Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 9 de junho de 2019

~ em torno do mestre


O Pai e o filho ~

"Sede perfeitos como vosso Pai celestial."
(Mateus, 5:48.)

Pai – Que queres filho? Procuras-me com tanta insistência.

Filho – Quero riquezas, meu Pai. Desejo possuir largos cabedais, muitas fazendas, ouro e prata. Aspiro a ser um Creso (i).

Pai – Dar-te-ei o que pretendes, filho; porém, previno-te de que de novo me boscarás, porque não te sentirás satisfeito.

Pai – Aqui estou, filho, que desejas de mim, uma vez que me buscas com tanto interesse?

Filho – Quero saúde, força, vigor físico, resistência. Invejo os Hércules, os Ursos (i), os Titãs.

Pai – Terás o que solicitas de mim, filho. Não obstante advirto-te: de novo me procurarás, porque não te sentirás satisfeito.

Pai – Eis-me aqui, filho. Porque estás assim aflito e me chamas com tamanha impaciência?

Filho – Pai, tenho sede de domínio, de poder, de autoridade. O meu desejo é governar, é conquistar reinos, dominar nações, imperando discricionariamente sobre os povos e raças. Tenho por modelos – Napoleão e Júlio César.

Pai – Será deferida a tua petição, filho. Contudo, permite que te observe: de novo me demandarás, porque não te sentirás satisfeito.

Pai – Porque bates assim sofregamente nos tabernáculos (i) eternos? Sossega, acalma-te e fala.

Filho – Pai, sou ávido de glórias; a fama me fascina, a notoriedade me arrebata. Nenhuma alegria terei, enquanto não lograr este meu intento. Quero perceber sobre a minha fronte a coroa de louros que ostentaram os sábios, os grandes poetas, os escritores célebres. Anseio ser CamõesCíceroHipócrates.

Pai – Serás atendido, alcançando o que tanto ambicionas. Todavia, aviso-te de que de novo voltarás à minha procura, por isso que não te sentirás satisfeito.

Pai – Aqui estou, filho, pede o que desejas, dize o que pretendes de mim.

Filho, finalmente – Pai, quero amar e ser amado. Sinto incontido anseio de expandir o meu coração. Vejo-me constrangido numa atmosfera asfixiante. O meu sonho é amar amplamente, incomensuravelmente. O meu maior desejo é sentir palpitar em mim a vida de todos os seres. Quero o amor sem restrições, ilimitado, infinito. Quero amar com toda a capacidade de meu coração, assim como os pulmões sadios respiram na floresta, nos montes, nos campos e nos bosques!

– O meu ideal, Pai, é o Filho de Maria, o Profeta de Nazaré, aquele que morreu na cruz pelo amor da Humanidade.

Pai – Sê bendito, meu filho. Terás aquilo a que tão sabiamente aspiras. Não me procurarás mais, porque sentirás em ti a plenitude da vida: de ora em diante serás uno comigo.


O Mestre e o discípulo ~

Discípulo – Senhor, sinto-me desalentado diante das iniquidades do século. Parece que nunca os homens se mostraram tão avessos à razão e ao sentimento, como nestes tempos.

Mestre – Desalentado? Porquê? Duvidas, por acaso, da segurança do Universo? Desalento é fraqueza, é falta de fé.

Discípulo – Quero ter fé, Senhor, mas vejo a cada passo surgirem tais impedimentos e tais embaraços à vinda do reino de Deus, que o desânimo me invade a alma.

Mestre – És mais carnal que espiritual. A precipitação é peculiar ao homem. Quando se estabelece o domínio do Espírito, o coração se acalma, serenam as paixões e a fé, existe, não vacila mais. A pressa é, não só inimiga da perfeição, como também da razão. Os atrabiliários insofridos nunca arrazoam com acerto. O reino de Deus há de vir e está a vir a cada momento, para aqueles que o querem e o sabem querer. A vontade de Deus há de ser feita na Terra, como já o é nos céus. Espera e confia, vigia e ora. Não deves medir o curso das ideias como medes o curso da tua existência: esta se escoa através de alguns dias fugazes, enquanto que aquelas se agitam no transcorrer dos séculos e dos milénios.

Discípulo – Bem sei, Senhor, que deve ser como dizes. Eu supunha, no entanto, que a obra da evolução caminhasse sem intermitências; por isso queria vê-la em marcha ascensional, triunfando dos óbices e tropeços com que os homens, na sua ignorância e maldade, costumam juncar-lhe o caminho. Esta vitória do mal sobre o bem, da opressão sobre a liberdade me amargura e angustia. Tal vitória é certamente efémera; contudo, é um entrave à evolução, é uma pedra de tropeço que, não se sabe por quanto tempo, conservará o carro do progresso entravado.

Mestre – Enganas-te. A evolução é uma lei imutável. Não há forças, não há potências conjugadas capazes de a impedir, nem mesmo de embaraçar-lhe a acção e a eficiência. Nem um só momento a obra da evolução sofreu interrupções na eternidade do tempo e no infinito do espaço.

Discípulo – Como explicas, então, Senhor, a iniquidade, a tirania, a mentira e a corrupção, que ora imperam na sociedade terrena? O mundo estará evoluindo sob o influxo de tais elementos?

Mestre – Erras nos teus juízos, pelos motivos já expostos. Ignoras que é precisamente sofrendo iniquidades e suportando opressão que o homem vai compreender o valor da justiça e da liberdade? Não sabes que só a experiência convence os Espíritos rebeldes? Não vês como os doentes amam a saúde, como os oprimidos sonham com a liberdade e os perseguidos suspiram pela justiça? Julgas que esta geração adúltera e incrédula se converta apenas com os testemunhos do céu e com as palavras de amor expressas no Evangelho do reino? Supões que todos se amoldam à graça sem o aguilhão da lei? Em mundos como este, é preciso privar os seus habitantes de certos bens, para que se inteirem do valor e importância desses mesmos bens. Suportando injustiças e afrontas, vendo os seus direitos postergados pelo despotismo, os homens aprenderão a venerar a justiça, subordinando-lhe os interesses temporais e tornando-se capazes de renúncias e de sacrifícios em prol do seu advento.

Discípulo – Começo a ver luz onde tudo se me afigurava escuro. Todavia, Senhor, seja-me permitido ainda algumas perguntas.

Mestre – Pede e receberás; bate e se te abrirá, busca e encontrarás.

Discípulo – De tal modo, a obra da redenção jamais se interrompe e, mesmo através de todas as anomalias, ela se realiza fatalmente?

Mestre – De certo: se assim não fora, a Suprema Vontade não se cumpriria e Deus deixaria de ser Deus. A evolução, no que respeita ao Espírito, opera-se pela educação dos seus poderes e faculdades latentes. Ora, todas as vicissitudes, todas as lutas, todos os sofrimentos, em suma, contribuem para incentivar o desenvolvimento das possibilidades anímicas. Assim, pois, quer o Espírito goze os salutares efeitos da prática do bem e da conduta recta; quer suporte as amargas consequências do mal cometido, da negligência no cumprimento do dever, da corrupção a que se entregue, ele estará a educar-se e, portanto, evolvendo. Pelo amor e pela dor, sob a doçura da graça, ou sob a inflexibilidade da lei – caminhará, sempre, em demanda dos altos destinos que lhe estão reservados.

Discípulo – Falas na santa obra da educação. Feriste, Senhor, o alvo, o eixo em torno do qual giram as minhas lucubrações mais acuradas. Compreendo muito bem a importância da educação. Vejo claramente que só a religião da educação, tal como ensinaste e exemplificaste, pode salvar a Humanidade. Mas, como vingará esta fé, se os dirigentes, os dominadores de consciências, aqueles, enfim, que têm ascendência sobre o povo são os primeiros a deseducá-lo, a corrompê-lo, premiando os caracteres fracos e venais que se sujeitam aos seus caprichos e perseguindo os poucos que, capazes de sofrer pela justiça e pela verdade, pelo direito e pela liberdade, resistem ao despotismo do século? Tal processo de corrupção não invalidará, pelo menos por tempo indeterminado, a eficiência da educação?

Mestre – Nada há encoberto que não seja descoberto, nem algo oculto que se não venha a saber. Falas em processo de corrupção que poderá deseducar o povo. Ignoras, então, que o Espírito educado jamais se deseduca? A lei é avançar e não retroagir. Os que se submetem às influências dos maus e dos prevaricadores, deixando-se corromper por falaciosas promessas, são Espíritos fracos, egoístas e amigos da ociosidade, da vida cómoda e fácil. São os tais que entram pela porta larga e transitam pela estrada espaçosa e ampla que conduz à perdição. É possível que tais indivíduos se abastardem ao extremo, levados pelos corruptores de consciências; mas, o dia do despertar há de chegar. Tanto maior será a reacção quanto mais o Espírito se tenha degradado. E, às vezes, é o único meio de corrigir os cínicos, os hipócritas e os indolentes.

Discípulo – E os empreiteiros da corrupção, até quando continuarão entregues a tão abjecta tarefa?

