Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 2 de junho de 2013

Inquietações Primaveris ~


A Escada de Jacob

Nascimento e morte determinam o trânsito especial entre o Céu e a Terra. Dia e noite, sem cessar, descem e sobem os anjos pela escada simbólica da visão bíblica de Jacob. Anjos são espíritos, e o Apóstolo Paulo esclareceu que são mensageiros. Trazem e levam mensagens de um plano para o outro. São mensagens de amor, de estímulo, de orientação e encorajamento. As mensagens são dadas, na maioria, através de intuições, na Terra, aos destinatários encarnados. Mas há também as que são dadas por via mediúnica, através de um médium, ou por sonhos. Essa comunhão espiritual permanente é conhecida desde as épocas mais remotas. Mas só em 1857, com a publicação de O Livro dos Espíritos, de Allan Kardec, em Paris, o problema foi encarado como positivo e levado à consideração dos sábios e das instituições científicas. As Igrejas Cristãs, tendo à frente a Católica Romana, levantaram-se contra essa colocação, que diziam simplória, de um grave problema teológico. Só os clérigos e os teólogos, segundo elas, tinham direito a tratar do assunto. Um século depois, a questão estava nas mãos das Ciências e a Ciência Espírita, fundada por Kardec, era colocada à margem do mundo científico, por não possuir um objecto legitimamente científico, material, ao alcance dos sentidos humanos. Richet levantara, na Metapsíquica, a tese do sexto sentido, e Kardec sustentava que os fenómenos mediúnicos, pelo facto mesmo de serem fenómenos, constituíam o objecto sensível da Ciência Espírita.

Em 1830 os professores Joseph Banques Rhine e William McDougall lançavam na Universidade de Duke, na Carolina do Sul (Estados Unidos da América) a nova Ciência da Parapsicologia, para a investigação desses mesmos fenómenos. E em 1840 ambos proclamavam, com seus colaboradores, a prova científica da Clarividência. Dali por diante cresceu rapidamente no mundo o interesse pelo assunto e surgiram pesquisas e cátedras em todas as grandes Universidades da América e da Europa. Hoje a questão é pacífica no plano científico, e mesmo no religioso, pois a Igreja aceitou a realidade dos fenómenos e interessou-se efectivamente pelas pesquisas. A Parapsicologia avançou rapidamente, seguindo a trilha da Ciência Espírita, sem nenhum desvio.

Vencida a barreira dos preconceitos e das sistemáticas a que se apegavam numerosos cientistas, a Parapsicologia definiu-se como a Ciência do Homem. Rhine, ao aposentar-se na Universidade de Duke, estabeleceu a Fundação para a Pesquisa da Natureza Humana. A Parapsicologia sustenta a natureza espiritual do homem e suas possibilidades de acção extensiva e intensiva no plano físico e mental ou espiritual. “A mente, que não é física, age sobre a matéria por vias não físicas”, declarou Rhine, apoiado por grandes nomes da Ciência em todo o mundo. Essa declaração mudou o panorama cultural do planeta. Hoje ninguém duvida, quando nasce uma criança, que se trata de um espírito humano reencarnado biologicamente na Terra. Embora ainda existam sectores científicos infensos à nova Ciência, firmou-se no mundo de maneira definitiva. Os cientistas que a negam ou rejeitam são considerados como retrógrados ou se definem a si mesmos como pertencentes a religiões que não devem aceitar os novos princípios.

A morte perdeu o sentido de negação da vida. Os fenómenos Teta, um dos últimos tipos de fenómenos paranormais pesquisados pela Parapsicologia, nada mais são do que as comunicações mediúnicas. Além do trânsito entre a Terra e o Céu – o mais movimentado do mundo – existe agora a comunicação permanente entre os homens e os espíritos. As descobertas físicas no plano das pesquisas sobre a estrutura da matéria mostraram que não vivemos num mundo tridimensional, mas multidimensional. Os que morrem na Terra passam para os planos da esfera semimaterial, de matéria rarefeita, que a circunda, e, conforme o seu grau evolutivo, para as hipóstases espirituais entrevistas por Plotino, na fase helenista da Filosofia Grega. Nas sessões espíritas, em todo o mundo, milhares de pessoas conseguem conversar com amigos e parentes mortos, que dão provas evidentes de sua sobrevivência após a morte. As restrições dos sistemáticos e preconceituosos continuam, mas a realidade se impõe de tal maneira que essas restrições já diminuíram assustadoramente. A Terra se espiritualiza, apesar do materialismo das religiões. E a morte já não amedronta milhares dos milhões de criaturas que morrem todos os dias.

Geralmente não se pensa no que isso representa para a Humanidade. Entregues às suas preocupações absorventes do seu dia a dia, homens e mulheres ainda vivem na Terra como há milhões de anos. Cuidam da vida sem se preocuparem com a morte. Essa posição anestésica é útil na Terra, mas desastrosa nos planos espirituais. Nas manifestações de espíritos (fenómenos teta) pode-se avaliar o prejuízo causado às criaturas por essa alienação à matéria. Embriagados pelos seus anseios de conquistas materiais, praticamente tragados pela vida prática, a maioria dos que morrem não têm a menor noção do que seja a morte. Entram em pânico após o trespasse, apegam-se depois a pessoas amigas de suas relações, perturbando-as sem querer ou procurando, através delas, sentirem um pouco da segurança perdida na Terra. Além desses prejuízos, a falta de educação para a morte causa o prejuízo maior dos desesperos, angústias existenciais e loucuras que hoje varrem a Terra em toda a sua extensão. Por outro lado é preciso considerar-se os prejuízos imensos produzidos pela ignorância das finalidades da vida. As próprias Ciências sofrem dessa ignorância, que lhe barra o caminho de descobertas necessárias para a melhoria das condições da vida terrena.

Por mais atilados e dedicados que sejam os cientistas, se não tiverem conhecimento das leis fundamentais que regem o planeta e condicionam a Humanidade, não podem penetrar nas causas dos males e problemas que enfrentam. É questão pacífica que a falta de conhecimento preciso e amplo do meio em que estamos nos deixa entregues a perigos que não podemos prever. É o que agora mesmo acontece, no caso da poluição perigosíssima do planeta pelas exigências do desenvolvimento industrial. A falta de interesse pela Ecologia mergulhou o mundo numa situação desastrosa, que ainda não sabemos como poderemos superar. A Ciência ateve-se aos efeitos, deixando as causas por conta da Filosofia e da Religião. Esta última fechou-se em dogmas ilusórios, mandando às calendas a questão fundamental das causas. Entregues aos conhecimentos empíricos da realidade constatada nos efeitos, os homens conseguiram realizar a façanha trágica da poluição total do planeta, com os mais graves prejuízos para a vida humana, bem como os vegetais e os animais. Descuidamos da morte e perdemos a vida. Se não mudarmos urgente de atitude, transformaremos a Terra numa Lua sem atmosfera.

A nossa insistência na consideração escatológica da morte, na sua função essencialmente destruidora – negando-lhe o papel fundamental de controladora da vida e a de renovadora das civilizações –, parece ter provocado uma reacção em nossa própria estrutura ôntica que nos transformou em nadificadores de nós mesmos e de toda a realidade. O estranho privilégio que pretendemos, de sermos os únicos seres condenados ao nada, um Universo em que tudo se renova e se eleva, constitui a mais espantosa contradição de toda a História Humana. Essa contradição monstruosa deforma a figura do homem no mundo que ao invés de imagem e semelhança de Deus, aparece como a fera mais temível do planeta, onde as feras selvagens são sistematicamente destruídas e devoradas pelo animal dotado de inteligência criadora, sentimento, moral, compreensão de sua espiritualidade e sensibilidade ética e estética. O humanismo apaixonado de Marx, que sonhava sem o saber com o Reino de Deus na Terra, negou-se a si mesmo ao formular a teoria do poder totalitário e absoluto de uma classe social contra as outras. Larissa Reissner, que lutou pelos bolchevistas de armas na mão, mostra-se desolada, nas páginas brilhantes de seu livro Homens e Máquinas, ao referir-se aos campos de trabalhos forçados da URSS, em que antigos e bravos companheiros de luta pagavam sob o poder soviético o preço de suas ilusões para o fortalecimento do Estado-Leviatã de Hobbes. A terrível dialéctica das revoluções sociais materialistas, sem Deus e sem coração, levou o Marxismo ao pelourinho da lei de negação da negação, negando-se a si mesma no processo histórico. Sem o respeito do homem por si mesmo, pela sua condição humana, todas as tentativas de melhorar o mundo acabam na asfixia da liberdade, nadificando o homem depois de transformá-lo em objecto. É essa também a contradição fundamental de Sartre em O Ser e o Nada e na Crítica da Razão Dialéctica. Mas é precisamente das contradições entre a tese e antítese que podemos obter a síntese que nos dá a verdade possível de cada problema.

