Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 1 de agosto de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Situação perigosa dos médiuns de cura |

A rejeição pura e simples do meio científico ao facto inegável das curas mediúnicas cria para os médiuns de cura uma situação perigosa, que geralmente os afecta perturbando-lhes o necessário equilíbrio psíquico, deformando-lhes o comportamento social e prejudicando-lhes a própria faculdade curadora. No nosso livro Arigó, Vida, Mediunidade e Martírio, sobre o médium Arigó, de Congonhas do Campo, Minas Gerais, tivemos a oportunidade de examinar este assunto de perto, em todas as suas minúcias, por antecipação e, depois, acompanhando as pesquisas realizadas no local pela equipa de cientistas norte americanos de várias Universidades, incluindo elementos da NASA, como Andrija Puharich e John Laurence, o primeiro médico e engenheiro electrónico, e o segundo, biofísico e manager da secção de satélites artificiais da NASA, que, cumulativamente, nos informaram da existência do caso similar de Agpoa nas Filipinas.

Nestes dois casos, justamente famosos, os dois médiuns, sofreram debaixo da pressão constante de elementos exploradores e com as campanhas difamatórias do clero católico, a perseguição por várias instituições médicas, não obstante numerosos médicos brasileiros e estrangeiros tenham comprovado a realidade das curas.

Com médiuns de cura das zonas rurais, como no caso da médium Bernarda Torrúbio, em Garça, na Alta Paulista, os factos não tiveram grande divulgação, o que os preservou e geralmente os preserva das perturbações, de campanhas e de perseguições. Congonhas é uma cidade modesta, mas a sua proximidade com Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais, expunha demasiadamente Arigó a pressões insuportáveis. Quando Arigó morreu, num trágico acidente de automóvel na estrada entre Congonhas e Conselheiro Lafaiete, o bispo D. Vicente Scherer, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, descarregou sobre o seu cadáver uma série de acusações caluniosas, sem um pingo de piedade cristã. Nem a morte livrou o médium e a sua família das consequências da sua actividade curadora.

A primeira cura feita por um médium, não raro de maneira inesperada, lança-o na senda das fascinações perigosas. Ele se sente escolhido por Deus, colocado acima do comum da humanidade, detentor de dons divinos. O fermento velho das religiões salvacionistas cresce no seu inconsciente, levedando-lhe a vaidade natural do homem. Pouco a pouco os necessitados aglomeram-se à sua volta. O atendimento torna-se difícil, em virtude do aumento sempre crescente dos necessitados. Amigos da onça o adulam, propagam os seus feitos, exaltam os seus dons. E, para facilitar a consulta de amigos e parentes, começam a levar-lhe presentes. O médium, que já se considera agraciado por Deus, não estranha que todos queiram agraciá-lo também. Se ele receita, os propagandistas de laboratórios levam-lhe as suas amostras, tratam-no como se ele fosse um médico na sua clínica e acabam oferecendo-lhe comissões, o que ele geralmente rejeita. Mas os amigos e os parentes o incitam a não ser tolo, a aproveitar enquanto é tempo, pois a mediunidade pode enfraquecer-se ou esgotar-se amanhã. Ele deve cuidar do seu futuro, pois os seus protectores espirituais não podem querer o seu desastre e ele mesmo não tem o direito de rejeitar as oportunidades de progresso. No torvelinho de súplicas, elogios, favores e atenções que o envolvem, o médium acaba aceitando as sugestões inferiores e escorrega na beira do abismo. As injustiças dos adversários o irritam, as perseguições o aturdem. Ele acaba por se entregar às fascinações e perverter as suas faculdades. Foge das pessoas que o auxiliaram nos primeiros tempos, considera-as suspeitas. Os políticos o assediam, tratando-o com deferências especiais que lhe estimulam a vaidade. Os seus dons se enfraquecem pelo próprio desgaste físico a que tem de se entregar para atender a todos. Para suprir as deficiências que nota nas suas próprias funções mediúnicas, inventa ou aceita expedientes escusos. Consuma-se, assim, o desvirtuamento do médium, que daí por diante fica entregue às feras que o irão devorar.

Isso acontece também com os sacerdotes terapeutas de todas as seitas e religiões milagreiras. Não se trata de um problema de ordem divina, sobrenatural, mas de um problema puramente humano. O médium não é um santo. É simplesmente um paranormal, uma criatura em que as funções terapêuticas da natureza humana, conhecidas e aceites no meio científico, se exteriorizam, exercendo influências nas pessoas em que essas funções defensivas do organismo se encontram em estado latente. Reduzida a apenas esses aspectos psicofisiológicos, a cura espírita não seria condenada, mas quando os espíritas afirmam, baseados em pesquisas e experiências científicas, mesmo que realizadas por cientistas eminentes, que a extroversão das forças curadoras é provocada por acção de entidades espirituais, o pavor dos fantasmas faz os homens mais graves perderem a cabeça. O médium transforma-se em bruxo ou lobisomem e as superstições da selva invadem os laboratórios. É o terror-pânico da sobrevivência humana que se manifesta, exigindo a acção das autoridades policiais contra os médiuns, já que não pode ser contra os espíritos. Num episódio curioso, o Dr. Silva Mello, confessando-se materialista congénito, classificou os médiuns como alienados mentais. Mas, inadvertidamente, contou que ele mesmo tinha medo de dormir no escuro. O Dr. Sérgio Valle, espírita, devolveu o diagnóstico ao autor, provando por esse e outros motivos que ele também era médium e temia a aproximação dos espíritos. Alienação por alienação, ficaram ela por ela. O saudoso e famoso Dr. Henrique Roxo, glória da psiquiatria nacional, considerou os médiuns como delirantes, sujeitos ao delírio espírita episódico. O seu discípulo mais dedicado e fiel, Dr. Lauro Gallwes, tornou-se espírita e contou num dos seus livros que o Dr. Roxo chegou ao fim de sua vida aceitando a realidade espírita. O mesmo já acontecera com Lombroso, RichetWilliam CrookesPaul GibierGustave Geley e tantos outros, pelo mundo inteiro, provando a fragilidade das construções científicas aparentemente inabaláveis. Hoje, Remy Chauvin denuncia a existência de uma doença típica do meio científico, a alergia ao futuro. Os cientistas alérgicos ao futuro sofrem também de autofobia, como observou Denis Bradley, pois temendo o espírito temem a si mesmos. Uma tragicómica situação que o avanço das ciências vai desmanchando na esteira do tempo.

Os cientistas que se apegam freneticamente aos métodos sensoriais da ciência académica revelam falta de percepção extra-sensorial, o que vale dizer falta de agudeza mental. A função da inteligência não é arrastar-se como insectos na casca da laranja, mas perfurá-la e descobrir o que existe no seu interior. Esses cientistas sistemáticos assemelham-se aos clérigos dogmáticos que não buscam a verdade, mas apenas a confirmação de princípios estabelecidos. Por isso a Ciência se volta muitas vezes contra si mesma, empregando anátemas e excomunhão contra os que rejeitam o credo fideísta. Há uma simbiose cultural dos opostos que gera a dialéctica do absurdo no campo cultural. A Ciência fixou-se, para desenvolver-se com segurança, no conceito do concreto. A fé científica repousa na realidade material. A Religião firmou a sua fé no conceito do abstracto. Da luta entre ambas resultou a assimilação recíproca de atitudes intransigentes. Essa barreira artificial contra a busca isenta e pura da verdade gerou um clero científico que se compraz com a condenação dos que se atrevem a mostrar-se criativos e não apenas repetitivos. A História das Ciências tem episódios medievais, como nos casos de Pasteur e Kardec, os dois atrevidos descobridores de mundos invisíveis e imponderáveis. O medievalismo, com o seu ideal totalitário de homogeneização do pensamento, pesa ainda na nossa consciência e prejudica o avanço científico de alguns sectores culturais onde sobrevivem os antigos carrascos da fogueira e do garrote vil. É inacreditável a certeza com que certos cientistas negam a existência do espírito baseados apenas em pressupostos doutorais. Quando o bispo de Barcelona queimou as obras de Kardec em praça pública (por não poder queimar o próprio), este declarou que a cauda da Inquisição ainda se arrastava pela Espanha. Historicamente essa cauda de sáurio enraivecido continuou a arrastar-se pelo mundo e esfacelou a Europa nos horrores do fascismo nazi.