Mestre – Eles são instrumentos inconscientes de punição. Os homens castigam-se mutuamente. São semelhantes aos seixos que rolam no fundo dos rios, arrastados pela corrente das águas. No começo, eram ásperos e arestosos, mas, à força de se entrechocarem e se friccionarem, acabam alisando-se, tornando-se polidos e brunidos, como trabalhados por mão de artista. Cumpre notar ainda que a cada um será dado segundo as suas obras. O déspota de hoje será a vítima de amanhã – pois quem com ferro fere com ferro será ferido.

Discípulo – Estás com a razão, Senhor. És, de facto, o caminho, a verdade e a vida. És a luz do mundo.

Mestre – Lembra-te do que eu disse: Vós sois o sal da Terra e a luz do mundo. Não se acende uma candeia para colocá-la debaixo dos móveis, mas no velador, para que a todos ilumine. Portanto, não basta que me consideres luz, é preciso que te tornes luz.

Discípulo – Cada vez mais me arrebatas com a tua luz, aclarando os problemas da vida, tornando acessíveis a todas as inteligências os mais complexos problemas sociais.

Mestre – Confessas que tens entendido o que eu disse? Bem-aventurado serás, se puseres em prática os meus ensinamentos. Não te esqueças: se os praticares. Trata, pois, de descobrir o reino de Deus em ti mesmo, no teu coração; depois, procura implantá-lo no teu lar; depois, na tua rua; depois, no mundo. Não tenhas pressa. Confia e espera, vigia e ora. Não penses em fazer o mais, antes de fazer o menos. No Universo, tudo é ordem e harmonia.

/...

" Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra. "
                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do MestrePrimeira Parte / Seixos e Gravetos; O Pai e o filho / O Mestre e o discípulo, 6º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)

domingo, 12 de maio de 2019

Hippolyte Léon Denisard Rivail

Revue Spirite |

Notas Bibliográficas

A RAZÃO DO ESPIRITISMO (*)

POR MICHEL BONNAMY

Juiz de instrução; membro dos congressos científicos de França; antigo membro do conselho geral de Tarn-et-Garonne.

Quando apareceu o romance Mirette, os Espíritos disseram estas palavras notáveis na Sociedade de Paris:

“O ano de 1866 apresenta a filosofia nova sob todas as formas; mas ainda é a haste verde que contém a espiga de trigo e, para a mostrar, espera que o calor da primavera a tenha amadurecido e feito desabrochar. 1866 preparou, 1867 amadurecerá e realizará. O ano vai abrir sob os auspícios de "Mirette" e não se esvairá sem ver aparecerem novas publicações do mesmo género e mais sérias ainda, no sentido em que o romance há de tornar-se filosofia e a filosofia se fará história.” (Revista de Fevereiro de 1867).

Anteriormente eles já haviam dito que se preparavam diversas obras sérias sobre a filosofia do Espiritismo, nas quais o nome da doutrina não seria timidamente dissimulado, mas confessado e proclamado em voz alta por homens cujo nome e posição social dariam peso à sua opinião e; acrescentáram que o primeiro apareceria provavelmente no fim do presente ano.

A obra que anunciamos realiza completamente esta previsão. É a primeira publicação deste género na qual a questão é encarada em todas as suas partes e em toda a sua grandeza. Pode, pois, dizer-se que inaugura uma das fases da existência do Espiritismo. O que a caracteriza é que não é uma adesão banal aos princípios da doutrina, uma simples profissão de fé, mas uma demonstração rigorosa, onde os próprios adeptos encontrarão novas ideias. Lendo esta argumentação cerrada, levada, a bem dizer, até a minúcia e, por um encadeamento lógico das ideias, perguntar-se-á, certamente, por que singular extensão do vocábulo se poderia aplicar ao autor o epíteto de louco. Se é um louco que assim discute, poder-se-á dizer que às vezes os loucos tapam a boca de gente que se diz sensata. É uma defesa exemplar, onde se reconhece o advogado que quer reduzir a réplica aos seus últimos limites; mas aí se reconhece, também, aquele que estudou a causa seriamente e a perscrutou nos seus mais minuciosos detalhes. O autor não se limita a emitir a sua opinião: ele a motiva e dá a razão de ser de cada coisa. É por isso que, com toda a justiça, intitulou o seu livro de A Razão do Espiritismo.

Ao publicar esta obra, sem esconder a sua personalidade nem com o mais pequeno véu, o autor prova que tem a verdadeira coragem da sua opinião e, o exemplo que dá é um título ao reconhecimento de todos os espíritas. O ponto de vista em que se colocou é principalmente o das consequências filosóficas, morais e religiosas, as que constituem o objectivo essencial do Espiritismo e dele faz uma obra humanitária.

Aliás, eis como ele se expressa no prefácio.

“Está nas vicissitudes das coisas humanas, ou, melhor dizendo, parece fatalmente reservado a toda a ideia nova ser mal acolhida no seu aparecimento. Como, a maior parte das vezes, tem por missão derrubar ideias que a precederam, encontra muito grande resistência da parte do entendimento humano.

“O homem que viveu com preconceitos não acolhe senão com desconfiança a recém-chegada, que tende a modificar, a destruir mesmo combinações e ideias fixas no seu espírito, a forçá-lo, numa palavra, a meter mãos à obra, para correr atrás da verdade. Aliás, sente-se humilhado no seu orgulho, por ter vivido no erro.

“A repulsa que inspira a ideia nova é muito mais acentuada ainda quando traz consigo obrigações, deveres; quando impõe uma linha de conduta mais severa.

“Ela encontra enfim ataques sistemáticos, ardentes, obstinados, quando ameaça posições conquistadas e, sobretudo quando se defronta com o fanatismo ou com opiniões profundamente arraigadas na tradição dos séculos.

“As doutrinas novas, pois, têm sempre numerosos detractores; muitas vezes elas têm mesmo que sofrer perseguição, o que levou Fontenelle a dizer: ‘Que se tivesse todas as verdades na mão, teria o cuidado de não a abrir.’

“Tais eram o desfavor e os perigos que esperavam o Espiritismo aquando do seu aparecimento no mundo das ideias. Os insultos, a zombaria, a calúnia não lhe foram poupados e; talvez, também venha o dia da perseguição. Os adeptos do Espiritismo foram tratados por iluminados, alucinados, patetas e loucos e, a essa enxurrada de epítetos que, todavia, pareciam contradizer-se e excluir-se, acrescentaram os de impostores, charlatães e, finalmente, de partidários de Satã.

“A qualificação de louco é a que parece mais especialmente reservada a todo o promotor ou propagador de ideias novas. É assim que trataram de louco o primeiro que se atreveu a dizer que a Terra girava em volta do Sol.

“Também era louco o célebre navegador que descobriu um novo mundo. Ainda era louco, para o areópago (i) da Ciência, o que descobriu a força do vapor. E a douta assembleia acolheu, com sorriso desdenhoso, a sábia dissertação de Franklin sobre as propriedades da electricidade e a teoria do pára-raios.

“Ele também, o divino regenerador da Humanidade, o reformador autorizado da lei de Moisés, não foi tratado de louco? Não expiou por um suplício ignominioso a propagação dos benefícios da moral divina na Terra?

Galileu não expiou como herético, num sequestro cruel e em amargas perseguições morais, a glória de ter sido o primeiro a ter a iniciativa do sistema planetário cujas leis Newton haveria de promulgar?

“São João Baptista (i), o precursor do Cristo, também tinha sido sacrificado à vingança dos culpados, cujos crimes condenara.

“Os apóstolos, depositários dos ensinamentos do divino Messias, tiveram que selar com sangue a santidade de sua missão. E a religião reformada por sua vez não foi perseguida e, depois dos massacres de São Bartolomeu, não teve que sofrer as dragonadas?

"Enfim, remontando até ao ostracismo inspirado por outras paixões, vemos Aristides exilado e Sócrates condenado a beber cicuta.

“Sem dúvida, graças aos costumes suaves que caracterizam o nosso século, sob o império das nossas instituições e das luzes que põem um freio à intolerância fanática; as fogueiras já não se erguerão para purificar com as suas chamas as doutrinas espíritas, cuja paternidade pretendem fazer remontar a Satã. Mas elas também devem esperar um levante dos mais hostis e o ataque de ardentes adversários.

“Entretanto, este estado militante não poderia debilitar a coragem dos que estão animados de uma convicção profunda, dos que têm a certeza de ter nas mãos uma dessas verdades fecundas, que constituem, nos seus desdobramentos, um grande benefício para a Humanidade.

“Mas, seja como for o antagonismo das ideias ou das doutrinas que o Espiritismo suscitar; sejam quais forem os perigos que devam abrir-se debaixo dos pés dos adeptos, o espírita não poderia deixar esta luz debaixo do alqueire e recusar-se a dar-lhe todo o brilho que ela comporta, o apoio das suas convicções e o testemunho sincero de sua consciência.