Os anjos que descem pela escada de Jacob, na alegoria bíblica, representam a tese da proposição existencial – a verdade possível do Céu, ou seja, dos planos divinos, entendendo-se por divino aquilo que supera a condição material. Mas são esses mesmos anjos que voltam para o Céu representando a antítese. O trânsito espacial resulta da síntese humana em que a proposta terrena e a resposta celeste se fundem no processo existencial da transcendência. Por isso Kardec rejeitou as revelações proféticas do passado, individuais e exclusivistas, que geraram as religiões da morte, estabelecendo o princípio das revelações conjugadas, de natureza científica, em que o mundo é a tese, o homem é a antítese e a verdade é a síntese. Essa síntese, como acentuou Léon Denis, é a mundividência espírita, de difícil compreensão para os anjos que descem e ficam na rotina terrena, no círculo vicioso das reencarnações repetitivas. A verdade possível é-lhes interditada, não por condenação divina, mas por opção própria. Quando eles romperem o círculo vicioso poderão compreender essa verdade, a verdade possível, ao alcance do homem que soube transcender-se. Na dialéctica espírita o homem propõe a tese, o espírito responde com a antítese e a Razão elabora a síntese do conhecimento possível. A religião, como ensinou Kardec, é a consequência da revelação espiritual fundida com a revelação científica. A verdade possível tem a sua legitimidade e a sua validade precisamente nessa fusão. Os limites da vida terrena condicionam a realidade humana às possibilidades cognitivas da mente humana actualizada na matéria. O espírito revela um princípio espiritual e o cientista revela a lei terrena a ela correspondente. Só nesse processo de perfeito equilíbrio o homem pode evitar os perigos do misticismo alienante, para viver na Terra em marcha para a transcendência, através da Existência. É esse o processo que permite a fusão dialéctica de Ciência e Religião, como fundamento de toda a verdade possível na Era Cósmica. Por isso, não insistimos no Espiritismo por sectarismo ou proselitismo, mas pelo facto inconteste de só ele nos oferecer os instrumentos conceptuais necessários à conquista da realidade. Sem a fusão da afectividade com a razão não poderíamos atingir a síntese do conhecimento geral, na fragmentação dos efeitos sem o esclarecimento das causas. O método indutivo da Ciência permite-nos reunir os efeitos para a compreensão possível da causa única e transcendente.
/…


José Herculano Pires – Educação para a Morte, A Escada de Jacob, 13º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

sábado, 25 de maio de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~

VI
O Despertar do Génio Céltico
 * (II)

   Assistimos, no presente momento, a um dos maiores dramas da História, a uma nova invasão dos bárbaros, mais terrível que as antigas, e que ameaça destruir a obra dos séculos, arrasando a civilização. Porém as qualidades heróicas de nossa raça despertam a intrepidez, o espírito de sacrifício e o destemor da morte.

   Ante o perigo, os filhos da Gália, da Grã-Bretanha, da Escócia e da Irlanda, em uma palavra, todos os celtas, reuniram-se para conter o avanço feroz dos alemães e, junto com esses celtas, o exército invisível dos seus antepassados também combate com eles, sustentando-lhes a coragem e incutindo-lhes ardor e perseverança em seus esforços. Esse auxílio do Alto é a garantia de uma vitória próxima e segura.

   Após a luta, deveremos procurar meios de levantar moralmente a pátria e dela afastar o abismo dos males em que quase caiu.

   Antes da guerra, o que constituía aos olhos do mundo nossa fraqueza e nosso descrédito era parecermos um povo sem ideal e sem religião.

   É verdade que a doutrina pura do Cristo, alterada, desfigurada e mesclada, no correr dos tempos, com elementos parasitas e estranhos, já não nos oferecia uma concepção da vida e do destino em harmonia com o conhecimento adquirido acerca do Universo e suas leis.

   A França, sem o perceber, caíra na indiferença, no cepticismo e na sensualidade, porém um terrível acontecimento nos deteve nessa descida fatal. Na hora da desgraça, todos compreendemos a necessidade de uma fé verdadeira, estribada na experiência, na razão e nos factos, uma fé que proporcione à alma a convicção de um futuro infinito e o sentimento de uma justiça superior, determinando deveres e responsabilidades.

   Talvez me perguntem de onde virá essa nova fé. Assim como as qualidades varonis de nossa raça salvarão a pátria da ruína e da destruição, também o retorno às tradições da raça restituirá a força moral, preparando a salvação e a regeneração.

   É aí que a obra de Allan Kardec se mostrará providencial, numa oportunidade incontestável, pois o Espiritismo não se constitui em outra coisa que a volta às crenças celtas, enriquecidas pelo trabalho dos séculos, os progressos da ciência e as conquistas do espírito humano.

   Não há possibilidade de ressurgimento sem uma educação nacional que transmita às gerações o real sentido da vida, de sua missão e de sua finalidade; sem um ensino que esclareça as inteligências, fortifique os caracteres e as consciências, ligando os princípios fundamentais, elementares, da Ciência, da Filosofia e da Religião.

   Tais poderes, até então antagónicos, se fundirão para maior benefício da sociedade, porém a humanidade espera por esse ensino, que proporcionará ao ser os meios de se conhecer, de medir as próprias forças e de estudar o mundo desconhecido que cada um traz dentro de si.

   Aceitando essa iniciativa, que está na sua missão e no seu génio, a França se tornaria, realmente, a grande semeadora que daria o sinal da libertação do pensamento.

   Assim, o túmulo de Allan Kardec seria o berço de uma nova ideia, mais radiante e mais pura, guiando o homem através das dificuldades de sua peregrinação terrena.

   A melhor maneira de homenagearmos a memória de nosso ilustre mestre é nos envolvermos em sua obra, comungando com o seu pensamento, tornando-nos mais unidos, mais firmes, mais decididos na vontade de trabalhar pelo seu triunfo e sua divulgação no mundo.

   O Espiritismo não poderá encontrar momento mais favorável que este para manifestar o poder de consolação, verdade e luz que nele reside.

   Em nosso redor não há inumeráveis dores? Quantas pobres criaturas choram entes queridos! Quantas outras, feridas, mutiladas ou privadas da vista para o resto da existência! Quantas famílias arruinadas, despojadas, expulsas de seus lares por um inimigo cruel!

   Para aceitar suas provações, todos precisam de nossas crenças; só a certeza de que um dia irão reunir-se com os seres amados fará menos doloroso o tempo da separação.

   O conhecimento da lei dos destinos fará compreender que os nossos sofrimentos são meios de depuração e de progresso.

   A nossa doutrina devolverá a todos a esperança, o valor e a confiança! Semeemos, pois, abundantemente, a semente fértil, não nos preocupando com as críticas e as zombarias, pois quem hoje ri de nossos princípios amanhã terá a alegria de neles encontrar a força para suportar seus males.

   Oh, Allan Kardec! Espírito do grande Codificador, no momento em que chovem sobre a nossa pátria tantas provações, quando a angústia abate tantos corações, protege-nos, ampara teus adeptos, dando-lhes fé ardente para vencer todos os obstáculos; comunica-lhes o poder de persuasão, o calor do sentimento que desfaz a frieza da incredulidade, dando a todos a confiança no futuro.

