Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 24 de janeiro de 2021

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranorafia Geral (*) 
O espaço e o tempo ~ 

| Galileu, Espírito 
(Études Uranographi-ques) (II) 

~ As leis e as forças 🌈

  Se um destes seres desconhecidos que consomem a sua existência efémera no fundo das regiões tenebrosas do oceano, se uma dessas poligaláceas, uma dessas nereidas – miseráveis animalejos que só conhecem da natureza os peixes ictiófagos e as florestas submarinas – recebesse subitamente o dom da inteligência, a faculdade de estudar o seu mundo e de estabelecer sobre as suas apreciações um raciocínio conjectural extensivo à universalidade das coisas, que ideia fariam eles da natureza viva que se desenvolve no seu meio e do mundo terrestre que não faz parte do seu campo de observação? 

 Se agora, por um efeito maravilhoso do seu novo poder, esse mesmo ser conseguisse elevar-se acima das trevas eternas, à superfície do mar, não longe dos rios opulentos de uma ilha de esplêndida vegetação, ao sol fecundo, fornecedor de um benfazejo calor, que pensariam então das teorias antecipadas da Criação universal, teoria que bem cedo apagaria através de uma apreciação mais vasta mas ainda relativamente tão incompleta como a primeira? É esta, ó homens, a imagem da vossa ciência toda ela especulativa (ii)

 Quando então venho tratar aqui a questão das leis e das forças que regem o Universo, eu que tal como vós não sou mais que um ser relativamente ignorante relativamente à ciência real, apesar da aparente superioridade que me dá sobre os meus irmãos da Terra a possibilidade de estudar questões naturais que lhes são proibidas na sua posição, o meu objectivo é unicamente expor-vos a noção geral das leis universais sem explicar em pormenor o modo de acção e a natureza das forças especiais que daí dependem. 

 Há um fluido etéreo que enche o espaço e penetra os corpos; este fluido é o éter ou matéria cósmica primitiva, gerador do mundo e dos seres. Ao éter são inerentes as forças que presidiram às metamorfoses da matéria, as leis imutáveis e necessárias que governam o mundo. Estas formas múltiplas, indefinidamente variadas, consoante as combinações da matéria, localizadas segundo as massas, diversificadas nas formas de acção consoante as circunstâncias e os meios, são conhecidas na Terra com o nome de peso, coesão, afinidade, magnetismo, electricidade activa; os movimentos vibratórios do agente, são conhecidos pelos de som, calor, luz, etc. Noutros mundos apresentam-se sob outros aspectos, apresentam outros caracteres desconhecidos deste e na mesma extensão dos céus, forças em número indefinido, desenvolvendo-se numa escala imaginária de que somos tão incapazes de avaliar a grandeza como os crustáceos no fundo do oceano, são incapazes de abarcar a universalidade dos fenómenos terrestres (iii)

  A natureza nunca está em oposição consigo mesma. O brasão do Universo só tem uma divisa: UNIDADE / VARIEDADE. Subindo a escala dos mundos, encontramos a unidade de harmonia e de criação ao mesmo tempo que uma variedade infinita nesse imenso canteiro de estrelas; percorrendo os degraus da vida, desde o mais ínfimo dos seres até Deus, a grande lei da continuidade dá-se a conhecer; considerando as forças em si mesmas, podemos formar com elas uma série cuja resultante, confundindo-se com a geradora, é a lei universal. 

  Não poderíeis apreciar esta lei em toda a sua extensão dado que as forças que a representam no campo das vossas observações são restritas e limitadas; no entanto, a atracção e a electricidade podem ser consideradas como uma vasta aplicação da lei primordial que reina para além dos céus. 

  Todas estas forças são eternas – explicaremos esta palavra – e eternas como a Criação; sendo inerentes ao fluido cósmico, agem necessariamente em tudo e em todo o lado, modificando a sua acção pela sua simultaneidade ou pela sua sucessão; predominando aqui, apagando-se mais longe; poderosas e activas nalguns pontos, latentes ou secretas noutros; mas finalmente preparando, dirigindo, conservando e destruindo os mundos nos seus diversos períodos de vida, governando os trabalhos maravilhosos da natureza em qualquer sítio que ocorram, garantindo para todo o sempre o eterno esplendor da Criação. 

                                                                                                         Espírito Galileu 

/… 
(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado, Galileu; médium M. C. F. (N. do A.) 
(ii) É esta também a situação dos negadores do mundo dos Espíritos, quando, depois de se terem despojado do seu invólucro carnal, os horizontes deste mundo se desenvolvem a seus olhos. Percebem então o vazio das teorias com que pretendiam tudo explicar através unicamente da matéria. No entanto, estes horizontes têm ainda para eles mistérios que só se revelam a pouco e pouco, à medida que se elevam por depuração. Mas, a partir dos seus primeiros passos, neste mundo novo, são obrigados a reconhecer a sua cegueira e até que ponto estavam longe da verdade. (N. do A.) 
(iii) Relacionando tudo com aquilo que conhecemos e não entendemos o que escapa à percepção dos nossos sentidos assim como o cego nato não percebe os efeitos da luz e a utilidade dos olhos. Pode no entanto acontecer que noutros meios o fluido cósmico tenha propriedades, combinações, de que não fazemos qualquer ideia, efeitos apropriados às necessidades que nos são desconhecidos, dando lugar a novas percepções ou outros modos de percepção. Não percebemos, por exemplo, que se possa ver sem os olhos do corpo e sem a luz; mas quem nos diz que não existem outros agentes para além da luz a que estejam afectos organismos especiais? A visão sonambúlica, que não é travada nem pela distância, nem pelos obstáculos materiais, nem pela obscuridade, dá-nos disso um exemplo. Suponhamos que, num mundo qualquer, os seres são normalmente aquilo que os nossos sonâmbulos só são excepcionalmente, não terão necessidade nem da luz, nem dos nossos olhos e no entanto verão o que nós não podemos ver. Passa-se o mesmo com todas as outras sensações. As condições de vitalidade e de percepção, as sensações e as necessidades variam consoante os meios. 