“O Espiritismo, revelando ao homem a economia da sua organização, iniciando-o no conhecimento dos seus destinos, abre um campo imenso às suas meditações. Assim o filósofo espírita, chamado a levar as suas investigações a esses novos e esplêndidos horizontes só tem por limites o infinito. Assiste, de certo modo, ao conselho supremo do Criador. Mas o entusiasmo é o escolho que deve evitar, sobretudo quando lança as suas vistas sobre o homem, tornado tão grande e que, no entanto, por orgulho se faz tão pequeno. Não é senão quando esclarecido pelas luzes de uma prudente razão e, tomando por guia a fria e severa lógica, que deve dirigir as suas peregrinações no domínio da ciência divina, cujo véu foi erguido pelos Espíritos.

“Este livro é o resultado dos nossos próprios estudos e das nossas meditações sobre este assunto que, desde o início, nos pareceu de importância capital e ter consequências da mais alta gravidade. Reconhecemos que estas ideias têm raízes profundas e nelas entrevimos a aurora de uma nova era para a sociedade. A rapidez com que se propagam é um indício de sua próxima admissão no número das crenças aceites. Na razão da sua importância, não nos contentámos com afirmações e argumentos da doutrina; não só nos assegurámos da realidade dos factos, mas perscrutámos com minuciosa atenção os princípios deles decorrentes; buscámos a sua razão com fria imparcialidade, sem negligenciar o estudo não menos consciencioso das objecções que os antagonistas opõem; como um juiz que escuta as duas partes contrárias, pesámos maduramente os prós e os contras. Só depois de haver adquirido a convicção de que as alegações contrárias nada destroem; que a doutrina repousa sobre bases sérias, numa lógica rigorosa e, não em devaneios quiméricos; que contém o gérmen de uma renovação salutar do estado social, minado secretamente pela incredulidade; que é, enfim, uma poderosa barreira contra a invasão do materialismo e da desmoralização é, que julgámos dever dar a nossa apreciação pessoal e, as deduções que tirámos de um estudo atento.

“Assim, tendo encontrado uma razão de ser nos princípios desta nova ciência, que tem lugar reservado entre os conhecimentos humanos, intitulámos o nosso livro A Razão do Espiritismo. Este título é justificado pelo ponto de vista sob o qual encaramos o assunto e, os que nos lerem reconhecerão sem dificuldade que este trabalho não é produto de um entusiasmo leviano, mas de um exame maduro e friamente reflexivo.

“Estamos convictos de que, quem quer que, sem partido preconcebido de oposição sistemática, fizer, como nós fizemos, um estudo consciencioso da Doutrina Espírita, a considerará como uma das coisas que interessam no mais alto grau ao futuro da Humanidade.

“Dando a nossa adesão a esta doutrina, usamos do direito de liberdade de consciência, que a ninguém pode ser contestado, seja qual for a sua crença. Com mais forte razão esta liberdade deve ser respeitada, quando tem por objectivo princípios da mais alta moralidade, que conduzem os homens à prática dos ensinamentos do Cristo e, por isso mesmo, são a salvaguarda da ordem social.

“O escritor que consagra a sua pena a traçar as impressões que tais ensinamentos deixaram no santuário da sua consciência, deve guardar-se bem de confundir as elucubrações brotadas no seu horizonte terrestre com os raios luminosos partidos do céu. Se ele se limitar aos pontos obscuros ou ocultos às suas explicações, pontos que ainda não lhe é dado conhecer é, que, aos olhos da sabedoria divina, ficam reservados para um grau superior na escala ascendente de sua depuração progressiva e de sua perfectibilidade.

“Todavia, apressemo-nos a dizê-lo, todo o homem convicto e consciencioso, consagrando as suas meditações à difusão de uma verdade fecunda para a felicidade da Humanidade, mergulha a sua pena na atmosfera celeste, onde o nosso globo está imerso e, recebe incontestavelmente a centelha da inspiração.”

A indicação do título dos capítulos dará a conhecer o quadro abarcado pelo autor.

1. Definição do Espiritismo. – 2. Princípio do bem e do mal. – 3. União da alma com o corpo. – 4. Reencarnação. – 5. Frenologia. (i) – 6. Pecado original. – 7. O inferno. – 8. Missão do Cristo. – 9. O purgatório. – 10. O céu. – 11. Pluralidade dos globos habitados. – 12. – A caridade. – 13. – Deveres do homem. – 14. Perispírito. (i) – 15. Necessidade da revelação. – 16. Oportunidade da revelação. – 17. Os anjos e os demónios. – 18. Os tempos preditos. – 19. A prece. – 20. A fé. – 21. Resposta aos insultadores. – 22. Resposta aos incrédulos, ateus ou materialistas. – 23. Apelo ao clero.

Lamentamos que a falta de espaço não nos permita reproduzir tantas passagens quanto desejaríamos. Limitar-nos-emos a algumas citações.

Cap. III, pág. 41. – “A utilidade recíproca e indispensável da alma e do corpo para a sua cooperação respectiva constitui, pois, a razão de ser de sua união. Ela constitui, a mais, para o Espírito, as condições militantes na via do progresso, onde é chamado a conquistar a sua personalidade intelectual e moral.

“Como é que esses dois princípios realizam normalmente, no homem, o fim de sua destinação? Quando o Espírito é fiel às suas aspirações divinas, restringe os instintos animais e sensuais do corpo e os reduz à sua acção providencial na obra do Criador; desenvolve-se, cresce. É a perfeição da obra que se realiza. Chega à felicidade, cujo último termo é inerente ao grau supremo da perfectibilidade.

“Se, ao contrário, abdicando da soberania que é chamado a exercer no corpo, cede ao arrastamento dos sentidos e, se aceita as suas condições de prazeres terrestres como único objectivo de suas aspirações, falseia a razão de ser de sua existência e, longe de realizar os seus destinos, fica estacionário; ligado a esta vida terrestre que, entretanto, não deveria ter sido para ele senão uma condição acessória, pois não poderia ser o seu fim, o Espírito, de chefe que era, torna-se subordinado; como insensato, aceita a felicidade terrena que os sentidos lhe fazem experimentar e que lhe propõem satisfazer, assim abafando nele a intuição da verdadeira felicidade que lhe está reservada. Eis a sua primeira punição.”

No capítulo XII, do inferno, pág. 99, encontramos esta notável apreciação da morte e dos flagelos destruidores:

“Seria enumerando os flagelos que espalham sobre a Terra o terror e o pânico, o sofrimento e a morte, que acreditariam poder dar a prova das manifestações da cólera divina?

“Sabei, pois, temerários evocadores das vinganças celestes, que os cataclismos que assinalais, longe de terem o carácter exclusivo de um castigo infligido à Humanidade, são, ao contrário, um acto da misericórdia divina, que fecha a esta o abismo onde a precipitavam as suas desordens e, lhe abre as vias do progresso, que a levarão ao caminho que deve seguir para assegurar a sua regeneração.

“Que são esses cataclismos, senão uma nova fase na existência do homem, uma era feliz, marcando para os povos e a Humanidade inteira o ponto providencial do seu adiantamento?

“Sabei, pois, que a morte não é um mal. Farol da existência do Espírito, ela é sempre, quando vem de Deus o, sinal de sua misericórdia e de sua assistência benfazeja. A morte é apenas o fim do corpo, o termo de uma encarnação e, nas mãos de Deus é, o aniquilamento de um meio corruptor e vicioso, a interrupção de uma corrente funesta, à qual, num momento solene, a Providência arranca o homem e os povos.

“A morte não é senão uma interrupção na prova terrestre. Longe de prejudicar o homem, ou antes, o Espírito, ela o chama a recolher-se no mundo invisível, seja para reconhecer as suas faltas e as lamentar, seja para se esclarecer e se preparar, por firmes e salutares resoluções, para retomar as provas da vida terrestre.

“A morte só gela o homem de pavor porque, muito identificado com a Terra, não tem fé no seu augusto destino, do qual este globo não passa de dolorosa oficina, na qual se deve realizar a sua depuração.

“Cessai, pois, de crer que a morte seja um instrumento de cólera e de vingança nas mãos de Deus; sabei, ao contrário, que ela é ao mesmo tempo a expressão de sua misericórdia e de sua justiça, seja detendo o mau na vida da iniquidade, seja abreviando o tempo de provas ou de exílio do justo sobre a Terra.

“E vós, ministros do Cristo, que do alto do púlpito da verdade proclamais a cólera e a vingança de Deus e, pareceis, por vossas eloquentes descrições da fantástica fornalha, atiçar as chamas inextinguíveis para devorar o infeliz pecador; vós que, dos vossos lábios tão autorizados, deixais cair esta aterradora epígrafe: ‘Jamais! – Sempre!’ então esquecestes as instruções de vosso divino Mestre?

Ainda citaremos as seguintes passagens, extraídas do capítulo sobre o pecado original.

“Em vez de criar a alma perfeita, quis Deus que não fosse senão por longos e constantes esforços que ela chegaria a desprender-se deste estado de inferioridade nativa e gravitar para os seus augustos destinos.

“Para chegar a esses fins, deve ela, pois, romper os laços que a prendem à matéria, resistir ao arrastamento dos sentidos, com a alternativa de sua supremacia sobre o corpo, ou da obsessão exercida sobre ela pelos instintos animais.