   Graças a ti, Kardec, graças à tua obra, depois de vinte séculos de silêncio e de esquecimento, a fé das antigas eras renasce na terra das Gálias como um raio luminoso que vem dissipar as sombras do materialismo e da superstição. Druida reencarnado, tu revelaste para nós esse grandioso pensamento sob uma nova forma, adaptada às circunstâncias do nosso tempo.

   Nós, filhos dos celtas e herdeiros das crenças de nossos pais, te saudamos como a um representante do passado glorioso de nossa raça, que regressou a este mundo para restabelecer a verdade, guiando o homem nas suas lutas para a vida infinita.

   E vós, irmãos, que deixastes a Terra antes de nós, incontáveis legiões dos heróis que sucumbiram em combate pela defesa da pátria, vinde pairar sobre os que lutam, não apenas pela libertação do solo pátrio, mas também pela verdade; vinde animar as energias e estimular em todos o profundo sentimento da imortalidade.

   Ainda bem mais alto, nossos pensamentos e nossas palavras sobem a ti, Pai de todas as criaturas, para te dizer: Deus, escuta o apelo, o grito de agonia e angústia; ouve o gemido doloroso, lancinante, que sobe do solo francês, dessa terra banhada de sangue e lágrimas!

   Salva a nossa pátria da ruína, da morte e do aniquilamento!

   Empresta aos nossos soldados o necessário vigor para repelirem um inimigo cruel e covarde!

   Não podes permitir o triunfo de um adversário tão implacável que, debaixo de teu nome augusto e respeitado, se manchou de crimes, mentiras e infâmia!

   Não podes deixar sem castigo o atentado de Reims! Não podes admitir que estes sagrados princípios que dimanam de ti e que foram, em todas as épocas, o apoio moral, a consolação, a esperança e o ideal supremo da humanidade, isto é, a justiça, a verdade, o direito, a bondade e a fraternidade, sejam violados impunemente, espezinhados e reduzidos a nada!

   Pelo amor a teus filhos, a nossos heróis e a nossos mártires, salva a França de Joana d’Arc, de São Luís e de Carlos Magno!
/…

* Lido no Cemitério Père-Lachaise em 31 de março de 1916, aniversário do falecimento de Allan Kardec.



LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VI – O Despertar do Génio Céltico, 2 de 2, 19º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

terça-feira, 21 de maio de 2013

Nas garras do pensamento crítico ~


Mais vale um pássaro na mão

   Essas fugas pela tangente representam o método mais frequente de combate ao Espiritismo, inclusive por parte dos materialistas dialécticos. Para os observadores serenos e sensatos, bastaria essa insistência na deturpação dos factos e na distorção do raciocínio, para comprovar a seriedade e a importância desses mesmos factos. Aliás, ainda com Engels, encontraremos o argumento mais apropriado: “A única questão consiste em saber se o pensamento está ou não certo, e o desprezo pela teoria é, evidentemente, a maneira mais segura de se pensar de maneira naturalista, e, consequentemente, de modo errado.”

   Engels não ficaria mal nas fileiras espíritas. De facto, ele via bem estes problemas. O desprezo pela teoria espírita, única que pode explicar os fenómenos, tem levado esses homens a trair a dialéctica a todo momento, entrando a fundo e às cegas pela Sofisticaria. A punição da dialéctica, porém, não se faz tardar. Os que pensam de maneira naturalista, voltando as costas à teoria, terminam de encontro à parede, com a espada do ridículo no peito. Porque a “maneira naturalista de pensar”, a que Engels se refere, é a do pensamento a priori, instintivo, que não provém da razão orientada pelo processo da civilização, mas da herança comum e obscura do passado biológico da espécie. Age por meio de impulsos mecânicos, é um automatismo inconsciente. Dir-se-ia, diante das suas manifestações, que o homem tem a vocação da fuga. Como a lebre, colhida de surpresa na beira da estrada, precipita-se no mato, assim o homem, colhido na sua posição materialista pela surpresa dos factos supranormais, precipita-se no matagal das lembranças ancestrais. Improvisa teorias e fabrica rótulos com a desenvoltura inconsequente da avestruz ao enterrar a cabeça na areia. Comete, com uma confiança absurda na impunidade, o crime da desfiguração da verdade, ou passa apenas a negar, indiferente a todas as provas e argumentos, como a criança teimosa que não quer ver a louça quebrada. É o outro lado da crendice, o reverso do fanatismo religioso.

   Por isso, o médico Sérgio Valle nos lembra, no livro Silva Mello e os Seus Mistérios, recentemente publicado: “Enquanto não se realize o fiat da ciência (que se mantém, teimosamente, orgulhosa e cega), para iluminar os factos que possuímos, não é justo que uma criatura sensata despreze o que se acha detido, seguramente detido nas suas mãos, por mínimo que seja, pelo que voeja no espaço do fanatismo religioso ou do fanatismo científico”.
/…


José Herculano Pires, Espiritismo Dialéctico, Mais vale um pássaro na mão, 9º fragmento da obra.
(imagem: Vi o caçador levantar o arco-íris, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

a pedra e o joio ~


Quem não pode o menos

   Os inves-tigadores científicos dos fenómenos espíritas operam no campo da matéria. Não são espíritas, mas cientistas interessados pela fenomenologia que dá base concreta à doutrina. Por isso já dissemos, há tempos, a respeito, que a ciência espírita, no que toca às manifestações materiais do espírito, vêm sendo construída pelos adversários do Espiritismo. É este um facto único na história do conhecimento, e uma das maiores glórias da doutrina espírita. Crookes, Richet, Geley, Crawford, ao iniciarem suas pesquisas, não eram espíritas, como Price, Rhine e Bjorkhem, das Universidade de Oxford, de Duke (EE. UU.), e de Upsala (Suécia), respectivamente, não são espíritas. Mas todos contribuem para a ciência espírita.

   Não cabe a nós, espíritas, formular nenhuma teoria científica para investigação dos fenómenos supranormais ou para demonstração da realidade da sobrevivência. O Espiritismo, nos seus três aspectos, o científico, o filosófico e o religioso, possui métodos próprios de observação e investigação, e já provou há muito a realidade da sobrevivência. Os cientistas materialistas, ou pelo menos cépticos, é que devem tratar de provar, através de suas teorias e de seus métodos, que o Espiritismo se encontra em erro. Querer, pois, dotar o Espiritismo de “teorias que lhe facultem o avanço seguro na estrada da pesquisa metódica de laboratório”, como pretende o Sr. Guimarães Andrade, em sua Teoria Corpuscular do Espírito, é invadir atribuições alheias. E dizer que o Espiritismo não possui teorias orientadoras de pesquisas científicas é negar a própria doutrina e esquecer os seus efeitos no mundo científico.

   Humberto Mariotti, o conhecido escritor espírita argentino, encerra o seu livro Dialéctica e Metapsíquica, réplica a um livro materialista de Emílio Troise, com esta advertência: “A filosofia espírita, sempre pronta a renovar-se, espera, pois, para o fazer, uma prova científica de seu opositor: o materialismo. Enquanto isso, continuará forjando o aço desse novo mundo espiritual, que vem assomando por entre os factos da psicologia supranormal, até que a prova mencionada seja produzida”. A teoria espírita, como a chamaram os cientistas, não é apenas teoria, mas toda uma doutrina, solidamente construída sobre um vasto e profundo alicerce de factos, comprovados por adeptos e adversários, crentes ou descrentes. Ela se impõe por si mesma, ou “pela força mesma das coisas”, como dizia Kardec. Não espera as nossas elaborações teóricas para cumprir a sua missão.

   Grande e belo exemplo é o que nos dá Richet, na carta que dirigiu a Ernesto Bozzano, rendendo-se à evidência espírita. Construtor, ele mesmo, de uma teoria, exclama, diante dos argumentos espíritas de Bozzano: “Eles formam um estranho contraste com as nebulosas teorias que atravancam a nossa ciência”. Ao contrário disso, o Sr. Guimarães Andrade pretende que deixemos de lado, considerando-os obsoletos, os conceitos clássicos da doutrina, para construirmos mais uma teoria nebulosa, e com ela aumentarmos o atravancamento científico.

