem o bem, nem o mal; que tudo se inscreve, se repara, se resgata, por meio de outras existências terrestres, difíceis e dolorosas.

Aprendemos igualmente que nenhum esforço é perdido e que nenhum sofrimento é inútil. O dever não é palavra vã, e o Bem reina sem partilha acima de tudo. Cada um constrói dia a dia, hora a hora, muitas vezes sem o saber, o seu próprio futuro. A sorte que nos cabe na vida actual foi preparada pelas nossas acções anteriores; da mesma forma edificamos no presente as condições da existência futura. Daí, para o sábio a resignação ao que lhe é inevitável na vida presente; daí também, o estimulante poderoso para agir, devotar-se, preparando para si próprio um destino melhor.

Quantos conhecendo isso não se encherão de medo, pensando no que está reservado à sociedade actual, cujos pensamentos, tendências e actos são muitas vezes inspirados pelo egoísmo ou por paixões más; à sociedade actual, que acumula, assim, acima dela, sombrias nuvens fluídicas que trazem a tempestade ao seu dorso?

Como não estremecermos em presença de tantos desfalecimentos morais, diante de tantas corrupções ostensivas? Como não estremecer, verificando que o sentimento do bem encontra tão pouco lugar em certas consciências? Como não estremecer, enfim, ao constatar, no fundo de tantas Almas, o amor desenfreado pelos gozos, a cupidez ou o ódio?! E se sentimos isso, como hesitar na afirmativa, à face de todos, para fazer conhecida de toda essa Lei de justiça que os ensinamentos do Além nos mostram tão grande, tão importante; essa Lei que se executa por si mesma, sem tribunal e sem julgamento, mas à qual não escapa, no entanto, nenhum de nossos actos; Lei que nos revela uma Inteligência directora do mundo moral; Lei viva, razão consciente do Universo, fonte de toda a vida, de todas as leis, de toda a perfeição!

Eis o que é Deus. Quando essa ideia de Deus tiver penetrado no ensino e, daí, nos espíritos e nas consciências, compreender-se-á que o espírito de justiça não é mais do que o instrumento admirável pelo qual a causa suprema leva tudo à ordem e à harmonia e, sentir-se-á que essa ideia de Deus é indispensável às sociedades modernas, que se abatem e perecem moralmente, porque, não compreendendo Deus, não se podem regenerar. Então, todos os pensamentos e todas as consciências se voltarão para esse foco moral, para essa fonte de eterna justiça, que é Deus, e ver-se-á transformar a face do mundo.

A justiça não é somente de origem social, como a revolução de 1789 procurou estabelecer. Ela vem de mais alto: é de origem divina. Se os homens são iguais diante da lei humana é porque são iguais diante da Lei eterna.

E assim é porque saímos todos da mesma fonte de inteligência e de consciência; somos todos irmãos, solidários uns com os outros, unidos em nossos destinos imortais – porque a solidariedade e a fraternidade dos seres só são possíveis quando estes se sentem ligados a um mesmo centro comum.

Somos filhos de um mesmo Pai, porque a alma humana é emanação da Alma Divina, uma centelha do Pensamento Eterno.

Tudo nos fala de Deus, o visível e o invisível. A inteligência o discerne; a razão e a inteligência o proclamam.

Mas o homem não é somente razão e consciência: é também amor. O que caracteriza o ser humano, acima de tudo, é o sentimento, é o coração. O sentimento é privilégio da Alma; por ele a Alma se liga ao que é bom, belo e grande, a tudo que merece a sua confiança e pode ser sustentáculo na dúvida, consolação na desgraça. Ora, todos esses modos de sentir e de conceber nos revelam igualmente Deus, porque a bondade, a beleza e a verdade só se encontram no ser humano em estado parcial, limitado, incompleto. A bondade, a beleza e a verdade só podem existir sob a condição de encontrar o seu princípio, plenitude e origem em um ser que as possua no estado superior, no estado infinito.

ideia de Deus impõe-se por todas as faculdades do nosso Espírito, ao mesmo tempo que nos fala aos olhos por todos os esplendores do Universo. A Inteligência suprema revela-se a causa eterna, na qual todos os seres vêm haurir a força, a luz e a vida. Aí está o Espírito Divino, o Espírito Potente, que veneramos sob tantas denominações; mas, sob todos esses nomes, é sempre o centro, a lei viva, a razão pela qual os seres e os mundos se sentem viver, se conhecem, se renovam e se elevam.

Deus fala-nos por todas as vozes do Infinito. E fala não em uma Bíblia escrita há séculos, mas em uma bíblia que se escreve todos os dias, com esses característicos majestosos que se chamam oceanos, montanhas e astros do céu; por todas as harmonias, doces e graves, que sobem do imo da Terra ou descem dos espaços etéreos. Fala ainda no santuário do ser, nas horas de silêncio e de meditação. Quando os ruídos discordantes da vida material se calam, então a voz interior, a grande voz desperta e se faz ouvir. Essa voz sai das profundezas da consciência e fala-nos dos deveres, do progresso, da ascensão da criatura. Há em nós uma espécie de retiro íntimo, uma fonte profunda de onde podem jorrar ondas de vida, de amor, de virtude, de luz. Ali se manifesta esse reflexo, esse gérmen divino, escondido em toda a Alma humana.

Por isso a Alma humana constitui-se o mais belo testemunho que se eleva em favor da existência de Deus; é uma irradiação da Alma Divina. Contém, em estado de embrião, todas as potências e, o seu papel, o seu destino consiste em valorizá-las no decurso de inúmeras existências, em suas transmigrações através dos tempos e dos mundos.

O ser humano, dotado de razão, é responsável, é susceptível de conhecer-se e tem o dever de se governar. Como disse João Evangelista: “A razão humana é essa verdadeira luz que esclarece todo o homem que vem ao mundo.” (João, 1:9). A razão humana, dissemos, é uma centelha da Razão Divina.

É subindo à sua origem, é comunicando com a Razão Absoluta, Eterna, que a Alma humana descobre a Verdade e compreende a Ordem e a Lei universais. Assim, direi a todos: Homens, filhos da luz, ó meus irmãos! Lembremo-nos da nossa origem; lembremo-nos do fim, durante a viagem da vida! Desprendamo-nos das coisas que passam! Liguemo-nos às que permanecem!

Não há dois princípios no mundo: o Bem e o Mal. O Mal é o efeito de contraste, qual a noite o é do dia. Não tem existência própria. O Mal é o estado de inferioridade e de ignorância do ser a caminho da evolução. Os primeiros degraus da escada imensa representam o que se chama o mal; mas, à medida que o ser se eleva, realiza o bem em si e em torno de si; o mal vai-se atenuando e, depois desvanece. O mal é a ausência do bem. Afigura-se dominar ainda no nosso planeta, é porque este é um dos primeiros anéis da cadeia, morada de Almas elementares que se estreiam na rude senda do conhecimento, ou, então, de Almas culpadas, a caminho de reparação. Nos mundos mais adiantados, o Bem expande-se e, de degrau em degrau, acaba reinando sem partilha.