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo – As leis e as forças (de 8 a 11), 24º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

sábado, 2 de janeiro de 2021

O sentido da vida ~


Conclusões Práticas ~ 
(III de III

O nascimento e a morte não devem perturbar-nos mais do que o necessário para que sejam atendidos nas suas necessidades imediatas. As convenções humanas que cercam esses acontecimentos, procurando dar-lhes um carácter de mistério impenetrável, devem ser afastadas dos meios espíritas. Nada de sacramentos aparatosos inúteis, como os baptizados religiosos, as unções do moribundo, a colocação de velas ou crucifixos nas mãos do morto ou em torno de um cadáver, as preces em conjunto, lamuriosas e prejudiciais, nada de gritos de desespero ou de choradeiras infindáveis, nada de semblantes carregados, de préstitos sombrios, carregados de coroas, nada de luto e de aparências dolorosas. O espírita sabe que o nascimento e a morte não são mais do que acontecimentos normais da existência terrena. Sabe que os aparatos de que os homens revestiram, através dos tempos, essas ocorrências, são apenas produto da ignorância, agora já superada pelos conhecimentos doutrinários. Deve banir, por isso mesmo, das casas espíritas, todos esses velhos meios da superstição e de atraso espiritual da humanidade, transformados no mais estéril e prejudicial dos convencionalismos. 

Por outro lado, na sua vida diária ele deve fazer o mesmo. A todo o momento terá de encontrar-se com as manifestações convencionais do mundo. São os hábitos criados na sociedade pela incompreensão do homem, firmados através dos tempos, constituindo a rotina quotidiana das convenções. Contra ela, o espírita irá firmando os novos hábitos denunciadores de uma diferente visão das coisas. A sua atitude será a de um simplificador da vida, a de um destruidor de convenções inúteis. Na sua vida particular, como homem de família e de sociedade, substituirá as expressões convencionais pelas atitudes simples e naturais, ditadas pelo coração em cada momento. Será o que realmente for, não o que pretendam que ele seja. Na vida comercial ou profissional procurará substituir a ganância desenfreada ou o desejo instintivo de superar os companheiros para tirar vantagens pessoais, pelo simples cumprimento do dever, com vista à realização das tarefas que lhe cabem e à satisfação das suas necessidades económicas reais. Como a ama-de-leite de que nos fala Ramakrishna, ele saberá sempre que a fortuna, o êxito, a boa-posição, não são mais do que o filho do patrão, do qual ele deve cuidar com o máximo de carinho e sem apego. (*)

No tocante aos princípios doutrinários, sabendo, como sabe, que o mundo necessita deles, tudo fará pela sua difusão. Trabalhando a sua própria vida, trabalhará também a vida do seu próximo, através da pregação e do exemplo. A pregação, ele a fará nas ocasiões oportunas, sempre que puder desviar a conversação dos rumos habituais, de futilidade e de maldade, para outros rumos, mais altos e mais belos, relacionando acontecimentos que sirvam de lições ou indicando mesmo as soluções doutrinárias para todos os problemas da vida. Não é somente através de discursos e de conferências que podemos pregar. Todos os espíritas, até os mais pobres de recursos intelectuais, podem tornar-se excelentes pregadores, despertando os homens para a compreensão verdadeira da vida. exemplo ele o dará através dos seus actos, da sua maneira de viver, de comerciar, de se desempenhar dos seus encargos profissionais, de tratar com os semelhantes na vida social. Mas feito isso, resta-lhe ainda um dever a cumprir: o trabalho em conjunto. Conhecedor que é da lei de fraternidade, não pode ele fechar-se, dentro do movimento doutrinário, numa espécie de individualismo espírita, fazendo Espiritismo somente na sua casa ou no âmbito individual das suas actividades. É necessário ir mais longe, ligando-se às associações doutrinárias, contribuindo para o trabalho dos Centros e dos Núcleos, esforçando-se em favor das boas iniciativas espíritas. 

Chegamos, neste ponto, a um assunto da maior relevância para todos os espíritasA vida das sociedades doutrinárias é de grande importância para a boa e séria propagação dos princípios espíritas no mundo. Por isso mesmo, cabe a todos nós uma parcela de responsabilidade pelas actividades dessas associações. Grande número delas, infelizmente, se desviam facilmente do caminho seguro, levados por homens vaidosos e ignorantes, que a si mesmos se atribuem poderes excepcionais, assistência privilegiada, capacidade única de direcção. Os espíritas sinceros e esclarecidos não podem fechar os olhos a essa situação.. É seu dever contribuir para a volta das associações a um roteiro seguro, se não pessoalmente, por falta de aptidões pessoais, pelo menos reforçando o trabalho dos que lutam contra essas deturpações e esses desvios. 