“É destes laços terrestres que lhe importa libertar-se e que nela constituem, eles mesmo, as condições de sua inferioridade; eles não são outros senão o suposto pecado original, o alvéolo que cobre a sua essência divina. O pecado original constitui, assim, o ascendente primitivo que os instintos animais devem ter exercido, inicialmente, sobre as aspirações da alma. Tal é o estado do homem que o Génesis quis representar sob a figura simples da árvore da ciência do bem e do mal. A intervenção da serpente tentadora não é outra coisa senão os desejos da carne e a solicitação dos sentidos; o Cristianismo consagrou esta alegoria como um facto real, ligando-se à existência do primeiro homem; e, é sobre este facto que baseou o dogma da redenção.

“Colocado deste ponto de vista, é preciso reconhecê-lo, o pecado original deve ter sido, com efeito e, realmente foi, o de toda a posteridade do primeiro homem e, assim o será durante uma longa sucessão de séculos, até à libertação completa do Espírito das opressões da matéria, libertação que, sem dúvida, tende a realizar-se, mas que ainda não se fez nos nossos dias.

“Numa palavra, o pecado original constitui as condições da natureza humana trazendo os primeiros elementos de sua existência, com todos os vícios que ela gerou.

“O pecado original é o egoísmo, é o orgulho que presidem a todos os actos da vida do homem;

“É o demónio da inveja e do ciúme que roem o seu coração;

“É a ambição que perturba o seu sono;

“É a cupidez, que não pode saciar a avidez do lucro;

“É o amor e a sede de ouro, este elemento indispensável para dar satisfação a todas as exigências do luxo, do conforto e do bem-estar, que persegue o século com tanto ardor.

“Eis o pecado original proclamado pelo Génesis e, que o homem sempre ocultou em si; ele só será apagado no dia em que, compenetrado dos seus altos destinos, o homem abandonar, conforme a lição do bom La Fontaine, a sombra pela presa; o dia em que renunciar à miragem da felicidade terrena, para voltar todas as suas aspirações para a felicidade real, que lhe está reservada.

“Que o homem aprenda, pois, a tornar-se digno do seu título de chefe entre todos os seres criados e, da essência etérea emanada do próprio seio do seu Criador e de que está repleto. Que seja forte para lutar contra as tendências do seu envoltório terrestre, cujos instintos são estranhos às suas aspirações divinas e não poderiam constituir a sua personalidade espiritual; que o seu único objectivo seja sempre gravitar para a perfeição do seu fim último e, o pecado original já não existirá para ele.”

Sr. Bonnamy já é conhecido dos nossos leitores, que puderam apreciar a firmeza, a independência do seu carácter e a elevação dos seus sentimentos, pela notável carta que publicámos na Revista de Março de 1866, no artigo intitulado: O Espiritismo e a Magistratura. Ele vem hoje, por um trabalho de alto alcance, emprestar resolutamente o apoio e a autoridade do seu nome a uma causa que, na sua consciência, considera como a da Humanidade.

Entre os adeptos já numerosos que o Espiritismo conta na magistratura, o Sr. Jaubert, vice-presidente do tribunal de Carcassonne e, o Sr. Bonnamy, juiz de instrução em Villeneuve-sur-Lot, são os primeiros que abertamente arvoraram a bandeira. E o fizeram, não no dia seguinte à vitória, mas no momento da luta, quando a doutrina é alvo dos ataques dos seus adversários e, quando os seus aderentes ainda estão sob o golpe da perseguição. Os espíritas actuais e os do futuro saberão apreciá-lo e não o esquecerão. Quando uma doutrina recebe os sufrágios de homens tão justamente considerados é, a melhor resposta às diatribes (i) de que ela possa ser objecto.

A obra do Sr. Bonnamy marcará os anais do Espiritismo, não só como a primeira à data no seu género, mas, sobretudo, pela sua importância filosófica. O autor aí examina a doutrina em si mesma, discute os seus princípios, dos quais tira a quintessência (i), fazendo abstracção completa de todo o personalismo o, que exclui qualquer pensamento corporativista.


NO PRELO

PARA APARECER EM DEZEMBRO

A Génese, os Milagres e as Profecias SEGUNDO O ESPIRITISMO
POR ALLAN KARDEC

1 vol. in-12, de 500 páginas

Allan Kardec

/…

(*)
 Um volume in-12; Preço: 3 francos; pelo correio: 3,35 francos. Livraria Internacional, 15, Boulevard Montmartre, Paris.
"Aceder ao original francês (i). Nota desta plublicação.

Nota desta publicação: "Julgamos, estas duas notícias terem interesse actualmente. Foram publicadas na Revue, de Novembro de 1867. Através delas – viajamos na sustentação das ideias emancipadoras coligidas por Kardec – aquando, também, de levar ao prelo a sua obra A Génese. No que contou, na primeira notícia, com a colaboração de uma figura maior a, do providencial Sr. Bonnamy (**), que aqui nos concedeu o seu vivo testemunho e muitas palavras honrosas de gratidão ao Espiritismo e, que realizou uma obra notável de índole espírita; da qual a primeira notícia é exemplo e nela nos deixou exímios recados concernentes às boas práticas de orientação no estudo e na divulgação da doutrina e, um rol inumerável de alertas (muito sérios!) aos párias em redenção no planeta Terra.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, A RAZÃO DO ESPIRITISMO, POR MICHEL BONNAMY (**) / Juiz de instrução; membro dos congressos científicos de França; antigo membro do conselho geral de Tarn-et-Garonne, No Prelo... | Jornal de Estudos Psicológicos de Novembro de 1867, Publicação sob a direcção de Allan Kardec, 5º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