O médium Arigó, preso na cadeia de Conselheiro Lafaiete, chamava os demais presos de colegas. Ao ser libertado, levou outros libertos para as suas terras em Congonhas e os manteve ali como colegas de trabalho na roça. Dizia sempre aos que o condenavam por isso: “São meus colegas, gente boa que só ficou ruim por causa da miséria.”

Essa atitude do médium roceiro e semi-alfabetizado devia servir de exemplo aos cientistas ilustres que hoje condenam os seus colegas corajosos que rasgam as perspectivas do futuro. É recente o episódio dos psicólogos norte-americanos que condenaram as pesquisas parapsicológicas, confessando não terem lido um só livro sobre o assunto. Rhine declarou apenas isto: “Esses cientistas descobriram um meio anticientífico de tratar de Ciência.”

Os homens vangloriam-se de arrancar os segredos da natureza, de a fazerem falar através dos seus métodos de pesquisa. Mas a verdade é outra. A Natureza não nos esconde nada. Hegel viu isso com clareza ao tratar do reino vegetal, definindo a árvore como um acto permanente de doação. Os demais reinos também se abrem para o homem, revelam-lhe as suas entranhas, convidando-os a aprender no livro aberto do mundo, de que falou Descartes ao sair do Colégio Jesuíta de La Fleche. O próprio Céu está hoje aberto ao homem, revelando-lhe os seus mistérios e oferecendo-lhe as rotas estelares. Bacon compreendeu com ajuda da intuição e reconheceu que toda a Ciência Humana não é mais do que um acto de obediência. O homem só não aprende, como aconteceu com os escolásticos, quando rejeita a liberalidade da natureza e se engolfa orgulhosamente em si mesmo, forjando sistemazinhos absurdos, estreitos leitos de Procusto, como observou Cassirer, nos quais espreme ou espicha, corta ou arrebenta os factos empíricos que não se sujeitam aos seus caprichos. Essa é a Tragédia da Cultura, não produzida pelo acúmulo de conhecimentos, como quer o filósofo, mas por desobedecer à natureza e torcê-la de acordo com as suas ideias e suposições geralmente ridículas.

No seu próprio caso o homem mostra-se rebelde. A natureza Humana não é menos pródiga do que a Natureza Geral. Desde que o mundo é mundo a natureza humana se abre ao homem revelando-lhe a sua essência espiritual, tão perene e imortal como a de todas as coisas e seres. Mas o homenzinho rebelde prefere considerar-se uma excepção orgulhosa. Se tudo é indestrutível, ele prefere considerar-se mortal,  que volta ao pó, luminescência esquiva e passageira no esplendor do Universo. A morte destrói as gerações, mas os homens voltam através de aparições, manifestações sensíveis, materializações, ressurreições tangíveis, como a de Jesus, mas os homens preferem a morte à ressurreição, fazem-se agéneres (seres não-gerados), que eles incluem nos seus fabulários ingénuos.

De onde vem essa relutância do homem ante os fenómenos naturais, mil vezes provados, comprovados e repetidos nas observações naturais e nas pesquisas de laboratórios? Da vaidade. Único ser pensante e racional no nosso mundinho sublunar, miserável subúrbio do cosmos, o homem se envaidece da sua capacidade de pesar e medir as coisas, como se isso bastasse para lhe dar a supremacia absoluta no Universo.

Os médiuns de cura sabem muito bem que nada podem fazer se não tiverem a assistência dos espíritos terapeutas que os envolvem no seu magnetismo perispirítico, descarregando energias espirituais e físicas nos organismos doentes e perturbados para restabelecer-lhes o equilíbrio abalado. Não obstante, julgam-se senhores do poder curador. Esse desequilíbrio mental, provocado pelo orgulho – engorgitamento mórbido do eu inferior –, anula os efeitos curativos no choque fatal das vibrações doentias em conflito. As ambições do poder, a ganância e a superioridade confundem-lhe a mente, levando-o ao fracasso e às tentativas inúteis de socorro e ajuda. Ele se transforma em explorador das esperanças e da fé dos doentes, emparelhando-se com estes no desequilíbrio inevitável. Essa queda do médium, que os espíritos benevolentes não podem impedir, para não anular a experiência necessária, reflecte-se negativamente no plano moral e social, invertendo os efeitos intencionais da sua prática terapêutica, em prejuízo moral e social do despertamento espiritual. Essa é a queda do médium, mais grave que a queda de Adão e a queda social de Rousseau. O fracasso do médium representa, por sua vez, a queda dos que depositavam nele as suas esperanças. É dever dos estudiosos aprofundar essas questões doutrinárias, colocando o problema em termos racionais, sem a precipitação nas ameaças de um misticismo alienante e ingénuo. O Espiritismo exige a verdade nua e crua. Os que temem expor a verdade não podem servir à Ciência Espírita. A verdade é o objecto imediato da Ciência. Sem ela, a Ciência é impossível. Não podemos ter nenhuma certeza no campo do saber se não dispusermos de provas daquilo que afirmamos. Mas há vários tipos de verdade, o que permitiu aos sofistas gregos jogar com as palavras a respeito do problema, até que Sócrates descobriu a maiêutica e aplicou esse método aos faladores perguntando-lhes sempre: “O que é isso?” Obrigados a definir os seus conceitos, os sofistas tiveram de calar ou fugir da sua presença. Como Jesus tratasse da Verdade, Pilatos lhe perguntou o que era a verdade e Jesus não lhe respondeu. Diante disso, muita gente entendeu que a verdade é inexplicável. Ora, uma verdade inexplicável jamais seria verídica. Jesus não respondeu porque Pilatos, envolvido na mentira do complô romano-judaico contra a sua pessoa, não estava em condições de compreender a verdade. O poeta Cleómenes Campos, num pequeno poema sobre esse episódio, escreveu:

Jesus não respondeu.
Foi como se dissesse: “A verdade sou eu.”

Jesus pregava aos homens a verdade da vida humana e os seus objectivos, que decorriam da Verdade Suprema de Deus. Como explicar isso a um romano que ia entregá-lo à crucificação para defender a mentira?

A verdade é uma questão de relação do pensamento com a realidade. Se essa relação é pura, directa, sem deformações interesseiras, ela é a verdade. Por exemplo: se vemos uma pedra e a reconhecemos como pedra, dizendo “vejo uma pedra”, essas palavras são a verdade da nossa percepção e podemos prová-lo facilmente. Mas se vemos uma nuvem e dizemos que se trata da deusa Juno, enganamo-nos, mentimos e não temos nenhuma possibilidade de provar o que afirmamos. Todas as civilizações, desde as mais primitivas às mais adiantadas, foram entretecidas de mentiras e verdades, de ilusões e realidades. Segundo Toynbee, cada civilização se apoia numa grande religião, herdando os seus vícios e virtudes. A corrida para o materialismo, nos últimos séculos do nosso desenvolvimento científico, foi impulsionada pela necessidade de separar o joio do trigo, as mentiras e ilusões da realidade e da verdade. As religiões apoiaram-se no pressuposto da fé, fundada nas revelações espirituais de profetas e messias. Criaram assim, sobre o mundo real, um mundo fictício de pseudo-verdades, toda uma imensa rede de símbolos pré-lógicos, por isso mesmo contraditórios entre si. Nem mesmo o desenvolvimento da lógica escolástica, na Idade Média, conseguiu sanar essa situação cultural alienante. Os pressupostos da fé pela fé, amparados no princípio teológico do credo quia absurdum (creio, mesmo que absurdo) fortaleceram a rede fantasiosa de crenças, mitos e ritos sagrados. O conceito do sagrado impediu, com as condenações violentas, a busca da verdade e qualquer possibilidade de esclarecimento total desse mundo de fascinações.

Surgindo na era científica, em meados do século XIX, o Espiritismo se opôs, ao mesmo tempo, ao religiosismo alienante e ao materialismo exclusivista. Kardec abriu a brecha espírita nesses maciços milenares, estabelecendo o critério da razão na busca da verdade. Sustentou o princípio dialéctico da constituição do mundo por dois elementos fundamentais: espírito e matéria. Dessa colocação, válida e confirmada nos nossos dias, nasceu a Ciência Espírita, armada com os métodos da pesquisa científica dos fenómenos e com os processos da cogitação filosófica livre de pressupostos e preconceitos. A Ciência académica rejeitou a dualidade espírito-matéria, sustentando o monismo materialista, mas o avanço das pesquisas no nosso século acabaram por dar razão à Ciência Espírita. A concepção monista permanece válida, mas em termos de estrutura orgânica da realidade; Espírito e matéria preenchem o cosmos, sendo o espírito o elemento estruturador da matéria. A verdade brota naturalmente das pesquisas científicas da realidade objectiva. O sonho dos fisiólogos gregos realiza-se hoje, plenamente, no desenvolvimento das pesquisas fenoménicas da Ciência Espírita. A Parapsicologia actual é simplesmente o elo de ligação da Ciência Académica com a Ciência Espírita. Sem esse elo, os dois campos científicos permaneceriam separados, impedindo a visão global da realidade, necessária à compreensão verdadeira do mundo, do homem e da vida.