Um dos vícios ainda persistentes no movimento espírita é o do personalismo mais feroz, na realização de obras de carácter doutrinário. Todo o indivíduo que se julga dotado de capacidade para fazer alguma coisa, procura logo fazê-la por conta própria, individualmente, não raro firmando o seu nome, como se ele fosse o objectivo e não o realizador da iniciativa. Contra isso temos de lutar, incessantemente. Precisamos convencer os espíritas da necessidade de trabalhos em conjunto, visando as soluções mais amplas dos problemas doutrinários. A União das Sociedades Espíritas – USE, surgida em São Paulo, é uma tentativa nesse sentido e, devemos prestigiá-la. Não obstante, é necessário o maior cuidado, para que um movimento como a USE também não seja desviado dos seus verdadeiros objectivos. O perigo desse desvio já se tornou evidente, com a criação de um departamento de unificação nacional, no Rio de Janeiro, subordinado à Federação Espírita Brasileira. 

A unificação do movimento espírita, tanto no âmbito municipal, através das Uniões Municipais Espíritas, quanto no estadual ou no federal e, até mesmo, futuramente, no continental e no mundial – já existem organismos desta natureza, como a Confederação Espírita Pan-americana e a Federação Espírita Mundial –, deve ser feita através de organismos amplos, de representação colectiva e, não de pequenas sociedades, enfeixadas nas mãos de um grupo reduzido. Em cada organismo unificador devem estar presentes os representantes eleitos de grandes massas espíritas, da maneira mais democrática possível, a fim de que o movimento não se desvie do seu sentido livre e libertador; isso porque o Espiritismo é doutrina, como vimos, de liberdade e fraternidade, jamais de coação e imposição, através de autoridades arbitrariamente constituídas. O nosso trabalho deve ser no sentido de unir os espíritas para o esforço comum em prol da causa e, não de submetê-los ao arbítrio de instituições dirigentes. 

/… 
(*) O grande espiritualista hindu, Ramakrishna, dizia aos seus discípulos que eles deviam viver como uma ama-de-leite. E explicava: 
“A ama-de-leite, ao referir-se à casa dos seus patrões, diz: “a nossa casa”. Ela sabe, entretanto, que a sua casa está longe, numa aldeia distante, para a qual se dirigem os seus pensamentos. Ao referir-se ao filho dos patrões, que traz nos braços, dirá: “o meu Hari está muito travesso” ou “o meu Hari gosta disto ou daquilo”, e assim por diante. Não obstante, ela sabe que Hari não é seu. Aos que me procuram, digo-lhes que vivam uma vida de desapego, como essa ama-de-leite, que vivam desligados deste mundo, que vivam no mundo mas não sejam do mundo e, tenham ao mesmo tempo a mente dirigida a Deus, a casa celeste de onde todos viemos. Que implorem o amor de Deus, que os ajudará a viver assim.” 
In O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (II de III), J. Herculano Pires.


José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (III de III), 16º fragmento desta obra 
(imagem de contextualização: Ramakrishna, finais do século XIX, pintura de Franz Dvorak)

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo III 

Marx e Kardec 
(I de II) 

Karl Marx e Allan Kardec encarnam, nos tempos actuais, as duas grandes inquietudes do pensamento: o fenómeno social e o fenómeno espiritual. Marx traçou uma imagem do homem em desacordo com a realidade espiritual. Entretanto, no campo social, expressou verdades que, postas em prática, dariam solução à mais renhida luta de classes que, actualmente, no seu conjunto, chamamos capitalismo e comunismo. 

Marx viu o homem como um composto físico-químico, isto é, como um organismo material, governado e conduzido pelos modos de produçãoKardec, pelo contrário, compreendeu o homem como um espírito encarnado num corpo físico, para demonstrar a sua evolução e a sua realidade espiritual. Mas o homem de Marx e o homem de Kardec, iguais entre si quanto ao aspecto material e diferentes na sua realidade espiritual, constituem agora uma pessoa humana ou entidade existencial, com novos direitos e iguais deveres, diante dos progressos da sociedade moderna. 

Nessa pessoa existencial e humana, onde cabem tanto o homem marxista como o homem kardecista, devemos procurar a verdadeira filosofia Social. Nela se encontram os elementos indispensáveis para estabelecermos uma relação entre o problema social e o problema espiritual. Entretanto, Marx nos mostrou um homem melhor que o homem velho dependente do regime capitalista. O homem de Marx é um ser liberto da exploração económica, mas sem perspectivas metafísicas. As suas dimensões espirituais estão sujeitas ao terrestre, o que vale dizer que desaparecem com o corpo. Disso resulta ser o homem de Marx um Ser incapaz de satisfazer o anseio de imortalidade que o Espírito leva no seu íntimo. 

Marx, com efeito, legou-nos um homem sem espírito. Não obstante, exigiu-lhe mais do que podia dar. Esqueceu-se de que um homem chamado a efectuar a transformação do mundo, em todos os seus aspectos, não deveria morrercomo sustenta a desoladora teoria do materialismo histórico, sobre a qual fundamentou todo o seu sistema social. Como se verá, o homem de Marx morre para sempre, depois de se sacrificar pela instituição de um mundo melhor. É um tipo de homem que não tem vinculações palingenésicas com o processo histórico: nasce e morre sem saber qual o sentido do drama do planeta. 