   Nós, espíritas, temos por acaso alguma dúvida a respeito da sobrevivência do espírito e da sua possibilidade de acção sobre a matéria? Precisamos de novas teorias para investigar os fenómenos impropriamente chamados de supranormais? Não. Logo, não compete a nós a formulação de teorias novas. Por outro lado, duvidamos da solidez das provas e do acervo gigantesco de factos da biblioteca espírita, sempre aberta ao possível interesse dos materialistas? Também não. Logo, a estes é que compete, e não a nós, quebrar a cabeça de encontro à rocha em que nos firmamos. Nosso papel, pelo contrário, é o de continuarmos firmes sobre a rocha, que tem resistido, até aqui, a todos os cabeçudos.

   Pergunta o confrade Guimarães: “Será que já conhecemos tudo a respeito do fascinante problema do espírito, das suas relações com o mundo físico, das suas propriedades, da sua natureza real?” Podemos responder com outra pergunta: “Conhecem os materialistas tudo o que se relaciona com o fascinante problema da matéria, das suas relações com forças desconhecidas, das suas propriedades, da sua natureza real?” Estamos, e eles também o estão, absolutamente certos de que não. Então, como pretendermos colocar, na mesma mesa da ciência materialista, servindo-nos dos seus instrumentos rudimentares, ainda em elaboração, o problema espiritual? Se ela é impotente para dizer tudo a respeito da matéria, como querermos que o diga a respeito do espírito? O mais certo, o mais prudente, é admitirmos a explicação de Kardec: “O Espiritismo não é da alçada da ciência”. Sê-lo-á mais tarde. Mas, para tanto, a ciência precisa concluir a sua tarefa no terreno material, o que ainda está longe de fazer.

   Poderão objectar-nos que as pesquisas dos sábios materialistas concorreram para a comprovação da doutrina. Mas não dizemos o contrário. O que dizemos é que isso compete a eles. Quando os sábios, operando no campo da matéria, comprovam os princípios da ciência espírita, contribuem para esta, e só temos que agradecer-lhes. Aquilo que chamamos, com Kardec, a Ciência Espírita, não é mais do que o aspecto científico da doutrina. Neste aspecto, há uma zona fronteiriça, em que a ciência material pode comprovar os factos espíritas. A da fenomenologia mediúnica. Nesta zona é que o materialismo vem construindo, sem querer, a contragosto, a ciência espírita acessível à compreensão materialista.

   O confrade Guimarães Andrade quer que ajudemos os sábios oferecendo-lhes uma teoria espírita que eles possam aceitar. A intenção é boa, mas conduz a desvios perigosos, como já vimos e ainda veremos, na análise de A Teoria Corpuscular do Espírito. Além disso, é conveniente lembrarmos o velho adágio: “Cada macaco no seu galho”. O Espiritismo, como diz Mariotti no mesmo livro acima citado, “é uma estrela de amor”. Essa estrela brilha sobre o atravancamento de hipóteses nebulosas da ciência materialista, e ainda, segundo o mesmo autor, “ilumina os caminhos de todos os peregrinos que vão em busca da verdade”. Não basta isso? Queremos também acompanhar os peregrinos, oferecendo-lhes cajados que eles não nos pedem, e até mesmo rejeitam com desprezo?

   O livro do Sr. Guimarães Andrade é simplesmente um equívoco. E como tal, só pode fazer mal à doutrina e ao movimento espírita. Pedimos perdão ao confrade, por esta rude franqueza. Mas, em questões doutrinárias, é preferível a dureza da verdade. Pensamos já haver demonstrado, até aqui, os vários enganos do autor. Mas prosseguiremos ainda, para que não digam amanhã, como disseram certa vez, a respeito de outra crítica, que passamos de leve sobre o assunto.
/…


José Herculano Pires – A Pedra e o Joio, Crítica à Teoria Corpuscular do Espírito. Quem não pode o menos, 13º fragmento da obra.
(imagem: As Colhedoras de Grãos, pintura a óleo por Jean-François Millet)

terça-feira, 7 de maio de 2013

| o grande enigma ~


Deus | e o Universo (V)

É a ti, ó Potência Suprema! Qualquer que seja o nome que te dêem e por mais imperfeitamente que sejas compreendida; é a ti, fonte eterna da vida, da beleza, da harmonia, que se elevam nossas aspirações, nossa confiança, nosso amor.

Onde estás, em que céus profundos, misteriosos, tu te escondes? Quantas Almas acreditaram que bastaria, para te encontrar, o deixar a Terra! Mas tu te conservas invisível no mundo espiritual, quanto no mundo terrestre, invisível para aqueles que não adquiriram ainda a pureza suficiente para reflectir teus divinos raios.

Tudo revela e manifesta, no entanto, tua presença. Tudo quanto na Natureza e na Humanidade canta e celebra o amor, a beleza, a perfeição, tudo que vive e respira é mensagem de Deus. As forças grandiosas que animam o Universo proclamam a realidade da Inteligência divina; ao lado delas, a majestade de Deus se manifesta na História, pela acção das grandes Almas que, semelhantes a vagas imensas, trazem às plagas terrestres todas as potências da obra de sabedoria e de amor.

E Deus está, assim, em cada um de nós, no templo vivo da consciência. É aquele o lugar sagrado, o santuário em que se encontra a divina centelha.

Homens! Aprendei a imergir em vós mesmos, a esquadrinhar os mais íntimos recônditos do vosso ser; interrogai-vos no silêncio e no retiro. E aprendereis a reconhecer-vos, a conhecer o poder escondido em vós. É ele que leva e faz resplandecer no fundo de vossas consciências as santas imagens do bem, da verdade, da justiça, e é honrando essas imagens divinas, rendendo-lhes um culto diário, que essa consciência, ainda obscura, se purifica e se ilumina.

Pouco a pouco, a luz se engrandece dentro de nós. De igual modo que gradualmente, de maneira insensível, as sombras dão lugar à luz do dia, assim a Alma se ilumina das irradiações desse foco que reside nela e faz desabrochar, em nosso pensamento e em nosso coração, formas sempre novas, sempre inesgotáveis de verdade e de beleza. E essa luz é também harmonia penetrante, voz que canta na alma do poeta, do escritor, do profeta, e os inspira e lhes dita as grandes e fortes obras, nas quais eles trabalham para elevação da Humanidade. Mas, sentem essas coisas apenas aqueles que, tendo dominado a matéria, se tornaram dignos dessa comunhão sublime, por esforços seculares, aqueles cujo senso íntimo se abriu às impressões profundas e conhece o sopro potente que atiça os clarões do génio, sopro que passa pelas frontes pensativas e faz estremecer os envoltórios humanos.
/...


Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte Deus e o Universo, I O grande Enigma 5 de 5, 8º fragmento da obra.
(imagem: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Victor Hugo e o invisível ~


O Exílio Luminoso

   Victor Hugo, poeta nacional da França, dedicou boa parte de sua vida literária e espiritual à Doutrina Espírita. Seu talento encontrou, nos princípios desta, fontes de inspiração que lhe permitiram escrever páginas brilhantes, as quais continuam guiando o pensamento humano sobre os grandes problemas metafísicos e religiosos.

   As Contemplações, Raios e Sombras, A Legenda dos Séculos revelam conceitos realmente comovedores. Nestes livros o poeta manifestou uma profunda sabedoria espiritual como que inspirada por grandes potências do mundo invisível. E que Hugo, sempre ao serviço da verdade, tudo escreveu interrogando o Além.

   Seu génio romântico cresceu com a visão espírita do mundo; por isso, seu romantismo foi como uma consequência desses mistérios espirituais que sempre o rodearam. Em Jersey, junto ao tripé mediúnico, o mesmo que foi usado pelas sacerdotisas de Apolo para dar oráculos em Delfos, enquanto o mar fustigava furiosamente a costa, foi que concebeu suas grandes visões poéticas e sobrenaturais. Polemizou em verso com entidades invisíveis, com o que comprovou a existência do mundo dos espíritos.

