Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Diálogos de Kardec ~

O Perispírito como princípio das manifestações ~

Os Espíritos, como já foi dito, têm um corpo fluídico, a que se dá o nome de perispírito. A sua substância é haurida do fluido universal ou cósmico, que o forma e alimenta, como o ar forma e alimenta o corpo material do homem. O perispírito é mais ou menos etéreo, conforme os mundos e o grau de depuração do Espírito. Nos mundos e nos Espíritos inferiores, ele é de natureza mais grosseira e se aproxima muito da matéria bruta.

Durante a encarnação, o Espírito conserva o seu perispírito, sendo-lhe o corpo apenas um segundo envoltório mais grosseiro, mais resistente, apropriado aos fenómenos a que tem de prestar-se e do qual o Espírito se despoja por ocasião da morte. O perispírito serve de intermediário ao Espírito e ao corpo. É o órgão de transmissão de todas as sensações. Relativamente às que vêm do exterior, pode dizer-se que o corpo recebe a impressão; o perispírito a transmite e o Espírito, que é o ser sensível e inteligente, a recebe. Quando o acto é de iniciativa do Espírito, pode dizer-se que o Espírito quer, o perispírito transmite e o corpo executa.

O perispírito não se acha encerrado nos limites do corpo, como numa caixa. Pela sua natureza fluídica, ele é expansível, irradia para o exterior e forma, em torno do corpo, uma espécie de atmosfera que o pensamento e a força da vontade podem dilatar mais ou menos. Daí se segue que pessoas há que, sem estarem em contacto corporal, podem achar-se em contacto pelos seus perispíritos e permutar a seu mau grado impressões e, algumas vezes, pensamentos, por meio da intuição.

Sendo um dos elementos constitutivos do homem, o perispírito desempenha importante papel em todos os fenómenos psicológicos e, até certo ponto, nos fenómenos fisiológicos e patológicos. Quando as ciências médicas tiverem na devida conta o elemento espiritual na economia do ser, terão dado um grande passo e horizontes inteiramente novos se lhes patentearão. As causas de muitas doenças serão a esse tempo descobertas e encontrados poderosos meios de as combater.

Por meio do perispírito é que os Espíritos actuam sobre a matéria inerte e produzem os diversos fenómenos mediúnicos. A sua natureza etérea não é que a isso obstaria, pois se sabe que os mais poderosos motores se nos deparam nos fluidos mais rarefeitos e nos mais imponderáveis. Não há, pois, motivo de espanto quando, com essa alavanca, os Espíritos produzem certos efeitos físicos, tais como pancadas e ruídos de toda a espécie, levantamento, transporte ou lançamento de objectos. Para se explicarem esses factos, não há porque recorrer ao maravilhoso, nem ao sobrenatural.

Actuando sobre a matéria, podem os Espíritos manifestar-se de muitas maneiras diferentes: por efeitos físicos, quais os ruídos e a movimentação de objectos; pela transmissão do pensamento, pela visão, pela audição, pela palavra, pelo tacto, pela escrita, pelo desenho, pela música, etc. Numa palavra, por todos os meios que sirvam a pô-los em comunicação com os homens.

Podem ser espontâneas ou provocadas as manifestações dos Espíritos. As primeiras dão-se inopinadamente e de improviso. Produzem-se, muitas vezes, entre pessoas de todo estranhas às ideias espíritas. Nalguns casos e sob o império de certas circunstâncias, pode a vontade provocar as manifestações, sob a influência de pessoas dotadas, para tal efeito, de faculdades especiais.

As manifestações espontâneas sempre se produziram, em todas as épocas e em todos os lugares. Sem dúvida,  já na antiguidade se conhecia o meio de as provocar; mas, esse meio constituía privilégio de certas castas que somente a raros iniciados o revelavam, sob condições rigorosas, escondendo-o ao vulgo, a fim de o dominar pelo prestígio de um poder oculto. Ele, contudo, se perpetuou, através das idades até aos nossos dias, entre alguns indivíduos, mas quase sempre desfigurado pela superstição, ou de mistura com as práticas ridículas da magia, o que contribuiu para o desacreditar. Nada mais fora até então senão o germen lançado aqui e ali. A Providência reservara para a nossa época o conhecimento completo e a vulgarização desses fenómenos, para os expurgar das ligas impuras e torná-los úteis ao melhoramento da Humanidade, madura agora para os compreender e lhes tirar as consequências.

/…


ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, I – O Perispírito como princípio das manifestações, 10º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O Espiritismo na Arte ~


Nona lição de O Esteta

– A música e a transmissão do pensamento artístico
– Perispírito, receptor das ondas musicais

|10 de Fevereiro de 1922|

“Hoje falaremos sobre a música do espaço, considerada como meio de transmissão do pensamento artístico. Sei que um outro espírito, mais perto de vós (i), já tentou fazer-vos compreender a forma como as ondas, que chamais de musicais, são criadas e depois transmitidas através do espaço, para chegarem aos diferentes mundos. Já vos disseram que o que chamais de sonoridades para nós é comparável às cores que, transportadas em moléculas fluídicas, percorrem os campos vibratórios e vão comunicar aos seres impressões semelhantes àquelas que os vossos ouvidos percebem quando ouvis uma gama de sons harmonizados neste ou naquele grau de vibrações.

(i) Trata-se do Espírito Massenet, do qual publicaremos as lições mais adiante, nos tópicos especialmente dedicados à música (Nota do Autor; as suas notas sequentes conterão apenas as iniciais N.A.)

Na Terra, quando uma nota é tocada, se ela provém do tom maior, essa nota transmite-vos uma sensação de alegria plena e irrestrita. Se ela é em tom menor, ao contrário, o vosso cérebro receberá uma sensação de profundidade, algumas vezes de tristeza ou de grande dor, de acordo com a modulação dos acordes e o número de notas tocadas.

Portanto, a esses dois grandes princípios, maior e menor, correspondem duas sensações: a alegria e a dor. Entre essas notas, tendes uma infinidade de combinações que, por isso mesmo, formarão imagens. Assim como o escultor forma uma imagem virtual, o grupo de notas, os acordes, conforme sejam moduladas em tom maior ou menor, formarão pelo seu estilo uma série de pensamentos, que se tornam mais ou menos compreensíveis, segundo a evolução dos modos (ii) da música. Eis aqui um ponto estabelecido: as artes plásticas formam imagens e a arte das ondas musicais forma, igualmente, imagem, mas uma imagem mais subtil, da qual o teor é mais frágil e a compreensão mais delicada. Segundo o grau de evolução dos seres, essa compreensão será mais ou menos profunda. É por isso que muitas vezes, na vossa Terra, um ser de uma cultura média será impressionado, enquanto que o seu cérebro ficará refractário quando ele quiser servir-se do alfabeto para exprimir os seus pensamentos por meio de ondas que qualificais de musicais.

(ii) Modo: (em música) maneira como se dispõem os intervalos de tom e meio-tom numa escala; padrão rítmico constante numa composição (N.T.)

No espaço, como sabeis, não temos instrumentos, são os nossos perispíritos que recebem as ondas transmissoras do pensamento musical. Também será preciso impregnar directamente os seres que devem receber ondas dessa natureza. Como os outros artistas, o espírito evoluído no sentido musical, e que pode experimentar sensações infinitamente suaves e subtis, também pode transmiti-las com a ajuda dos vossos instrumentos e por intermédio do cérebro de um dos vossos executantes.

A matéria, para ser posta em movimento pelas ondas fluídicas, necessita de um intermediário, que será o vosso cérebro, o qual, em decorrência, age como um pólo atractivo e uma placa sensível, de onde partem todas as irradiações que emanam dos fluidos.

Os vossos grandes músicos podem, como os outros artistas, receber a inspiração, seja do espaço, seja como resultado de trabalhos anteriores. É exactamente o mesmo fenómeno que se produz com os outros artistas.

No espaço os nossos meios são muito mais rápidos que os vossos; não temos necessidade de instrumentos para trocar pensamentos, e a nossa música é toda de impressões, agindo directamente sobre a parte mais sensível do nosso ser fluídico, aquela que contém, em diversos graus, a centelha divina e que, entre vós, é representada pelo órgão do coração.

As outras artes reflectem-se por imagens esculturais ou pictóricas, que são as formas de transmissão de pensamento e, para nós, substituem a palavra. A música é uma impressão especial que invade todo o nosso ser fluídico, lança-o no êxtase, na beatitude, faz com que ele sinta sensações de alegria, de quietude, de angústia, de desgosto, de dor, de pena, de remorsos. Tal é, mais ou menos, a gama de todas as sensações ascendentes e descendentes, que vão do rosa ao preto; o preto representando o nada.