/…


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Situação Perigosa dos Médiuns de Cura, 20º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

sexta-feira, 17 de julho de 2015

o grande desconhecido ~


as ligações do homem com a Terra

As pesquisas antropológicas e psicológicas confirmam a conhecida expressão de
Camões nos Lusíadas: o homem, esse bicho da terra, tão pequeno. O mito de Adão e Eva peca pela distorção histórica, constatando que o homem já era uma realidade cultural no mundo. Adão e Eva nasceram tarde demais, forjados pela mitologia judaica retardatária e sociocêntrica. (Veja-se o livro Adão e Eva, nesta série). Mas a verdade é que o homem não surgiu na Terra como um ser decaído. Pelo contrário, brotou das entranhas do planeta, num parto genésico, produto da elaboração das leis naturais. E isso em corpo e espírito, segundo a tese da evolução criadora de Bergson. Feito do limo da Terra, na expressão bíblica, a origem divina do homem não está no milagre fantástico do fiat mas na remota insuflação das mónadas no cosmo – embrionário e caótico. A teoria científica da evolução considera o homem como um todo evolutivo de natureza material, rejeitando a independência da sua essência espiritual. Darwin afirma que o homem resulta simplesmente da evolução das espécies animais, é um animal que desenvolveu a razão. A posição espírita de Alfred Russell Wallace, colega de Darwin, foi simplesmente rejeitada pela Ciência. Hoje o preconceito materialista foi superado no meio científico mais avançado, com os últimos avanços da Física Nuclear. A concepção espírita do homem volta a predominar e a Parapsicologia sustenta, através de suas pesquisas, que é um ser duplo, que possui um conteúdo extrafísico, segundo a cautelosa expressão de Rhine. A Ciência Espírita confirmou a sua validade científica e a eficácia dos seus métodos de pesquisa.

As ligações do homem com a Terra são de ordem genésica e se desenvolveram numa sequência evolutiva complexa. O esquema dessa sequência esclarece a expressão de Léon Denis que já mencionamos:

a) reino mineral – a alma dorme na pedra o sono preparatório das suas vibrações atómicas ocultas;

b) reino vegetal – a alma sonha na germinação de um mundo mágico de fibras, folhas, flores e frutos, tentando livrar-se do chão e projectar-se às alturas. O vento movimenta as suas folhas e os ramos e as raízes penetram no solo atraídas pelos veios de água subterrâneos, movimentadas pelo tropismo que também atrai folhas e ramos na direcção da luz, nos primeiros ensaios da motilidade. O vegetal é doação, como observou Hegel, o momento em que as energias monádicas se abrem para a doação de si mesmas ao mundo, numa antecipação do altruísmo humano.

c) reino animal – a estrutura monádica, aberta no vegetal em doação de si mesma, retrai-se para centralizar no centro monádico (espécie de núcleo atómico) o controle geral de sua estrutura, desprendendo-se do chão e assumindo a responsabilidade instintiva da sua motilidade, da sua capacidade de movimentar-se sozinha. As formas da motilidade se multiplicam segundo as especificações do desenvolvimento das potencialidades da mónada:

o rastejar, quase sempre acompanhado do escavar, na conservação dos automatismos de defesa e protecção adquiridos nas fases trópicas da movimentação das raízes no subsolo;

o andar, desenvolvimento da capacidade de equilíbrio sobre o solo, com apoio em garras, patas, movimentação muscular, prenunciando o aparecimento dos bípedes;

o saltar, primeira tentativa de libertar-se da força de gravidade, prenunciando o voo, com reminiscências inconscientes do equilíbrio das ramagens no alto, sopradas pelo vento;

o nadar, forma de equilíbrio provinda das primeiras sensações aquáticas no fundo dos mares, lagos e rios, exigindo o domínio das correntes líquidas na flutuação, prenúncio do equilíbrio do voo no ar;

o voar, forma sintética de todas as modalidades de equilíbrio, em que todas as energias da motilidade entram em acção, libertando o ser nascente da necessidade de apoios ligados à superfície do solo ou da água, levitações de um futuro distante em que ele terá de se projectar nas dimensões superiores do Cosmos e nas hipóstases dos mundos espirituais.

O nadar e o voar marcam o início e o fim das experiências da motilidade, segundo o esquema infinito de desenvolvimento das potencialidades da mónada, ou seja, do princípio inteligente que é a matéria-prima do ser. O esboço esquemático que apresentamos é apenas um esboço geral, desprovido das minúcias que só uma investigação mais profunda poderia nos dar, para termos uma visão grandiosa do plano divino de elaboração ou formação do Ser, da síntese final do gigantesco processo ontogénico, apresentada na criatura humana superior. As implicações éticas desse processo, para uma consciência esclarecida e ponderada, são suficientes para classificar de boçais todas as teorias que pretendem estabelecer sistemas políticos e sociais que aviltam a dignidade humana em favor de interesses mesquinhos.

Por outro lado, essa visão espírita do processo genético reduz à condição de um fabulário ingénuo, típico das civilizações agrárias e pastoris, toda a mitologia bíblica, sobre a qual as Igrejas Cristãs fundaram as suas teologias. A Palavra de Deus nunca foi pronunciada em nenhuma língua humana, mas na linguagem monádica das leis irreversíveis que regem o Infinito, desde as constelações atómicas de um grão de areia até às galáxias superiores. Deus não fala em palavras, fala em mónadas. As suas frases não são escritas em nenhuma língua inexpressiva dos planos inferiores, e as suas frases não estão sujeitas à exegese das mentes relativas. Cada palavra da linguagem divina é um ser e cada frase é um mundo, cada discurso uma constelação com milhões de anos-luz de extensão. Não obstante, o nosso pensamento pode compreender essa linguagem divina, se tivermos essa virtude tão simples e tão difícil que se chama simplicidade e floresce na humildade.

A Terra e o Homem formam uma unidade, pois as nossas ligações com o planeta foram estabelecidas na Génese. Mas a Terra não é apenas o planeta material que nos suporta. Espinoza, cujas ligações com o Espiritismo são flagrantes na Ética, ensinou a existência da Natureza Naturata e da Natureza NaturansTudo o que temos no plano natural exterior são efeitos produzidos pelas causas profundas da Natureza invisível. As duas Naturezas, que Platão chamou de Sensível e Inteligível se interpenetram. Hoje a Ciência reconhece, embora ainda de maneira incipiente, que os mundos de matéria e antimatéria são interpenetrados. Nessa interpenetração dinâmica o homem é um point d'optique, um ponto visual em que o Sistema do Mundo se reflecte por inteiro. As duas Naturezas do Mundo revelam-se no homem como alma e corpo. A nossa alma se liga à Alma da Terra (Natura Naturans) e o nosso corpo se liga ao corpo da Terra (Natura Naturata). Por isso, ao morrer, o nosso corpo retorna à terra de que nasceu e o nosso espírito não voa para mundos distantes, mas permanece imantado ao domicílio terreno. Só quando o espírito atingiu e ultrapassou os limites da evolução terrena tem o direito de elevar-se aos mundos superiores. As condições desses mundos não são acessíveis aos espíritos que ainda se encontram imantados ao pó da Terra.

Além dos motivos genésicos da nossa imantação ao solo e à atmosfera terrena, às hipóteses ou esferas da erraticidade, temos ainda:

a) os compromissos e as dívidas que contraímos, em encarnações sucessivas, com pessoas e comunidades, e que só se apagam com os resgates e as reparações que teremos de enfrentar em novas reencarnações;

b) as afeições que nos prendem a criaturas que continuem em trânsito no planeta;

c) os trabalhos e deveres que geralmente protelamos em encarnações sucessivas e que aumentam na proporção do nosso desleixo, quando não os somamos a novas protelações;

d) as exigências da consciência no tocante a realizações mal acabadas ou negligenciadas por interesses imediatistas;

e) o menosprezo com que enfrentamos as exigências do nosso aprendizado no plano moral e cultural, deixando de adquirir os elementos indispensáveis à convivência com espíritos elevados.