   O poeta sabia que o tripé era um instrumento mágico pelo qual a luz do mundo invisível pode vencer as trevas da terra. Sentia-se na Ilha de Jersey como João em Patmos, razão pela qual pode ser considerado como o fundador da Patmologia Espírita. Falou com o Espírito no meio do mar e escreveu um novo Apocalipse. Relacionou-se empregando a linguagem de Ronsard com Moliére e A Sombra do Sepulcro, duas elevadas personalidades mediúnicas.

   O mar e a solidão acompanharam-no sempre e foram até os seus confidentes. Não obstante, aquela Ilha de Jersey tinha a virtude de povoar-se de entidades invisíveis que lhe falaram de liberdade, amor e recordações. Sua filha Leopoldina, desaparecida num naufrágio, se lhe fez presente por meio do tripé mediúnico e falou com sua alma de modo terno.

   O poeta sabia que os mortos não são devorados pelo abismo e que as distâncias metafísicas não podem alijá-los dos homens. Por isso, dizia: ''Devemos pedir justiça à morte, mas não devemos ser ingratos com ela. A morte não é, como se diz, uma queda nem uma emboscada''.

   Proclamou, assim, que os mortos voltam. Resistia a aceitar um Além que impedia os espíritos desencarnados de comunicar-se com os homens. Aceitava, em troca, um mundo invisível comunicando-se com o visível; o invisível era para o poeta um templo repleto de presenças espirituais sempre dispostas a relacionar-se com a mente e o coração dos povos. Foi por isso que disse: "Os mortos são os invisíveis e não os ausentes".

   A propósito, sustentava a tese de Allan Kardec, seu amigo nos caminhos da verdade, referente às ciências das manifestações espirituais. Participava destas importantes reflexões do destacado filósofo espírita: "Devemos pedir que os incrédulos nos provem, não por uma simples negativa, porque suas opiniões pessoais não fazem lei, mas por razões lógicas, que isto não pode ser. Nós nos colocaremos sobre o seu terreno e, já que desejam apreciar os factos espíritas com a ajuda das leis da matéria, que tomem por conseguinte neste arsenal alguma demonstração matemática, física, química e fisiológica e provem por A mais B, partindo sempre do princípio da existência e sobrevivência da alma:

1°) Que o ser que pensa em nós durante a vida não pode pensar mais depois da morte.
2°) Que, se pensa, não deve pensar mais do que nos que amou.
3°) Que, se pensa naqueles que amou, não deve querer comunicar-se já com eles.
4°) Que, se pode estar em todas as partes, não pode estar ao nosso lado.
5°) Que, se está ao nosso lado, não pode comunicar-se connosco.
6°) Que, por seu envoltório fluídico, não pode agir sobre a matéria inerte.
7°) Que, se pode agir sobre a matéria inerte, não o pode sobre um ser animado.
8°) Que, se pode agir sobre um ser animado, não pode dirigir sua mão para fazê-lo escrever.
9°) Que, podendo fazê-lo escrever, não pode responder às suas perguntas e transmitir-lhe seu pensamento.''

   E Kardec concluiu dizendo: "Quando os adversários do Espiritismo nos demonstrarem que isto não pode ser, por razões tão patentes quanto aquelas pelas quais Galileu demonstrou que não é o Sol que gira ao redor da Terra, então poderemos dizer que as suas dúvidas são fundadas".

   Se precisássemos de uma definição para provar a qualidade de espírita de Victor Hugo, esta poderia ser: Ele foi o Isaías mediúnico maior da literatura romântica. Recorde-se que o romantismo de Hugo transcendeu às formas clássicas mediante uma transfiguração das coisas. Viu sempre em tudo um mundo invisível, quer dizer, um sustentáculo imaterial do mundo físico. Cantou a natureza com ritmos provenientes do mundo dos espíritos e pincelou poemas dedicados à alma do abismo, que falou por sua boca comovendo a literatura de seu tempo. "É necessário, mais do que nunca  dizia  ensinar aos homens o ideal, este espelho que reflecte o semblante de Deus! Poetas, filósofos, essa é a vossa obrigação''.

  Sua presença era um convite ao transcendente. Tudo nele sugeria novos horizontes espirituais. Como Pedro Leroux, Saint Simón, José Mazzini, acreditava na reencarnação; por isso, sua obra poética e filosófica está impregnada de um profundo lirismo palingenésico.

  É curioso que a crítica não tenha reparado neste aspecto de sua produção, especialmente quando completou cento e cinquenta anos de seu nascimento. Com este motivo, Les Nouvelles Littéraires, reputado periódico literário de Paris, dedicou ao grande poeta francês o seu número 1277, de 21 de Fevereiro de 1952, no qual menciona com bastante discrição o Victor Hugo espírita.

  Mas, apesar dessa reserva, a crítica reconhecerá um dia que o espírito de Victor Hugo, cósmico e profundo, se inspirou nas visões espirituais que o Espiritismo lhe sugeria. Dos poetas românticos, nenhum como ele compreendeu com tanta realidade o processo espiritual do homem e da história, chegando até Deus através de abismos e distâncias. Victor Hugo sustentava com fé poética e religiosa a palingenesia espiritual, de tudo o que existe.

  A psicografia ou mediunidade da escrita secundava notavelmente seu génio poético. Quando escrevia, dava-se conta de que sua mão não lhe pertencia e que estava sob a influência de uma entidade lírica invisível. Porém, rebelava-se quando seu génio era considerado por seus amigos exclusivamente mediúnico. Por isso, dizia: "Quando a obra parece sobre-humana, querem fazer intervir o extra-humano; antigamente era o tripé, em nossos dias a mesinha. A mesinha não é outra coisa que a reaparição do tripé". Victor Hugo aceitava o mediúnico como uma "inspiração directa" do poeta, ou seja, que prescindia do veículo transmissor.

  Todavia, Amado Nervo pensava diferente e para constatá-lo vejamos o que disse em seu poema Mediunidade:

Si mis rimas fuesen bel/as
enorgullecerme de ellas
no está bien,
pues nunca mías han sido
en realidad: ai oído
me las dieta ... ! no sei quién!
Y o no soy más que e/ acento
dei arpa que hiere el viento
veloz,
no soy más que el eco débil
de una voz ...
Quizás a través de mi
van despertando entre sí
dos almas llenas de amor,
en un misterioso estilo,
y yo no soy más que el hilo
conductor.

  A esta declaração poética, Nervo ajuntou o seguinte: ''Grande número de poetas têm confessado o carácter mediúnico de sua inspiração. Alfredo de Musset diz: "On ne travaille pas: on écoute; c'est comme un iconnu qui parle á l'oreille". E Lamartine: "Ce n'est pas moi pense, ce son mes idées qui pensent pour moi".

   E o nosso estranho Gutiérrez Nájera expressou com delicado acerto:

Y o no escriba mis versos; no los creo:
Viven dentro de mi, vienen de fuera:
A ése, travieso, lo formó e! deseo;
A aquél, lleno de luz, la primavera.

Suzanne Misset-Hopes |*, em importante estudo sobre o poeta, disse que multidões de diversas correntes e convicções sentem-se atraídas para recordar "o que se poderia chamar a mensagem de Victor Hugo, que se encontra numa obra magistral tecida de sombras e luzes, de mistérios e revelações, de inquisições e defesas". E mais: "Victor Hugo  todos sabemos  foi levado a sondar experimentalmente os grandes problemas do destino humano e a decifrar os segredos do além-túmulo e da harmonia cósmica por meio das "mesas falantes" de Jersey. Fez-se espírita e no seio de reuniões sobrenaturais tomou consciência de sua missão de profeta dos tempos que verão nascer uma nova ordem mundial, social e religiosa, baseado em leis fundamentais que regem a vida, leis que constituem os cimentos da verdadeira moral e cujo conhecimento solitário se comprova ser capaz de transformar a conduta dos homens em benefício de suas relações mútuas".

   De facto, Victor Hugo foi o profeta que anunciou o advento de um novo espírito do mundo. Teve fé na justiça e na liberdade e afirmou os seus ideais na fraternidade universal. Lembre-se que o poeta imaginava os Estados Unidos da Europa sobre a base da união divina dos espíritos.