Compreendeis, por conseguinte, sob o ponto de vista puramente artístico, que sensações infinitas podem agir sobre um espírito já evoluído. Agora podeis, na Terra, preparar-vos para receber essas sensações no Além, afastando de vós qualquer satisfação material e sensual. Procurai as atracções artísticas, por mais pobres que sejam; enriquecei o vosso pensamento, dai aos vossos nervos um alimento de fortes vibrações; enchei o vosso cérebro de sensações que, no vosso mundo, se traduzem por estudos analíticos das vossas vidas terrestres. Tudo isso, um dia, repercutirá no espaço, ao cêntuplo, porquanto as vibrações armazenadas no vosso ser carnal despertarão e atrairão, como uma lira com mil asas (iii), todas as sensações atractivas que podem gerar os sentimentos mais harmoniosos, os mais elevados, que circulam nas correntes que emanam directamente da esfera divina.

(iii) Observe-se o profundo sentido desta frase: “como uma lira com mil asas”. A lira, símbolo da poesia, da expressão poética, teria mil asas, mil formas de agasalhar todas as sensações geradoras de sentimentos harmoniosos (N.T.)

É o mais alto grau da arte, uma sensação artística infinita.

As vossas pobres criaturas não podem experimentar as alegrias inefáveis que sentimos quando essas sensações vêm tocar os nossos espíritos extasiados.

Quais são essas sensações? Tentarei, como conclusão, dizer-vos, com a permissão de Deus, o que elas podem ser. Isso não será fácil, porque seria como o vos abrir uma visão directa sobre a obra divina. Os vossos guias vão orar. Espero poder dar-vos, em algumas palavras, uma ideia dessa grande obra de beleza, de luz e de harmonia.”

/... 



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V – Nona lição de O Esteta – A música e a transmissão do pensamento artístico – Perispírito, receptor das ondas musicais (3 de 4) 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (II)

   À porta do palácio, formou-se um pequeno cortejo: os amos, os porta-estandartes, os convidados, os áulicos e os amigos, que desceram na direcção da Praça do Campo, já regurgitante.

  Diante das autoridades presentes, fez-se o sorteio dos bairros inscritos, dos quais seriam destacados os que deviam competir. Logo após, começou o corteo. As multidões vibraram de entusiasmo.

  Evocando os dias passados da cidade, as suas glórias e as suas conquistas, as suas tradições e o folk-lore, desfilaram, pela ordem de importância, os representantes das diversas classes, tendo à frente as Entidades Governamentais e os componentes dos diversos bairros inscritos, destacando-se nas suas cores características. Crianças ostentavam bandeiras dos contrada. Cada bairro se faz representar por 13 figurantes. O jogo das bandeiras brilha e nele os exímios acrobatas conquistam ensurdecedores aplausos: é nota viva, comovedora, agradável na festa. E atrás, encerrando o cortejo, aparece o Carroccio, puxado por quatro bovinos seleccionados, conduzidos, a seu turno, por dois homens encapuzados. Nesse carro de guerra está o Pallium – donde derivou o nome da festa – que será entregue ao vencedor, e na qual está estampada a efígie de Maria de Nazaré. O Pallium faz-se guarnecer por quatro trompetistas, a rigor, que anunciam a hora culminante.

  Tem início, então, a grande mossa dos animais escolhidos, representando os bairros atribuidos pelo sorteio. Os animais de raça, adestrados para disputa, partem com desabalada sofreguidão, enquanto os partidários se esganam aos gritos, louvando e encorajando os seus jóqueis preferidos. A corrida sobre lajes derrapantes é feita de emoções e receios. Alguns animais escorregam e atiram longe os condutores, que se ferem no atrito com as pedras luzidias.

  O Conde Lorenzo, entre as autoridades, na tribuna de honra, freme e alardeia as excelências do seu palafrém, do ginete florentino e estertora, ansioso.

  Girólamo, graças às deferências do Senhor Bispo, que a seu turno indicou ao Arcebispo aqueles que deveriam compor o Carroccio, como guardas de honra, figura em destaque, deslumbrado, provocando inveja e erguendo as insígnias da sua herdade e dos sítios que representava.

  A chegada dos concorrentes deu ao Bairro Oca a honra de receber o Pallium. Desceram da tribuna o Conde e a Condessa di Castaldi, que, ao lado do florentino, empapado de suor, receberam das mãos de Sua Eminência o cobiçado troféu.

  Carlo, ovacionado delirantemente, agradeceu o aplauso natural, espontâneo, festivo. Era o homem do dia. Os Castaldi foram cercados pelos amigos, pelos bajuladores, pelo povo e, com o animal, deixaram-se conduzir pela multidão, que carrega o ginete, entre delírios e animações. As cordas que isolam da pista a multidão são arriadas e toda a praça se transforma num imenso palco, para as festas regionais, bailes, teatros, espectáculos improvisados, e grupos alegres, bebendo em odres trabalhados o capitoso vinho, relaxam-se no prazer.

  Girólamo, conquanto os triunfos colhidos, martiriza-se com o êxito daquela estranha personagem, cuja lembrança o aflige e por quem nutre crescente despeito, que se transforma em surto de ódio.

  À noite, o Palácio Castaldi está regurgitante e o nobre casal abre-lhe as portas aos amigos que os vão saudar, homenageando-os pela honra do alto prémio conquistado. Empalmando as apostas numerosas, Dom Lorenzo retribui regiamente ao servo, atestando a generosidade de que se encontra possuído, e concede-lhe a liberdade de viver intensamente quanto possível aquela noite, que lhe será inesquecível.

  Longas serão as horas de oferendas a Baco e às dissipações. Tem-se a impressão de que todo o povo delira e não há problemas na Siena triunfadora. Ninguém recorda o amanhã. “Hoje, agora, é o nosso dia, a nossa hora!” – gritam bandos álacres, agitados.

  Tendo acompanhado o cortejo que seguiu, pressuroso, à casa dos sogros, Girólamo, ante a presença indesejável do moço engalanado pelos louros da vitória, cumpre o dever de banquetear-se e rever os amigos, retirando-se depois, na direcção das tabernas e casinos, onde a ilusão venenosa se desprende a peso de ouro e se faz colher com as ávidas mãos da loucura. Desgarrando-se de Francesco, que, após conduzir a esposa ao palácio, retorna aos ninhos de encantamento da cidade, misturando juventude e excessos, acorre ao casino “La Conchiglia”, para fruir as horas de enlevo e embriaguez.

  Vencido quase pelos vapores do álcool e do fumo, que emprestam ao grande salão, o moço senense divisou Carlo numa banca larga de dados, exibindo as qualidades de ganhador.

  – “Feliz no jogo, infeliz no amor”, – cantarola, abraçando mulheres atormentadas e profissionais da luxúria. Apresentando a bolsa recheada de moedas, o hábil cavaleiro, invejado e comentado, desafia ao jogo. Espicaçado pela inveja e por injustificável ciúme, Girólamo aceita a provocação, e a sala silencia para ouvir, sentir e viver a disputa. O ar abafado, pestilento, enche todos os recantos. De quando em quando, rebentam gargalhadas e gritos. Os dados correm no pano de feltro verde bem cuidado, as apostas aumentam e o Conde, jogador ardiloso e inveterado, reduz o adversário a mísera condição, para zombaria geral.

  – “Feliz nos cavalos, desditoso nos dados, impotente no amor” – baldoa Girólamo, picado pela jactance et forfanterie que o dominam acerbadamente.

  Vencido e humilhado naquele ambiente infeliz, ferido nos seus brios de ganhador do palio, Carlo sente que se deve desforçar do rival. Sai da sala em busca do ar da noite. Precisa pensar. Algo conspira contra ele, mas o seu signo o protege, – pensa revoltado. – Doestos e chacotas zombam, na comparação que fazem dele com o nobre Conde, com quem desejou duelar nos dados…

  Não obstante a hora avançada, a cidade continua febril e a taça do prazer generosamente derrama os seus perfumes abundantes e fáceis.

  Depois de caminhar até à Via del la Sapienza e atingir a Piazza de San Domenico, (i) o rapaz recebe as lufadas do ar brando, que sopram na larga área fronteira ao templo imponente. Olha o santuário, que é uma das glórias da cidade; aquele edifício teve o início da sua construção por volta de 1225 e o término somente 240 anos depois, estando situado em local de destaque, donde oferece ampla visão da cidade, em várias direcções. Sentando-se na relva macia, Carlo rebusca a imaginação:

  “O Conde Cherubini – pensa, estimulado pelo ódio que o domina –, após espezinhá-lo, vencido ante todos… Embora sob o estigma das tragédias que deveriam esmagar qualquer homem, aparenta triunfo e galhardia… Conforme lhe narraram os pajens e cavalariços, falou-se que ele bem poderia ter contribuído para que a fortuna do duque lhe viesse parar às mãos, flutuando em abundante rio de sangue e crimes… O duque di Bicci…”

  No mundo espiritual, o duque concertava um plano para atirar Girólamo entre as grades do cárcere ou no laço da forca. Estimulara, pela inspiração, a jovem Senhora Lucrécia a cair-lhe nos braços, a fim de que Francesco o convidasse a duelo reparador, não colimando o desejo. Ajudado, agora, pela conjuntura das Leis Desconhecidas para ele, – Leis que trouxeram Carlo a Siena –, eis surgida a oportunidade ambicionada pelo inimigo desencarnado.