Bem é indefinível por si mesmo. Defini-lo seria minorá-lo. É preciso considerá-lo, não na sua natureza, mas nas suas manifestações.

Acima das essências, das formas e das ideias, paira o princípio do Belo e do Bem, o último termo que sou capaz de atingir pelo pensamento, sem o abranger, todavia. Reside na nossa pequenez a impossibilidade de apreender a existência última das coisas; mas, a sensibilidade, a inteligência e o conhecimento são outros tantos pontos de apoio, que permitem à Alma desprender-se do seu estado de inferioridade e de incerteza, e convencer-se de que tudo no Universo, as forças e os seres, tudo é regido pelo Bem e pelo Belo. A ordem e a majestade do mundo, ordem física e a ordem moral, a justiça, a liberdade, a moralidade, tudo repousa sobre leis eternas; não há leis eternas sem um Princípio superior, sem uma Razão primeira, causa de toda a Lei. Também o ser humano, tanto quanto a sociedade, não pode engrandecer-se e progredir sem a ideia de Deus, isto é, sem justiça, sem liberdade, sem respeito por si mesmo, sem amor; porque Deus, representando a perfeição, é a última palavra, a suprema garantia de tudo quanto constitui a beleza, a grandeza da vida, de tudo que faz a potência e a harmonia do Universo!

/…
(*) Vide Léon Denis, O Problema do Ser, do Destino e da Dor.


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, VI As leis universais, 17º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Victor Hugo e o invisível ~


Os dons mediúnicos e poéticos ~

  Nos arquivos ainda existentes do Círculo Intimo Lumen, que nasceu há cerca de meio século em Buenos Aires e numa cidade próxima, encontram-se alguns poemas mediúnicos de profundidade filosófica relacionados com a espiritualidade humana de todos os tempos. São poemas-mensagem com a finalidade: alertar os vivos a respeito do que realmente significa esse enigma que se chama morte. É uma poesia semelhante à clássica, mas na sua profundidade se percebem como que rumores de um mundo onde os mortos se transfiguram e passam a ser as verdades vivas do universo.

  O homem frente a esse novo tipo de poema aparece como um desterrado, um solitário ou um prisioneiro de um planeta rude e hostil. Mas esta poesia, este poema-mensagem que saiu espontaneamente da escrita do poeta-médium tem o propósito de tirar o homem dos farrapos de sua sabedoria assente sobre a morte e o nada. O que nos quer oferecer este novo lirismo poético que rapidamente se generaliza pelo mundo? Supomos que quer despertar na carne e no nosso espírito dons mediúnicos e poéticos para nos ajudar a estar aqui existencialmente vivos, já que o demónio da derrota quer matar-nos no não-ser e na desesperança.

  Estes dons espirituais serão salvadores para o espírito humano. Se eles surgem para iludir as trevas do sepulcro, serão como asas que permitirão às nossas existências elevar-se acima do túmulo e entrar em relação com o que críamos mortos para sempre, mas que agora vêm como estrelas fixar-se, risonhas e cintilantes, nos céus de cada alma reencarnada.

  Se esses dons mediúnicos e poéticos servem para salvar-nos do nada, se aparecem com a sagrada finalidade de tornar-nos mais aptos a atravessar este chão sem Deus e sem Amor, sejam bem-vindos. Não devemos ver neles deuses maus nem demónios traidores, nem tão pouco larvas nem entes loucos. Vejamos neles um sinal do eterno, do realmente espiritual que há no homem durante toda a sua vida e a forma que tem o que existe à nossa volta.

  Daqueles velhos arquivos escolhemos estes poemas intitulados Declaración Ultracorporal, que dizem o seguinte:

Vengo de un azur divino,
vengo de un reino sin muerte.
La resurreicción me alza de la tumba
con estas alas celestes.
?Quién soy? ?Qué voz és la mía?
Soy un ala de la eternidad.
Vengo del corazón azul de la Poesía.
Sólo digo la verdad.

  E o poeta transfigurado pela vida espiritual prossegue:

?Que estoy muerto? ?Que soy oscura tierra?
?Que la muerte es silencio y sombra?
No, terrestre viajero: el ataúd no encierra
este espíritu que te nombra.
Oid cómo vuelo por el azul espacio
entre resplandores de topado.

  Noutro poema mediúnico se lê:

Sonora corneta del aire
traigo.
Despierta carne cansada
de tu sueiio largo.
Oid esta vez cómo los muertos
vienen como hermanos.
La muerte no acaba con ninguno,
no es licor amargo.
La muerte es un ser de luz,
es un dulce milagro.
Si crees que los muertos no cantan,
escucha mis cantos.
Yo era para la tierra un muerto,
ahora soy un pájaro.

  Neste poema, uma visão optimista e triunfal nos sugere o poeta invisível:

Miseria de huesos rotos,
de cenizas frías
eran los hombres invisibles
que al abismo caían.
Todo era aliento de sepulcro,
todo horrible podredumbre
con gusanos sorbiendo la carne,
con honduras sin luces.
Ahora somos resurrecciones,
somos rumores con mensajes:
los muertos de ayer somos campanas,
los muertos vestimos otros trajes.
Oh, amigo medita,
ya la muerte no es zona prohibida.

  Um poema cujo conteúdo nos obriga a pensar em Esteban Echeverría, surpreende-nos com estes conceitos:

Soy la brisa de ayer, la del Plata,
soy la voz dei progreso.
Mi manifesto es de resurrecciones,
soy el dogma de lo bello.
Busco un nuevo Mayo,
pregono otra revolución:
los tiranos caen siempre;
sólo se eleva lá Canción.
El Poeta es sonoro puente
para escuchar la voz de Dios.
!Arriba Argentina!, esta lira
suena de nuevo para vos.
El Dogma ahora es la luz
la Doctrina la revelación,
el Camino seguro la Cruz,
la Ley la evolución,
lo más bello una flor,
lo más potente el amor.

  Pois bem, se estes poemas brotaram do subconsciente do médium, se não foi um espírito que se expressou através dos dons mediúnicos e poéticos, do mesmo modo possuem um valor literário subjectivo; de igual maneira nos obrigam a meditar no que pode produzir o subconsciente humano; mas neles se eleva um Eu, um ser, uma pessoa que se dirige à nossa condição de espíritos encarnados para iluminar-nos. São poemas personalizados, que querem falar-nos de coisas transcendentais. Mostram-se com um Espírito vivo e comunicante, dando-nos a impressão de já ter passado pela experiência da morte e que agora quer referir-se mediunicamente a essa suprema experiência para ampliar os nossos horizontes espirituais e mentais.

  É pois um poema que pode provir das profundidades do subconsciente do espírito tanto encarnado quanto desencarnado e, notável coincidência, se apresenta como a repetição do que aconteceu durante o desterro de Victor Hugo na ilha de Jersey. Porque se o nosso desterro não possui características políticas, possui por outro lado uma imagem existencial de desterro planetário, que só pelo que mediunicamente sabemos, podemos suportar. Não foi em vão que o poeta espírita espanhol Salvador Sellés exclamou: "A nostalgia do céu me consome!"