Apesar do erro no tocante ao Ser do homem, Marx teve acertos extraordinários ao julgar o regime capitalista e com ele a “exploração do homem pelo homem”. O seu génio demonstrou à inteligência humana que o sistema de propriedade privada está obrigado a se transformar em sistema de propriedade colectiva. Fez ver à humanidade que o socialismo, ou regime de propriedade colectiva, corresponde a um novo sentido da vida e, assim o admite a doutrina social espírita, considerando-o como um avanço para o verdadeiro advento do cristianismo. Porque no dia em que a sociedade cristã for uma realidade, ela estará assente sobre as bases da propriedade colectiva. Vejamos o que diz o Evangelho: “Em verdade vos digo que um rico — ensinava Jesus aos seus discípulos, — dificilmente entrará no Reino dos Céus. em verdade vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mateus XIX, 23-24). 

homem velho, que geralmente está representado no rico de que falava o Nazarenoé o que resiste à evolução do sistema social e, deverá ler e meditar profundamente este ensinamento do Divino Mestre. Porque são os ricos e poderosos, mesmo sendo cristãos, os menos concordes com a essência revolucionária do cristianismo. Recordemos o seguinte ensinamento evangélico: “Certa vez, um jovem rico perguntou a Jesus o que deveria fazer para conquistar a vida eterna e, o Mestre lhe respondeu: Se quiseres ser perfeito, vai, vende o que tens e dá-o aos pobres e, terás um tesouro no céu; depois, vem e segue-me. Ouvindo o jovem estas palavras, retirou-se triste, porque tinha muitos haveres”. (Mateus XIX, 21-22). 

Esta a razão pela qual o cristianismo nunca poderá ser a doutrina ou a religião dos ricos, potentados, latifundiários e poderosos. O cristianismotal como o interpreta a sociologia espírita, é uma ideia que jamais se acomodará com os interesses das classes poderosas, nem com a exploração dos humildes e o luxo desmedido dos endinheirados. 

O cristianismo possui em si mesmo tudo o que Marx atribuiu (por culpa dos próprios cristãos) ao socialismo de tipo materialista. No dia em que o cristianismo se dedicar totalmente à organização social do mundo, a própria revolução comunista, tão temida na actualidade, aparecerá como um acontecimento insignificante e sem transcendência. 

A comunhão de bens ou propriedade colectiva, antes do socialismo, pertenceu ao cristianismo, como sistema social. Nos Actos dos Apóstolos lê-se o seguinte: “E todos os que acreditavam estavam juntos; e tinham todas as coisas em comum (11-44). E não havia entre eles nenhum necessitado, porque todos os que possuíam herdades e casas vendiam-nas e depunham o valor aos pés dos apóstolos, para ser distribuído a cada um, segundo as suas necessidades.” (IV-34-35)

Esta doutrina do cristianismo primitivo mostra-nos que a ideia de propriedade colectiva, principal instrumento do socialismo moderno, já era praticada pelas primeiras comunidades cristãs. Portanto, a cristandade deverá renovar a presente estrutura social, aplicando o ideal económico ensinado por Jesus e os seus apóstolos e, evitando assim a implantação de um conceito materialista do homem e da sociedade. 

Marx esboçou um indivíduo sem vinculações com o espiritual e o eterno. Acreditou que o Espírito constituía um embaraço para o advento de uma sociedade sem classes, porque tanto o filósofo como o religioso aplacavam as reivindicações dos oprimidos, falando-lhes de uma felicidade ultraterrena. Deste modo, o poderoso se livrava das reclamações de servos e servidores, hoje trabalhadores e obreiros em geral. 

O autor de O Capital, conhecedor deste jogo, desliga-se do Espírito e atém-se unicamente à realidade objectiva das coisas. Concebe por isso um homem material, cujo destino termina com a sua morte física. Sente repulsa pelo espiritual e metafísico, porquanto a oligarquia e a opressão de todos os tempos têm submetido os homens, prometendo-lhes recompensas no além. 

Daí o homem marxista estar desvinculado de todo o conceito espiritual e religioso. Marx acreditava que a verdade jamais escraviza o homem, mas o eleva e melhora nas condições da vida social. Viu, entretanto, que a verdade espiritual praticada por cristãos, clérigos, sociólogos e filósofos, até meados do século 19, era uma verdade espiritual que exaltava os poderosos e lhes submetia os humildes e deserdados, isto é, a todos os que seguiam Jesus. O cristianismo eclesiástico, que não é o cristianismo do Espírito de Verdade, hoje proclamado pela Terceira Revelaçãoprestou-se a esse jogo aviltante, que consistia em sufocar toda a ideia de rebeldia entre os explorados. E Marx, por essa razão, negou aquela verdade espiritual, chegando à conclusão de que a única realidade se encontra no mundo físico e na vida material do homem. Terminou sustentando que a verdade sempre libertará os indivíduos e, que toda a ideia religiosa, que tratasse de subjugá-los com promessas ultraterrenas, representaria uma falsa verdade ou um argumento das forças reaccionárias, para impedir a justiça social e a democracia. 

Hoje, é reconhecida a razão de Marx, no que respeita ao socialismo, mas quanto à interpretação materialista do homem e da história, como se vem a comprovar, Marx permanece num plano de absoluto equívoco. É este o motivo que dá argumentos aos misoneístas para combaterem Marx, não tanto com o fim de refutar a sua ideologia materialista, mas para defender o regime capitalista, onde os seus instintos possessivos possam continuar a obra de avareza e de egoísmo. 