  Aproximou-se do moço em reflexão, cujo pensamento desordenado conseguia perceber, conquanto não apreendesse a forma como lhe chegavam as vibrações mentais, começou a falar, acusador, acolitado por Assunta, em desalinho total, na sua deformação espiritual – vítima do homicídio e vítima, simultânea, do novo sicário que a exauria em crua vampirização psíquica, roubando-lhe todas as energias e fazendo-a tresloucada, em longo curso de desesperação

  Em lugar, distante da bulha, debaixo do aplauso das estrelas miúdas e faiscantes, engastadas na transparência do céu de verão, Carlo interrogava-se, freneticamente. A perseverança do ódio consegue, não raro, vencer os negligentes do amor e os comparsas da insensatez, graças à constrição actuante do pensamento que vibra destruição, aniquilamento.

  Mergulhado cada vez mais nas recordações, exigindo da mente um esforço raro, passou a sintonizar com as duas entidades desditosas que lhe compartilhavam a aversão. Estabelecida a ligação psíquica, pôs-se a recordar a infância, os primeiros anos da juventude em Florença, quando pastoreava as colinas de San Miniato… (San Miniato brilhou-lhe na mente, como o espocar de fogos.) reviu a cena de sangue. Sim, era de lá que o conhecia, era ele o assassino, cujo crime vira naquela primavera do horror – reflectiu.

– Na tela mental, estimulada pelas evocações e sincronizada com o pensamento dos verdugos espirituais, delineou-se o rosto de Assunta, debatendo-se no punhal certeiro do criminoso em fúria. Evocou o desespero que dele se apossara – mantendo vivas as tintas do crime hediondo e do soberbo assassino –, fazendo-o correr logo recuperou as forças e o comando das pernas. Sim, não havia dúvidas… Saberia cobrar a dívida ao infame. “À quelque chose malheur est bon.”(*)

(*) “Para alguma coisa serve a desgraça.”

  “Na ocasião, – continuava a desfilar o novelo das recordações –, comunicara ao pai, que o acompanhara ao local  e nada encontrara, senão os sinais da terra revolvida e as manchas de sangue dos animais em fúria, como lhe dissera o genitor, ao aplicar-lhe algumas bastonadas, afirmando-lhe que delirava… E como nada mais soubesse, perdurou-lhe a dúvida. Agora, tinha a certeza.”

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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (2 de 3) 27º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (VIII)

"Anúncio do Consolador"

   Retira ao homem o espírito livre, independen-te, sobrevi-vendo à matéria, e farás dele uma máquina organizada, sem objectivo, sem responsabili-dade, sem outro travão para além da lei civil e boa para ser explorada como animal inteligente. Nada esperando depois da morte, nada o impede de aumentar os prazeres do presente; se sofre, só tem como perspectiva o desespero e o nada como refúgio. Tendo a certeza do futuro, a de reencontrar os que amou, o receio de rever os que ofendeu, todas as suas ideias se modificam. Se o Espiritismo não tivesse feito mais do que retirar ao homem a dúvida quanto à vida futura, teria contribuído para o seu aperfeiçoamento moral mais que todas as leis disciplinares que por vezes o peiam mas não modificam.

  Sem a pré-existência da alma, a doutrina do pecado original não seria só irreconciliável com a justiça de Deus, que tornaria todos os homens responsáveis pelo erro de um único: seria um contra-senso, tanto mais injustificável quanto, segundo esta doutrina, a alma não existiria na época a que se pretende remontar a sua responsabilidade. Com a pré-existência, o homem traz ao renascer o germe das suas imperfeições, dos defeitos que não corrigiu e que se traduzem nos seus instintos inatos, nas suas propensões para tal ou tal vício. Reside aí o verdadeiro pecado original de que sofre muito naturalmente as consequências, mas com a diferença capital de que sofre o castigo dos seus próprios pecados e não o de um pecado de outro. E há outra diferença, simultaneamente consoladora, encorajadora e soberanamente equitativa: a de que cada existência lhe oferece os meios para se redimir através da reparação e para evoluir, quer despojando-se de alguma imperfeição, quer adquirindo novos conhecimentos, e isto até que, ao estar suficientemente purificado, deixe de necessitar da vida corporal e possa viver exclusivamente da vida espiritual, eterna e bem-aventurada.

  Pelo mesmo motivo, o que evoluiu moralmente traz, ao renascer, qualidades inatas, tal como o que evoluiu intelectualmente traz ideias inatas; identifica-se com o bem, pratica-o sem esforço, sem cálculo e, por assim dizer, sem pensar. O que é obrigado a combater as suas más tendências está ainda a lutar: o primeiro já venceu, o segundo vai a caminho de vencer. Existe, portanto, virtude original tal como há saber original e pecado ou, melhor vício original.

  O Espiritismo experimental estudou as propriedades dos fluidos espirituais e a sua acção sobre a matéria. Demonstrou a existência do perespírito, presumido desde a antiguidade e designado por São Paulo sob o nome de Corpo espiritual, isto é, corpo fluídico da alma após destruição do corpo tangível. Sabemos hoje que esse invólucro é indissociável da alma; que é um dos elementos constituintes do ser humano; que é o veículo de transmissão do pensamento e que, durante a vida do corpo, serve de ligação entre o Espírito e a matéria. O perespírito representa um papel tão importante no organismo e numa quantidade de afecções, que se aproxima da fisiologia tão bem como da psicologia.

  O estudo das propriedades do perespírito, dos fluidos espirituais e dos atributos psicológicos da alma, abre novos horizontes à ciência e fornece a chave de um conjunto de fenómenos até então incompreendidos por não se conhecer a lei que os rege; fenómenos negados pelo materialismo porque se prendem à espiritualidade, qualificados por outros como milagres ou sortilégios, consoante as crenças. São assim, entre outros, os fenómenos da dupla visão, da visão à distância, do sonambulismo natural ou artificial, dos efeitos psíquicos da catalepsia e da letargia, da presciência, dos pressentimentos, das aparições, das transfigurações, da transmissão de pensamento, do fascínio, das curas instantâneas, das obsessões e possessões, etc. Ao demonstrar que estes fenómenos assentam sobre leis tão naturais como os fenómenos eléctricos e as condições normais em que se podem produzir, o Espiritismo destruiu o império do maravilhoso e do sobrenatural e, por consequência, a fonte da maior parte das superstições. Se faz com que se acredite em certas coisas consideradas por alguns como quiméricas, impede que se acredite em muitas outras de que demonstra a impossibilidade e a irracionalidade.

  O Espiritismo, muito longe de negar ou de destruir o Evangelho, vem antes pelo contrário confirmar, explicar e desenvolver, através das novas leis da natureza que revelam tudo o que Cristo fez e disse; traz luz aos pontos obscuros do seu ensino, de tal modo que alguns daqueles para quem certas partes do Evangelho eram ininteligíveis, ou pareciam ser inadmissíveis, as compreendem e as admitem sem dificuldade com a ajuda do Espiritismo; entendem-lhe melhor o alcance e podem separar a realidade da alegoria; Cristo parece-lhes maior: já não é simplesmente um filósofo, mas sim um Messias divino.

  Se, além disso, considerarmos o poder do Espiritismo pelo objectivo que confere a todas as acções da vida, pelas consequências do bem e do mal que deixa bem claras, a força moral, a coragem, os consolos que confere nas aflições através da ideia de termos perto de nós os entes que amámos, a garantia de os revermos, a possibilidade de conversar com eles, enfim, pela certeza de que de tudo o que fazemos, de que de tudo o que adquirimos em inteligência, em ciência, em moralidade, até ao derradeiro momento da vida, nada está perdido, que tudo aproveita à evolução, reconhecemos que o Espiritismo realiza todas as promessas de Cristo relativamente ao Consolador anunciado. Ora, como é o Espírito de Verdade que preside ao grande movimento da regeneração, a promessa do seu advento encontra-se igualmente realizada, pois, de facto, é ele o verdadeiro Consolador (*).

  (*) Muitos pais de família deploram a morte prematura de crianças, pela educação das quais fizeram grandes sacrifícios, e dizem para consigo que tudo isso foi uma pura perda. Com o Espiritismo não lamentam estes sacrifícios e estariam prontos a fazê-los, mesmo tendo a certeza de verem morrer os filhos, pois sabem que, se estes não beneficiam dessa educação no presente, ela servirá primeiro para a sua evolução como Espíritos; depois, que será um conhecimento adquirido para uma nova existência e que, quando regressarem, possuirão uma bagagem intelectual que os tornará mais aptos a adquirir novos conhecimentos. São as crianças que ao nascer trazem ideias inatas, que sabem sem, por assim dizer, terem necessidade de aprender. Se os pais não têm a satisfação imediata de verem os filhos usufruírem dessa educação, certamente gozá-la-ão mais tarde, quer como Espíritos, quer como homens. Talvez venham a ser novamente os pais dessas mesmas crianças que consideramos afortunadamente dotadas pela natureza e que devem as suas aptidões a uma anterior educação; assim como também, se as crianças se desencaminham por negligência dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos dos pais, estes podem vir a sofrer mais tarde com isso, devido aos aborrecimentos e desgostos que provocarão numa nova existência. (Evangelho Segundo o Espiritismo, Capítulo V, n.º 21: Perdas de Pessoas Amadas e Mortes Prematuras.)