  E estes dons psíquicos que surgem do homem como faculdades salvadoras nos falam do vento, de um vento que varre e limpa os nossos sepulcros corporais:

Mi viento es soplo armonioso
que derriba sistemas de sombra;
mi viento es fuego que quema
las lágrimas de los que lloran.
Soy viento inmortal: escuchadme.
En las tumbas no caben mis alas.
Soy el viento que !lama y escribe
este canto que salva.
Soy viento que sopla barriendo
polvorientos esqueletos.
Soy el viento que vence a la muerte,
soy siempre el Viento.

  León Felipe, que no seu poema ''El Salto'' canta a reencarnação, disse que o vento é um deus invisível, um ser vivo e transparente que dá música de eternidade à poesia. Que este vento do Espírito e dos Espíritos tão querido a Victor Hugo sopre sobre as nossas angústias existenciais e ajude as nossas asas a elevar-nos na imensidade sempre sonora, sempre viva, sempre azul. E que Deus nos fale cada vez mais por estes dons poéticos e mediúnicos para ressuscitar-nos continuamente desta morte espiritual de todos os momentos.

Síntese

  É lamentável que nas esferas literárias não se leve em conta esta quarta dimensão da literatura que nos descobre a mediunidade. Aceitaram-se as orientações estéticas do surrealismo, mas como um fenómeno ligado ao subconsciente caótico e de raízes fisiológicas. Sem dúvida, o autêntico fenómeno surrealista é uma introdução ao mundo invisível, ou seja, uma vinculação com o Ser que a morte não poderá destruir jamais. O surrealismo é um movimento psíquico cujas bases espirituais se encontram no mediunismo. Isto nos obriga a pensar que a beleza não está morta, mas que a sua reaparição se fará quando for reconhecido na criação literária que no Ser encarnado do escritor podem penetrar influências de entidades desencarnadas. Porque, à luz do Cristianismo e do Espiritismo os grandes génios da literatura mundial não são absorvidos pelo nada. Não caíram para perder-se definitivamente nas cegas evoluções da matéria.

  A Beleza, porém, não pode morrer. As chamadas a favor do triunfo da arte sobre o quotidiano, lançadas por Ortega y Gasset, respondem a esse anseio espiritual de imortalidade que se agita no espírito do génio. As grandes obras poéticas e literárias são uma prova em prol do sentido transcendental que possui o destino humano. A nova literatura será uma defesa da alma contra as terríveis metas do materialismo. Se tudo é morte e nada, que valor moral possui a obra literária de um Victor HugoTolstóiDostoyevskiDanteGoethe? Por que cantam tão admiravelmente WhitmanNeruda, Lugonen, BorgesBécquer?

  A Beleza não pode ter origem num homem destinado à morte e ao nada. A beleza provém do espírito fecundo e imortal, desse infinito onde se encontra instalado o verdadeiro homem. A poesia de agora em diante será escatológica e soteriológica. Relacionará o Ser com o eterno e o salvará desse verdadeiro perigo existencial que é o nada.

  Se Miguel de Unamuno gritou tanto como pensador e poeta, reclamando a imortalidade da alma, isso nos indica que o génio não se resigna a extinguir-se na noite dos túmulos. Não foi em vão que Unamuno formulou estas perguntas:"Por que quero saber de onde venho, onde vou, de onde vem e onde vai o que nos rodeia, e o que significa tudo isso? Por que não quero morrer de todo e quero saber se haverei de morrer ou não definitivamente?

/…


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Os dons mediúnicos e poéticos, Síntese, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

segunda-feira, 6 de junho de 2016

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VIII

Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (IV)

   Todas as grandes correntes do pensamento antigo, filosófico e religioso, relativos aos altos destinos da alma, após vicissitudes seculares, se renovam, se sintetizam e se fundem no espiritualismo moderno sob a forma de lei de evolução pelas vidas renascentes.

   Todas as grandes religiões do oriente, inclusive o Cristianismo esotérico, a filosofia de Platão e os princípios da escola de Alexandria, nele se encontram para ali reunir a tradição sagrada do ocidente, incluindo as dos nossos antepassados, os celtas.

   Uma grande obra se realiza acima das nossas cabeças, cuja importância não podemos calcular, mas cujos efeitos se vão repercutir no decorrer dos séculos. Essa obra de síntese que representa a fé elevada a, fé superior da humanidade em marcha, que não se podia realizar no seio das religiões actuais, mas somente fora delas e através da ciência.

   O Catolicismo perdeu de vista a sua missão salvadora e regeneradora. Por interpretações ilusórias, ele desnaturou a doutrina pura do Cristo, sobretudo no que se refere ao futuro do homem e da justiça de Deus. É, entretanto, entre os seus adeptos que se difunde mais facilmente a noção de pluralidade das existências. Já se verificou que o purgatório, bem mal definido pela Igreja, poderia muito bem se conciliar com o resgate das faltas do passado por meio das vidas de provas.

   O Protestantismo, por seu lado, suprimindo a noção de purgatório, tinha fechado toda a saída para o princípio das vidas renascentes.

   Não é uma coisa dolorosa, pavorosa mesmo, sob certos pontos de vista, a constatação de que, após tantos séculos de civilização, a incerteza ainda pese sobre o problema do destino humano?

   A luz que brilhou, desde os primeiros tempos de nossa história, tinha-se esvaecido. Parecia que o homem, afastando-se da natureza e das suas origens, ia penetrar na noite. É somente hoje, graças ao trabalho de alguns pensadores ardentes, que os primeiros lampejos de uma nova aurora vêm roçar a alma céltica adormecida.

   Para todos aqueles que consideraram a variedade e a desigualdade das condições humanas, quer do ponto de vista das diferenças de raças, de culturas, de civilização, quer no que se refere à duração da existência, o enigma da vida ficava indecifrável, mas eis que, pela sucessão das existências da alma, tudo se encadeia e se harmoniza numa lógica rigorosa.

   O terrível problema da dor também aí encontra a sua solução e, se explica melhor, que certas pessoas conheçam o sofrimento desde o berço e o suportem até ao túmulo.

   Todas essas vidas obscuras, atormentadas, dolorosas, são cadinhos onde a alma se desfaz de suas impurezas, onde o fel se consome, onde as paixões do mal, por uma alquimia divina, se transformam pouco a pouco em paixões do bem.

   Sem dúvida, o progresso nem sempre é sensível e, a alma frequentemente se revolta perante o sofrimento, mas quando o tempo da provação tenha passado, constata-se que ela não foi estéril e que a alma beneficiou com isso.

   E, do mesmo modo, o problema do mal, que, no seu conjunto, é um dos aspectos da mesma questão. Esse problema, que provocou tantas discussões estéreis, foi facilmente resolvido pelos druidas: Deus dá ao homem uma parte de liberdade proporcional ao seu grau de evolução e, a liberdade humana gerou o mal. A primeira Tríade enuncia entre as três unidades primitivas “o ponto de liberdade onde se equilibram todas as oposições”.