Podemos examinar nós mesmos, no momento presente, as nossas condições no tocante a esses pontos, para daí concluir se estamos ou não em condições de pleitear – como no episódio evangélico dos Filhos de Zebedeu – um lugar além dos limites planetários. Mas se não tivermos a humildade necessária para esse balanço, é melhor nos abstermos de fazê-lo, para não alimentar com a nossa vaidade e o nosso orgulho os motivos de nossa imantação à Terra. Os espíritos errantes de que trata Kardec são precisamente os que ainda não conseguiram determinar a sua localização num plano superior. Esses espíritos permanecem errando entre o chão do planeta e as esferas espirituais da Terra. Vão e voltam em sucessivas reencarnações, como os encarnados que erram pelos caminhos do mundo sem se fixarem em nenhum lugar. Plotino afirmava, no Neoplatonismo, que somos em geral almas viajoras, incapazes de permanecer no mundo espiritual. Sentimos a atracção da matéria – esse visgo que prende o espírito, segundo Kardec – e nos precipitamos em novas encarnações no plano terreno. Por isso Jesus insistiu na necessidade do desapego em tudo o que fazemos. A nossa tendência a nos apegarmos afectivamente às coisas e aos seres retarda a nossa evolução e nos mantém na erraticidade, muitas vezes através de reencarnações que são cópias das anteriores. A repetição excessiva das mesmas condições gera os sofrimentos cada vez mais penosos, forçando-nos a avançar.

O Alto não deseja que nos tornemos anjos antes do tempo, mesmo porque isso é impossível. A nossa evolução é regida por leis inflexíveis. É inútil pretendermos avançar além das nossas forças. Mas é também inútil querermos continuar indefinidamente na Terra. Na fase actual de transição da vida planetária que também evolui sem cessar – estamos todos acuados pelas forças da evolução e temos de atender às exigências da consciência e às intuições dos espíritos benevolentes, para não ficarmos sujeitos às migrações em mundos inferiores. Essas migrações são forçadas, mas não constituem castigo nem condenação. São medidas administrativas, como as tomadas nas escolas em que haja reprovações em massa. Os espíritos que não progrediram não estão em condições de permanecer no planeta que evoluiu e são enviados a outros planetas de grau inferior, para refazerem o aprendizado, depois do que poderão voltar ao planeta de origem. Os mundos são solidários, ensina Kardec, pois neles evolui a Humanidade Cósmica.

/…


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 3 – As Ligações do Homem com a Terra, 4º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

  Estrelas, sóis, mundos errantes, cometas fúlgidos, sistemas estranhos, astros misteriosos, todos proclamariam harmonia, seriam todos os acusadores de quantos decretam não passar a força de cego atributo da matéria. E quando, acompanhando as relações numéricas que ligam todos esses mundos ao Sol – qual coração palpitante de um mesmo ser – houvermos personificado o sistema planetário do próprio Sol – foco colossal que a todos absorve na sua esplendente e poderosa personalidade – então, não tardaremos a ver nesse Sol, com o seu sistema, em trânsito pelos espaços infinitos, o atestado de que todas as estrelas são outros tantos sóis, cercados, como o nosso, de uma família que deles recebe luz e vida, e veremos que todas as estrelas são guiadas por movimentos diversos e que, muito longe de ficarem fixas na imensidade, caminham com velocidades terrificantes, ainda mais céleres que as atrás mencionadas.

 Só então, o Universo inteiro brilhará aos nossos olhos sob o verdadeiro prisma e as forças que o regem proclamarão, com a eloquência maravilhosamente brutal de facto concreto, o seu valor, a sua missão, autoridade e poder. Diante desses movimentos indescritíveis – inconcebíveis mesmo, poderíamos dizer – que transportam pelos desertos do infinito essa infinidade de sóis; diante dessa catadupa de estrelas do infinito; diante dessas rotas, dessas órbitas imensuráveis, seguidas com a passividade dos ponteiros de um relógio, da maçã que cai, ou da roda do moinho, obedientes à lei da gravidade; diante da submissão dos corpos celestes a regras que a mecânica e as fórmulas analíticas podem traçar de antemão, bem como da condição suprema de estabilidade e duração do mundo, quem ousará negar que a Força não governe, não dirija soberanamente a Matéria, em virtude de uma lei inerente ou afecta à própria Força? Quem pretenderá subordinar a Força à cegueira constitucional da Matéria e afirmar, à maneira retrógrada dos peripatéticos, que ela não passa de atributo oculto, reduzindo-a ao papel de escrava, quando ela se impõe de tal arte e reivindica credenciais de absoluta suserania? Que Deus tal nunca permita. Que sucederia se ela, a Força, deixasse de agir e abdicasse do seu ceptro? A só imaginação desta hipótese dissolve a harmonia do mundo e o faz esboroar-se num caos informe, digno resultado, aliás, de tão insensata tentativa.

 Leis universalmente demonstradas proclamam a unidade do Cosmos e evidenciam que o mesmo pensamento que regula as nossas marés oceânicas preside às revoluções siderais das estrelas duplas, nos latifúndios do céu. Tais duplos, triplos, quádruplos sóis giram em conjunto, em volta do centro comum de gravidade, obedecendo às mesmas leis que regem o nosso sistema planetário. Nada mais próprio do que esses sistemas para nos dar uma ideia da escala da construção dos mundos – diz John Herschel.

 Quando vemos esses corpos imensos, encasalados, descreverem órbitas enormes, cujo percurso lhes demanda séculos, somos levados a admitir simultaneamente que eles preenchem, na Criação, uma finalidade que nos escapa e que atingimos os limites da humana inteligência para confessar a nossa inópia e reconhecer que a mais fecunda imaginação não pode ter do mundo uma concepção aproximativa sequer, da grandeza do assunto.

  Os astrónomos que humildemente remontam ao princípio ignoto das causas não podem eximir-se de considerar nas mãos de um ser inteligente essa atracção universal, que rege inteligentemente o Cosmos. “A lei de gravitação – dizia o saudoso director do Observatório de Toulouse (i) – enfeixa implicitamente as grandes leis que regem os movimentos celestes e, por uma dessas coincidências notáveis que são o mais seguro índice da verdade – longe de temer as excepções aparentes, as perturbações dos movimentos normais, antes delas extrai as mais brilhantes confirmações. Assim é que vemos os geómetras modernos explicarem a precessão dos equinócios pela combinação da força centrífuga, oriunda da rotação da Terra, com a acção do Sol sobre o nosso menisco equatorial. Assim é que vemos, ainda, explicar-se a nutação por uma influência análoga, da Lua, sobre a luminescência mesma da Terra e, mais: – as atracções planetárias, a oscilação da eclíptica e do movimento do apogeu solar; do retardamento de Júpiter quando Saturno se acelera, e vice-versa, quando a aceleração se dá em Júpiter, etc. Finalmente, é assim que sabemos por que, sob a influência solar, a média do nosso movimento terráqueo se vai acelerando de século em século e deverá diminuir mais tarde, por que a linha dos nós da Lua perfaz a sua revolução em movimento retrógrado dentro de dezoito anos e por que o perigeu lunar se completa em pouco menos de nove anos, etc. (ii)

 (i) F. Petit – Traité d’Astronomie, 24º et dernlère leçon.

 (ii) Curioso é que Clairaut, tendo encontrado nos seus cálculos um período de dezoito em vez de nove anos, declarasse insuficiente, para este caso, a gravitação inversa ao quadrado da distância e que fosse precisamente um naturalista, Buffon, que, persuadido de que a Natureza não podia ter duas leis diferentes, insistisse com o geómetra para que revisse os seus cálculos. Clairaut, após um novo exame, reconheceu que a primeira assertiva estava errada, pois que havia negligenciado, nas séries, termos indispensáveis.

 Não somente, em resumo, esse princípio notável explica todos os fenómenos conhecidos, como permite, muitas vezes, descobrir efeitos que a observação não indica, de modo que se poderia estabelecer a priori, pela análise, a constituição do mundo e não nos socorrermos da observação senão em alguns pontos de referência, de que se utilizam os geómetras sob a denominação de constantes, nos seus cálculos. – Tudo pois, no Universo, marcha por efeito de uma organização admirável de simplicidade, visto que os movimentos, aparentemente mais complicados, resultam da combinação de impulsos primitivos com uma força única agindo sobre cada molécula material; força única, com a qual, e consequentemente, haja de ocupar-se, por assim dizer, o Criador. Mas, também, que desenvolvimento de poder não requer a produção incessante dessas forças, cuja existência não é essencialmente inerente à matéria! Oh! como deve ser vigilante a mão eterna que sabe, a cada momento, renovar tais forças, até nos mais impalpáveis átomos dos inumeráveis astros destinados a povoar as regiões de infinita imensidade. Não será o caso de dizer com o rei-profeta, inclinando-se perante tanta grandeza: Coeli enarrant gloriam Dei?