domingo, 21 de abril de 2019

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XVII

~~~ O Espiritismo e a renovação das vidas anteriores |

(Setembro de 1918)

De entre as experiências que diariamente vêm aumentando o número das provas e dos testemunhos com que se fortalece o Espiritismo, devem ser citadas as que visam a renovação da memória, isto é, a reconstituição no ser humano das lembranças anteriores ao nascimento. Mergulhado num sono hipnótico, o indivíduo se desprende do seu invólucro físico, se exterioriza e, nesse estado psíquico, sente que o círculo de sua memória normal se dilata. Todo o seu passado remoto se desenrola diante dele, em sucessivas fases, podendo reproduzir; reviver as suas cenas principais e mesmo os mais simples acontecimentos, à vontade do experimentador.

Há pouco chamei a atenção do coronel de Rochas para os factos dessa espécie, conseguidos por experimentadores espanhóis e apresentados ao Congresso Espírita e Espiritualista de 1900, realizado em Paris. O coronel, já conhecido pelos seus trabalhos sobre a exteriorização da sensibilidade e da motricidade, prosseguiu as suas pesquisas no sentido que eu lhe indicara e alcançou notáveis resultados. O conjunto desses factos está narrado em sua obra As Vidas Sucessivas.

Os factos obtidos em Aix-en-Provence, na presença do Dr. Bertrand, prefeito da cidade, e do Sr. Lacoste, engenheiro, cujos testemunhos posteriores recolhi no decorrer de uma série de conferências, possuem sérias garantias de autenticidade.

Nessas sessões, a pessoa adormecida era uma jovem de 18 anos, que falava a respeito das suas existências passadas, revivendo-lhe os acontecimentos com realismo e com uma vivacidade de impressões e de sensações que não podem ser fingidas, porque para tanto seriam necessários profundos conhecimentos de patologia, que a pessoa não podia possuir, segundo todas as testemunhas.

As experiências de Grenoble, com outra pessoa, de nome Josephine, permitiram a verificação das condições no tempo e nos lugares onde viveu uma das suas existências anteriores com o nome de Bourdon.

Em compensação, algumas narrativas do livro nos parecem muito menos certas, menos aceitáveis, devidas, em grande parte, à imaginação da sujet, elemento contra o qual devemos estar sempre prevenidos no trato com esses fenómenos. O coronel de Rochas nem sempre foi feliz na escolha dos seus médiuns.

As informações colhidas em Valence e em Hérault mostram que algumas delas não são dignas de confiança. Desse livro colhemos certas observações que achamos poder reproduzir aqui:

“As lembranças – diz o autor – concentram-se em factos mais ou menos distantes, à medida que a hipnose se aprofunda.

A sugestão tem menos domínio quando o sono é mais profundo e, ao despertar, o indivíduo não guarda nenhuma recordação do que disse ou do que fez em transe. Cada vez que o indivíduo passa por uma vida diferente, a sua fisionomia fica de acordo com a personalidade manifestada. Tratando-se de um homem, a palavra, o tom e as maneiras diferem sensivelmente do tom e dos gestos de uma mulher. O mesmo acontece quando passa pela fase infantil.”

Os experimentadores espanhóis, dos quais já falamos, haviam feito a mesma verificação, pois à medida que os seus pacientes remontavam às existências passadas, a expressão do seu olhar se tornava cada vez mais selvagem.

O coronel de Rochas narra as impressões pessoais que teve em Roma e em Tivoli, a respeito do que ele considera lembranças de vidas passadas, terminando a sua obra dizendo o seguinte:

“A teoria espírita baseia-se em fundamentos sólidos e, em qualquer caso, é a melhor das hipóteses de estudo que temos formulado.”

Devo confessar que participei em experiências dessa espécie por muito tempo, com a diferença de que, ao contrário de agir fluidicamente sobre os médiuns, deixava que os meus protectores invisíveis os adormecessem, limitando-me a estimulá-los com as minhas perguntas e observações. Com efeito, seria errado acreditar que a presença de um magnetizador seja imprescindível. Ao contrário, se a pureza das suas intenções não é completa, a sua intervenção pode ser prejudicial, pois introduz nas sessões um elemento de perturbação que compromete a veracidade dos resultados.

Quando estamos certos de uma protecção segura do Além, é melhor entregarmos a direcção das experiências às entidades invisíveis. Os meus guias deram-me tais provas do seu poder, do seu saber e de sua elevação que a minha confiança neles foi absoluta.

Deixo por relatar aqui os pormenores dos factos obtidos nessas condições, porque com eles se mistura um elemento pessoal e muito íntimo que me tira a liberdade de os divulgar.

As experiências do coronel de Rochas, assim como as da mesma natureza que acabamos de apresentar, devem ser consideradas como ensaios, tentativas de reconstituição de lembranças de vidas passadas, porque os resultados ainda são parciais e limitados. Mesmo que não se veja nelas senão experiências, deve reconhecer-se que nos dão indicações valiosas sobre os processos a serem empregados e nos demonstram que existe ali um vasto campo de investigações, um conjunto de elementos capazes de renovar toda a Psicologia, desfazendo o mistério vivo que trazemos em nós.

Essas experiências são delicadas e complicadas; exigem muita prudência, em virtude das inúmeras dificuldades com que nos deparamos. Pode ler-se na Revue Spirite, de Julho de 1918 (i), as instruções do espírito William Stead (*) sobre os processos aplicáveis a tal género de pesquisas. Não insistiremos mais nesse ponto, todavia voltaremos às enormes consequências que tais estudos terão quando adquiram desenvolvimento suficiente, não se podendo negar que existe ali o gérmen de uma verdadeira revolução no conhecimento do ser.

É um fenómeno que impressiona (nas experiências bem dirigidas) vermos o passado aparecer, pouco a pouco, dos cantos obscuros de nossa memória e, nos seus acontecimentos, acompanhar o rigoroso encadeamento das causas e dos efeitos que regem todos os nossos actos, que dominam o mundo moral tanto quanto o mundo físico e que representam a trama, a própria lei dos nossos destinos. Nela aparece evidente a lei de justiça e ninguém a pode contestar.

Essas experiências ainda têm outra consequência, não menos importante: ensinam que a personalidade humana é muito mais vasta e mais profunda do que se pensava. O homem possui não apenas elementos vitais pouco conhecidos, mas também faculdades latentes, desconhecidas, cuja manifestação, plena e total, o nosso organismo não permite, mas em certos casos se revelam: a telepatia (i), a premonição (i) e a visão à distância (i). O mesmo acontece com as camadas de nossa memória onde dorme o passado; no decorrer das experiências de que falamos este reaparece saindo da sombra.

A nossa própria história se desenvolve automaticamente e as recordações acordam aos montes, revelando energias ocultas. Podemos apoderar-nos delas, colocá-las em acção para uma boa direcção de nossa vida, para a transformação do nosso porvir e de nosso destino.

Ali, na imortal consciência individual, reside a sanção de todas as coisas. A consciência se recupera no Além, não limitada e abafada como no mundo terreno, mas na sua plenitude, tal qual se nos aparece no transe, com uma tamanha intensidade que o ser evolvido revive o seu passado nas suas alegrias e dores, com tal poder, que se torna para ele uma fonte de venturas ou de tormentos.

Eis aí o que todo o homem deve saber, e um dia saberá, esse conhecimento profundo do ser que o Espiritismo proporcionou. Ele foi o primeiro a orientar a atenção dos experimentadores para esse conhecimento, mostrando-lhe os lados misteriosos, inexplorados da nossa natureza, ensinando o homem a medir a extensão do seu poder, de toda a sua grandeza e de todo o seu porvir.

Não existe, portanto, exagero ao dizer que o Espiritismo, depois de 50 anos de vida, exerce e exercerá, cada vez mais, uma crescente influência, trazendo transformações consideráveis à Ciência, à Literatura e até às Igrejas, como o apresentaremos em próximo artigo.

A grande doutrina das vidas sucessivas da alma, divulgada na França por todos os espíritos nas suas mensagens e comunicações, constitui uma revelação, um ensinamento filosófico de grande importância.

Ela também se apoia em testemunhos quase universais, porque, com excepção do neocristianismo, todas as religiões e quase todas as filosofias, em princípio, a admitem.

Além disso, se beneficia com a possibilidade, que só ela possui, de resolver logicamente os antagonismos aparentes e os obscuros problemas da vida. É verdade que, no campo das provas e dos factos, essa doutrina, até aqui, não possuía senão as reminiscências de alguns homens especialmente dotados, recordações infantis e renascimentos ocorridos em condições anunciadas e bem marcadas.

Graças aos fenómenos de renovação da memória, abre-se, proveitosamente, um vasto campo de observações e nessas experiências se obterá a força e a certeza necessárias para enfrentar e desafiar todas as críticas e ataques.

À medida que as etapas se desenrolam, enquanto o sujet se encontra em transe, entendemos melhor o encadeamento dos destinos do ser. A lei do progresso, por exemplo, destaca-se com mais evidência no conjunto de nossas vidas individuais do que na história das nações que, muitas vezes, são levadas para abismos, pela cobiça desmedida dos seus soberanos e dos seus déspotas, como actualmente está a suceder.

Nos fenómenos tratados, é interessante verificar-se a personalidade humana sair, gradativamente, da vida selvagem e da barbárie e ir se esclarecendo, aos poucos, com a civilização.

livre-arbítrio do homem frequentemente se exerce ao contrário da lei do progresso, prejudicando-a; entretanto as suas consequências são mais sensíveis para o indivíduo do que para a colectividade, que se renova de tempos em tempos por elementos inferiores, provenientes de mundos mais atrasados do que a Terra.

Sucede o mesmo, como já afirmámos, com a ideia de justiça, encontrada, em inteira aplicação, na sucessão de novas vidas. As recordações comprovam que todas as nossas vidas são solidárias umas com as outras e unidas entre si pelo liame de causa e efeito.

Poderíamos comparar cada uma delas a uma corrente que carrega ora o lodo do fundo, ora as pepitas de ouro e as pedras preciosas que trazemos das nossas vidas passadas.

Qualquer acto importante, cedo ou tarde, tem inevitável influência nos nossos destinos. Um devasso sedutor renascerá no outro sexo, para sofrer, por sua vez, os danos que causou.