Se Marx nos legou uma falsa imagem do homem, foi devido ao procedimento moral, que já assinalamos, dos que se chamaram espiritualistas e cristãos e, que em vez de estarem com a mensagem de Cristo e, consequentemente com os pobres, despojados e explorados, estiveram com os poderosos e os afortunados. No nosso tempo, continua ainda este jogo de religiosos, espiritualistas e cristãos, que se protegem sob o poder estatal para defender os seus interesses de classe afortunada. Esta atitude dos poderosos frente aos humildes destrói, a cada momento, na vida dos povos, a ideia de Deus e do Espírito, ao ponto de serem consideradas inexistentes e, repetindo o que dizia Marx, se continua a considerá-las como instrumentos mentais para aplacar os anseios de justiça. 

Mas se o homem marxista é um erro no seu aspecto espiritual e, uma verdade na sua face social, o homem kardecista é uma verdade integral: o homem de Kardec é verdadeiro tanto no espiritual como no social. Estes mundos, na concepção espírita, não se excluem entre si, segundo afirma a mentalidade religioso-materialista. Para Kardec, estes dois mundos estão representados por dois elementos: o material e o espiritual, que deverão unir-se para revelar uma única realidade: a da vida universal. 

Kardec nos assinala que esses elementos, o material e o espiritual, constituem as duas realidades através das quais deverá passar o Espírito do homem. Esta concepção confirma-nos que a justiça social e a justiça espiritual deverão desenvolver-se de forma paralela, já que tanto o processo visível como o invisível do homem e da história contribuem para o processo que conduz ao amor e à fraternidade sociais. Isso nos mostra que o mundo material e o mundo espiritual se relacionam mutuamente e, que o desenvolvimento histórico se efectua mediante estas relações materiais e espirituais, ao lado do desenvolvimento da forma e da vida. 

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Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, PRIMEIRA PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo III, MARX E KARDEC (I de II) / 4º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (imagem parcial) uma pintura de Salvador Dali, 1936)

domingo, 6 de dezembro de 2020

Deus na Natureza ~


 ~ a 
origem dos seres ~ 
(III de III) 

  “O corpo humano – diz o naturalista inglês Wallace –, estava nu e desprotegido e foi o espírito que o aprovisionou de vestuário para o preservar das intempéries. O homem não teria podido competir em agilidade com o gamo, nem em força com o touro selvagem e, foi o espírito que lhe deu armas para domar e utilizar esses animais. Ele era menos apto que os outros animais para alimentar-se de ervas e de frutos que a Natureza espontaneamente oferecia e foi essa faculdade admirável que o ensinou a governar e a adequar a Natureza aos seus fins, dela extraindo o alimento quando e onde quisesse. 

  “Desde o momento em que se utilizou da primeira pele para a sua indumentária, da primeira lança na caça, da primeira semente no plantio, da primeira vara na enxertia, uma grande revolução se operou na Natureza, revolução que não teve semelhança em qualquer fase da história do mundo, uma vez que um ser existia guarnecido para as mutações do Universo; um ser, até certo ponto superior à Natureza, possuía pois os meios para controlá-la, para regular-lhe as actividades e, podendo manter-se em harmonia com ela, não lhe modificando a sua forma corporal, porém, aperfeiçoando-lhe o espírito.” 

  É nisso, tão-só, que vemos a verdadeira grandeza e dignidade do homem. (ii) 

  O homem ocupa um grau anatomicamente superior, ao em que assenta o chimpanzé; a diferença entre os cérebros do negro e do primata não é maior que a que separa o chimpanzé do saju e, sobretudo, dos lemurianos. Depois do chimpanzé (trogloditas) vêm, na ordem decrescente, o orango (pitécus), o gibon (hilobatos), o seninopíteco, o bugio, etc. Tal como escreveu Geoffroy Saint-Hilaire em polémica célebre com Cuvier, o homem é a primeira família da ordem dos primatas, estabelecida por Linnaeus no século passado. Cabe dizer que aqui falamos do ponto de vista anatómico, unicamente. Qualquer outro raciocínio invalidaria estas classificações. Somos, porém, de opinião que quando versamos anatomia, temos de fazer anatomia. 

  No capítulo seguinte, teremos oportunidade de prosseguir na comparação do homem com o macaco, pelo estudo do cérebro. 

  O lugar geológico do homem remonta à origem da nossa espécie a época longínqua em que viviam as raças antediluvianas, hoje desaparecidas: o veado de grandes chifres, o urso das cavernas, o rinoceronte tricorne, o elefante primigéneo, o mamute, a rena fóssil, etc. A mais antiga data conhecida e que atesta a presença do homem, é muito posterior à fauna e à flora actuais. Entretanto, verifica-se não existirem já, nos nossos dias, umas tantas espécies contemporâneas do homem. Os fósseis humanos encontrados nos recifes coralíneos da Flórida, nas cavernas do Languedoc e da Bélgica, o esqueleto exumado nas redondezas de Dusseldorf, o crânio da caverna de Êngis, o de Barreby, na Dinamarca, o homem fóssil de Puy e de Natchez, no Mississipi, os restos humanos em Loes, indiciam nas variedades humanas primitivas um estado de manifesta inferioridade, aproximando-as singularmente dos selvagens contemporâneos e mesmo dos símios antropóides. Hoje ninguém contesta que a existência do homem seja anterior ao período glaciário e desde o começo da época quaternária. 