  Se a estes resultados acrescentarmos a rapidez inerente à propagação do espiritismo, apesar de tudo o que foi feito para o abater, não poderemos sequer pensar que o seu advento não seja outra coisa que não providencial, na medida em que triunfa sobre todas as forças e sobre todas as más vontades humanas. A facilidade com que é aceite por um grande número de pessoas, e isso sem constrangimentos, sem outros meios de que o poder da ideia, prova que ele responde a uma necessidade: a de acreditar em qualquer coisa, após o vazio cavado pela incredulidade. Consequentemente, chegou no momento exacto.

 Os aflitos são em grande número: não é então surpreendente que tantas pessoas acolham uma doutrina consoladora, de preferência a doutrinas que desesperam, na medida em que é mais aos deserdados da sorte do que aos felizes que se dirige o Espiritismo. O doente vê chegar o médico com mais alegria do que aquele que não costuma ter problemas de saúde; ora, os aflitos são os doentes e o Consolador é o Médico.

  Vós que combates o Espiritismo, se queres que o deixem para vos seguirem, dá então mais e melhor que ele; cura mais garantidamente as feridas da alma. Dá mais consolações, mais satisfações ao coração, esperanças mais legítimas, certezas maiores; faz do futuro um quadro mais racional, mais sedutor; mas não penses em vencê-lo com a perspectiva do vazio; com a alternativa das chamas do Inferno ou da beata e inútil contemplação perpétua.

/…


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 37 a 44 (VIII), 10º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Inquietações Primaveris ~


A Consciência da Morte

Todos sabemos que morremos, que a morte é inevitável, mas estamos tão apegados à vida e fazemos uma ideia tão negativa e temerosa da morte que a rejeitamos na nossa consciência e a transformamos num mito, afastando-a para o Fim dos Tempos. Mito assustador, ela permanece à distância, envolta em névoas, de maneira que só a vemos como figura trágica de um conto de terror. Heideggard observou que só a aceitamos, para os outros, na expressão aleatória morre-se, que nunca se refere a nós. Fascinados pelo fluxo incessante da vida, mergulhados no torvelinho das nossas preocupações do dia a dia, temos a sensação inconsciente e agradável de que ela sempre se distancia de nós. Mesmo quando, conscientemente, pensamos na morte, o fazemos com a ilusão de que ela não chegará tão cedo, pois temos ainda muita coisa a fazer e sentimos que a vida borbulha em torno de nós sem permitir a entrada da morte no nosso meio. Essa é uma forma ingénua de protelarmos a nossa morte, segundo as exigências do instinto de conservação. Assim aliviamos o medo da morte, confiantes no poder da vida.

De nada valem essas pequenas trapaças. A morte chega quando menos o esperamos e não raro nos leva para a outra vida sem nos dar tempo para compreender o que aconteceu. As pesquisas psíquicas, em mais de dois séculos, mostraram o curioso espectáculo de muitas criaturas mortas que não sabem que morreram. Continuam vivas na matéria por conta das suas próprias ilusões e passam a assombrar sem querer e sem o saber os lugares em que viviam ou frequentavam. É claro que permanecem desajustadas no mundo espiritual.

Para evitar esses e outros inconvenientes, devemos desenvolver em nós a consciência da morte, sabendo positivamente que ela existe e é inevitável, sendo inútil qualquer ilusão nesse sentido, que só poderá prejudicar-nos. Temos de nos familiarizar com a morte, considerando-a com naturalidade, não a transformando em tragédia ou em espectáculos inúteis de desespero. Nas sessões espíritas cuida-se muito desses casos, procurando-se despertar os mortos de suas confusões produzidas pelo apego à Terra e integrá-los na nova forma de vida para a qual passaram. Eles não são tratados como almas do outro mundo, mas como companheiros da vida terrena que se libertaram do condicionamento animal por retornarem ao seu mundo de origem, que é o espiritual. Os adversários da doutrina criticam esse processo mediúnico, alegando que criaturas ainda encarnadas nada têm para ensinar às que já se livraram do corpo material. Mas desde as pesquisas de Kardec até aos nossos dias o processo de doutrinação tem dado os melhores resultados, tanto em favor de espíritos perturbados pela passagem súbita ao plano espiritual, quanto no esclarecimento de pessoas que sofrem as influências dessas entidades. Isso se explica por duas razões fundamentais:

1) A doutrinação é a transmissão de ensinos dos desencarnados superiores dados a Kardec, através da mediunidade, para a renovação moral e espiritual da Humanidade. Apoiados no conhecimento desses ensinos é que os médiuns e os doutrinadores atendem as entidades desencarnadas.

2) As pesquisas de cientistas eminentes como Richet, Crookes e Zöllner, no século passado, e Geley, Osty, Crawford, Soal, Carington, Pratt e Price, na actualidade, provaram que nos ambientes mediúnicos a emanação do ectoplasma ampara os espíritos desencarnados e inseguros no plano espiritual, dando-lhes a sensação de segurança física necessária para conversarem com os doutrinadores como se estivessem encarnados. A situação dos espíritos recém-desencarnados, no plano espiritual, não lhes permite a lucidez necessária para compreender facilmente os ensinos que recebem das pessoas que dirigem o trabalho mediúnico.

Esse intercâmbio processa-se em benefício dos espíritos e dos homens, sem nenhum sistema de evocações e rituais. Os espíritos manifestam-se por sua livre vontade, desejosos de comunicar-se após a morte do corpo físico, com familiares e amigos que deixaram na vida terrena. Essas manifestações naturais marcam toda a história da Humanidade, em todo o mundo e em todos os tempos, sem nenhuma interrupção. Não são descobertas modernas nem invenções de qualquer investigador; figuram nos livros sagrados de todas as religiões, na cultura de todos os povos e nas grandes obras literárias, filosóficas e científicas das grandes civilizações. Constituem, portanto, uma fenomenologia ao mesmo tempo arcaica e moderna, actualmente comprovada pelas pesquisas tecnológicas, tanto nas áreas espiritualistas como nas materialistas do mundo actual. Não se trata do produto de crenças ou superstições, mas de uma realidade fenoménica cientificamente provada e comprovada. As interpretações pessoais desses fenómenos, formuladas por clérigos interessados em negá-los ou subordiná-los a processos puramente psicológicos, nada representam, são apenas palpites ingénuos ou interesseiros, fartamente negados pelas grandes pesquisas científicas do passado e do presente.

A morte é um fenómeno natural, de natureza biológica, no qual se verifica o esgotamento da vitalidade nos seres pela velhice ou por acidente fisiológico. Não atinge a essência do ser, que é sempre de natureza espiritual, referindo-se apenas ao corpo material, o que vale dizer que ela não existe como extinção das formas de ser das plantas, dos animais e dos homens. Falar da morte como a nadificação, como faz Sartre, é simples ilogismo, tanto do ponto de vista puramente racional, quanto do científico. As condições actuais do desenvolvimento científico eliminaram totalmente qualquer possibilidade de sustentação da teoria do Nada, esse conceito vazio, como Kant o considerou. Os que insistem na destruição total do homem pela morte revelam ignorância do avanço das Ciências nos nossos dias. O que se fez neste século na investigação desse problema, directa ou indirectamente, liquidou as últimas esperanças dos que sonharam com a irresponsabilidade do nada, de um Universo inconsequente e sem finalidade. Indirectamente, a Física revelou as potencialidades ônticas da matéria e, nas suas entranhas, a eterna dinâmica dos átomos e as suas partículas, sendo que estas, mesmo quando livres, tendem sempre a formar estruturas atómicas definidas e plasmas orgânicos. As pesquisas da antimatéria revelaram a mesma tendência nos antiátomos, criadores de espaços novos e antiestruturas materiais. Os vazios espaciais mostraram-se carregados de campos de força que escapam ao nosso sensório, à precariedade dos sistemas de percepção humana, não raro superadas pela percepção animal. E, directamente, o avanço das pesquisas psicológicas, aprofundadas pela Parapsicologia, confirmaram a tese do avanço constante do inconsciente para o consciente, de Gustav Geley, confirmando a teoria da evolução criadora de Bergson. Cientistas soviéticos voltaram, nas pesquisas astronáuticas, a desvendar os mistérios dos sete véus de Ísis, como o fizeram M. Vassiliev e Sianiukovch, em Os Sete Estados do Cosmos. Nas captações e gravações do inaudível por Raudive, na Alemanha, nas pesquisas de Pratt sobre os fenómenos teta (avisos de morte e comunicações de espíritos de pessoas mortas) e nas pesquisas sobre a reencarnação por Ian Stevenson, Wladimir Raikov (este na Universidade de Moscovo) e por Barnejee na Universidade de Rajastam, temos uma constelação imponente de factos e dados positivos sobre a realidade, hoje inegável, da transitoriedade da morte. Ao mesmo tempo, ante esse panorama de revelações científicas, a morte adquire uma importância gigantesca na construção da génese moderna. Tornou-se impossível a sustentação lírica das teses materialistas dos nossos dias.