   Deus não teria podido suprimir o mal sem suprimir a liberdade, o que teria falseado inteiramente a lei de evolução e, com ela o princípio vital, a própria razão do Universo. O livre-arbítrio somente assegura o livre jogo da iniciativa, da vontade de onde decorrem os méritos necessários para adquirir os bens espirituais, alvo supremo da evolução. O ser humano deve adquirir, por seus esforços, no correr dos tempos, a sabedoria, a ciência, o talento e, por eles, a felicidade, a ventura, isto é, tudo que leva à grandeza e à beleza da vida, pois não se aprecia realmente, não se gosta senão do que se adquire por si mesmo.

   Se o mal parece dominar sobre a Terra, é que ela ainda forma um grau inferior na escala dos mundos, por serem a maioria dos seus habitantes espíritos jovens, ainda ignorantes, inclinados às paixões. Mas, à medida que se evolui na grande escala cósmica, o mal diminui pouco a pouco, depois se dissipa e, o bem realiza-se em virtude da lei geral de evolução.

   Nós vamos expor essa lei, as suas regras e a sua finalidade por meio das Tríades, sob sua forma concisa, na parte que se refere ao “Abred”, o círculo das transmigrações e, ao “Gwynfyd”, o círculo das vidas celestes. As Tríades de 1 a 14, reproduzidas no capítulo VII e, as que se seguem, de 15 a 45, formam o complemento. (i)

   As Tríades que faltam figuram dos pontos essenciais desta obra, onde elas encontram a sua aplicação.

“Abred”:

15 – Três espécies de necessidades no “Abred”: a menor de toda a vida e, daí o começo; a substância de cada coisa e, daí o crescimento, que não pode operar-se em outro estado; a formação de cada coisa da morte e, daí a debilidade da vida.

16 – Três coisas que não se podem executar a não ser pela justiça de Deus: todo o sofrer em “Abred”, porque sem isso não se pode adquirir uma ciência completa de alguma coisa; obter uma parte do amor de Deus; ser bem-sucedido, pelo poder de Deus, no cumprimento do que é mais justo e misericordioso.

17 – Três causas principais da necessidade de “Abred”: recolher a substância de toda a coisa; recolher o conhecimento de toda a coisa; recolher a força moral para triunfar de toda a adversidade e do princípio de destruição e para se privar do mal. E sem elas, no trajecto de cada estado de vida, não há nem vida, nem forma que possa alcançar a plenitude.

20 – Três necessidades de “Abred”: o desregramento, pois não pode ser de outro modo; a libertação pela morte, ante o mal e a corrupção; o acréscimo da vida e do bem, pelo despojamento do mal, libertando-se da morte. E tudo isso pelo amor de Deus concernente a toda a coisa.

21 – Três meios de Deus no “Abred” para triunfar do mal e do princípio de destruição, escapando-se ante eles no “Gwynfyd”: a necessidade, o esquecimento, a morte.

22 – Três primeiras coisas, simultaneamente criadas: o homem, a liberdade, a luz.

23 – Três necessidades do homem: sofrer, renovar-se (progredir), escolher. E, pelo poder que esta última dá, não se pode conhecer as duas outras antes do seu vencimento.

24 – Três alternativas do homem: “Abred” e “Gwynfyd”, necessidade e liberdade, mal e bem; todas as coisas estando em equilíbrio e o homem tendo o poder de se ligar a um ou a outro, segundo a sua vontade.

26 – Por três coisas se cai no “Abred”, necessariamente, se bem que, por outro lado, se esteja ligado ao que é bom: pelo orgulho ao longo do “Annoufn”; pela falsidade, ao longo do “Gabien”; pela crueldade, ao longo do “Kenmil” e, se retorna de novo à humanidade, como antes.

27 – Três causas justificativas do estado de humanidade: adquirir inicialmente a ciência, o amor e a força moral, antes que a morte surja. E não se pode fazê-lo a não ser pela liberdade e pela escolha, não antes, pois, do estado de humanidade. Essas três coisas são chamadas as três vitórias.

28 – Três vitórias sobre o mal e sobre o espírito mau: ciência, amor, poder; porque a verdade, a vontade e a potência realizam, pela união de sua força, tudo o que elas desejam, elas começam no estado da humanidade e perduram para sempre.

29 – Três privilégios do estado de humanidade: o equilíbrio do mal e do bem, e daí a comparação; a liberdade de escolha e, daí o julgamento e a preferência; o começo do poder que deriva do julgamento e da escolha e, eles são necessários antes de cumprir seja o que for.

“Gwynfyd”:

30 – Três diferenças necessárias entre o homem, qualquer outra criatura e Deus: o limite do homem, que não saberia encontrar Deus; o começo do homem, que não saberia encontrar Deus; as renovações (progresso) necessárias do homem no círculo de “Gwynfyd”, visto que ele não pode suportar a eternidade do “Ceugant”, enquanto que Deus suporta todo o estado com felicidade.

31 – Três formas supremas do estado de “Gwynfyd”: sem mal, sem necessidade, sem fim.

32 – Três restituições do círculo de “Gwynfyd”: o génio primitivo; o amor primitivo; a memória primitiva, pois que sem isso não há felicidade.

33 – Três diferenças entre todo o vivente e os outros viventes: o génio, a memória, o conhecimento, isto é, que todos os três sejam plenos em cada um e não podem ser comuns com um outro vivente, cada um na sua medida e, não pode haver duas plenitudes em nenhuma coisa.

34 – Três dons de Deus a todo o vivente: a plenitude de sua raça; a consciência de sua humanidade; o desprendimento do seu génio primitivo em relação a todo o outro e, é daí que cada um difere dos demais.

35 – Pela compreensão de três coisas diminui-se o mal e a morte e, triunfa-se: de sua natureza; de sua causa; de sua acção. E elas se encontram no “Gwynfyd”.

36 – Três fundamentos da ciência: a renovação da passagem de cada estado de vida; a lembrança de cada transmigração e de seus incidentes; o poder de atravessar cada estado de vida, para experiência e julgamento e, isto se acha no círculo de “Gwynfyd”.

37 – Três distinções de todo o vivente no círculo de “Gwynfyd”: a inclinação (ou vocação); a possessão (ou privilégio) e o génio; dois viventes não podem ser primitivamente semelhantes em nada, porque cada um está pleno do que o distingue e nada está pleno sem que esteja na sua inteira medida.

38 – Três coisas impossíveis, excepto para Deus: suportar a eternidade do “Ceugant”; participar sob toda a condição sem se renovar; melhorar e renovar toda a coisa sem fazê-lo com perdas (às suas custas).

39 – Três coisas que jamais desaparecerão por causa da necessidade de sua potência: a forma do ser; a substância do ser; o valor do ser, pois, pela libertação do mal, elas existirão eternamente, sejam vivas, sejam inanimadas, nos diversos estados do belo e do bem no círculo de “Gwynfyd”.

40 – Três bens supremos que resultam das renovações da condição humana no “Gwynfyd”: a instrução; a beleza; o repouso, por sua inaptidão de suportar o “Ceugant” e a sua eternidade.