 A partir de Newton e Képler, sabemos que o Universo é um dinamismo imenso, cujos elementos na sua totalidade não cessam de agir e reagir na infinidade do tempo e do espaço, com actividade indefectível. Esta a grande verdade que a Astronomia, a Física e a Química nos revelam nas imponentes maravilhas da Criação.

 Tal o sublime espectáculo do mundo, tais as leis constitutivas da sua harmonia. Ora, qual a perfídia de linguagem, ou de raciocínio, que os materialistas utilizam para traduzir pró-domo sua esses factos e concluírem pela ausência de todo e qualquer pensamento divino?

 Eis aqui os argumentos inscritos em letras berrantes num catecismo materialista que, por seu colorido de Ciência, se tem imposto a muita gente: (iii)

 (iii) Büchner – Força e matéria.

 “Todos os corpos celestes, pequenos ou grandes, se conformam, sem relutância, sem excepções nem desvios, com esta lei inerente a toda a matéria e a toda partícula de matéria, como podemos experimentar a cada momento. É com uma precisão e certeza matemáticas que todos esses movimentos se fazem reconhecer, determinar e predizer. Os espiritualistas vêem nestes factos o pensamento de um Deus eterno, que impôs à Criação as leis imutáveis de sua perpetuidade. Os materialistas, porém, ao contrário, não vêem nisso senão a prova de que a ideia de Deus não passa de uma pilhéria. Outro fora o caso, se existissem corpos celestes caprichosos ou rebeldes, se a grande lei que os rege não fosse soberana. É fácil (diz Büchner) conciliar o nascimento, a constelação (?) e o movimento dos orbes com os processos mais simples que a matéria de si mesma nos possibilita. A hipótese de uma força pessoal criadora é inadmissível. Por que? Ninguém, jamais, pôde sabê-lo. Os espiritualistas admiram o movimento dos astros, a ordem e harmonia que a eles preside. Ingénuos! No Universo não há ordem nem harmonia e sim, pelo contrário, a irregularidade, os acidentes, a desordem, que excluem a hipótese de uma acção pessoal regida pelas leis da inteligência, mesmo humana.”

 Ponderemos: Copérnico publicou Revoluções Celestes, após trinta anos de árduos labores; Galileu só depois de vinte anos fecundou a lei do pêndulo; Képler não levou menos de dezassete para formular as suas leis e Newton, já octogenário, dizia não ter ainda chegado a compreender o mecanismo dos céus; e, depois disso, vêm propor-nos acreditar que essas leis sublimes e que tudo quanto esses génios possantes mal puderam encontrar e formular não revelam no ascendente que as impôs à matéria, uma inteligência sequer igual à do homem!

 E o Sr. Renan escreve então esta frase: “Por mim, penso não haver no Universo inteligência superior à humana.” E ousam compadrinhar-se com acidentes que propriamente o não são, para afirmarem que não existe harmonia na construção do mundo.

 Que seria, então, preciso para vos satisfazer, senhores críticos de Deus?

 Vamos dizê-lo: primeiro, que não houvesse espaço (!) ou que esse espaço fosse menos vasto, visto haver, decididamente, muito espaço no infinito: “se houvéramos de atribuir a uma força criadora individual – diz Büchner – a origem dos mundos para habitação de homens e animais, importaria saber para que serve esse espaço imenso, deserto, vazio, inútil, no qual flutuam planetas e sóis? Porque os outros planetas do sistema não se tornaram habitáveis para o homem?” Na verdade, formulais uma pergunta bem simples. E aí temos como esses senhores se dão à fantasia de declarar inútil o espaço, a querer que todos os globos se comuniquem entre si. O caricaturista Granville já tivera a mesma ideia, quando representou num dos seus encantadores desenhos os jupterianos em excursão a Saturno, atravessando uma ponte, de charuto na boca. E o anel de Saturno lá está como um grande alpendre, onde os saturninos vão à noite refrescar-se. Se esse é o desejado universo, cujo primeiro resultado seria imobilizar o sistema planetário, mais avisados andariam os inventores dirigindo-se seriamente à Escola de Pontes e Calçadas, antes que à Filosofia.

 Que esta, na verdade, nada tem com isso.

/…


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 2 de 3, 12º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 27 de junho de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (III)

  Electrificado pelo impacto da descoberta e encorajado pela inspiração perniciosa, Carlo retomou ao casino e fitou o homem semi-embriagado, que o humilhara. De temperamento venal e orgulhoso, ele também não admitia competidor. Olhou-o de vários ângulos e quanto mais o observava, com severidade, mais se lhe acentuava a certeza sobre a procedência das suspeitas. No íntimo conturbado e na mente exacerbada, agora, pela dupla força da raiva pessoal e do ódio que lhe era transmitido, ocorreu-lhe – por transmissão mental – vender o silêncio, apavorando o criminoso, táctica eficaz para vingar-se demoradamente, e – quem sabe? – denunciá-lo depois. A denúncia, é claro – reflectia –, não surtiria o efeito desejado. Quem iria acreditar num cavalariço, ante a palavra do jovem Conde e do respectivo sogro? Dar-se-ia até que ele seria chibateado em público e atirado a um cárcere, até à morte. O melhor e mais eficiente método seria inquietar-lhe a consciência – se é que a tinha –, obrigando-o a denunciar-se, ele próprio, mediante o conciliábulo da chantage.

  Doía-lhe o corpo pela ansiedade e tremiam-lhe os músculos.

  Acercou-se exultante e disse, sem maiores delongas:

  – Com vossa permissão, Senhor Conde. Necessito falar-vos.

  – A mim? – interrogou Girólamo. – Conseguiste mais dinheiro ou desejas pedi-lo a mim?

  Algumas mulheres de aparência grotesca, na pintura e nos trajes, vários homens de vida duvidosa que se encontravam em torno do dissipador gargalharam, zombeteiros.

  Dominando a impetuosidade e fazendo-se humilde, submisso, o florentino tornou:

  – Perdão, senhor! Trata-se de assunto grave, se me permitis.

  – Dize, homem. Que acanhamento é esse, após o prejuízo?

  Novas gargalhadas em troça espocaram. Girólamo realizava-se, ferindo e macerando o opositor vencido.

  – Com vossa aquiescência, senhor, trata-se de problema da vossa família…

  – Que tem minha família…

  Girólamo saltou e mesmo ubriaco (i) aproximou-se do parlamentário e perguntou:

  – Vens do Palácio Castaldi?

  – É mais grave, senhor. Diz respeito à vossa vida, vossa paz.

  – Saiamos, então, daqui, – acudiu o quase borracho.

  Alguns vadios do casino, que cobiçavam a presa, a meio caminho da bebedeira total, para roubar-lhe as moedas, explodiram em exclamações de aborrecimento e enfado.

  Os dois homens saíram à rua. Logo à porta, o senense inquiriu molesto:

  – De que perigo se trata? Avia-te, ordeno!

  – Calma, senhor. Não nos devem ouvir pessoas levianas.

  – Que aparência de mistério é essa?

  – Trata-se realmente de um mistério.

  Avançaram alguns passos e, na semi-obscuridade da viela, entre as pilastras de pedra de cantaria, sob os arcos superiores, onde os vultos pareciam mais estranhos, Carlo arengou:

  – Necessito de vossa ajuda. Somente uma questão de tal monta me obrigaria…

  – Qual é o mistério que me envolve? – vociferou Girólamo.

  Sentindo-se detentor de poderosa arma, Carlo reflectiu sobre o velho provérbio: “Chi va piano, va sano. Chi va sano va lontano.” (ii) Logo explicou:

  – Trata-se de uma ocorrência que vos envolve. – Fez uma pausa, para atingir melhores e seguros resultados.