A necessidade de uma tomada universal de consciência sobre o sentido, o significado e o valor da morte, tornou-se imperiosa. É simplesmente inadmissível, neste século, qualquer doutrina que pretenda sustentar por simples argumentos que a morte é o fim e a frustração total dos seres vivos e especialmente da criatura humana. O panorama científico actual exige de todos nós o desenvolvimento da consciência da morte, cuja fatalidade inegável se explica pela necessidade de renovação das estruturas da vida em todos os planos da natureza. Em consequência, a presença de Deus, como Consciência Suprema que rege a toda a realidade, numa estrutura lógica, teleológica e antiteológica, firma-se como o imperativo categórico da compreensão do mundo, do homem e da vida. Os teólogos que proclamaram, ante a tragédia nazi num exíguo espaço-tempo do nosso pequenino planeta, a Morte de Deus, mataram a Teologia em que se amamentaram durante séculos, praticamente um matricídio vergonhoso e estúpido. Em última instância, suicidaram-se na porta do Céu, no momento exacto em que o Céu era conquistado pela Ciência mundial. Nunca se viu maior fiasco do que esse, que reduz a simples opereta a façanha de Prometeu e a sua morte no Cáucaso. Soou a hora final das Igrejas, o instante fatal da falência eclesiástica, transformada em toda a parte numa nova morte de Pã. A grande Deusa morreu aos nossos olhos, como já havia morrido o Deus Pã nos fiordes da Noruega, ante a capitulação dolorosa de Knut Hamsun. As Igrejas, universalmente transformadas em supermercados de quinquilharias sagradas, estão agora vendendo os seus saldos das existências aos missionários por conta própria que invadiram as nações para vender, nos submundos da ignorância falsamente ilustrada e do populacho ansioso por um céu de delícias pasmáticas made in Bizâncio. Porque Bizâncio foi o fim esquizofrénico do Mundo Antigo após a queda de Roma e hoje a Nova Roma, já também esclerosada, parece destinada a selar o fim do mundo do arbítrio e da violência em que vivemos.

Esse rápido olhar pelo passado de tentativas frustradas da implantação do Cristianismo na Terra basta para nos mostrar que precisamos de desenvolver em nós a consciência da morte, para aprendermos a morrer com decência e dignidade. Se esta civilização apoiada em arsenais atómicos nada mais pode esperar do que a sua própria explosão, que ao menos nos preparemos para morrer de mãos limpas, sem manchas de sangue e de roubo, a fim de podermos voltar nas futuras reencarnações, em condições de consciência que nos permitam realizar uma nova tentativa de cristianização do Planeta. Sem uma tomada de consciência do sentido e do valor da morte estaremos arriscados a continuar indefinidamente no círculo vicioso das vidas repetitivas e sem sentido. A vida só tem sentido quando serve de preparação para vidas melhores. O destino não é viver como as feras, mas viver para transcender-se, numa escalada do Infinito em busca das constelações superiores. Os segredos da morte nos são agora racionalmente acessíveis para podermos aprender a perder a nossa vida para reencontrar o Cristo.

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José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Consciência da Morte, 18º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Mundo Invisível e a Guerra ~


IX
O Espiritismo e as Religiões

|Fevereiro de 1917|

   O Espiritismo não é inimigo das religiões; ao contrário, fornece-lhe poderosos elementos de valor e de regeneração.

   Os conhecimentos que ele nos proporciona sobre a vida no Além e as condições em que se desenvolve a nossa existência após a morte, a certeza de leis justas e equitativas regendo o mundo invisível, formam outros tantos meios de análise e exame crítico, permitindo separar, nas religiões, o que é artificial e ilusório do que é real e imperecível.

   Não há dúvida de que os fenómenos do Espiritismo se encontram na origem de todas as religiões, porém estas lhes emprestam um carácter sobrenatural e milagroso, transferindo-os para um passado remoto e fazendo-os perder toda a importância sobre a vida moral e social.

   O intercâmbio com o invisível era apenas uma hipótese, uma vaga esperança; com o Espiritismo, torna-se certo e permanente.

   Estamos vivendo uma das maiores épocas de transição da História. Os factos que se estão desenrolando, as cruentas lutas dos povos e as subversões sociais são o começo, a preparação de uma nova ordem das coisas.

   Quando terminar a guerra (*), a mente humana analisará todos os seus aspectos e procederá a um exame profundo de todas as forças que agiram no decorrer desses trágicos anos. Então comprovaremos que são as ideias que conduzem o mundo. O patriotismo, ao unir os corações dos franceses, conteve a invasão, limitando os seus estragos.

   O amor pela terra natal acordou o heroísmo que, apoiado pelos auxílios poderosos do mundo oculto, salvou a França.

   Por isso a ideia de pátria terá que ocupar um lugar especial no ensino da educação popular. Entretanto, isso não será o bastante: para terminar com as nossas desavenças, as nossas rivalidades, as lutas de classes e de interesses é preciso, antes de tudo, unir inteligências e consciências, pois sem a harmonia das almas não poderá haver a harmonia social.

   Todavia, como se poderá preparar tal união? Trabalhe-se com ardor, com espírito de tolerância e concórdia, para aproximar os objectivos, as aspirações e as crenças. Dois poderosos meios se apresentam: A ciência e a fé.

   Antagónicos na aparência, essas tendências se conciliam e se completam mutuamente, como veremos no decurso deste livro. Elas podem fornecer facilmente uma concepção da vida e do destino, uma noção das leis superiores e uma base moral, estas coisas que são indispensáveis à nossa perturbada sociedade e sem as quais a existência seria vazia de sentido, sem finalidade e sem sanção.

   Dentro de toda a alma humana há um retiro, um ponto secreto, onde se instala a centelha divina, a parte do Infinito que garante a cada um de nós a indestrutibilidade do seu eu. Ali dormitam as forças invisíveis, os recursos psíquicos cujo desenvolvimento fará, mais tarde, do ser mesquinho, frágil e ignorante que somos no princípio de nossa evolução, um génio preparado para as grandes empresas e capaz de desempenhar um papel notável no Universo.

   A verdadeira religião consiste em utilizar esses recursos ocultos e valorizá-los. Ela tem que nos ensinar a colocar o ser interior em comunhão com o divino, expandindo-o, libertando-o de influências inferiores, fazendo-o adquirir a plenitude de sua irradiação.

   Conseguido esse estado espiritual, a alma humana poderá realizar as suas mais árduas missões e aceitar com alegria as provações mais duras. Saberá conservar nos dias mais difíceis um optimismo e uma confiança inquebrantáveis.

   Esse estado de espírito pode ser encontrado em todas as religiões, bem como fora delas. Atendo-se às práticas rituais da liturgia e aos diversos dogmas existentes dentro dos limites em que comummente se encontra a ideia religiosa, com frequência esquece-se da fé independente que paira acima de todos os cultos e não se sujeita ao “credo” de nenhuma igreja.

   Essa religião, pessoal e livre, talvez conte com maior número de membros do que as religiões reconhecidas, porém o número exacto de seus adeptos foge a todos cálculos.

   As descobertas científicas nos deram uma concepção do Universo vasta e grandiosa, mas diferente daquela que tínhamos na Idade Média e na antiguidade.

   A experimentação psíquica e o estudo do mundo invisível abriram perspectivas ilimitadas para a vida e para o destino do ser; o homem se sentiu ligado a todos os que pensam, amam e sofrem, na imensidão dos espaços.

   Os modelos das religiões caducas se romperam com o impulso triunfante do espírito, sequioso para conquistar a sua legítima parte de verdade e de luz. Quase não existem intelectuais que não tenham criado uma crença inspirada na observação directa da natureza, isenta das rotinas seculares, baseada na ciência e na razão.

   Os partidários dos dogmas não pretendem ver nesse sentimento senão o que denominam ironicamente de “religiosidade”. Realmente, ele possui em gérmen os elementos dessa religião universal, simples e natural que haverá, um dia, de reunir todos os povos do planeta e fundir as igrejas particulares, assim como os rios se fundem no oceano.

   Os actuais acontecimentos repercutirão profundamente por todas as formas da actividade social e, assim que a paz reinar novamente no mundo, haverá uma revisão de todas as causas que contribuem para o progresso humano, não escapando as religiões a uma análise crítica e rigorosa.

   Os terríveis factos que estão acontecendo darão a medida que permitirá calcular o poder ou a fraqueza moral das religiões.

   Verificar-se-à, não sem certo espanto, que a educação religiosa de povos que se intitulam cristãos, como a Alemanha e a Áustria, nada conseguiu fazer para impedir os mais condenáveis crimes que fazem a civilização se envergonhar.