41 – Três coisas em crescimento: o fogo ou a luz; a inteligência (ou a consciência) ou a verdade; a alma ou a vida. Elas triunfam sobre tudo e daí o fim do “Abred”.

42 – Três coisas em decrescimento: a obscuridade; a mentira; a morte.

43 – Três coisas se reforçam dia a dia, visto que a maior soma de esforços vai, sem cessar, em direcção delas: o amor; a ciência; a plena justiça.

44 – Três coisas se enfraquecem cada dia, porque a maior soma de esforços vai contra elas: o ódio; a deslealdade; a ignorância.

45 – Três plenitudes da felicidade do “Gwynfyd”: participar de toda a qualidade com uma perfeição principal; possuir toda a espécie de génio com um génio preeminente; abraçar todos os seres com um mesmo amor e com um amor de primeira qualidade, conhecer o amor de Deus e, é nisso que consiste a plenitude do céu e do “Gwynfyd”. (ii)

   Observa-se que estas Tríades, por sua forma concisa e o seu sentido profundo, constituem uma obra original e poderosa, que não pode ser considerada como invenção de pensadores isolados, mas antes como a expressão sintética do génio de uma raça inteira. Elas se religam a verdades de ordem eterna e, talvez fosse preciso a incubação de séculos para se compreender todo o seu alcance. Elas surgiram da sombra, numa hora histórica em que o ideal se enfraquece, para restituir ao nosso país a sua fé em si mesmo, a confiança no seu destino e, tornar-se assim o instrumento de uma civilização mais elevada, mais nobre e mais digna.

/…
(i) Compare com a Revue Spirite, Abril de 1858, Edicel, 1ª edição. (N.T.)
(ii) Tradução do gaélico, por Llevelyn Sion.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo VIII Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (4 de 5) 27º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sábado, 28 de maio de 2016

o grande desconhecido ~


amor e família em novos tempos |

Ninguém colocou melhor o problema da família do que Allan Kardec, pois não se apoiou apenas na pesquisa das aparências formais, mas penetrou na substância da questão, no plano das causas determinantes. Por isso nos oferece um esquema tríplice das formações da família do nosso tempo, a saber:

a) a família carnal, formada a partir dos clãs primitivos, evoluindo nas miscigenações raciais, através de inumeráveis conflitos ao longo das civilizações progressivas, na fermentação dialéctica do amor e do ódio. Os grupos assim formados subdividem-se, nas reencarnações progressivas, em inumeráveis subgrupos, que também crescerão e se subdividirão na temporalidade, ou seja, na imensa esteira do tempo, que, segundo Heideggeracolhe o espírito. São essas as famílias consanguíneas, que se desfazem com a morte.

b) a família mista, carnal e espiritual, em que os conflitos do amor e do ódio entram em processo de solução, nos reajustamentos das lutas e experiências comuns, definindo-se e ampliando-se as afinidades espirituais entre diversos grupos, absorvendo elementos de outras famílias, nas coordenadas da evolução colectiva. O condicionamento da família, nas relações endógenas e necessárias da vivência em comum, quebra a pouco e pouco as arestas do ódio e das antipatias, restabelecendo na medida do possível as relações simpáticas que se ampliarão no futuro. A desagregação provocada pela morte permitirá reajustes mais eficazes nas sucessivas reencarnações dos grupos.

c) a família espiritual, resultante de todos esses processos reencarnatórios, que aglutinará os espíritos afins no plano espiritual, nas comunidades dos espíritos superiores que se dedicam ao trabalho de assistência e orientação aos dois tipos de família anteriores, mesclando-as de elementos que nelas se reencarnam para modificá-las com o seu exemplo de amor e dedicação ao próximo. Essa família não perece, não se desfaz com a morte, crescendo constantemente para a formação de Humanidades Superiores. É fácil, usando-se as medidas da Escala Espírita em O Livro dos Espíritos, identificar nas famílias terrenas a presença de vários tipos descritos na referida escala, percebendo-se claramente as funções que exercem no processo evolutivo em família.

A concepção espírita da família, como se vê, é muito mais complexa e de importância muito maior que a das religiões cristãs, que conferem eternidade e inviolabilidade ao sacramento do matrimónio, mas não podem impedir que, na morte, o marido vá parar às garras do Diabo, a esposa estagiar no Purgatório e os filhos inocentes curtir a sua orfandade nos jardins do céu. A concepção jurídica e terrena da família não vai além dos interesses materiais de uma existência. O mesmo se dá com a concepção sociológica, que faz da família a base da sociedade, ambas perecíveis e transitórias. As pessoas que acusam o Espiritismo de aniquilar a família através da reencarnação revelam a mais completa ignorância da Doutrina ou o fazem por má-fé, na defesa de interesses religiosos-sectários.

A família nasce do amor e dele se alimenta. Não é apenas a base da sociedade, mas de toda a Humanidade. É na família que as gerações se encontram, transmitindo as suas experiências de uma para a outra. Combater a instituição da família, negar a sua necessidade e a sua eficácia no desenvolvimento dos povos e dos mundos é revelar miopia ou cegueira espiritual, na cultura ou desequilíbrio mental e psíquico, falta de ajustamento à realidade, esquizofrenia não raro catatónicaIsso é evidente no estado de alienação em que essa atitude se manifesta, em pessoas amargas ,ressentidas ou extremamente pretensiosas, que desejam mostrar-se originais. Em geral, são criaturas carentes de afectividade. Quando se desligam da família natural ligam-se a grupos de criaturas afins, engajam-se noutras famílias ou tornam-se misantropas destinadas à neurastenia ou à loucura. O instinto gregário da espécie é uma exigência da evolução humana, a que ninguém pode furtar-se sem pagar pelo seu egoísmo.

Os ideólogos da solidão individual esquecem-se de que todas as tentativas nesse sentido fracassaram ao longo da História. Esparta morreu de inanição por falta de relações da família, enquanto Atenas cresceu e se projectou num futuro glorioso, pela solidez de seu sistema da família. Roma caiu nas mãos dos bárbaros quando as suas famílias se entregaram à degeneração. Os próprios nómadas jamais dispensaram o seu sistema de famílias ambulantes. Anarquistas e socialistas delirantes, que sonhavam com sociedades anti-sociais, formadas de indivíduos avulso e dotadas de grandes depósitos de crianças avulsas – os filhos do Estado – morreram protegidos pelo carinho dos familiares. Robinson Crusoe é a imagem do homem arrebatado ao seu meio, sem perspectivas. Sartre, que rompeu com a tradição da família e demonstrou os inconvenientes da convivência, fazendo uma tentativa de misantropia estóica, nunca dispensou a companhia de Simone de Beauvoir e o cosmopolitismo parisiense, formulou o célebre veredicto: Os outros são o inferno, mas jamais os dispensou. Escrevia no Café de Fiori e quando visitou a URSS exigiu a inclusão no programa oficial de horas de solidão absoluta, mas nessas horas se ralava inquieto, segundo o testemunho de Simone. O homem é relação e a família é o meio de relação em que ele absorve a seiva humana que o faz homem.