  Girólamo, enfadado, empurrou o contendor e pôs-se a caminho, de volta ao casino, protestando:

  – Cavalariço imundo, incomodar-me!... Atrevido…

  – Lembrai-vos de um domingo de primavera nas colinas de San Miniato, em Florença, senhor? – gritou-lhe. (Era sua grande cartada: vida ou desgraça. A sorte estava lançada, pensou com sofreguidão.) – Eu estava lá…

  Girólamo estancou o passo. Cambaleou. Um fogo de febre subiu-lhe À cabeça, os ouvidos zumbiram, como se as veias se agitassem, quase a estourar. Rodopiou sobre os calcanhares e volveu. Apesar de quase vencido pela bebida, crispou as mãos e avançou na direcção do ginete dos Castaldi, segurando-o pelas vestes com vigor e, face a face, ardendo de ira, com os dentes travados em rito de ódio, indagou, com a voz subitamente enrouquecida:

  – Não ouvi bem, miserável, canalha. Repeti! Fala! Que desejas, verme asqueroso?...

  – Acalmai-vos, senhor. (Carlo estava convicto de que atingia o objectivo. Vingar-se-ia, agora, em longo curso de desforra.)

  Tentando oferecer naturalidade à voz, falou com fingida humildade:

  – Desejava que o Senhor Conde soubesse… Gostaria de ser-vos útil… As circunstâncias da fortuna me colocaram em San Miniato, naquele dia…

  Os olhos de Girólamo fuzilavam. Mesmo na sombra, Carlo, igualmente robusto, viu o folgor estranho daqueles olhos e sentiu as mãos de ferro, agora em torno do seu pescoço, enquanto a voz rouquenha gritava:

  – Que viste, bandido? Abre-te, antes que eu mesmo te esgane!

  Tentando desvencilhar-se daquelas mãos de aço, crispadas, Carlo retrucou, atordoado:

  – Eu estava em San Miniato quando…

  – Quando?!...

  – Quando o Senhor Conde matou aquela mulher… Eu vi. (E ante o espanto de Girólamo, colhido pela surpresa do inesperado, que afrouxou um pouco a constrição, Carlo, de um golpe, desarmou o desafecto.)

  Aparentando desconhecer a que se referia o florentino, o senense acercou-se e, fulminante, esbordoou-o com violência.

  – Se fosses um homem da nobreza – aduziu com desprezo –, eu te convidava a um duelo. Mas, um réptil dessa classe eu entrego às autoridades…

  Sobrepondo a arrogância à razão, ensaiou alguns passos na direcção do casino, esfogueado, em convulsão. O inesperado colhia-o em circunstância jamais desejada, cravando-lhe a lança de incomparável choque e dor. Não conseguia raciocinar com o necessário acerto. A violência da emoção superou o desalinho das forças pelo álcool, e, como suasse em bagas, passou a eliminar o tóxico. Parou a meio passo. Voltou-se e enfrentou o olhar do inimigo, imóvel, lábios contraídos, desafiador.

  – Serei eu, Senhor Conde – revidou Carlo –, quem irá procurar as autoridades para narrar o vosso hediondo segredo. É certo que não sou nobre, mas posso sê-lo como vós o sois, lavando a condição plebeia no sangue das vítimas, como o fizestes com a vossa ganância. Não vos temo! Somos do mesmo estofo, cavaliere. (E gargalhou com mofa.)

  – Matar-te-ei, miserável! (Girólamo avançou, estertorando.)

  – Parai ou matar-vos-ei eu. (O lépido moço recuou num salto felino, colocando-se à distância do agressor.) Não me interessa a vossa vida…

  – E que desejas, cão?

  – Vender-vos o meu silêncio.

  – A calúnia só merece chibata e cárcere.

  – Veremos como a cidade reagirá ao saber a notícia e relacioná-la com as tragédias do Solar di Bicci…As circunstâncias da morte dos vossos parentes… (Sardónico e igualmente impiedoso, continuou a gargalhar.)

  No mesmo momento em que se sentia desvairar, Girólamo ouviu a gargalhada de Assunta e distinguiu a voz do duque invectivar: “Assassino! Pagarás agora, assassino!”

  O infeliz mancebo, por sua vez, trovejou expressões de louco e sem qualquer lucidez invadiu o casino, transtornado, perseguido pelas Erínias  (iii). Palavras desconexas saíam-lhe dos lábios intumescidos. Segurando a cabeça com as duas mãos, correu de um lado para o outro, perdido no mundo das sombras, nas quais perpetrara os crimes, e ululava. Nos ouvidos superaguçados, continuava ouvindo as acusações do tio e as imprecações de Assunta. Gritos e doestos sórdidos espocavam-lhe no cérebro e ele, açoitado pelo desespero, arrancou em direcção a uma parede e arrojou-se de encontro a ela.

  O pavor tomou conta do recinto. Dois dos seus muitos companheiros de orgias, surpreendidos pelo nefasto acontecimento, levantaram-se de repente e seguraram-no a contorcer-se no solo, a gemer, a sangrar, olhar perdido, músculos e carnes trémulos: era um trapo, sacudido violentamente pela tempestade da insânia íntima.

  O cavaliere Conde Dom Girólamo Cherubini di Bicci experimentava a segunda crise de loucura.

  Através dos olhos sem luminosidade, ele via, além da realidade objectiva, o duque de pé, à sua frente, dedo em riste, empunhando longa chibata, com a qual o surrava desapiedadamente e, ao lado, Assunta, louca, megera nauseante, bailava e cachinava impudente, vingadora. Sofrendo o cilício que o tio lhe infligia, sentiu-se arrancado ao corpo, à força, e foi obrigado a enfrentar as circunstâncias em que se arrojara voluntariamente. O corpo, exânime, tombou quase sem vida.

  Recostaram-no em um leito, no andar superior do cassino-bordel, e alguém foi providenciar uma carruagem, para conduzi-lo ao lar dos sogros. A villa dos Castaldi estava em silêncio. Ante a gritaria dos que se encontravam fora, o guarda da entrada acordou e, cientificado do que acontecera, Dom Lorenzo e a senhora, tomados de inquietação, recolheram o genro ainda ensanguentado, promovendo meios de atendê-lo e diminuir os danos daquele insucesso, constatando que na agitação em que se debatia o genro este deveria estar bêbado, não dando maior importância ao incidente.

  Dois lacaios foram designados a acompanhar a noite do mancebo, que continuou estremunhado, estertorado.

Carlo, o zagal florentino, quando viu o furor que se apossara do antagonista, fruiu a vã satisfação da vitória, comprovando, simultaneamente, que aquele homem não passava de um louco assassino. Agora, tinha certeza da legitimidade da sua observação e não o perderia de vista. Era-lhe uma presa fácil, que poderia modificar o seu destino. Propor-lhe-ia mudança de vida… Fá-lo-ia, sim.

  “Agora, vamos ao prazer interrompido.” – planeou.

  Abandonando a rua deserta, demandou outros sítios.

  A cidade acordou pachorrentamente, vagarosamente, exausta, no dia seguinte. O lixo abundava e as ruas estavam imundas…

Girólamo despertou febril, sem recobrar a lucidez, alquebrado, expressão de demente, olhar parado, fácies desconcertante. Às vezes, ria sem motivo ou se deixava vencer por crises nervosas que o sacudiam violentamente.

  Dom Lorenzo despachou um moço de recados à herdade Bicci, encarregue de trazer a Condessa Beatriz. A jovem senhora, notificada da enfermidade do esposo, acudiu aflita a socorrê-lo. No palácio paterno.

  A notícia chegou igualmente ao Palácio T., provocando em Francesco e Lucrécia sincera preocupação.

  Por intermédio dos lacaios, Carlo manteve-se informado do que acontecia na intimidade do palácio, gozando interiormente a desforra e aguardando acontecimentos novos. Tinha a certeza de que os bons génios, que lhe auguraram o destino futuro, premeditaram tais cometimentos para ensejar-lhe fortuna e regalias, Girólamo possuía mais do que podia dissipar e não lhe custava muito repartir com o comparsa, elegendo-o amigo e preferido da sua casa. Reservou o tempo, esperando.

  Logo chamado, o esculápio examinou detidamente o enfermo e, como este se encontrasse vitimado por febre e constantes delírios, nos quais o corpo em desequilíbrio sofria as vicissitudes do espírito aturdido, a sofrer o império do desconforto que proporcionava a si mesmo, foi taxativo: maremma toscana! Recomendou repouso excessivo e silêncio, prescrevendo clisteres e outras mezinhas. Comprometeu-se a retornar com assiduidade, acompanhando a marcha da enfermidade do paciente.