   Ver-se-à com tristeza que, nestas horas cruéis, a Igreja Romana quase sempre colocou os seus interesses políticos acima das recomendações do Evangelho e dos sagrados direitos da consciência. Não foram melhores os adeptos do Islamismo e foi mais clara do que nunca a falência das religiões.

   No início da guerra a França foi sacudida por um grande movimento religioso e, após as nossas primeiras derrotas, as aspirações que moram no fundo de sua natureza lhe despertaram uma necessidade de crença, de saber que a morte não equivale ao nada e que, acima de tudo, existe um poder soberano, uma força inteligente e consciente, capaz de nos amparar e socorrer na provação e fazer prevalecer a justiça em um mundo de paixões descontroláveis.

   Se tal sentimento houvesse podido alcançar o ideal sonhado, seria o começo de uma renovação nacional, todavia as soluções apresentadas pelas igrejas, as poucas consolações que elas ofereciam aos corações dilacerados, as práticas ritualísticas impostas aos seus fiéis já não satisfaziam às necessidades do tempo e do meio. Foram julgadas insuficientes e assim, pouco a pouco, o movimento religioso se enfraqueceu.

   Todavia, o pensamento segue firme, voltado para o Além. Diante do perigo e do dilúvio de sofrimentos que nos ameaçam, no meio das ruínas e das mortes que se acumulam, a alma francesa procura sempre uma base sólida, uma certeza onde apoiar a sua fé e só as encontrará no moderno espiritualismo, o que equivale dizer no Espiritismo.

   A religião do futuro se apoiará na prova científica da sobrevivência, nas demonstrações experimentais e no testemunho dos sábios que estudaram os problemas da vida invisível.

   No decorrer desta guerra, o antropomorfismo das religiões se apresentou no seu aspecto mais monstruoso e o velho deus alemão não é mais do que uma evocação dos bárbaros deuses do paganismo germânico. Sob a máscara cristã mal ajustada, Odin, que comanda as cenas de carnificina, deixa entrever as suas feições.

   Esta noção da divindade é muito próxima do mais baixo materialismo e repugna às almas delicadas e aos espíritos refinados. Não se trata apenas das acções de um monarca ávido em dominar o mundo e dos chefes militares que o rodeiam; essa concepção é também encontrada nas obras dos pensadores alemães; professores, pastores e escritores a proclamam abertamente em discursos e publicações.

   Semelhante ao Jeová, do Antigo Testamento, o velho deus alemão protege somente uma raça, vendo nas outras apenas um rebanho de povos vis e corruptos, destinados à ruína e à morte.

   Esta feroz mentalidade faz dos alemães os pretensos instrumentos da vingança divina, impelindo-os a uma obra de destruição que eles continuam metodicamente.

   Essa grosseira mística aproxima-se das teorias de Nietzsche, relativas ao super-homem, tão difundidas na Alemanha, e podemos medir as funestas consequências de uma falsa religião unida a uma não menos falsa filosofia.

   É bom, sem dúvida, desenvolver a vontade de poder, segundo a expressão de Nietzsche, porém com a condição de se desenvolverem, ao mesmo tempo, a consciência e as outras faculdades do espírito e do coração: a piedade e a bondade, o respeito à verdade, ao direito e à justiça. Sem isto rompe-se todo o equilíbrio moral no ser humano e só se logrará produzir homens orgulhosos, déspotas, monstros que, para triunfarem, não vacilarão no emprego de todos os meios, mesmo os mais criminosos e odiosos.

   Daí essa terrível luta que se desenvolve à nossa volta, onde a Alemanha, em razão do seu feroz egoísmo, se desacredita e se desonra aos olhos do mundo e da História.

/...

(*) Primeira Guerra Mundial 1914-1918.


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, IX O Espiritismo e as Religiões 1, Fevereiro de 1917, (1 de 2), 24º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

sábado, 22 de novembro de 2014

Nas garras do pensamento crítico ~


O indivíduo e o meio ~

   Alguns espíritas não entendem esse imperativo histórico da doutrina. Pensam que a lei de causa e efeito explica e resolve todas as coisas, cabendo-nos apenas compreendê-la e aceitar passivamente a sua acção. Esse pensamento misoneísta, de fundo místico, aparece até mesmo em A Grande Síntese, o livro de Ubaldi, que já citamos algumas vezes, e que comete ainda o pecado filosófico de confundir o comunismo científico de Marx e Engels com o comunismo igualitário e ingénuo de Weitling. Outros entendem que a revolução espírita é essencialmente individualista, cabendo-lhe transformar o homem, para que a estrutura social, em consequência, se transforme. É novo equívoco de fundo místico, e Mariotti o menciona, chegando mesmo a tropeçar nele.

   Allan Kardec nos indica, entretanto, a necessidade do contínuo esforço do homem para se superar a si mesmo e às circunstâncias. A passividade diante das leis naturais caracteriza as formas inconscientes de vida. A consciência está submetida a uma nova lei, em plano mais alto: a lei do esforço próprio, a lei do trabalho e da actividade livre, que a fará progredir, a si mesma e ao todo a que pertence, à colectividade. Em O Livro dos Espíritos encontramos esse pensamento claramente definido, impregnando toda a obra, e podemos surpreendê-lo nos passos como o seguinte: “Tudo se deve fazer para chegar à perfeição, e o próprio homem é o instrumento de que Deus se serve para atingir os seus fins. Sendo a perfeição a meta da natureza, favorecer essa perfeição é corresponder aos propósitos de Deus.” (pergunta 692).

   Kardec não é misoneísta. Deus, para ele, é sinónimo de incessante actividade em direcção do bem, é o constante “vir-a-ser” do Universo, actuando por todos os meios e por todas as formas, para atingir o objectivo ideal. Vejamos, por exemplo, o seguinte trecho do seu comentário ao número 783 de O Livro dos Espíritos: “O homem não pode conservar-se indefinidamente na ignorância, pois tem de atingir a finalidade que a Providência lhe assinalou. Ele se instrui pela força das coisas. As revoluções morais, como as revoluções sociais, germinam durante séculos. Depois, irrompem subitamente e produzem o desmoronamento do carunchoso edifício do passado, que já não se encontra em harmonia com as necessidades novas e as novas aspirações.”

   A renovação do homem implica a renovação social – mas desde que o homem renovado se empenhe na transformação do meio em que vive, sendo esta, aliás, a sua indeclinável obrigação espírita. Ora, querermos ficar no conceito de uma renovação puramente individualista seria um contra-senso, simples ignorância da estrutura social como um todo. Que diríamos de um pedreiro que, para embelezar um edifício, não cuidasse do seu aspecto de conjunto, mas somente de cada um dos tijolos, isoladamente? E quem poderia negar, dentro da concepção espírita, que o homem não é um indivíduo abstracto, mas parte integrante do todo social, sobre o qual exerce a sua influência e pelo qual é influenciado, resultando, dessa constante simbiose, a sua evolução e a evolução colectiva? Como, pois, isolarmos o homem, para que o Espiritismo o trabalhe no espaço, independentemente das suas raízes gregárias?

   A função do Espiritismo é a renovação integral do homem, não apenas do homem na sua expressão individual e transitória, mas na sua permanente expressão colectiva. A propósito, aliás, poderíamos lembrar aos defensores do pensamento isolacionista, a lei maior do Evangelho, que é a do amor ao próximo. Não conheceriam eles o poder do ambiente sobre os indivíduos, mormente sobre os menos evoluídos? Não saberão que as influências mesológicas determinam, quase sempre, o próprio carácter individual? Não perceberão que uma vida social mais equilibrada, e portanto mais justa, será o grande e permanente estímulo do progresso individual?

   Por uma consciência humanista

   Se a experiência nos mostra que a formação de uma “consciência proletária” é praticamente inviável, pois, entre outros motivos, a própria revolução proletária vem sendo impulsionada e dirigida por forças estranhas ao proletariado; não somente desde os seus pródromos, mas ainda, hoje, e cada vez mais; se nos mostra que a “filosofia do proletariado” não consegue atraí-lo e empolgá-lo mais do que a demagogia fascista ou o diversionismo democrático dos países capitalistas mais altamente industrializados; se nos revela ainda que a vitória das chamadas “minorias conscientes” cria novos e violentos antagonismos internacionais, cada vez mais agressivos, é evidente que só nos resta procurar uma saída humana, e não proletária nem burguesa, para essa terrível situação. A saída não será a da submissão, a do pescoço entregue mansamente à canga, mas não será também a da violência e a da força.

   Se Marx reconhece no proletariado o potencial revolucionário, que a sua filosofia devia armar da necessária orientação para a luta, e se essa orientação só seria possível através da criação da “consciência de classe”, não teremos, nesse mesmo facto, o exemplo e a indicação do que nos cabe fazer? As massas que hoje se deparam à nossa frente, exploradas e sofredoras, não são apenas o proletariado, mas essa multidão heterogénea, que se chama povo, humanidade, e que as classes dividem de maneira formal, mas não substancial. Ao mesmo tempo, a situação das classes dominantes é de angústia e desespero, pesando sobre elas as consequências morais inevitáveis do usufruto indevido e da exploração dos semelhantes. O capital, o dinheiro, o poder, as comodidades, não bastam para salvá-las e, pelo contrário, cada vez mais as precipitam no pântano da corrupção moral e social.