  O lugar arqueológico do homem concorda com os precedentes, a favor da teoria progressiva. Quem duvidaria, hoje, da idade da pedra e do bronze, pelas quais transitou a Humanidade antes que inventasse qualquer arte ou indústria, cujos vestígios se encontram por toda a parte? Que ancianidade poderíamos atribuir a esses períodos? A idade da pedra, na Dinamarca, coincidia com o período da primeira vegetação, seja a dos pinheiros da Escócia e, em parte, com a segunda vegetação – a do carvalho. A idade do bronze desenrolou-se durante a época do carvalho, pois foi nas camadas da turfa, onde abunda o carvalho, que se encontraram espadas e escudos desse metal. Antes dele não havia faias. A idade do ferro, menos pristina, corresponde à bétula. Quanto tempo duraria a primeira idade? Sendo o bronze um composto de mais ou menos nove partes de cobre e uma de estanho, o aparecimento dos primeiros utensílios denota uma indústria já não elementar. A fusão dos minerais, a decoração lenta dos objectos moldados, só poderiam ser conseguidas depois de longo tacteamento. 

  A que época devemos atribuir as cidades lacustres da Suíça e as quarenta mil estacas de Wangen? As escavações nos têm revelado vinte povoações no lago de Genebra, doze no de Neufchâtel, dez no de Bienne, contemporâneas das idades da pedra e do bronze. 

  As da Irlanda (Crammoges) parecem provir da mesma época. Essas povoações castoreanas deviam oferecer alguma semelhança com as da Nova-Guiné, descritas por Dumont d’Urville. Os ossos encontrados por Lartet na caverna de Aurignac (i) são contemporâneos das hienas das cavernas e do rinoceronte de narinas separadas. 

  Foi muito tempo depois que Tebas e Mênfis, capitais do alto e do baixo Egipto, atingiram o seu grande esplendor e que as quarenta pirâmides foram erigidas, tipificando uma civilização lentamente desenvolvida, com uma forma especial de culto, de cerimónias esplêndidas, um estilo singular de arquitectura e inscrições, barragens dos rios, etc. Essas glórias, entretanto, estavam desvanecidas muito tempo antes de Homero. “Foi preciso – diz Lyell – para formação lenta e gradual de raças como a caucasiana, a mongol ou a negra, um lapso de tempo bem mais longo que o possível para ser abrangido por qualquer sistema de cronologia popular.” 

  Ao problema cronológico do aparecimento do homem na Terra, a Ciência nada responde por enquanto. Ao demais, se o homem não apareceu espontaneamente, tal data não existe. Quanto aos vestígios de humanidade, ou do homem em si mesmo, as opiniões (pois que se não trata, no caso, senão de opiniões) são vagas quão variáveis. Um tijolo de carvão encontrado entre Assouan e o Cairo, a uma profundidade de 18 metros, contaria treze mil anos de existência, admitindo-se um aumento de 15 centímetros por século, no depósito de vasa, no delta do Nilo. A estimativa mais baixa do tempo necessário para formar o delta do Mississipi é de cem mil anos. 

  O esqueleto humano encontrado perto de Nova-Orleans, a cinco metros de profundidade e sob uma camada de quatro florestas extintas, não contaria menos de cinquenta mil anos, na opinião do Dr. Dower (é um número exagerado, no nosso entender). Agassiz calculou que a formação dos recifes de coral da Flórida representam cento e trinta e cinco mil anos. Os sílex talhados e recolhidos em diversas regiões do globo, particularmente no vale do Somme, parece terem servido de armas a uma raça distanciada de cem séculos. 

  A Arqueologia concorda com os historiadores e os poetas da antiguidade, quais HeródotoDiodoro, Éschylo Vitrúvio, Xenóphontes, Plínio, no concernente ao primitivismo bárbaro da raça humana e à sua predilecção pelas cavernas. Mas, esse estado nós o podemos considerar fora dos domínios históricos e a cronologia, que remonta à época já misteriosa das grandes migrações arianas, a mais de cem séculos passados, mergulha na noite profunda, quando tenta sondar a nossa verdadeira origem. 

  Tudo quanto podemos afirmar é que a Humanidade é muito mais antiga do que se supôs até agora, tendo começado por graus inferiores, até que se elevasse à noção de justiça e de moral. Se nos fosse permitido remontar a essas épocas, não poderíamos reconhecer a civilização da nossa era na caligem das idades bárbaras, quando a inteligência nos seus primórdios se esforçava por desprender das possantes constrições da matéria. 

  Preferimos confessar essa ancianidade e essa possível origem da nossa espécie, sem escrúpulos para com o Espiritualismo e sem acompanhar o mau exemplo dos que intrometem as crenças religiosas a propósito de tudo e, mesmo sem propósito. Constatamos os factos e a nossa ignorância, com sincera franqueza, persuadidos de que não se podendo antepor duas verdades entre si, a Ciência da Natureza não pode afectar a causa do Ser supremo. Como diz Helmholtz, os homens costumam medir a grandeza e a sabedoria do Universo pela duração e vantagem que daí lhes advêm; mas a história dos séculos transcorridos nos mostra quão insignificante é o período do advento da existência humana, em relação com a idade do planeta. 