Não há interesse maior para a criatura humana no mundo que o seu semelhante, porque é nele que nos realizamos.

Uma paisagem solitária é um motivo edénico de contemplação, e quando alguém aparece, como Sartre observou, imediatamente nos tira a liberdade e nos transforma em objecto. Mas o próprio acto de objectivar-nos permite-nos recuperar a nossa subjectividade dispersada na paisagem. Essa dinâmica de projecção e retroacção revela ao mesmo tempo a natureza dialéctica do ser, estável no somático e instável na psique. Dessa dialéctica resulta a síntese total da consciência estética, em que o real objectivo e o irreal subjectivo se fundem na percepção estética do amor.

Por isso, no Espiritismo o amor não é instinto (necessidade orgânica) nem desejo ou simples fazer sexual (sensorialidade) mas a aspiração suprema de beleza e espiritualidade nas perspectivas da transcendência. A superação de objectivo e subjectivo se resolve na globalidade do Amor. Por isso o Apóstolo João, no seu Evangelho, define o Ser Supremo na conhecida frase: Deus é Amor. As definições da Filosofia como Amor da Sabedoria (Pitágoras) e Sabedoria do Amor (Platão) revelam a intuição, já na Antiguidade, dessa total globalidade do Amor que o Espiritismo viria a explicar mais tarde. O desenvolvimento dessa globalidade processa-se na família, em que a afectividade desabrocha para a posterior floração do Amor no processo existencial. As famílias a e b da teoria kardeciana, que explicitamos no nosso esquema, preparam o ser, projectado na existência, para a odisseia das almas viajoras de Plotino, que vão subir e descer pela escada de Jacob nas reencarnações sucessivas, em busca do arquétipo da família e, em que as famílias desse padrão superior se integrarão progressivamente no plano divino das humanidades espirituais que constituirão no Infinito a Humanidade Cósmica. Essa a razão por que René Hubert, filósofo e pedagogo francês contemporâneo, sustenta que os fins da Educação consistem no estabelecimento, na Terra, da República dos Espíritos, através da Solidariedade de consciências.

A Educação em Família é o germe afectivo e puro de que decorre todo o processo educacional do homem. Com o amparo da família, na solidariedade doméstica do lar, por mais obscuro e humilde, é que se realiza a fotossíntese inicial da atmosfera de solidariedade e amor das gerações que modelam o futuro. Cabe aos espíritas implantar na Terra uma nova Educação, com base nos dados da pesquisa espírita e segundo o esquema da Pedagogia Espírita. Essa Pedagogia, iniciada por Hubert (que não é espírita) fundamenta-se nos princípios doutrinários do Espiritismo e destina-se a preparar as novas gerações para a Era Cósmica que se aproxima. Os professores espíritas de todos os graus do ensino têm um dever supremo a cumprir, nesta fase de transição do nosso planeta: procurar compreender os princípios educacionais do Espiritismo e trabalhar pelo desenvolvimento da Educação Espírita.

Estamos a entrar na Era Cósmica, numa sequência natural do desenvolvimento da Era Tecnológica, tudo se encadeia no Universo, como assinala O Livro dos Espíritos. Com o avanço científico e técnico dos últimos séculos, e particularmente do nosso, a Terra amadureceu para a conquista do espaço sideral. O impacto dos nossos primeiros contactos com outros mundos já produziu profundas modificações, de que ainda não demos conta, em mundividência. As pesquisas espaciais continuam, ampliando a nossa visão da realidade cósmica. Uma nova civilização está a surgir aos nossos olhos, debaixo dos nossos pés e sobre as nossas cabeças. Mas para que isso aconteça, sem perdermos de todo o equilíbrio cultural, já bastante abalado, temos de cuidar seriamente da renovação dos nossos instrumentos culturais básicos, a saber:

a) a Economia, que deve tornar-se universal, rompendo os diques e as barreiras de um mundo pulverizado, para lhe dar a unidade necessária e a flexibilidade possível para o atendimento dos povos e de suas camadas diversificadas, afastando do planeta os privilégios e os desperdícios, a penúria e a fome. A civilização humana e perfeita, ensina O Livro dos Espíritos, é aquela em que ninguém morre de fome. A duras penas, a nova mentalidade económica já está definindo-se em todas as nações civilizadas, mas o egoísmo das camadas privilegiadas ainda impede a compreensão das exigências de fraternidade e humanismo dos novos tempos.

b) a Moral, que tem de romper os seus padrões envelhecidos de egoísmo e sociocentrismo, moldados em preconceitos de vaidadeambição e prepotência, para elevar-se a novos padrões de humanismo, respeito por todos os direitos humanos, até hoje sempre espezinhados na Terra dos Homens, essa expressão de Saint-Exupéry que é um novo chamado à nossa consciência em termos evangélicos. Altruísmo – interesse pelos outros humildade, fraternidade, tolerância e compreensão, amor, são essas as novas palavras de uma moral realmente cristã. A violência terá de ser expulsa da Terra dos Homens, com o seu cortejo de brutalidadesÉ necessário que o conceito de não-violência se transforme na marca do homem, no signo que o distingue do bruto, do primata inconsciente. A honra e a dignidade humanas são incompatíveis com a estupidez dos broncos, inadmissíveis num sistema de civilização. Como adverte Fredric Wertham, a violência é um cancro social, que corrói e destrói toda a estrutura de uma civilização. O homem verdadeiramente homem deve ter vergonha e horror da violência. Ser violento é ser amoral, pois quem não respeita os outros não respeita a si mesmo.

c) a Educação, que tem de renovar os seus conceitos básicos sobre o seu objecto, o educando. Em primeiro lugar a educação em família, que deve basear-se na afectividade, nas relações de amor e compreensão entre pais e filhos. Educação com violência é domesticação. O mundo da criança não é o mesmo do adulto e este tem de descer a esse mundo, voltar à sua própria infância para não esmagar a infância dos filhos. As pesquisas entre os povos selvagens mostraram que a essência da educação é o amorSem amor não se educa, deforma-se. Nos povos selvagens a educação não foi deformada pela ideia do pecado, pelo mito da queda do homem, que envolvera o mundo de violências redentoras capazes de aterrorizar um brutamontes, quanto mais uma criança. Kardec ensina que a criança, embora tenha o seu passado em geral lamentável, nasce vestida com a roupagem da inocência para tocar ocoração dos pais e despertar-lhes o amor e a ternura, de que ela necessita para o desenvolvimento das suas potencialidades humanasSe fazemos o contrário, despertamos na criança o seu passado de erros e depois a condenamos pelos seus instintos. Essa tese kardeciana é hoje dominante nos meios pedagógicos. Como dizia Gandhi, não se pode levar uma criatura ao bem pelos caminhos do mal. Os povos selvagens são mais civilizados que os povos civilizados, no tocante a esse problema, pois intuem com pureza e ingenuidade o verdadeiro sentido da educação. Educar é um acto de amor, diz Kerschensteiner nos nossos dias, endossando o pensamento de todos os grandes pedagogos e educadores da Grécia antiga e do mundo moderno, a partir de Rousseau.