  Sentindo o êxito do programa em plena execução, o desencarnado duque di Bicci, no fragor da loucura de que também se via possuído, experimentou júbilo, o júbilo que, à semelhança de ácido, queima e requeima os que o conduzem. Considerava a partida ganha: Girólamo, à semelhança de Assunta, estava em suas mãos. Na ferocidade do ódio em que se consumia, não desejava que o desditoso jovem morresse de imediato. Comprazer-se-ia em vê-lo sofrer lentamente, como a cobrar a asfixia que padeceram seus filhinhos e Lúcia nas mãos ímpias do assassino. Assim, reflexionando, a entidade folgou a constrição psíquica e a influenciação exercida sobre a vítima, a qual, vendo-se parcialmente livre dos fluidos danosos, recobrou alento, recuperando o controlo sobre os órgãos dos sentidos físicos, a consciência, as lembranças…

  Passaram pela sua mente os últimos acontecimentos, em esfera penumbrosa de sonho pernicioso. Recordava-se da agressão espiritual sofrida, sem a compreender, todavia, evocou as ameaças e revelações de Carlo. A simples lembrança do móvel das dores que experimentava fê-lo desesperar. Possuidor de um carácter venal, tentou recompor-se para cuidar do desafecto, na ocasião oportuna.

  As melhoras do enfermo, repentinas, foram saudadas festivamente com êxito do médico.

  Uma semana depois, ainda convalescente, Girólamo, acompanhado pelo carinho da esposa, retorna ao solar altaneiro, nas colinas do pequeno ducado…

/…
(i) Ubriaco: bêbado.
(ii) “Quem vai devagar vai seguro. Quem vai seguro vai longe.”
(iii) As Erínias ou Eumênides eram deusas gregas a que os romanos chamavam Fúrias. Eram filhas da Terra, que viviam no Tártaro, com a missão de punir os crimes dos homens. Faziam-se representar com os cabelos entrelaçados de serpentes, tendo um punhal numa mão e um facho aceso noutra. Tinham como nomes: Tisífone, Alecto e Megera. Pertencem à Mitologia.



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (3 de 3) 28º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Diálogos de Kardec ~


Profissão de Fé Espírita Raciocinada

§ I. Deus

1. Há um Deus, inteligência suprema, causa primária de todas as coisas.

A prova da existência de Deus está neste axioma: Não há, absolutamente, efeito sem causa. Vemos incessantemente uma multidão inumerável de efeitos, cuja causa não está na humanidade, já que a humanidade é impotente para produzi-los, e mesmo para explicá-los; a causa está, portanto, acima da humanidade. É esta causa a que se chama Deus, Jeová, Alá, Brahma, Fo-Hi, Grande Espírito, etc., segundo as línguas, os tempos e os lugares.

Esses efeitos não se produzem absolutamente ao acaso, fortuitamente e sem ordem; desde a organização do menor insecto e do menor grão, até à lei que rege os mundos que circulam no Espaço, tudo atesta um pensamento, uma combinação, uma previdência, uma solicitude que ultrapassam todas as concepções humanas. Esta causa é, portanto, soberanamente inteligente.

2. Deus é eterno, imutável, imaterial, único, todo-poderoso, soberanamente justo e bom.

Deus é eterno; se houvesse tido um começo, alguma coisa teria existido antes dele; teria saído do nada, ou melhor, teria criado a si próprio através de um ser anterior. É assim que, pouco a pouco, remontamos ao infinito na eternidade.

Ele é imutável; se estivesse sujeito a mudanças, as leis que regem o Universo não teriam nenhuma estabilidade.

Ele é imaterial; quer dizer, que a sua natureza difere de tudo o que chamamos matéria, de outro modo, ele estaria sujeito às flutuações e às transformações da matéria, e não seria imutável.

Ele é único; se houvesse vários Deuses, haveria várias vontades, e desde então, não haveria nem unidade de vistas, nem unidade de poder na ordenação do Universo.

Ele é todo-poderoso, porque é único. Se não tivesse o soberano poder, haveria alguma coisa mais poderosa que ele; ele não teria feito todas as coisas, e as que não tivesse feito seriam a obra de um outro Deus.

Ele é soberanamente justo e bom. A sabedoria providencial das leis divinas se revela nas menores coisas como nas maiores, e essa sabedoria não permite duvidar nem da sua justiça, nem da sua bondade.

3. Deus é infinito em todas as suas perfeições. Se supuséssemos imperfeito um só dos atributos de Deus, se subtraíssemos a menor parcela de eternidade, de imutabilidade, de imaterialidade, de unidade, de todo-poder, da justiça e da bondade de Deus, poderíamos supor um ser que possuísse o que lhe faltasse, e este ser, mais perfeito que ele, seria Deus.

§ II. A alma

4. Há no homem um princípio inteligente a que chamamos ALMA ou ESPÍRITO, independente da matéria, e que lhe dá o senso moral e a faculdade de pensar.

Se o pensamento fosse uma propriedade da matéria, ver-se-ia a matéria bruta pensar; ora, como nunca se viu a matéria inerte dotada de faculdades intelectuais; e quando o corpo está morto, ele não pensa mais, é preciso concluir que a alma é independente da matéria, e que os órgãos são apenas instrumentos com a ajuda dos quais o homem manifesta o seu pensamento.

5. As doutrinas materialistas são incompatíveis com a moral e subversivas da ordem social.

Se, segundo os materialistas, o pensamento fosse segregado pelo cérebro, como a bílis é segregada pelo fígado, resultaria que, com a morte do corpo, a inteligência do homem e todas as suas qualidades morais retornariam ao nada; que os pais, os amigos e todos aqueles a quem fomos afeiçoados, estariam perdidos, sem retorno; que o homem de génio não teria mérito, já que deveria as suas faculdades transcendentais apenas ao acaso de sua organização; que não haveria entre o imbecil e o sábio, senão a diferença de mais ou menos cérebro.

As consequências dessa doutrina seriam de que o homem, não esperando nada além dessa vida, não teria nenhum interesse de fazer o bem; que seria muito natural procurar para si os maiores prazeres possíveis, mesmo que fosse à custa de outrem; que haveria estupidez em se privar em favor dos outros; que o egoísmo seria o sentimento mais racional; que aquele que é obstinadamente infeliz na Terra, não teria nada de melhor a fazer do que matar-se, já que, devendo cair no nada, tanto faria para ele, e que abreviaria os seus sofrimentos.

A doutrina materialista é, portanto, a sanção do egoísmo, fonte de todos os vícios; a negação da caridade, fonte de todas as virtudes e base da ordem social, e a justificação do suicídio.

6. A independência da alma é provada pelo Espiritismo.

A existência da alma é provada pelos actos inteligentes do homem, que devem ter uma causa inteligente e não uma causa inerte. A sua independência da matéria é demonstrada de uma maneira patente pelos fenómenos espíritas que a mostram agindo por si própria, e sobretudo pela experiência de seu isolamento durante a vida, o que lhe permite manifestar-se, pensar e agir na ausência do corpo.

Pode dizer-se que, se a química separou os elementos da água, se ela colocou por isso as suas propriedades a descoberto, e se ela pode à vontade desfazer e refazer um corpo composto, o Espiritismo pode, igualmente, isolar os dois elementos constitutivos do homem: o espírito e a matériaa alma e o corpo, separá-los e reuni-los à vontade, o que não pode deixar dúvida sobre a sua independência.

7. A alma do homem sobrevive ao corpo e conserva a sua individualidade depois da morte.

Se a alma não sobrevivesse ao corpo, o homem não teria como perspectiva senão o nada, assim como, se a faculdade de pensar fosse o produto da matéria; se não conservasse a sua individualidade, quer dizer, se fosse perder-se no reservatório comum chamado o grande todo, como as gotas de água no oceano, seria igualmente, para o homem, o nada do pensamento, e as consequências seriam absolutamente as mesmas do que se não tivesse alma.

A sobrevivência da alma após a morte é provada de uma maneira irrecusável e, de alguma sorte palpável, pelas comunicações espíritas. A sua individualidade é demonstrada pelo carácter e as qualidades próprias a cada um; essas qualidades que distinguem as almas umas das outras, constituem a sua personalidade; se fossem confundidas num todo comum, teriam apenas qualidades uniformes.

Além dessas provas inteligentes, há ainda a prova material das manifestações visuais ou aparições, que são tão frequentes e tão autênticas, que não é permitido colocá-las em dúvida.