  A Ciência não admite de bom grado a aparição miraculosa do primeiro casal humano. Diz Charles Lyell que “se a fonte original da espécie humana tivesse sido realmente dotada de faculdades intelectuais superiores de natureza perfectível, como a da sua posteridade; se a Ciência lhe tivesse sido inspirada, o progresso atingido seria simplesmente muito mais expressivo. No curso dos evos teria havido tempo de realizar conquistas inimagináveis e os mais diferentes caracteres teriam sido impressos nos utensílios que agora procuramos interpretar. Nos areais de Saint-Acheul, como na porção de leito do Mediterrâneo aflorada nas costas da Sardenha, ao contrário da mais grosseira cerâmica e dos sílex de feitura tão defeituosa e incompleta, que mal indiciam ao observador bisonho um esforço manual voluntário, encontraríamos esculturas superiores às obras-primas de Fídias e Praxiteles, caminhos de ferro e telégrafos nos quais os nossos engenheiros colheriam inestimáveis apontamentos; microscópios e telescópios aperfeiçoados como os não conhecemos na Europa e inúmeras outras provas, de perfeição artística e científica, que o nosso século XIX ainda não logrou testemunhar. Em vão esgotaríamos a imaginação para adivinhar a utilidade de relíquias que tais. Talvez maquinaria de locomoção aérea ou destinada a cálculos aritméticos, aparelhos desproporcionados às necessidades quiçá à concepção dos matemáticos vivos.” 

  Esta explicação física da origem das espécies não arrebata o ceptro das mãos do Governador do mundo. Já assinalamos acima a declaração de Darwin a favor do sentimento religioso e parece-nos que, sobre as consequências imediatas de qualquer doutrina, devemos reportar-nos antes à opinião do mestre que à dos discípulos. Charles Lyell emite os mesmos conceitos, citando a seguinte declaração do geólogo Asa Grey, em que este evidencia claramente que a doutrina da variação e da selecção natural não tende a destruir os alicerces da Teologia natural e que a hipótese da derivação das espécies em nada contraria qualquer dos sãos princípios da História Natural. 

  “Podemos imaginar que os acontecimentos e em geral as operações da Natureza ocorrem, simplesmente, em virtude de forças comunicadas desde o início e sem qualquer ulterior intervenção, ou podemos admitir tenha havido, de tempos a tempos e, somente de tempos a tempos, uma intervenção da Divindade. E podemos, enfim, supor ainda que todas as mudanças produzidas resultem da acção metódica e constante, mas, infinitamente variada, da causa inteligente e criadora. 

  “Os que pretendem, de um modo absoluto, que a origem de um indivíduo, tanto quanto a de uma espécie ou de um género, não se possa explicar senão por acto directo de uma causa criadora, podem, sem renunciar à teoria favorita, admitir a teoria da transmutação, que lhe não é incompatível. O conjunto e sucessão dos fenómenos naturais podem não ser mais do que a aplicação material de um plano preconcebido; e se essa sucessão de factos pode explicar-se pela transmutação, a perpétua adaptação do mundo orgânico a condições novas deixa, mais valioso que nunca, o argumento de um plano e, consequentemente, de um arquitecto.” 

  Parece-nos, com efeito, que a obstinação nada de mais tem a ganhar com esta hipótese do que com qualquer outra teoria natural. 

  Quanto à pecha de materialismo imputada a todas as modalidades da teoria transformista, já vimos mais acima que a teoria da gravitação e grande número de outras descobertas foram consideradas de subversivas da Religião. Mas, onde iríamos parar se houvéssemos de ouvir os lamentos de todos os teólogos sobressaltados? 

  Longe de possuir tendência materialista, esta hipótese da intermissão na Terra, em épocas geológicas sucessivas, primeiramente da vida, depois da sensação, do instinto e da inteligência dos mamíferos superiores convizinhos da racionalidade e, finalmente, da razão perfectível do próprio Homem, parece-nos, ao contrário, o desdobramento de um plano grandioso, apresentando-nos o quadro de predominância crescente do espírito sobre a matéria. 

  Temos sido assaz prolixos em encarar as relações do homem com os animais que o precederam, sem embargo da névoa de mistério que ainda as envolve. É que acreditamos, com Pascal; essas comparações sempre têm algum valor. 

  “É perigoso – dizia o autor de Pensamento – demonstrar ao homem o quanto ele se iguala aos animais, sem lhe mostrar ao mesmo tempo a sua grandeza. Perigoso, também, mostrar-lhe a sua grandeza, sem lhe fazer sentir a sua baixeza. Mais perigoso, ainda, é deixá-lo na ignorância de ambas.” 

  Ainda que o problema da antiguidade e a origem da espécie humana varie para o geólogo, para o arqueólogo e para o etnólogo, nem por isso deixa de se averiguar que a Humanidade procede de época muito mais remota do que se pode crer. Ainda que esse mesmo problema se definisse divergente para a Zoologia ou para a Teologia, não é menos provável, tampouco, que os nossos antepassados fossem inferiores a nós e que o progresso se manifestou na Humanidade tal como na escala de toda a Criação. Perguntamos, então, aos espíritos de boa fé: – em que, a crença na ancianidade do homem e, mesmo na sua origem simiesca, colide com a crença num absoluto? Que a vida tenha surgido na Terra, que se tenha desenvolvido mediante leis orgânicas e que, do vegetal ao homem, a criação antidiluviana não tenha formado senão uma unidade, em que pode esta hipótese destruir a acção divina? Aqui, como no que precede, a matéria não obedeceu às suas forças? E a vida dos seres não é uma força especial, regente de átomos, directora de todos os movimentos? Particularmente, na teoria da selecção natural, não é a força vital que dirige a marcha do mundo? Aqui, como por toda a parte, a matéria não é a escrava e a força a soberana? 