Um homem que detinha um segredo de Estado e o divulgando, traiu o seu país, retornará surdo e mudo noutra existência. Outros, ainda mais culpados, desde a infância serão feridos pela cegueira, porque cada falta grave determina uma privação de liberdade que se traduz pela colocação de nossas almas em corpos disformes, doentes e miseráveis.

Não se conclua daí que todos os doentes são criminosos do passado! Muitos bons espíritos, sabendo que as provações ajudam o nosso aperfeiçoamento, escolhem existências difíceis e dolorosas, para alcançar um grau a mais na hierarquia espiritual.

Compete, sabermos, sofrer para nos juntarmos às almas nobres que progrediram pela dor; sabermos sofrer para conseguir o direito de participar da existência delas, do seu trabalho e da sua missão. Além disso, a vida é um meio de educação e de progresso, sendo a provação um cadinho onde se aperfeiçoam as criaturas.

Diante de nós, não temos os notáveis exemplos dos mártires de todas as grandes causas, os exemplos de Jeanne d’Arc na prisão e o de Jesus no calvário, estendendo os braços sobre o mundo, do alto da cruz, perdoando e abençoando? Eles não eram culpados, porém espíritos heróicos que desejavam subir mais alto na vida celestial, dando-nos uma grande lição!

A reconstituição das reminiscências está concorde com as revelações dos espíritos, apresentando-nos no padecimento humano, em muitos casos, o resgate das faltas cometidas, a reparação do passado, através do meio por onde se realiza a soberana justiça.

Realizado o resgate, a criatura se prepara para novos progressos, porém a sua memória não desaparece integralmente e os nossos actos surgem e revivem, ao comando do espírito, com espantosa intensidade. Quanta emoção, quando, invocando o passado, desfila perante o tribunal da consciência o cortejo das desagradáveis recordações! Como fugir de tal obsessão, das tristezas e remorsos e dos sofridos arrependimentos?

No ocaso da vida, o homem passa em revista os actos que constituíram o seu curso. Quantos motivos para a amargura e sofrimento moral vai neles encontrar!

O que não representará para o espírito, na análise da sua longa série de existências passadas, a recordação de seus pormenores?

Pouquíssimas almas jovens no início, na sua fraqueza e na sua ignorância, conseguiram evitar as quedas, os desfalecimentos e até os crimes. Para tais males só existe um remédio: juntar tantas vidas úteis e proveitosas, tantas obras de dedicação e de sacrifício que, comparadas às faltas primitivas, estas passem a ter pouco valor.

As reminiscências mais distantes permanecem vivas para o espírito, da mesma forma que as impressões da infância para o velho. É que, na sua essência, o espírito escapa ao tempo; volvendo à vida do espaço, o tempo já não existe para ele; o passado e o futuro se misturam no eterno presente.

Tal constância das recordações tem valor moral: durante o seu progresso o espírito adquire faculdades e poderes dos quais se envaideceria, caso não se lembrasse do pouco que foi e do mal que praticou.

Tais lembranças são uma punição para o orgulho e, ao mesmo tempo, motivo de indulgência para com os erros e os desfalecimentos do próximo. Realmente, como poderíamos ser duros e inclementes com os outros, por causa de suas fraquezas, se nós mesmos as cometemos?

Geralmente as vidas culpadas, pelas reparações que acarretam, convertem-se, para o ser, noutros tantos estimulantes, noutras tantas provações, obrigando-o a se adiantar na senda do progresso, sendo que as vidas apáticas, incolores, vacilantes entre o bem e o mal, são de pouco proveito para ele.

Graças às vidas de lutas e provações, os caracteres se fortalecem, a experiência se consegue, as riquezas da alma se desenvolvem. O mal transforma-se, aos poucos, em força para o bem. Na imensa evolução humana tudo se transforma, se depura e se eleva. Tão logo chegados às celestes alturas, os elementos das nossas vidas sucessivas se fundem em uma unidade harmoniosa e divina.

/…
(*) William Thomas Stead (1849-1912), foi um editor de um jornal inglês, pioneiro do jornalismo investigativo (i) e pacifista. Stead estava a bordo do RMS Titanic (i) e morreu durante o naufrágio do transatlântico (i). Era considerado um dos mais famosos ingleses a bordo. Na década de 1890, Stead, se foi tornando cada vez mais interessado no espiritualismo (i). Fonte: Wikiwand, ver notícia completa (i). Nota desta publicação.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XVII O Espiritismo e a Renovação das Vidas Anteriores, Setembro de 1918, 32º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Willim Stead, foi um editor de um jornal inglês, pioneiro do jornalismo investigativo, pacifista, interessado espiritualista pesquisador e editor, que ia a bordo do Titanic e morreu no naufrágio do transatlântico.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Da sombra do dogma à luz da razão ~


O instinto e a inteligência ~

     Que diferença existe entre o instinto e a inteligência? Onde acaba um e começa o outro? O instinto é uma inteligência rudimentar ou uma fatalidade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

   O instinto é a força oculta que instiga os seres orgânicos a actos espontâneos e involuntários para a sua conservação. Nos actos instintivos não há nem reflexão, nem combinação, nem premeditação.

   É assim que a planta procurara o ar, se volta para a luz, orienta as suas raízes para a água e para a Terra alimentadora; que a flor se abre e se fecha alternadamente consoante a necessidade; que as plantas trepadeiras se enrolam à volta do suporte ou se agarram com as gavinhas. É por instinto que os animais são prevenidos quanto ao que lhes é útil ou prejudicial; que se dirigem consoante as estações para os climas propícios; que constroem, sem lições prévias, com mais ou menos arte, consoante as espécies, ninhos macios e abrigos para a sua progenitura, dispositivos para apanharem em armadilhas as presas com que se alimentam; que manobram com perícia as armas ofensivas ou defensivas com que estão dotados; que os sexos se aproximam; que a mãe mima os seus meninos e que estes procuram o seio da mãe. No homem, o instinto domina exclusivamente o início da vida; é por instinto que a criança faz os seus primeiros movimentos, que toma os primeiros alimentos, que chora para exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. Mesmo no adulto, alguns actos são instintivos; são assim os movimentos espontâneos para evitar um risco, para se afastar de um perigo, para manter o equilíbrio; são também assim o fechar das pálpebras para suavizar o clarão da luz, a abertura maquinal da boca para respirar, etc.

   A inteligência revela-se por actos voluntários, reflectidos, premeditados, combinados, segundo a oportunidade das circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

   Qualquer acto maquinal é instintivo; o que revela reflexão, combinação, uma deliberação, é inteligente; um é livre, o outro não o é.

   O instinto é um guia seguro que nunca engana; já a inteligência, pelo facto de ser livre, está por vezes sujeita ao erro.

   Se o acto instintivo não tem o carácter do acto inteligente, revela pelo menos uma causa inteligente essencialmente previdente. Se admitirmos que o instinto tem a sua origem na matéria, teremos de admitir que a matéria é inteligente, mesmo mais seguramente inteligente e previdente do que a alma, dado que o instinto não se engana, enquanto a inteligência se engana.

   Se considerarmos o instinto como uma inteligência rudimentar como é que, em certos casos, é superior à inteligência reflectida? Que lhe permite fazer coisas que a inteligência não pode produzir?

   Se é atributo de um princípio espiritual especial, que acontece a esse princípio? Dado que o instinto se apaga, esse princípio seria então anulado? Se os animais só são dotados de instinto, o seu futuro não tem portanto saída; os seus sofrimentos não têm qualquer compensação. Não estaria conforme com a justiça nem com a bondade de Deus (Capítulo II, n.º 19).

   Segundo uma outra teoria, o instinto e a inteligência teriam um só e igual princípio, chagado a um certo grau de desenvolvimento, este princípio, que primeiro só teria possuído as qualidades do instinto, sofreria uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.

   Se assim fosse, no homem inteligente que perde a razão e já só é guiado pelo instinto, a inteligência regressaria ao seu estado primitivo; e quando recuperasse a razão o instinto tornar-se-ia de novo inteligência e assim alternadamente em cada acesso, o que não é admissível.

   De resto, a inteligência e o instinto mostram-se muitas vezes simultaneamente no mesmo acto. No andamento, por exemplo, o movimento das pernas é instintivo; o homem coloca um pé à frente do outro instintivamente, sem pensar nisso; mas quando quer acelerar ou retardar o andamento, levantar um pé ou voltar-se para evitar um obstáculo, há nisso cálculo, combinação; age deliberadamente. O impulso involuntário do movimento é o acto instintivo; a direcção calculada do movimento é o acto inteligente. O animal carnívoro é levado pelo instinto a alimentar-se de carne; mas as precauções que toma consoante as circunstâncias para apanhar a presa, a sua previsão das eventualidades, são actos da inteligência.

   Outra hipótese que aliás se alia perfeitamente à ideia de unidade do princípio, resulta do carácter essencialmente previdente do instinto, e estou de acordo com o que o Espiritismo nos ensina no que se refere às relações do mundo espiritual com o mundo corporal.

   Sabemos agora que Espíritos não encarnados têm por missão velar pelos encarnados de que são os protectores e os guias; que os rodeiam com os seus eflúvios; que o homem age muitas vezes de forma inconsciente sob a acção destes eflúvios.

   Sabemos além disso que o instinto, que produz ele mesmo actos inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres de razão fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria um atributo nem da alma nem da matéria; não pertenceria exclusivamente ao ser vivo, mas seria um efeito da acção directa dos protectores invisíveis que compensariam a imperfeição da inteligência provocando eles mesmos os actos inconscientes necessários à conservação do ser. Seria como os suspensórios com a ajuda dos quais sustentamos a criança que não sabe ainda andar. Mas, tal como suprimimos gradualmente o uso dos suspensórios à medida que a criança se sustem sozinha, os Espíritos protectores, à medida que estes se vão podendo orientar pela sua própria inteligência, deixam os seus protegidos entregues a si mesmos.

   Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar e incompleta, seria produto de uma inteligência estranha na plenitude da sua força; inteligência protectora, suprindo as influências tanto de uma inteligência mais jovem que influenciaria para fazer inconscientemente, para seu bem, o que ela é ainda incapaz de fazer por si, como as de uma inteligência madura, mas momentaneamente impedida do uso das suas faculdades, tal como acontece no homem durante a infância e nos casos de idiotice ou de afecções mentais.

    Dizemos proverbialmente que há um Deus para as crianças, para os loucos e para os bêbados; este ditado é mais verdadeiro do que julgamos; este Deus não é outro se não o Espírito protector que vela pelo ser incapaz de se proteger pela sua própria razão.

   Por esta ordem de ideias, podemos ir mais longe. Esta teoria, por muito racional que seja, não explica todas as dificuldades da questão.

   Se observarmos os efeitos do instinto, começamos por notar uma unidade de ideias e de conjunto, uma segurança de resultados que deixa de existir quando o instinto é substituído pela inteligência livre; além disso, na adequação tão perfeita e tão constante das faculdades instintivas às necessidades de cada espécie, reconhecemos uma profunda sabedoria. Esta unidade de ideias não poderia existir sem unidade de pensamentos, e a unidade de pensamentos é incompatível com a diversidade de aptidões individuais; só ela poderia produzir este conjunto tão perfeitamente harmonioso que se manifesta desde a origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade e uma precisão matemáticas, sem nunca falhar. A uniformidade no resultado das faculdades instintivas é um facto característico que implica forçosamente a unidade da causa; se esta causa fosse inerente a cada individualidade haveria tantas variedades de instintos como há de indivíduos, desde a planta até ao homem. Um efeito geral, uniforme e constante; um efeito que acusa sabedoria e precaução deve ter uma causa sábia e previdente. Ora, uma causa sábia e previdente, sendo necessariamente inteligente, não pode ser exclusivamente material.

   Não encontrando nas criaturas, encarnadas ou não, as qualidades necessárias para produzirem um resultado assim, é necessário ir mais alto, isto é, até ao próprio Criador. Se nos limitamos à explicação que foi dada sobre a maneira como podemos conceber a acção providencial (Capítulo II, n.º 24); se imaginarmos todos os seres penetrados de fluído divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria previdente e a unidade de ideias que presidem a todos os movimentos instintivos para o bem de cada indivíduo. Esta solicitude é tanto mais activa quanto menos recursos o indivíduo possui em si e na sua inteligência; é por isso que se revela maior e mais absoluto nos animais e nos seres inferiores do que nos homens.

   Segundo esta teoria, compreendemos que o instinto seja um guia sempre seguro. O instinto maternal, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa ao nível das forças atraentes da matéria, encontra-se elevado e enobrecido. Devido às suas consequências, não podia ser deixado às eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Através do organismo da mãe, Deus vela pelas suas criaturas que vão nascer.

   Esta teoria não destrói de modo nenhum o papel dos Espíritos protectores cujo concurso é um facto adquirido e provado pela experiência; mas é de notar que a acção destes é essencialmente individual, que se modifica consoante as qualidades próprias do protector e do protegido e que em sítio nenhum tem a uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, na sua sabedoria, conduz ele mesmo os cegos, mas confia a inteligências livres o cuidado de conduzir os clarividentes, para deixar a cada um a responsabilidade dos seus actos. A missão dos espíritos protectores é um dever que aceitam voluntariamente e que é para eles um meio de evolução, consoante a forma como a cumprem.

   Todas estas formas de considerar o instinto são necessariamente hipotéticas e nenhuma tem um carácter de autoridade suficiente para ser dada como solução definitiva. A questão será certamente solucionada um dia, quando tivermos reunido os elementos de observação que ainda nos faltam; até lá, temos de nos limitar a submeter as várias opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que se faça luz; a solução que mais se aproxima da verdade será necessariamente aquela que corresponde melhor aos atributos de Deus, isto é, à soberana bondade e à soberana justiça (Capítulo II, n.º 19).

   Sendo o instinto o guia e as paixões a energia das almas no primeiro período do seu desenvolvimento, confundem-se às vezes nos seus afectos. Há no entanto entre estes dois princípios diferenças que é essencial considerarmos. O instinto é um guia seguro, sempre bom; numa determinada altura, pode tornar-se inútil, mas nunca prejudicial; enfraquece com a predominância da inteligência.

   As paixões, nos primeiros anos da alma, têm isto de comum com o instinto, no que os seres são para isso solicitados por uma força igualmente inconsciente. Nascem mais particularmente das necessidades do corpo e estão mais ligadas ao organismo do que o instinto. O que sobretudo as distingue do instinto é que são individuais e não produzem, como este último, efeitos gerais uniformes, pelo contrário, vemo-las variar de intensidade e de natureza consoante os indivíduos. São úteis como estimulante até à eclosão do sentido moral que, de um ser passivo, faz um racional; nesse momento, não só se tornam inúteis como são prejudiciais à evolução do Espírito, a que retardam a desmaterialização; enfraquecem com o desenvolvimento da razão.

   O homem que agisse constantemente por instinto poderia ser muito bom, mas deixaria a sua inteligência adormecer, seria como uma criança que não largasse os suspensórios e não soubesse servir-se dos seus membros. Quem não domina as suas paixões pode ser muito inteligente mas, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto anula-se por si; as paixões só se dominam com força de vontade.

/...


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo III, O Bem e o Mal – O instinto e a inteligência (de 11 a 19), 20º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 24 de março de 2019

o sentido da vida ~


Do Empirismo | à Ciência (II)

E chegamos, assim, ao ponto em que os podemos defrontar com a religião no próprio terreno da ciência, que lhe parecia antagónico. Do empirismo supersticioso até ao limiar da ciência, que longo percurso tivemos de fazer! Mas ainda não estamos livres das práticas empíricas. Estas, pelo contrário, continuam a exercer poderosa atracção sobre os próprios adeptos do Espiritismo.

Diz um velho ditado que o uso do cachimbo faz a boca torta. E muitos espíritas, não podendo deixar de aceitar os factos e as verdades com que tiveram de se defrontar, mas não tendo forças para sair prontamente dos hábitos adquiridos, procuram introduzir no Espiritismo práticas e sistemas alheios à natureza real da doutrina. O Espiritismo não é uma igreja, os centros e sedes de outras associações doutrinárias não são templos ritualistas, nem possuem sacerdotes para ministrar sacramentos, mas o espírita de boca torta não concebe um casamento sem a bênção da igreja ou um nascimento sem as águas lustrais do baptismo.

E então se apega ao médium, tábua de salvação para vivos e mortos e, apela ao mundo dos espíritos, que lhe envie – eterna simplicidade do povo! – um espírito de padre, para ministrar os sacramentos que ele se recusa a tomar na própria fonte de origem, aqui na Terra!

Mas ainda não é só. Alguns adeptos, inconformados com a simplicidade racional da doutrina, viciados ainda no transcendentalismo artificial das religiões ritualistas, procuram refúgio noutras concepções, que parecem mais vastas, mais profundas e mais ricas. É ainda a atracção do maravilhoso. Allan Kardec diz:

“O sobrenatural se esvai à luz da ciência, da filosofia e do raciocínio, como os deuses do paganismo desapareceram à luz do Cristianismo.”

Esses adeptos, porém, ainda não receberam luz suficiente das verdades espíritas e continuam fascinados pelo sobrenatural, maravilhoso.

Alegam então que a Teosofia não se restringe aos problemas da sobrevivência e da intercomunicação, indo muito mais longe, na interpretação da própria natureza de Deus e na explicação de mistérios que os espiritistas ainda ignoram por completo. Afirmam que os rosa-cruzes possuem uma visão mais dinâmica e profunda do Universo, que certas escolas esotéricas e mentalistas possuem fórmulas capazes de resolver mais prontamente, do que pelos meios espíritas, os graves problemas do psiquismo. E há os que preferem as fórmulas nebulosas de sincretismo religioso, formas híbridas de ritualismo e de sistemas sacramentais, como as correntes de Umbanda, em que as superstições afro-caboclas se misturam exuberantemente aos elementos do culto católico-romano. E há os que, ansiosos por descobrir “mistérios” que o Espiritismo não aceita, se apegam a interpretações confusas, como as do chamado Redentorismo, ou ao misticismo incoerente e artificioso de Roustaing.

A todos esses espíritas desprevenidos devemos lembrar que o esforço maior do Espiritismo é realizado no sentido de libertar o homem das suposições sem base, das explicações transcendentes, das superstições de tabus religiosos. O Espiritismo não deseja reforçar as tendências instintivas do homem para o maravilhoso, mas conduzi-lo com mão firme, segura e serenamente, para o conhecimento real das verdadeiras maravilhas do Universo, tanto as da natureza exterior quanto as do plano espiritual.

A imaginação humana é muito fértil e não é difícil, a qualquer homem dotado de grandes recursos de inteligência, arquitectar um sistema de explicações do Universo, desde as formas rudimentares da matéria até aos esplendores da natureza divina. Também do espaço, muitos sistemas dessa espécie podem ser-nos transmitidos por espíritos “esclarecidos”, a título de revelação. Mas Kardec já nos deu a lição, dos seus ensinamentos e do seu exemplo, no tocante a essas revelações do tipo roustainguista.

Há uma pauta segura para a avaliação das coisas, venham elas de cima ou aqui de baixo mesmo. Há uma linha de raciocínio que nos serve de guia seguro no labirinto das suposições e das teorias. E há o critério científico de observação, de comparação e de análise, que deve presidir ao trabalho do homem no terreno espiritual, como em qualquer outro. Por isso mesmo, no campo da religião, domínio aberto do empirismo e do maravilhoso, o Espiritismo nos oferece o antídoto da fé raciocinada, verdadeira vacina contra os exageros místicos e a chave de controlo para o desenvolvimento equilibrado da era da intuição, da qual se aproxima a humanidade.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Do Empirismo à Ciência 2 de 2, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quarta-feira, 6 de março de 2019