Mas a Educação Espírita tem ainda uma função essencial a desenvolver: o desenvolvimento das faculdades paranormais do educando, preparando-o para as actividades cósmicas da nova era. O Espiritismo foi o revelador dessas faculdades humanas que o passado confundiu com manifestações doentias ou sobrenaturais. O Espiritismo foi a primeira Ciência a mostrar experimentalmente esse engano fatal, de que resultou para a Humanidade terríveis tragédias. Cento e trinta anos antes das descobertas parapsicológicas nesse sentido, a Ciência Espírita demonstrou que as funções anímicas e psico-anímicas da criatura humana eram normais, pertenciam à própria natureza do homem. As pesquisas actuais no Cosmos revelaram que o desenvolvimento das faculdades psi é indispensável ao bom êxito das incursões no espaço sideral. A Educação Espírita é a única que pode enfrentar essas exigências dos novos tempos, cuidando do desenvolvimento dessas faculdades de maneira racional, sem os prejuízos dos falsos conceitos e dos temores infundados das formas de educação religiosas e leigas do nosso tempo.

Cabe assim ao Espiritismo renovar totalmente a cultura actual, reestruturar a Civilização Tecnológica nos rumos da Civilização do Espírito. Esse o fardo leve do Cristo que pesa sobre a consciência de todos os espíritas verdadeiros, nesta hora do mundo, e particularmente sobre a consciência dos educadores espíritas. Nessa civilização o amor não será fonte de decepções, desajustes e tragédias. A Família não se estruturará em preconceitos provindos dos tempos de barbárie, mas na moral evangélica pura, feita de amor e respeito pelas exigências da vida. O amor verdadeiro e espontâneo, puro como água da fonte, livre de interesses secundários, fará da família a fonte de amor que elevará a Terra na Escala dos Mundos. Isto não é sonho nem profecia, é o programa espírita para o Mundo de Amanhã, e que cabe aos espíritas realizar a partir de hoje, sem perda de tempo.

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 5 Amor e Família em Novos Tempos, 6º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