  Vejamos como prossegue Suzanne Misset-Hopes: "Em toda sua obra, particularmente na que criou no exílio, bastante impregnada dos contactos que nessa época teve com o Além, deixa ver um ardente desejo de desprendimento das luzes espiritualistas de que se nutria a sua alma".
/…

|* Ver o artigo Victor Hugo, Precursor, em Survie, Setembro-Outubro de 1952.


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, O exílio luminoso, 5º fragmento da obra.
(imagem: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo V

A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 
(III)

   É no ano de 53 a.C. que, dolorosamente influenciado pela situação da Gália, Vercingétorix toma a resolução de se consagrar à salvação de sua nação. César tinha derrotado separadamente os éburons, os trévires, os sénones, depois retornou para a Itália, deixando suas dez legiões dispersas no norte e no leste. Aproveitando as circunstâncias, Vercingétorix, em pleno inverno, percorreu as tribos preparando uma sublevação geral e, por sua eloquência máscula, reanimou os ardores patrióticos e levantou as coragens abatidas.

   Uma assembleia solene, de todos os chefes gauleses, teve lugar na floresta sagrada dos carnutos. Ali, sob as bandeiras das tribos, reunidas em aglomerados, os chefes fizeram o juramento de se unirem contra os romanos e proclamaram Vercingétorix como chefe supremo. Eles sonhavam com uma pátria colectiva, com uma grande Gália livre e federada, realização dessa fraternidade céltica, concebida pelos druidas. Vercingétorix tentou introduzir mais ordem e método na organização militar e nos movimentos da armada gaulesa. Ele mostrou tanta habilidade e precisão que provocou este elogio pouco comum de seu inimigo: “Ele foi tanto activo quanto severo no seu comando.” *

   Pode-se perguntar onde o grande chefe arverno, ainda jovem, tinha obtido suas aptidões e seu conhecimento. Parece que a função que se deve atribuir ao mundo invisível na história começa a sair do domínio exclusivo das religiões para penetrar pouco a pouco na ciência. Esta função o Sr. Camille Jullian a reconhece, ou melhor, a discerne na vida de seu herói, e a relaciona a outros exemplos célebres; os de Sartório e de Mário, que tiveram suas profetisas, como Civilis teve Velléda. “Vercingétorix disse que teve ao seu redor agentes que o colocavam em relação com o céu.” **

   Mas o terrível procônsul, ao ser informado da sublevação da Gália, deixou rapidamente Ravenna e, após uma viagem rápida, realizou um acto tido como irrealizável em pleno inverno. Ele atravessou as Cévennes por veredas abruptas, com 30 centímetros de neve, e investiu com sua pequena armada sobre o país arverno, obrigando, assim, Vercingétorix a dirigir suas forças para o sul e a libertar as legiões cercadas. Após esse desvio estratégico, César desceu pelo vale do Loire e juntou, às pressas, a parte principal das legiões a fim de ser capaz de enfrentar os acontecimentos.

   Não é surpreendente achar, a dezoito séculos de distância, factos análogos nessa outra existência do mesmo homem de génio que foi sucessivamente Júlio César e Napoleão Bonaparte? A passagem de Cévennes não teria por complemento aquela do Grand Saint Bernard, e o 18 brumário *** não lembra a passagem do Rubicão?

   Alguns meses depois, o cerco de Bourges pelos romanos, heroicamente sustentado pelos seus habitantes, mostrou toda a utilidade das reformas de Vercingétorix.

   Para devastar a área da armada romana, os bitúriges põem fogo, por sua ordem, em vinte de suas vilas. César sobe de novo até a Auvergne com suas legiões e ataca a Gergovie, foco da independência gaulesa; ele é repelido, forçado a deixar seu campo e a bater em retirada durante a noite.

   O general romano, que não tinha cavalaria, não hesitou em mandar vir de além do Reno, para alistar, bandos de cavaleiros germânicos semi-selvagens. E é assim que, após ter proclamado muitas vezes, altissonante, que ele não vinha à Gália a não ser para defendê-la contra os germanos, foi ele mesmo que abriu o caminho às invasões. Na batalha de Dijon, os pesados esquadrões germânicos romperam a cavalaria gaulesa e Vercingétorix, reduzido à sua única infantaria, teve que se refugiar na Alésia.

   Finalmente, vem o cerco memorável dessa vila pelos romanos, os trabalhos gigantescos das legiões para sitiar o lugar e a chegada da armada de socorro, isto é, quase toda a Gália em armas. Esta armada foi lenta para se reunir, os chefes se ajuntaram, de início, em Bibracte, formando um conselho geral, para discutir os planos de Vercingétorix. Se havia entre eles homens devotados, sem excepção, à liberdade da Gália, havia, também os ambiciosos de duas caras, como os dois jovens eduenos Viridomar e Eporédorix, ambos decididos a favorecer, em segredo, os desígnios de César.

   Numa luta horrorosa de três dias, o impulso furioso dos arvernos desbarata as linhas romanas, mas a traição dos eduenos aniquila seus esforços e a armada gaulesa se dispersa, abandonando os defensores de Alésia à sua própria sorte.

   Vercingétorix, vencido, poderia fugir, mas preferiu se oferecer como vítima expiatória a fim de poupar a vida de seus companheiros de armas. César, estando assentado num tribunal, no meio de seus oficiais, vê as portas da Alésia se abrirem. Um cavaleiro de alta estatura, coberto de uma magnífica armadura, aparece a galope, descreve três círculos com seu cavalo ao redor do tribunal e, com ar altivo e grave, joga sua espada aos pés do procônsul. Era o chefe arverno que se entregava ao seu inimigo. Os romanos, impressionados, se afastaram com respeito, mas César, mostrando a baixeza de seu carácter, prostra-o com injúrias, acorrenta-o, manda-o para Roma e o joga na prisão mamertina, calabouço escuro, com uma única entrada, pela abóbada. Após seis anos de prisão horrenda, ele foi retirado para figurar como triunfo de César, e daí foi entregue ao carrasco (46 a.C.).

   Um dia, no correr dos tempos, esses dois homens se reencontraram servindo à mesma causa, sob o mesmo estandarte. César se chamou, então, Napoleão Bonaparte e Vercingétorix tornou-se o general Desaix. Em Marengo, quando a batalha parecia perdida para os franceses, Desaix chegou na hora exacta, com a sua divisão, para salvar seu antigo inimigo, e esta foi toda a sua vingança!

   Edouard Schuré escreveu a respeito de Desaix, **** após ter lembrado seus grandes feitos:

   “Ele foi a modéstia na força, a energia na abnegação. Procurava sempre o segundo lugar, e aí se conduzia como se fosse o primeiro. Batido mortalmente em Marengo, nesta grande batalha que ganhou para o primeiro cônsul, e temendo que sua morte desencorajasse os seus, disse simplesmente àqueles que o dominavam: “Não lhes digam nada.”

   Nesses detalhes históricos, não se encontra uma confirmação daquilo que nos têm dito nossos instrutores do espaço sobre a identidade desses dois personagens, Vercingétorix e Desaix, animados pelo mesmo espírito no correr dos séculos? Foi assim com César e Napoleão e com muitos outros casos semelhantes.

   Se o olhar do homem pudesse sondar o passado e reconstituir o elo que une suas vidas sucessivas, muitas surpresas lhe seriam reservadas, porém más lembranças e angústias também viriam se misturar às dificuldades da vida presente e agravá-las! Eis por que o esquecimento lhe é dado durante a passagem do vau, isto é, durante a estada terrestre. Mas no desprendimento corporal, nas horas de sono e, sobretudo, após a morte, o espírito evoluído retoma o encadeamento de suas existências passadas, e na lei das causas e efeitos, em vez de vidas isoladas, incoerentes, sem precedentes e sem sequência, ele contempla o conjunto lógico e harmonioso de seu destino.