   Diante disso, cabe-nos repetir o gesto de Marx, oferecendo agora uma filosofia, não a esta ou àquela classe, mas a toda a humanidade, para armá-la da orientação necessária, através da criação de uma “consciência humanista”. Entreguemos essa filosofia de libertação, essa arma de defesa moral, esse instrumento de luta social, ao homem de todas as latitudes e de todas as classes, e trabalhemos pela criação da “consciência humanista” nos indivíduos em particular e no meio social em geral.

   Elevar a Terra na escala dos mundos

   Não nos iludamos, porém, quanto aos métodos de acção que devemos empregar. A simples evangelização ou catequização, nos moldes religiosos, não dará resultados, porque nos amarram, pelo contrário, às antiquadas formas sectárias, que proliferam por toda a parte e criam divisionismos estéreis e perigosos. O Espiritismo tem de descobrir a sua própria maneira de agir, tem de forjar as suas próprias armas, inteiramente novas, tão diferentes das usadas pelo processo do religiosismo clássico quanto pelo materialismo-dialéctico. Talvez nesta altura nos pudessem servir de “pontos-de-referência” algumas longínquas tentativas históricas, como a da comunidade apostólica, de que nos dá notícia O Livro de Actos, ou ainda as recentes colónias de produção do Estado de Israel. O certo, porém, é que precisamos estabelecer os fundamentos sólidos e definidos do Espiritismo Dialéctico, aplicando-o, no plano sociológico ou histórico, rumo à sociedade futura.

   Ele mostrará, com base na experiência secular e no estudo objectivo da natureza humana, do homem psicológico, que não se pode construir um mundo social harmónico através da violência social, mas tão-somente do desenvolvimento do espírito colectivista de cooperação. E que a sociedade, como o homem – sem cairmos rigidamente no organicismo spenceriano –, tem as suas fases evolutivas bem definidas, que não poderemos deixar de considerar, pois Engels já nos ensinou que não desprezaríamos impunemente a dialéctica.

   Assim, se aquilo que o homem só podia resolver pelo emprego da força bruta, no seu estado primitivo, consegue fazê-lo pelo raciocínio e pela técnica, no estado de civilização, também a humanidade, superada a fase primitiva da sua elaboração social, pode caminhar, sem o uso da violência brutal e instintiva, para a revolução colectivista. Isso não quer dizer que a luta não se processe, que tenha sido interrompida no seu organismo, e que tenhamos de esperar o advento espontâneo da nova forma social, mas apenas que a luta se desenvolve de maneira diversa, em plano mais alto, como bem o definiu Ubaldi.

   Aproveitemos, pois, a oportunidade que Humberto Mariotti nos oferece, com a sua “interpretação espiritual da dialéctica”, para meditarmos sobre esses assuntos e buscarmos a forma que nos falta de oferecer ao mundo a solução espiritual do problema social. De fazermos, enfim, que o Espiritismo cumpra a sua missão histórica, vencendo a crise que o reduz, no momento, a uma luz bruxuleante no meio de densas trevas, a uma espécie de simples refúgio individual para as decepções e para as aflições humanas. Pois o seu destino, como assinalou sir Oliver Lodge, não é apenas o de consolar corações desalentados, mas o de rasgar para o mundo as perspectivas de uma nova era. Se a fé dogmática determinou o fanatismo religioso da Idade Média, com as suas fogueiras sinistras, a fé raciocinada criará o positivismo religioso do terceiro milénio, com as piras da fraternidade acesas em todos os quadrantes do planeta. Porque, como já o dissera Kardec, a tarefa do Espiritismo é a de elevar a Terra na escala dos mundos, transferindo-a da categoria expiatória para a de Mundo Regenerador.

                                                                                         J. Herculano Pires



José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico  O indivíduo e o meio – Por uma consciência humanista – Elevar a Terra na escala dos mundos, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

domingo, 16 de novembro de 2014

O sentido da vida ~


O Sentido da Vida ~

O fardo da existência torna-se demasiado pesado para a criatura humana, quando, vencendo os primeiros anos de ilusão e de fácil entusiasmo, ela se encontra envolvida na dura e monótona rotina quotidiana. Os dias e as noites se tornam iguais, ou variam muito pouco, e não raro da pior maneira. Sobrevém para o homem o cansaço das obrigações que o escravizam, o perigo constante da doença, do desemprego, dos acidentes e da morte, para ele mesmo e para os que lhe são mais caros, a incerteza dos dias futuros e a angústia das dificuldades financeiras.

Os ricos, bem aquinhoados pela fortuna, despreocupam-se de muitas dessas coisas, que pesam mais fortemente na vida obscura de milhares de pobres, de milhares de pessoas que vivem do suor de seu próprio rosto. Mas, mesmo para eles, a vida reserva o seu quinhão de desilusões e de amarguras. E não raro ela se torna tão amarga, através das dificuldades de família, das lutas inglórias com amigos e parentes, das decepções de toda espécie, que o homem aparentemente felizardo, senhor de grandes fortunas, se enche de tédio e procura uma saída no suicídio ou nas dissipações e no tumulto das paixões impuras.

Os cientistas e os artistas, dizia Goethe, empenham-se no caminho de suas conquistas e realizações, e de nada mais precisam. Os religiosos apegam-se à fé e conseguem superar os próprios dissabores. Entretanto, se analisarmos melhor esses velhos conceitos, à luz das experiências reais, veremos que nem a Ciência, nem a Arte, a Filosofia ou a Religião conseguem de facto salvar o homem do vazio da vida, quando esse vazio se lhe apresenta em todo o seu horror. O estímulo de viver, que esses ramos do conhecimento humano conseguem despertar, pode também esgotar-se, levando o cientista, o artista, o filósofo e o religioso ao desespero e à descrença.

Diante disso, procuram os homens construir várias espécies ou sistemas de explicações para a vida. Numerosos livros foram escritos, milhares de conferências são diariamente pronunciadas, no intuito de tornar suportável a existência para todos, aplainando o escarpado caminho dos desiludidos e descrentes.

Desses sistemas, há um que podemos chamar de heróico. É o materialista, que explica a vida como uma fatalidade natural a que não podemos fugir e que devemos enfrentar com energia e serenidade, sem nos atemorizarmos e sem cometermos a franqueza de uma deserção. Belo sistema para as almas fortes, dotadas da intuição inata de que a vida tem um objectivo oculto, embora intelectualmente o neguem. Mas de que serve todo o heroísmo desse sistema para a grande massa do povo, que não tem disposição para o heroísmo? Se nos fosse possível tornar materialista um povo inteiro, toda uma nação, veríamos a que extremos de desespero e de loucura esse belo sistema nos levaria.

Há um sistema que poderíamos chamar de superficial, e que se enquadra, na filosofia clássica, na corrente do cepticismo, que nos vem do filósofo grego Pirron (aproximadamente 360-270 a.C.). Este sistema nada explica nem quer explicar. Limita-se a considerar a vida como um facto consumado, diante do qual não nos resta fazer outra coisa senão suportá-la. Para os temperamentos frios, naturalmente indiferentes e egoístas, ele pode servir. Mas há momentos em que o próprio egoísta se vê apanhado num torniquete do qual não pode sair e não raro sente que o seu sistema de indiferença lhe escapa das mãos, deixando-o sozinho e desarmado diante do imenso mistério do mundo e da vida.

Há um sistema que chamaríamos de optimista, e que não se funda no pensamento de Epicuro porque é muito inconsequente para ter as suas raízes em tão esplêndida fonte. Segundo ele, a vida é bela, o mundo é magnífico e o homem nasceu para gozar as delícias da vida e os esplendores do mundo. Quando, premido pela doença ou por qualquer outros motivos imperiosos, não pode satisfazer a esse objectivo único da existência, deve ele corajosamente estourar os miolos com uma bala ou atirar-se do último andar do mais elegante arranha-céus. Este sistema encontra, hoje, intérpretes mais ou menos avançados em certos ramos da chamada filosofia existencialista.

Mas há outro sistema, que se enquadra na estrutura doutrinária das várias religiões dominantes no mundo, segundo o qual o homem nasceu para sofrer e o seu destino é a dor, a amargura, a desesperança, a luta constante com as adversidades insuperáveis. É o sistema doloroso do misticismo exasperante, que o povo, entretanto, procura sempre dosar com a sua esperança ilógica nos milagres e nas providências dos santos e dos anjos. Há um lema para este sistema, que todos nós conhecemos, e não raro repetimos, por força do hábito: “A felicidade não é deste mundo.”

