A Força e a Matéria I Posição do Problema
O século que vivemos está desde já inscrito com
caracteres indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos
tempos, das velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a nossa, esse
magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus
direitos e a sua força. O mundo já não é o vale de lágrimas medieval, onde a
alma vinha expiar a falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na
oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se
de cinzas.
Os frutos da inteligência já não atestam as longas, abstrusas
e infindáveis discussões de estéril metafísica, construídas de palitos e
escoradas em subtilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente poderosos
génios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim
perderem não apenas o seu tempo, mas o de algumas gerações.
Lá, onde em murados claustros se concentravam monges
e oratórios, ouve-se agora o ruído das máquinas, o ranger das engrenagens e o
silvo do vapor das caldeiras combustíveis.
Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no
período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema,
como sucede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do
agricultor substitui a decadência senil pela juvenilidade laboriosa e fecunda.
No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam
exaustivamente os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o
milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça actual, a
consubstancialidade, as indulgências parciais ou plenárias, etc., etc., e mil
assuntos outros difíceis de aprofundar, vemos hoje instalar-se o laboratório
químico, no ambiente do qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a
mesa do anatomista, sobre cujo mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as
funções vitais; o microscópio do botânico, que surpreende os primeiros,
oscilantes passos da esfinge da vida; o telescópio do astrónomo, que deixa
entrever, para além dos céus transparentes, o movimento majestoso dos
sóis gigantescos, regulados pelas mesmas leis que accionam a queda de um fruto;
a cátedra de ensinamento experimental, à volta da qual as inteligências
populares vêm agrupar suas filas atentas.
O próprio globo terrestre transformou-se.
Circunavegaram-no, mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que pretendam
enfeixá-lo na mão. O compasso do geómetra destituiu o ceptro imperial.
Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao
impulso das quilhas levadas por velas pandas ou pela rotação das hélices
potentes e trepidantes.
Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre
célere os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a outro
hemisfério. O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a electricidade
nos permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humanidade
inteira.
Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta;
jamais se repletou em seu seio, de tanta vida e tanta força; jamais seu coração
enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem
nunca o seu olhar se iluminou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem
os progressos ainda conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a
reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e
que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zénite, brilhante não
lhes fora o dia se o não precedera a nossa aurora.
Mas, o que à Ciência outorga força e poder,
convém sabê-lo, é ter por base de estudo elementos determinados, que não abstracções
e fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos
corpos, examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física,
investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as
regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na
Zoologia, acompanha as formas existenciais e regista as funções orgânicas
peculiares, os princípios da circulação da matéria nos seres vivos, sua
manutenção e metamorfoses; na Antropologia, constata as leis fisiológicas em actividade
no organismo humano e determina o papel dos diversos aparelhos que o compõem;
na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de
leis directivas universais; e na Matemática, finalmente, formula essas leis e
reconduz à unidade as relações numéricas das coisas.
Essa exacta determinação de objectivo dos
seus estudos é que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque
a Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso
dever. Se, deslembrada dessa condição de poderio ela se desvia desses objectivos
fundamentais para divagar no vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu carácter
e a sua razão de ser.
E, desde então, os argumentos que pretende impor,
nesses domínios exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor
científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode
reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana
que acaba de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram,
o que nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já
não serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.
Ora, esta é, precisamente, a situação dos
defensores do Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a
Química, a Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E
note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a responderem a
problemas que lhes escapam à alçada, como ainda as torturam, quais pobres
servas, para que confessem a seu mau grado, e falsamente, proposições de que
jamais cogitaram. São, assim, inquisidores do facto, e não da
palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.
Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses
cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos
enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos e que
no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e
chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de
mostrar que, ao invés da realidade, eles não possuem dela mais que uma
ilusória sombra.
A circunstância mais penosa e a razão predominante
que nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo radicam-se
ao facto de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se
pressente, universalmente, o papel e a finalidade da Ciência. Compreende-se
que fora dela é que não há salvação e que a Humanidade, tanto tempo
balouçada no oceano do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o da terra
firme do saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e
esperançoso, para a Ciência. Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele
recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a acatar-lhe, com
simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso está,
precisamente uma armadilha para o Espiritualismo. É que um certo número
de cultores da Ciência, que a representam ou que se fazem dela intérpretes,
ensinam falsas e funestas doutrinas.
Os espíritos sôfregos e despercebidos, que
procuram em seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um
tóxico pernicioso e susceptível de lhes destruir no âmago uma parte dos
benefícios do saber.
Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável
arrastamento, aliás, tendente a universalizar-se.
Eis porque se torna absolutamente indispensável discutir
essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência,
com tanto rigor e facilidade, quanto pregoam, mas, ao invés, que são o produto
grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpetuamente voltados sobre si
mesmos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso
sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado de sua
direcção natural.
/…
Camille Flammarion, Deus na Natureza –
Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 1 de 6, 5º
fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)
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