   Do mesmo modo que visitei a pé, com um sentimento de respeito, o santuário céltico da Bretagne, creio dever fazer a peregrinação da Gergovie e da Alésia. Eu escalei as escarpas da Acrópole arverna e mais tarde subi a inclinação suave que, da estação de Laumes, leva à Alise. Uma neblina fria e penetrante envolvia a planície, enquanto no horizonte o disco avermelhado do Sol parecia se esforçar para furar a cerração.

   Percorrendo as ruas da vila, percebi, com surpresa, uma estátua equestre com esta inscrição: “À Jeanne d’Arc, la Bourgogne”. Este é, então, um monumento expiatório? Prosseguindo minha ascensão, atingi o planalto onde se ergue a estátua gigantesca do grande antepassado. Ali, solitário, pensei por muito tempo, meditei tristemente em tudo que é preciso – lutas, sangue e lágrimas – para assegurar a evolução humana.

   A figura grandiosa e nobre de Vercingétorix se liberta da sombra dos tempos como um exemplo sublime de sacrifício e de abnegação. Ele acreditava na pátria gaulesa, no seu futuro, na sua grandeza, e por essa pátria lutou, sofreu e morreu. Ele foi lembrado, na hora suprema, do juramento pronunciado em frente ao céu, no promontório bretão, no seio das vagas furiosas.

   Ao se oferecer em holocausto para salvar seus companheiros de armas, ele se inspirou também naquilo que lhe tinham ensinado os druidas: é pelo esquecimento de si mesmo, por imolação do “eu” em proveito dos outros, que se alcança o “Gwynfyd”.

   Para lembrança desses heróis, Gergovie e Alésia tornaram-se, para sempre, os lugares sagrados onde a alma céltica adora se recolher para meditar e orar.
/…

* Comentários da Guerra Gálica, César.
** Obra citada, p. 133.
*** Brumário – Segundo mês do calendário republicano francês. (N.T.)
**** Ver Les Grandes Légendes de France, p. 65



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO V – A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 3 de 3, 18º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

domingo, 14 de abril de 2013

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Motivos de Dificuldades nas Curas

Há curas que se verificam com surpreendente facilidade e rapidez, dando às vítimas de graves perturbações e às suas famílias a impressão de um socorro divino especial. Nosso povo, de formação geralmente católica, está sempre disposto a se deslumbrar com milagres. Não há privilégios numa estrutura orgânica perfeita, como a do Universo, regida por leis infalíveis e teleológicas, ou seja, leis que dirigem tudo no sentido de fins previstos. A cura fácil e rápida decorre de méritos pessoais do doente, de compensações merecidas por esforços despendidos por ele no seu desenvolvimento espiritual e em favor da evolução humana em geral. O objectivo da vida é o desenvolvimento das potencialidades que trazemos em nós como sementes de angelitude e divindade semeadas na imperfeição humana. Os que compreendem isso, se procuram conscientemente trabalhar para que essas sementes germinem mais depressa, adquirem créditos que lhes são pagos no momento exacto das necessidades. Quando Jesus dizia a um doente: “Perdoados foram os teus pecados”, não era porque ele fizesse um milagre naquele instante, mas porque o doente vencera a sua prova graças aos seus méritos.

As doenças revelam desajustes da nossa posição existencial. Esses desajustes decorrem da liberdade de que dispomos em face das exigências evolutivas. A dor, a angústia, as inibições são como campainhas de alarme prevenindo-nos de abusos ou descuidos. Sem a liberdade de errar não poderíamos desenvolver as nossas potencialidades espirituais. A ideia do castigo divino, do juízo de Deus condenando os que erram é uma maneira humana, antropomórfica, de interpretarmos os acidentes de nossa viagem na astronave planetária que nos faz rodar em torno do Sol. Podemos socorrer-nos dessa imagem para modificar a nossa antiquada maneira de ver e interpretar a nossa precária passagem pela Terra. Somos passageiros de uma nave cósmica, envoltos no escafandro de carne e osso, submetidos a experiências semelhantes às dos astronautas que, não podendo ainda atingir as estrelas, fazem exercícios na órbita planetária. Acidentes da viagem, falhas técnicas, dificuldades, fracassos perigosos, dor e morte dependem da nossa maneira de agir durante a viagem e da nossa perícia ou imperícia, do grau de responsabilidade, de perspicácia, de bom senso, de calma, de amor e respeito ao semelhante que conseguimos desenvolver. Deus, consciência Cósmica, não interfere em nosso aprendizado, mas também não está alheio ao que se passa connosco. Da mesma maneira que um telepata na Lua pode captar as mensagens mentais que lhe sejam enviadas da Terra ou de outras naves espaciais, a mente suprema de Deus capta, naturalmente, ligada a tudo o que se passa no Universo, nos seus mínimos detalhes. Se necessário, as entidades a seu serviço serão enviadas a socorrer-nos. Por toda a parte os seres espirituais agem continuamente no universo. Como dizia o filósofo e vidente Tales de Mileto, na Grécia Antiga: “O mundo está cheio de deuses, que trabalham na terra, nas águas e no ar.” É fácil compreendermos isso se nos lembrarmos da infinidade de seres invisíveis e visíveis que enchem o Universo agindo em todos os sentidos, sob uma orientação secreta, como robôs vivos, para manterem as condições adequadas em cada organismo dos reinos naturais e em nós mesmos. Se isso se passa no plano material denso, com muito mais facilidade podemos imaginar essa vigilância infinita no plano espiritual. A Providência Divina é o modelo supremo, arquetípico, de todas as formas de providência que os homens organizam na Terra. As grosseiras imagens de Deus e de sua acção no Universo, que as religiões nos deram no passado, são agora substituídas por visões mais lógicas, racionais e justas, graças aos progressos do homem, no conhecimento progressivo e incessante da realidade em que vivemos. São retrógrados todos aqueles que ainda se apegam, em nossos dias, às ideias ingénuas de um passado de milhares de anos. Mal iniciamos os primeiros passos na Era Cósmica e já podemos compreender melhor a beleza e a ordem da Obra de Deus e a importância suprema de seus objectivos que são, na verdade, o destino de cada um de nós.

As dificuldades nas curas pela terapia espírita decorrem, portanto, de nossas atitudes e acções no passado e no presente. Se prejudicámos a evolução de criaturas e comunidades em nossos avatares anteriores, é natural que agora tenhamos de suportar a sua companhia e sofrer a sua inferioridade em nosso ambiente individual. Nenhum mago ou sacerdote nos livrará disso, nenhum exorcismo nos libertará, mas a nossa compreensão espiritual do problema e o nosso desejo natural de reparar os erros do passado nos fará livres através dos entendimentos possíveis que os fenómenos mediúnicos nos propiciam. Como ensinou Jesus, devemos aproveitar a oportunidade de estarmos no mesmo caminho com o adversário, para nos entendermos com ele. Se soubermos fazer isso com amor, chegaremos ao fim da caminhada comum como companheiros e amigos, prontos para novas conquistas em nossa evolução. A terapia espírita nos dá o socorro possível na medida exacta da nossa capacidade de recebê-lo. Não é, porém, por meio de actos vulgares e interesseiros de caridade e nem de medidas artificiais de reforma interior que chegaremos a esse resultado. Lembremo-nos do moço rico que procurou Jesus, perguntando-lhe o que faltava para ele merecer o Reino dos Céus. Jesus tocou-lhe no ponto decisivo da questão – o desapego dos bens terrenos –, mandando-o vender tudo o que possuía e distribuir o resultado aos pobres. O moço entristeceu-se e retirou-se da presença do Mestre. Não era a fortuna em si que o prejudicava, mas o seu apego a ela, a sua incapacidade de compreender ainda o verdadeiro sentido da vida. Por isso também a definição de Paulo sobre a caridade, num arrebatamento espiritual do apóstolo, ainda não foi compreendida por nós. O apego às condições passageiras da vida terrena, aos seus bens transitórios, perecíveis, nos impede de abrir o coração e a mente para a suprema e imperecível grandeza da realidade espiritual. Dar esmolas, socorrer as necessidades do próximo são apenas meios de aprendizagem que nos levam à libertação. Temos de ir além, de abrir a nossa mente e o nosso coração para ver, sentir, brotando em nós mesmos, sem nenhum interesse inferior, a fonte oculta que não está no poço de Jacó, mas na realidade ôntica, espiritual, profunda da pobre mulher samaritana. Temos em nós toda a riqueza do Universo, com todas as suas constelações e todas as hipóstases da teoria de Plotino, mas continuamos apegados às vaidades e intrigas da Terra. A terapia espírita, que é a mesma de Cristo, nos oferece a água viva da sua nova concepção do ser e do mundo. Enquanto essa água não jorra em nós, não seremos curados.
/…