8. A alma do homem é feliz ou infeliz após a morte, segundo o bem ou o mal que tenha feito durante a vida.

Desde que se admita um Deus soberanamente justo, só se pode admitir que as almas tenham um destino comum. Se a posição futura do criminoso e do homem virtuoso devesse ser a mesma, isto excluiria qualquer utilidade em procurar fazer o bem; ora, supor que Deus não faz diferença entre aquele que faz o bem e aquele que faz o mal, seria negar a sua justiça. O mal, não recebendo sempre a sua punição, nem o bem, a sua recompensa durante a vida terrestre, é necessário daí concluir que a justiça será feita depois, sem o que, Deus não seria justo.

As penas e as alegrias futuras são, além disso, materialmente provadas pelas comunicações que os homens podem estabelecer com as almas daqueles que viveram, e que vêm descrever o seu estado feliz ou desgraçado, a natureza de suas alegrias ou de seus sofrimentos, e dizer-lhes a causa.

9. Deus, a alma, a sobrevivência e a individualidade da alma depois da morte do corpo, penas e recompensas futuras, são os princípios fundamentais de todas as religiões.

O Espiritismo vem acrescentar às provas morais desses princípios, as provas materiais dos factos e da experimentação, e arrasar com os sofismas do materialismo. Em presença dos factos, a incredulidade não tem mais razão de ser; é assim que o Espiritismo vem devolver a fé àqueles que a perderam, e tirar as dúvidas dos incertos.

§ III. Criação

10. Deus é o criador de todas as coisas. Esta proposição é a consequência da prova da existência de Deus (nº 1).

11. O princípio das coisas está nos segredos de Deus.

Tudo diz que Deus é o autor de todas as coisas, mas quando e como as criou? A matéria é como ele de toda a eternidade? É isso que ignoramos. Sobre tudo o que não julgou revelar-nos a respeito, só se pode estabelecer sistemas mais ou menos prováveis. Pelos efeitos que vemos, podemos remontar a certas causas; mas há um limite que nos é impossível ultrapassar, e seria ao mesmo tempo perder seu tempo e expor-se a equivocar-se, querer ir além.

12. O homem tem como guia na busca do desconhecido, os atributos de Deus.

Na busca dos mistérios que nos é permitido sondar pelo raciocínio, há um critério certo, um guia infalível: são os atributos de Deus.

Desde que se admita que Deus deve ser eternoimutávelimaterialúnicotodo-poderososoberanamente justo e bom, que é infinito nas suas perfeições, qualquer doutrina ou teoria, científica ou religiosa, que tendesse a suprimir-lhe uma parcela de um só de seus atributos, seria necessariamente falsa, já que tenderia à negação da própria divindade.

13. Os mundos materiais tiveram um começo e terão um fim.

Que a matéria seja de toda a eternidade como Deus, ou que tenha sido criada numa época qualquer, é evidente, segundo o que acontece quotidianamente sob os nossos olhos, que as transformações da matéria são temporárias, e que dessas transformações resultam os diferentes corpos que nascem e se destroem incessantemente.

Os diferentes mundos sendo produtos da aglomeração e da transformação da matéria, devem, como todos os corpos materiais, ter tido um começo e ter um fim, segundo leis que nos são desconhecidas. A Ciência pode, até um certo ponto, estabelecer as leis de sua formação e remontar ao seu estado primitivo. Toda a teoria filosófica em contradição com os factos demonstrados pela Ciência, é necessariamente falsa, a menos que prove que a Ciência está errada.

14. Criando os mundos materiais, Deus criou também seres inteligentes a que chamamos espíritos.

15. A origem e o modo de criação dos espíritos nos são desconhecidos; sabemos somente que foram criados simples e ignorantes, quer dizer, sem ciência e sem conhecimento do bem e do mal, mas perfectíveis e com uma igual aptidão para tudo conquistar e tudo conhecer com o tempo. No princípio, estão numa espécie de infância, sem vontade própria e sem consciência perfeita de sua existência.

16. À medida que o espírito se afasta do ponto de partida, as ideias nele se desenvolvem, como na criança, e com as ideias, o livre-arbítrio, quer dizer, a liberdade de fazer ou não fazer, de seguir tal ou qual caminho para o seu adiantamento, o que é um dos atributos essenciais do espírito.

17. O objectivo final de todos os espíritos é de atingir a perfeição da qual é susceptível a criatura; o resultado dessa perfeição é a alegria da felicidade suprema que é a consequência, e à qual chegam mais ou menos prontamente, segundo o uso que fazem do seu livre-arbítrio.

18. Os espíritos são agentes do poder divino; constituem a força inteligente da natureza e concorrem para a execução das visões do Criador para a manutenção da harmonia geral do Universo e das leis imutáveis da criação.

19. Para concorrer, como agentes do poder divino, na obra dos mundos materiais, os espíritos revestem temporariamente um corpo material. Os espíritos encarnados constituem a humanidade. A alma do homem é um espírito encarnado.

20. A vida espiritual é a vida normal do espírito: ela é eterna; a vida corporal é transitória e passageira: é apenas um instante na eternidade.

21. A encarnação dos espíritos está nas leis da natureza; é necessária ao seu adiantamento e à execução das obras de Deus. Pelo trabalho que sua existência corporal necessita, eles aperfeiçoam a sua inteligência e adquirem, observando a lei de Deus, os méritos que devem conduzi-los à felicidade eterna. Daí resulta que, concorrendo para a obra geral da criação, os espíritos trabalham para o seu próprio adiantamento.

22. O aperfeiçoamento do espírito é o fruto de seu próprio trabalho; progride na razão da sua maior ou menor actividade ou da boa vontade para adquirir as qualidades que lhe faltam.

23. Não podendo o espírito adquirir numa só existência corporal todas as qualidades morais e intelectuais que devem conduzi-lo ao objectivo, ele aí chega através de uma sucessão de existências, em cada uma das quais dá alguns passos adiante, no caminho do progresso, e purifica-se de algumas de suas imperfeições.

24. A cada nova existência, o espírito traz o que adquiriu em inteligência e em moralidade, nas suas existências precedentes, assim como os germens das imperfeições das quais ainda não se despojou.

25. Quando uma existência foi mal empregada pelo espírito, quer dizer, se não fez nenhum progresso no caminho do bem, ela não tem proveito para ele, e ele deve recomeçá-la em condições mais ou menos penosas, em razão da sua negligência e de seu malquerer.

26. Devendo o espírito a cada existência corporal adquirir alguma coisa de bem e despojar-se de alguma coisa de mal, daí resulta que, após um certo número de encarnações, encontra-se depurado e chega ao estado de puro espírito.

27. O número das existências corporais é indeterminado; depende da vontade do espírito abreviá-la, trabalhando activamente para o seu aperfeiçoamento moral.

28. No intervalo das existências corporais, o espírito é errante e vive a vida espiritual. A erraticidade não tem duração determinada.

29. Quando os espíritos adquiriram num mundo a soma de progresso que comporta o estado desse mundo, deixam-no para encarnar num outro mais adiantado, onde adquirirão novos conhecimentos, e assim, sucessivamente, até que a encarnação num corpo material não lhe sendo mais útil, vivem exclusivamente a vida espiritual, onde progridem ainda num outro sentido e através de outros meios. Tendo chegado ao ponto culminante do progresso, desfrutam da suprema felicidade; admitidos nos conselhos do Todo-Poderoso, têm o seu pensamento e tornam-se os seus mensageiros, os seus ministros directos para o governo dos mundos, tendo sob as suas ordens os espíritos de diferentes graus de adiantamento.

/…


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, PROFISSÃO DE FÉ ESPÍRITA RACIOCINADA, I Deus, II A alma, III Criação, 11º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Nas garras do pensamento crítico ~


Por uma consciência humanista ~

             Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; revela-se-nos ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.

   Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo facto, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? As massas que hoje se deparam à nossa frente, exploradas e sofredoras, não são apenas o proletariado, mas essa multidão heterogénea, que se chama povo, humanidade, e que as classes dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas as consequências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e social.

   Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marxoferecendo agora uma filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos indivíduos em particular e no meio social em geral.

   Elevar a Terra na escala dos mundos!
   Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de acção que devemos empregar. Simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não darão resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialéctico. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a de comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Actos, ou ainda as recentes colónias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialéctico, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.

   Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo objectivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir um mundo social harmónico através da violência social, mas tão-somente do desenvolvimento do espírito colectivista de cooperação. E que a sociedade, como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialéctica.

   Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a revolução colectivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como bem o definiu Ubaldi.

   Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialéctica”, para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante no meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com as suas fogueiras sinistras, a fé raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milénio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos, transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.

/...
                                                                                                                                                                                                               

José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico  Por uma consciência humanista – Elevar a Terra na escala dos mundos, 15º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)