~~~Párias em Redenção~~~


~~~ INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(III)
  Aquele era o estranho mundo dos desencarnados. Sociedade idêntica à terrena, pela proximidade do veículo das sensações, de que somente alguns, poucos, conseguiam libertar-se, continuavam os Espíritos imanados aos hábitos da ociosidade perniciosa e das paixões degradantes.

  Associados em magotes que se caracterizam pelas preferências em que longamente se comprazem, formam bandos e legiões que povoam as cidades, ou se congregam em regiões que infestam de forças deletérias, formando comunidades perniciosas, estabelecendo organizações de mando, nas quais se destacam os mais perversos, que passam à condição de condutores e administradores dos seus destinos.

  Nessas colmeias de suprema miserabilidade moral e espiritual, o regime da força e da degradação consome multidões desvairadas, que se vão reduzindo às mínimas manifestações da racionalidade, em círculo de infelicidade que conduz, incessantemente, à demência, à bestialidade todos aqueles que se vinculam às suas tenazes… Dir-se-ia que ali não penetram a Misericórdia Excelsa do Amor, nem as bagas de luz da esperança. Repetir-se-ia a visão dolorosa das palavras que Dante divisara gravadas à entrada dos Infernos: “Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate!” (*)

  Naquelas desoladas e inenarráveis regiões, em que se aglomeram os trânsfugas, a mais fértil imaginação não concebe os dramas e as tragédias, os suplícios com que se lapidam, auto-afligindo-se e afligindo-se uns aos outros, em sede incomensurável de reparação. O acontecimento, embora inconcebível pela dor que produz, é parte da Divina Mercê, que se utiliza de todas as circunstâncias de tempo e lugar, situação e forma para despertar os profundamente anestesiados nos centros da lucidez, hipnotizados pela febre dos desejos, que gravitam apenas nos instintos, ferreteados pela lancinante agonia, única linguagem que lhes pode chegar à acústica do espírito infeliz, impulsionando-os pelo incontido desejo de paz na desgraça em que padecem, para sair dos bastardos estados de primitivismo.

  Entretanto, até que muitos despertem, passam-se séculos, que não são consumidos nos submundos edificados pelas mentes terreficadas pelo mal e agrilhoadas às sensações selvagens, já que essas esferas de sombra e punição se espalham pela mesma Terra, em purgatórios e infernos temporários, mas de longa duração, justificando as consciências obliteradas e os corações empedernidos.

  Nesses lugares edificam os seus sórdidos e infectos pardieiros, utilizando-se da própria exteriorização mental, carregada de fluidos danosos, em que as emanações pestilenciais formam a atmosfera quase irrespirável para eles mesmos, que assim, lentamente, despertam para valorizar as bênçãos do ar puro da Natureza, nos futuros cometimentos reencarnatórios, a que serão compelidos pelo império da Lei, que um dia os alcançará.

  Ali proliferam subtipos, em experiência nas primeiras tentativas da evasão, infensos ao sentimento, mergulhando no corpo e dele retomando pelo automatismo do Estatuto Divino em funcionamento coercitivo. Os albores da inteligência neles se fazem acompanhar das primeiras experiências na sociedade humana, em cujas oportunidades iniciam o progresso ou se demoram na condição primária. Sempre chega, porém, o momento do despertar e a todos são facultadas sublimes concessões para o aprimoramento e a felicidade.

  Os bandos que se arrastam inermes ou se tragam em fúria, deambulando pelas ruas e lugares onde podem exercitar a vampirização, por sintonia dos propósitos mantidos pelos encarnados, demoram-se entre os homens em perfeita comunhão mental, arrancando-lhes, por exorbitância, as energias físicas e psíquicas, no mais hediondo comércio que se possa imaginar.

  Participando activamente das tragédias que enlutam as criaturas, comprazem-se ante os infaustos acontecimentos, pelos lucros que podem fruir, vampirizando, normalmente, os que partem da Terra sem as armas de defesa da vida – que são as lâmpadas da caridade, as luzes do amor, as bênçãos da honradez, as energias da renúncia, as forças da humanidade, que não conseguem sobrepujar, pois que fogem espavoridos ante o grandioso argumento do valor intransferível. Além disso, os Espíritos felizes, reconhecidos e amorosos, cercam aqueles que se lhes fizeram afins, protegendo-os das surtidas dos salteadores do Espaço, impondo-lhes a retirada…

  Nos suicídios, no entanto, que pressentem, pois que são atraídos pela mente desvairada do desafortunado que o engendra, inevitavelmente se associam para o banquete hediondo da vampirização. O mesmo acontece no homicídio, quando a vítima desguarnecida dos recursos libertadores se vincula, pelo ódio ou pelas vibrações nefastas, ao que lhe arranca a vida, caindo nos círculos desses vândalos desencarnados.

  Girólamo oferecera o corpo em estertores à chusma de vampiros, cujas impressões dolorosas só mais tarde viriam atormentá-lo, adicionadas às supremas aflições que já o laceravam.

  Vivendo no trânsito entre o animal e o homem primário, jamais cuidara da realidade do espírito, não produzindo qualquer fortaleza para se agasalhar, além da sepultura, dos tormentos gerados pela infame tragédia do suicídio em que se atirara. Transladou-se sem qualquer recurso de defesa ou título de merecimento que lhe facultassem repouso. Consciência obliterada para as manifestações do belo, do nobre e da virtude, despertava, agora, no país da realidade, com os destroços acumulados na avareza e reunidos pela criminalidade.

  Na sucessão de vagados em que, alucinado, caía em exaustão, para acordar sob as mós das dores acumuladas, começou a sentir o cadáver no mausoléu em que se desagregava, atado pelos laços poderosos que a rebeldia não conseguiu atingir. Deu-se conta, então, a pouco e pouco, do grotesco infortúnio em cujo fosso se arrojara irremediavelmente…

  Em bestial angústia, percebeu-se no desgaste orgânico que o afectava cruelmente, sentindo os milhões e milhões de vibriões que lhe percorriam as células, voluptuosos, como se estivessem na intimidade do espírito, e, por mais que desejasse evadir-se do local, era compelido a continuar sem o amparo de qualquer lenitivo.

  Simultaneamente, a sufocação, o enfraquecimento pela perda das energias de sustentação das forças psíquicas vampirizadas, as dores na cabeça, que se dilatava grotesca, pelo impedimento da circulação no cérebro, produziam-lhe indizível sensação. Só então, (quanto tempo transcorrera!) experimentou nos ouvidos, que pareciam destroçados por um petardo que espocasse dentro, incessantemente, as objurgatórias, as acusações, a mofa, a zombaria infernal dos que se nutriam da sua desdita.

  – E agora, suicida? – interrogavam em zombaria desrespeitosa. – Para onde vais? Eis aí a morte! Estamos todos mortos. Onde esconderás a vergonha, o cinismo, a hediondez? Fala!

  Gargalhadas de impiedade e cinismo explodiram, ensurdecedoras.

  Pretendeu falar, furioso, açulado em toda a sua miséria, mas não pôde. Os centros da fala haviam sido atingidos profundamente e ele se sentiu impossibilitado de pronunciar qualquer palavra.

  A mente aturdida, no entanto, espicaçada pela gritaria, reflectia: “Morto?! Aquilo era a vida, não a morte. Fora, possivelmente, atirado a um cárcere imundo e estava a apodrecer, ao abandono. Não sabia, no entanto, como tal acontecera. O certo é que a Corda se partira…”

  – Enganas-te, sicário dos outros. Morreste! Isto é a morte. Suicida, suicida! Pagarás, agora, todos os teus monstruosos crimes contra a Humanidade. Nada passa despercebido dos olhos vigilantes da vida. Aqui estamos. Somos a consciência do mundo, em regime de justiça, colhendo os desgraçados como tu para cobrar-lhes os crimes que têm passado impunes. Por que te apressaste em regressar? Não sabias que cada minuto no corpo oferece ocasião de reparar os males praticados? Agora, é tarde. Muito tarde!

  Girólamo rebolcava-se, semi-obnubilado e semiconsciente, sem entender.

  – Desperta para o resgate, infeliz, desnaturado que és, como nós. Desperta para começar o martírio. Estás vivo e pagarás todos os teus crimes.

  Muito lentamente, nas sombras densas passou a ver as figuras hediondas, as formas grotescas e, dominado pelo estarrecimento, planejou fugir, arrancar em disparada loucura. Não pode fazê-lo. As amarras que o jungiam, ao cadáver não o permitiram. Os liames perispirituais restringiam-lhe os movimentos, impelindo-o à participação consciente da responsabilidade. A justiça alcançava o criminoso evadido da organização física, mas não da vida!...

  Nesse comenos, em que se sucedem as volumosas e contínuas desventuras, Girólamo vê, e estarrece-se, as figuras de Dom Giovanni e Assunta, suas vítimas, seus verdugos.

  A máscara de dor e ódio das personagens enfurecidas e descompostas levam-no a demorado desmaio.

  Tão pronto recobra a consciência naquele hórrido martírio, ouve com infinito pavor:

  Somos os teus actuais juízes, – diz-lhe o Duque. – Serás julgado e devidamente punido. Ainda não começaram os teus padecimentos. Disse-te que não ficarias impune, miserável. Acorda, logo, para a recuperação. Seremos os teus acusadores. Esperemos que se afrouxem mais os laços que te atam a esses restos, após o que serás transladado ao Tribunal. Não fugirás, pois não tens onde esconder-te.

  Surpreendi-te, infame. Ninguém ou nada interferirá a teu favor, pois, além de tudo, és suicida. Acorda para pagar!

/...
(*) “Deixai qualquer esperança, vós que entrais!” – Cante III, v. 9 – Inferno – Divina Comédia, Dante Alighieri.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (3 de 3) 36º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)