O Espiritismo, entretanto, ao surgir na Terra, em forma de filosofia e, portanto, de interpretação da vida, em meados do século XIX, opôs-se desde logo a todos esses sistemas. Negou que a vida não tenha objectivo nem significação, combateu a teoria do prazer material como finalidade da existência humana e manifestou-se contrário à ideia de que o homem nasceu para sofrer. Os espíritos que deram a Allan Kardec a tarefa de codificar a doutrina ensinaram-lhe outro sistema, diferente de todos os anteriores. E abriram, com ele, perspectivas novas e mais amplas para a inteligência humana, horizontes mais vastos para o coração angustiado do homem terreno, que se debatia entre a crença empírica numa vida futura e a descrença científica, cada vez mais desesperada, em qualquer possibilidade de sobrevivência.

O Espiritismo renovou fundamentalmente a concepção humana da vida e do mundo, ensinando ao homem que ele não nasceu para gozar nem para sofrer, mas apenas para evoluir, para progredir, como tudo evolui e progride à nossa volta, na natureza e na própria sociedade. A dor deixou de ser um castigo imposto ao homem pela absurda vingança de Deus contra o casal primitivo; o prazer deixou de ser o objectivo aceitável da existência corpórea e ambos, prazer e dor, passaram a ser meras decorrências de um processo mais amplo e mais complexo, em que o homem se acha envolvido, para crescer e se desenvolver, em espírito e verdade.

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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, O Sentido da Vida 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

| o grande enigma ~


Solidariedade comunhão universal |||

Nas Almas evolvidas, o sentimento da solidariedade torna-se bastante intenso para se transformar em comunhão perpétua com todos os seres e com Deus.

A Alma pura comunga com a Natureza inteira; inebria-se nos esplendores da Criação infinita. Tudo – os astros do céu, as flores do prado, a canção do regato, a variedade das paisagens terrestres, os horizontes fugitivos do mar, a serenidade dos espaços – tudo lhe fala uma linguagem harmoniosa. Em todas essas coisas visíveis, a Alma atenta descobre a manifestação do pensamento invisível que cobre o Cosmos. Este reveste para ela um aspecto encantador. Torna-se o teatro da vida e da comunhão universais, comunhão dos seres uns com os outros e de todos os seres com Deus, seu pai.

Não há distância entre as Almas que se amam, porque se comunicam através da extensão.

O Universo é animado de vida potente: vibra qual uma harpa sob a acção divina. As irradiações do pensamento o percorrem em todos os sentidos e transmitem mensagens de Espírito a Espírito, através do Espaço. Esse Universo que Deus povoou de Inteligências, a fim de que o conheçam e o amem e cumpram a sua Lei, Ele o enche de sua presença, ilumina-o com a sua luz, aquece-o com o seu amor.

A prece é a expressão mais alta dessa comunhão das Almas. Considerada sob este aspecto, ela perde toda a analogia com as fórmulas banais, os recitativos monótonos em uso, para se tornar um transporte do coração, um acto da vontade, pelo qual o Espírito se desliga das servidões da Matéria, das vulgaridades terrestres, para perscrutar as leis, os mistérios do poder infinito e a ele submeter-se em todas as coisas: “Pedi e recebereis!” Tomada neste sentido, a prece é o acto mais importante da vida; é a aspiração ardente do ser humano que sente a sua pequenez e a sua miséria e procura, pelo menos por um instante, pôr as vibrações do seu pensamento em harmonia com a sinfonia eterna. É a obra da meditação que, no recolhimento e no silêncio, eleva a Alma até essas alturas celestes, onde aumenta as suas forças, onde a impregna das irradiações da luz e do amor divinos. Mas quão poucos sabem orar! As religiões nos fizeram desaprender a prece, transformando-a em exercício ocioso, às vezes ridículo.

Sob a influência do Novo Espiritualismo, a prece tornar-se-á mais nobre e mais digna; será feita com mais respeito ao Poder Supremo, com maior fé, confiança e sinceridade, em completo destaque das coisas materiais. Todas as nossas ansiedades e incertezas cessarão quando tivermos compreendido que a vida é a comunhão universal e que Deus e todos os seus filhos vivem, em conjunto, essa vida.

Então, a prece tornar-se-á a linguagem de todos, a irradiação da Alma que, nos seus transportes, agita o dinamismo espiritual e divino. Os seus benefícios se estenderão por todos os seres e particularmente por aqueles que sofrem, pelos ignorados da Terra e do Espaço.

Ela chegará àqueles em quem ninguém pensa, que jazem na sombra, na tristeza e no esquecimento, diante de um passado acusador. Ela originará neles inspirações novas, fortificar-lhes-á o coração e o pensamento – porque não tem limites a acção da prece, assim como as forças e os poderes que ela pode pôr em elaboração para o bem dos outros.

A prece, em verdade, nada pode mudar às leis imutáveis; ela não poderia, de maneira alguma, mudar os nossos destinos; o seu papel é proporcionar-nos socorros e luzes que nos tornem mais fácil o cumprimento da nossa tarefa terrestre. A prece fervente abre, de par em par, as portas da Alma e, por essas aberturas, os raios de força, as irradiações do foco eterno nos penetram e nos vivificam.

Trabalhar com sentimento elevado, visando a um fim útil e generoso, é, ainda, orar. O trabalho é a prece activa desses milhões de homens que lutam e penam na Terra, em benefício da Humanidade.

A vida do homem de bem é uma prece contínua, uma comunhão perpétua com os seus semelhantes e com Deus. Ele não tem mais necessidade de palavras, nem de formas exteriores para exprimir a sua fé: ela se exprime por todos os seus actos e por todos os seus pensamentos. Ele respira e se agita sem esforço numa atmosfera fluídica cheia de ternura pelos desgraçados, cheia de boa-vontade por toda a Humanidade. Essa comunhão constante se torna uma necessidade, uma segunda natureza. É graças a ela que todos os Espíritos de eleição se mantêm nas alturas sublimes da inspiração e do génio.

Os que vivem no organismo e na materialidade, e cuja compreensão não está aberta às influências do Alto, esses não podem saber que impressões inefáveis faculta essa comunhão da Alma com o Espírito Divino.

Todos aqueles que, vendo a espécie humana deslizar sobre os declives da decadência moral, procuram os meios de sustar a sua queda, devem esforçar-se por tornar uma realidade essa união estreita de nossas vontades com a vontade suprema! Não há ascensão possível, encaminhamento para o Bem, se, de tempos a tempos, o homem não se volta para o seu Criador e Pai, a fim de lhe expor as suas fraquezas, as suas incertezas, as suas misérias, para lhe pedir os socorros espirituais indispensáveis à sua elevação. E quanto mais essa confissão, essa comunhão íntima com Deus for frequente, sincera, profunda, mais a Alma se purifica e emenda. Sob o olhar de Deus, ela examina, expande as suas intenções, os seus sentimentos, os seus desejos; passa em revista todos os seus actos e, com essa intuição, que lhe vem do Alto, julga o que é bom ou mau, o que deve destruir ou cultivar. Ela compreende, então, que tudo quanto há de mal vem do eu e deve ser abatido para dar lugar à abnegação, ao altruísmo; que, no sacrifício de si mesmo, o ser encontra o mais poderoso meio de elevação, porque, quanto mais ele se dá, mais se engrandece. Deste sacrifício faz a lei de sua vida, lei que imprime no mais profundo do seu ser, em traços de luz, a fim de que todas as acções sejam marcadas com o seu cunho.

De pé sobre a Terra, meu sustentáculo, minha nutriz e minha mãe, elevo os meus olhares para o Infinito, sinto-me envolvido na imensa comunhão da vida; os eflúvios da Alma universal me penetram e fazem vibrar o meu pensamento e o meu coração; forças poderosas me sustentam, aviventam em mim a existência. Por toda a parte onde a minha vista se estende, por toda a parte a que a minha inteligência se transporta, vejo, discirno, contemplo a grande harmonia que rege os seres e, por vias diversas, os faz rumar para um fim único e sublime. Por toda a parte vejo irradiar a Bondade, o Amor, a Justiça!

Ó meu Deus! Ó meu Pai! Fonte de toda a sabedoria, de todo o amor, Espírito Supremo cujo nome é Luz, eu te ofereço os meus louvores e as minhas aspirações! Que elas subam a ti, qual um perfume de flores, qual sobem para o céu os odores inebriantes dos bosques. Ajuda-me a avançar na senda sagrada do conhecimento, para uma compreensão mais alta das tuas leis, a fim de que se desenvolva em mim mais simpatia, mais amor pela grande família humana; pois sei que, pelo meu aperfeiçoamento moral, pela realização, pela aplicação activa em torno de mim e em proveito de todos, da caridade e da bondade, aproximar-me-ei de ti, e merecerei conhecer-te melhor, comungar mais intimamente contigo na grande harmonia dos seres e das coisas. Ajuda-me a desprender-me da vida material, a compreender, a sentir o que é a vida superior, a vida infinita. Dissipa a obscuridade que me envolve; depõe na minha alma uma centelha desse fogo divino que aquece e abrasa os Espíritos das esferas celestes. Que a tua doce luz e, com ela, os sentimentos de concórdia e de paz se derramem sobre todos os seres!

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, III Solidariedade | comunhão universal 3 de 3, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)