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Motivos de Dificuldades nas Curas 1 de 2, 13º fragmento da obra.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

terça-feira, 9 de abril de 2013

Seres Radiantes do espaço ~


Capítulo III

A Natureza, nos seus diversos aspectos, nos oferece um eterno encanto. Nossa vista, órgão ao mesmo tempo delicado e grosseiro, não percebe as formas de conjunto. Mas se, munidos de um microscópio, estudarmos a estrutura íntima dos corpos, o que acontecerá? Seremos obrigados a reconhecer que esses corpos são todos compostos de uma quantidade quase incalculável de partículas de uma subtileza prodigiosa, animadas de movimento constante e que se entrechocam, continuamente, num vertiginoso turbilhão. (I)

Por exemplo, quando a Ciência descobrir a causa da desintegração molecular das partículas do rádio, os cientistas conhecerão as forças profundas da natureza universal, forças misteriosas que, do centro da Terra até à mais distante estrela, interligam todos os mundos numa formidável unidade.

As desintegrações de átomos geram enormes quantidades de energia, maiores do que todas as reacções químicas. Por exemplo, a desintegração de um átomo de urânio libera 400.000 vezes mais energia do que a combustão de um átomo de carbono, segundo os químicos. Os raios catódicos, dizem eles, são produzidos por uma espécie de “bombardeio” contínuo de partículas infinitesimais a que chamamos electrões. Ao se fazer um vácuo suficiente em ampolas de vidro, como provou William Crookes, devolvem-se essas partículas ao estado de liberdade e de actividade, tanto mais acentuado quanto maior for a rarefacção. Com vácuo maior, sob a influência de uma corrente eléctrica, essas radiações apresentam cores delicadas, carmins e violetas e produzem-se, então, fluorescências que atingem o prodígio.

Esses fenómenos luminosos vêm confirmar o que nos dizem os espíritos sobre as propriedades da matéria subtil e os efeitos de luz, o uso das cores que desempenham tão grande papel em todas as situações da vida do Espaço.

Aumentando-se mais a rarefacção, obtêm-se radiações mais poderosas. Os raios catódicos, ao chocar as paredes de vidro, aumentam de intensidade e tomam o nome de raios X. (II) O seu poder de penetração ultrapassa tudo o que se conhecia antes deles; eles atravessam a madeira, os tecidos, os metais e mesmo as paredes; e verificou-se que sua acção se fazia sentir até 50 metros do ponto de emissão. O seu uso necessita de cuidados minuciosos, pois, se contribuíram para tratar de várias doenças, causaram também, às vezes, doenças mortais.

Todas essas descobertas nos revelam a existência de forças evidenciadas pela dissociação da matéria e que os espíritos utilizavam, desde muito tempo, nos fenómenos familiares aos estudantes do mundo invisível.

Não é demais insistir no facto de que os corpos ditos sólidos têm apenas uma densidade aparente, que resulta da imperfeição de nossos sentidos, e que, na realidade, eles se compõem de moléculas separadas umas das outras, por intervalos mais ou menos grandes, conforme a natureza desses corpos. Isso nos explica a sua penetrabilidade por radiações da matéria subtil e dos fluidos, em particular. O fenómeno de transporte, de materialização de espíritos e todos os factos dessa ordem encontram, aí, a sua explicação e todos aqueles que estudam, com atenção, essa Ciência do invisível, chegam a compreender e a admirar a harmonia das leis que unem o mundo sensível às forças e às manifestações do Além.
/…

(I) A análise da matéria, seja sólida, líquida ou gasosa, apresenta resultados inesperados. Foi assim que um físico calculou que um litro de ar (respirável) contém milhares de triliões de moléculas de oxigénio. Essas partículas, elas próprias, seriam apenas grupos de partículas ainda mais subtis; é assim que se chega à unidade da matéria reconhecida, agora, pela Ciência e que, segundo os alquimistas, justificam as esperanças no que se refere à transmutação dos corpos.

(II) Descobertos por W. Roentgen (1845-1923), físico alemão.



Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo III, 1 de 4, 7º fragmento da obra.
(imagem: Anos e Anos de Viagem Sideral, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 6 de abril de 2013

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria I Posição do Problema

   O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos tempos, das velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.

  Os frutos da inteligência já não atestam as longas, abstrusas e infindáveis discussões de estéril metafísica, construídas de palitos e escoradas em subtilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente poderosos génios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim perderem não apenas o seu tempo, mas o de algumas gerações.

  Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e oratórios, ouve-se agora o ruído das máquinas, o ranger das engrenagens e o silvo do vapor das caldeiras combustíveis.

  Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema, como sucede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do agricultor substitui a decadência senil pela juvenilidade laboriosa e fecunda.

  No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça actual, a consubstancialidade, as indulgências parciais ou plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de aprofundar, vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as funções vitais; o microscópio do botânico, que surpreende os primeiros, oscilantes passos da esfinge da vida; o telescópio do astrónomo, que deixa entrever, para além dos céus transparentes, o movimento majestoso dos sóis gigantescos, regulados pelas mesmas leis que accionam a queda de um fruto; a cátedra de ensinamento experimental, à volta da qual as inteligências populares vêm agrupar suas filas atentas.

  O próprio globo terrestre transformou-se. Circunavegaram-no, mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que pretendam enfeixá-lo na mão. O compasso do geómetra destituiu o ceptro imperial.

  Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao impulso das quilhas levadas por velas pandas ou pela rotação das hélices potentes e trepidantes.

  Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a outro hemisfério. O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a electricidade nos permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humanidade inteira.

  Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta; jamais se repletou em seu seio, de tanta vida e tanta força; jamais seu coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se iluminou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ainda conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zénite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa aurora.

  Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo, é ter por base de estudo elementos determinados, que não abstracções e fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos corpos, examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física, investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na Zoologia, acompanha as formas existenciais e regista as funções orgânicas peculiares, os princípios da circulação da matéria nos seres vivos, sua manutenção e metamorfoses; na Antropologia, constata as leis fisiológicas em actividade no organismo humano e determina o papel dos diversos aparelhos que o compõem; na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de leis directivas universais; e na Matemática, finalmente, formula essas leis e reconduz à unidade as relações numéricas das coisas.

  Essa exacta determinação de objectivo dos seus estudos é que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque a Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso dever. Se, deslembrada dessa condição de poderio ela se desvia desses objectivos fundamentais para divagar no vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu carácter e a sua razão de ser.

  E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses domínios exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já não serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.

  Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a responderem a problemas que lhes escapam à alçada, como ainda as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu mau grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São, assim, inquisidores do facto, e não da palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.

  Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos e que no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de mostrar que, ao invés da realidade, eles não possuem dela mais que uma ilusória sombra.

  A circunstância mais penosa e a razão predominante que nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo radicam-se ao facto de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente, universalmente, o papel e a finalidade da Ciência. Compreende-se que fora dela é que não há salvação e que a Humanidade, tanto tempo balouçada no oceano do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o da terra firme do saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e esperançoso, para a Ciência. Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o Espiritualismo. É que um certo número de cultores da Ciência, que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensinam falsas e funestas doutrinas.

 Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram em seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um tóxico pernicioso e susceptível de lhes destruir no âmago uma parte dos benefícios do saber.

  Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento, aliás, tendente a universalizar-se.

  Eis porque se torna absolutamente indispensável discutir essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência, com tanto rigor e facilidade, quanto pregoam, mas, ao invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpetuamente voltados sobre si mesmos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado de sua direcção natural.
/…


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 1 de 6, 5º fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)