terça-feira, 17 de maio de 2016

~~~Párias em Redenção~~~


SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA ~
(II)

  Casquinada aparvalhante explodiu no perseguidor e Girólamo despertou de súbito, atónito, saindo a correr, cambaleante pelas forças debilitadas, até ao leito, no qual se arrojou, amolentado.

  As lutas do enfermo prosseguiram em ritmo de dor, embora o desvelo da esposa e dos servos. Paulatinamente diminuíram as agressões obsidentes e, transcorrido um mês, voltara-lhe a cor da face e as melhoras pareciam prenunciar a cura total.

  Interiormente, porém, o moço experimentava crescente pavor. Os movimentos inusitados surpreendiam-no dolorosamente e qualquer intromissão não anunciada fazia-o explodir de ira. Percebia-se-lhe o desgoverno dos nervos. Acordava a gritar, debatendo-se, agónico, com muita constância. Todos lhe notavam o carácter mau – dado que, anteriormente, escondia os sentimentos na polidez –, revelando-se insuportável amo e péssima companhia. Inutilmente, Beatriz o cercava de carinhos. Repelia-a muitas vezes, fazendo-a receá-lo.

  As atitudes desencontradas e que ele dava mostras intimidavam-na. Não poucas vezes, envolvido pela lubricidade, era fascinante e sabia conquistá-la; todavia, no interlúdio, fazia-se acerbo e a afastava, grosseiro, como se estivesse nas raias da loucura. Logo depois, recuperava-se e tornava, desculpando-se, dizendo-se perturbado, enfermo. A jovem Condessa mandara notificar os pais, solicitando providências, na dura situação em que se encontrava.

  Nos dias do Outono agradável, enquanto os agregados e servos colhiam uvas para prepararem os capitosos vinhos, os ventos chegavam anunciando a mudança da temperatura e as velhas árvores se descoloriam, deixando-se carregar pelas lufadas contínuas, nas quais perdiam as folhas queimadas, o nobre saía a cavalo, galopando, revendo as terras da propriedade, alvitrando ordens, sugerindo modificações. Sempre, porém, aconteciam cenas pungentes entre ele e os empregados ou os aldeães que trabalhavam nas vinhas. Retornava colérico, grosseiro, intragável. Em outras oportunidades, quedavam-se horas de silêncio, introvertido…

  Atendendo ao apelo da filha, os Condes Castaldi vieram de Siena, trazendo o médico e Carlo, para uma ligeira estada no Solar di Bicci.

  A alegria experimentada com a presença dos sogros se esfumou quando Girólamo identificou, num dos acompanhantes, o adversário insuportável. Tinha-o já esquecido. Vendo-o, acudiram-lhe as lembranças contraditórias que situavam o florentino no palco de muitas das suas actuais aflições. Desejou expulsá-lo, mas, incontinenti, lembrou-se de que talvez ali pudesse solucionar o problema desagradável que, então, enfrentaria com destemor.

  Fazendo-se cortês quanto lhe permitia o estado de saúde, convidou os familiares e o médico a entrarem e, as horas sucederam-se aprazíveis, amenas.

  Carlo, exultante pelo ensejo e febricitado pelas expectativas, tão impiedoso quanto o contendor, fez-se conquistar pelos servos e cavalariços da herdade, interessando-se por saber quais os fâmulos mais antigos, os que conheceram o duque e seus familiares, como se desejasse, afavelmente, conhecer o passado do clã. Não teve dificuldade em informar-se da veracidade da história, embora não houvesse mais ninguém que, contemporâneo à época da desgraça, ali se conservasse. Nas cercanias, é claro, moravam muitos aldeães que bendiziam a Senhora duquesa e ainda lhe choravam a morte, lamentando o horror que se abatera sobre o burgo, infelicitando quase todos. Veio, assim, posteriormente, a identificar de fora, do pátio, a parte superior da recâmara em que Lúcia e as crianças tiveram a vida ceifada, sem que os seus gritos abafados houvessem ecoado pelas várias janelas que espiam para imensa entrada e o largo patamar.

  Mal se instalou, a Condessa de Castaldi convidou a filha a um exame da situação em que se encontrava o seu jovem marido. A inexperiente senhora, sem esconder a aflição que lhe dominava o íntimo, narrou:

  – Tenho fortes razões para duvidar do juízo de Girólamo. Desde que retornamos de Siena, apesar de vê-lo recuperar-se fisicamente, contrista-me constatar que ele perde a razão a cada dia que passa. Embora não seja dotado de um carácter generoso, sempre soube portar-se como cavalheiro. Progressivamente, vem sofrendo de irascibilidade, tornando-se genioso e perverso. Nesses momentos, transfigura-se e uma expressão de alucinado toma-lhe o belo rosto, deformando-o. Investe, então, furioso, contra tudo e todos… Já não é o mesmo esposo, tendo deixado há longo tempo de cumprir com os seus deveres conjugais… O que antes eu acreditava fosse consequência da enfermidade verifico, apavorada, tornando-se uma obsessão tormentosa. As alternâncias do seu temperamento chocam-me, e estou, também, por arrebentar as peias da convenção e do respeito que lhe tenho. Chego a temer que nos estados que assume ele não trepidaria em agredir-me…

  – Concordo, então, quanto à gravidade do caso, – alvitrou a genitota. – Não há razão, porém, para alarme, por enquanto. Estamos com o Dr. Michele e, depois que ele seja convenientemente tratado, tudo se normalizará.

  – Não me parece fácil, mamãe, – considerou a jovem. – Um mau presságio me aflige nos últimos tempos. Pelos dias do palio, enquanto o meu marido estava viajando – e eu ignorava que ele estivesse em Siena –, fui sacudida por inusitada aflição, como se as sombras que vivem na Morte rondassem o meu lar, ameaçando-nos a paz… Receei enlouquecer…

  – Filha, que disparates são esses? – interveio a mãe. – Se o teu confessor for informado dessas ideias, que pensará de ti e da nossa família? Certamente andas a ouvir as superstições dessas gentes…

  – Não é verdade, mamãe, – acudiu, pressurosa –, estou no meu perfeito juízo e, por isso mesmo, são grandes os meus receios… Este solar me desagrada. Nunca me atrevi a contar a qualquer pessoa o que acontece. Agora…

  – Estás, também, doente, minha filha, – interrompeu a Condessa, com preocupação. – O clima deve estar fazendo-te mal.

  – Ouça-me, antes, mamãe – rogou a jovem atribulada –, para compreender com maior segurança. Aos primeiros dias da minha ventura conjugal, fosse porque estivesse inebriada, parecia-me viver a verdadeira felicidade. Paulatinamente, porém, comecei a notar que os servos evitavam a ala onde aconteceu a tragédia. Interrogando Margherita e impondo-lhe ordens, ela narrou-me que os servos e aias domésticos escutavam sons estranhos: gargalhadas, gritos, e imprecações provindas da peça onde culminou o funesto acontecimento. Fiquei estarrecida, porque eu também tinha a desagradável sensação de perceber esses estranhos movimentos. A princípio, atribuía ao vento ou a ruídos de fora os estranhos sons, porém, acurando a observação, constatei que procediam da recâmara nefasta…

   – Estás impressionada, filha querida, – intercedeu a ouvinte. – Lamentavelmente, esses aldeães são muito ignorantes e supersticiosos, vivendo em experiências de magias incomodando os mortos, que estão muito bem mortos. Estranho-te com esses pensamentos.

  – Também eu me estranho, – concordou, ensimesmada, a jovem, reflectindo em torno das ocorrências afligentes que de forma desconcertante seguiam curso no solar –, porém, estou segura de que alguém aqui está a perseguir-nos e tenho a certeza de que a doença de Girólamo “não é de Deus”… (i) Vejo-o desvairar, possesso, assumindo personalidade estranha: gargalha, estertora, apavora-se, como se desejasse fugir, sem poder… Desperta a gritar, segurando a garganta como se estivesse a esganar-se. Há algo, minha mãe, e eu temo.

  A moça estava pálida. As mãos tremiam e o choro estava por arrebentar as comportas dos olhos e explodir abundante.

  Buscando acalmá-la, a genitora tomou-a nos braços e perguntou:

  – Tens orado, minha filha? Não achas que necessitas de ouvir um confessor para que ele te ajude e liberte dessas impressões?

  – Não são impressões pueris e enganosas como possam parecer. Estou segura da existência dos mortos rondando esta casa, que foi palco de insucessos pavorosos. Você não ignora que na Toscana é popular o dito: “Os que morrem assassinados ficam vagando e afligindo-se até se libertarem da desgraça que os consome.” (ii) Eu creio firmemente que os assassinados aqui, aqui continuam.

  – Se prossegues com essas ideias… – revidou a genitora, segurando-lhe as mãos. – Estás gelada, minha filha! Que se passa nesta casa, Deus meu!?

  – Calma, mamãe! Ouça-me até ao fim. Às vésperas do palio, conforme eu lhe dizia, subitamente senti-me mal. Encontrava-me na açoteia, fitando ao longe, quando escutei blasfémias e objurgatórias azedas de alguém que me odiava, expulsando-me daqui. Gritei pela minha aia e ambas rezamos o terço, advindo muita serenidade, logo após. Você sabe da minha contrição e confiança em São Francisco e a ele roguei por mim e pelo meu lar. Senti, então, uma como aragem de paz e, conquanto abalada, fui conduzida ao leito e dormi. Logo após, sonhei com a Senhora duquesa: vi-a nitidamente, expressando a face da Madonna. Havia no seu belo semblante indefinível tristeza. Ela falou-me. No momento, eu a escutei e entendi; logo, porém, dissipou-se tudo na minha memória. Não a esqueci mais; e embora a angústia que me constringe, experimento, também, uma presença subtil como se ela, que é muito amada pelos que vivem neste burgo, estivesse a proteger-me, em nome de São Francisco. Será isso possível?

  – Não tenho dúvidas, – redarguiu, então, com tino, a senhora. – Inteirando-se das desgraças que aqui se consumaram há quase um decénio, teu pai, que era amigo do duque, foi informado de que a duquesa era para essas gentes locais um verdadeiro anjo de bondade. Muito voltada para Deus, como tu mesma, era devota do Povarello, a quem amava com extremos de arrebatamento. Com certa regularidade, o marido a conduzia à Úmbria e de todos era sabido o amor que se nutriam reciprocamente. Desde que ela morreu, ele não mais fruiu qualquer felicidade.

  – E Assunta, mamãe? – interpelou a jovem Cherubini. – você ouviu falar alguma vez dessa mulher?

  – Não, filha, nunca.

  – Essa mulher servia a casa, na época dos acontecimentos. Originária de Chiusi, descendia dos antigos etruscos. Após os fúnebres sucessos, desapareceu, rumando a Florença e de lá sumiu definitivamente. Os servos receberam a visita de um irmão seu, que veio procurar meu marido para inteirar-se do que acontecera, como se Girólamo soubesse de alguma coisa… Por ignota força, parece-me sabê-la envolvida na desgraça…

  – Deixa o passado e pensa no presente. Necessitas esquecer tudo isso para pensar na saúde do teu esposo.

  – Reconheço; no entanto, uma coisa esclarece a outra.

  – Todavia, isso perturba-te, sem levar-nos a lugar nenhum. É melhor esquecer o que não se pode rectificar e viver o que se pode e deve gozar.

  Ficou, então, concertado que Girólamo necessitava de muita assistência do médico e que deveriam passar uma larga temporada em Siena, especialmente naquela quadra do ano, já se fazia propícia às chuvas.

/…

(i) Expressão com que as pessoas mal informadas sobre os problemas espirituais e mediúnicos referindo-se às obsessões, fazendo conexões com velhas objuratórias da ignorância religiosa do passado.
(ii) “Quelli che muotono assassinati restano vegando e affliggendosi fino alia liberazione della loro disgrazia che li consuma.”


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 9 SUBJUGAÇÃO IMPIEDOSA E NEFASTA (2 de 3) 30º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)