  Mesmo admitindo-se a mais alta influência dos meios na transformação dos órgãos, essa transformação não será, sempre, o efeito da vida e a vida regida pela inteligência e dotada de uma espécie de obediência activa à lei intelectual do progresso? 

  Abordando a tese da apropriação dos órgãos às funções que lhes incumbe executar, bem como da construção homogénea de cada espécie, dos dentes aos pés, segundo o seu papel no cenário do mundo, entramos nos domínios da destinação dos seres e das coisas. O nosso quarto livro objectivará este vasto problema. 

  Assim, em resumo, vimos de demonstrar que, seja do ponto de vista da circulação na matéria dos seres vivos, seja no da origem e da perpetuidade da vida, esta se constitui de uma Força única e central para cada ser, que dispõe a matéria organizável segundo um plano, do qual o indivíduo deve ser a expressão física. Nesta segunda, como na primeira parte, temos refutado todos os pontos dos nossos adversários. Eles já não sustentam a sua hipótese materialista e, com os seus exageros mais temerários, antes auxiliam a nossa tese, pois conceituando a matéria capaz de tudo fazer, mal se precatam que apenas substituem a ideia da força. Esperamos que esses inconsequentes negadores fiquem agora mais satisfeitos com este capítulo. E antes de passar ao seguinte, pedimos-lhes notar, para edificação de sua vaidadezinha, que os gregos e o próprio Arístoto lhes marchara à frente (*), visto que para eles as radicais força e vida eram sinónimos. O filósofo de Stagira já tinha sustentado que – “a alma é a causa eficiente e o princípio organizador do corpo vivo”. 

  Não vale a pena fazer tão grande alarde de ciência, para ficar abaixo dos Gregos. 

/… 
(*) Dos conceitos da harmonia das esferas dos gregos... à avaliação de Dominique Proust, astrofísico e organista... Adenda desta publicação.
(ii) Grandes homens contemporâneos não compartilham destas ideias e consideram a Humanidade como uma raça degenerada. Permitimo-nos citar aqui como exemplos, que o Sr. Cousin, com quem conversamos ao iniciar esta obra (1865), sustentava essa opinião e o Sr. de Lamartine (i), a quem propusemos a mesma questão quando corrigíamos estas provas (1867), encara as raças arianas como tendo sido superiores à sociedade actual. O problema ainda está longe de solução, mas a verdade é que nem por isso a característica do homem deixa de consistir na sua inteligência progressiva. 


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (III de III), 24º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

o grande desconhecido ~


A Morte de Deus e o Século XX 

Depois da Filosofia Existencial, nascida da angústia e da solidão do teólogo dinamarquês Kierkegaard, explodiu no mundo convalescente das primeiras explosões atómicas em Hiroshima e Nagasaki, a espantosa novidade da Morte de Deus. Imitando o louco do Nietzsche (i), teólogos jovens e de formação universitária, europeus e norte-americanos, fizeram o comunicado fúnebre ao público mundial: “Deus morreu!” Como ninguém foi convidado para o enterro, nem se efectuou nenhum registo funerário da ocorrência nos cartórios civis do mundo, acreditou-se que tudo não passava de uma alucinação. Mas os teólogos insistiram com uma série de livros transbordantes de erudição e cultura, o que perturbou os espíritos crentes em Deus. Para tranquilizar os assustados, os teólogos agoireiros obedeceram ao velho preceito: “Rei morto, Rei posto” e, colocaram Jesus de Nazaré (i), o Cristo, provisoriamente no Trono do Império Cósmico. “Agora – diziam os teólogos, na euforia de herdeiros ambiciosos perante o Cadáver Sagrado – agora temos de instalar o Cristianismo Ateu à espera de um Novo Deus que deve surgir.” 

Não se trata de uma brincadeira nem de galhofa, mas de coisa sumamente séria, pois, como diziam os nossos avós: “Com Deus não se brinca!” Mas os livros dos teólogos cortadores de mortalha não convenceram ninguém, a não ser a eles mesmos. É fácil compreender-se que houve um engano. O que havia morrido não era Deus, que não pode jamais ser enterrado no cemitério em ruínas dos deuses mitológicos. Quem na verdade estava a agonizar e, continua em lenta agonia, sustentada por milhões dos seus beneficiários do profissionalismo religioso, era a generosa sabidíssima senhora chamada Teologia. Essa pretensiosa dama de certezas absolutas e irrevogáveis estava em estado de coma, mas continua a resistir às tentativas impiedosas da morte. A maioria dos teólogos viu-se em dificuldades e apenas alguns aderiram à estranha ideia. Seria uma hecatombe mundial, ficarem todos eles órfãos e sem qualquer herança, pois só Deus lhes havia prometido a partilha do seu Reino. Jesus-Cristo, herdeiro directo e filho consanguíneo de Deus, não tomou conhecimento deste assunto e não assumiu o Trono do Universo. A situação tornou-se caótica e as brigas dos herdeiros acabaram reduzindo a espantosa novidade num bate-boca de neuróticos de guerra. Andam por aí os livros dos teólogos do complô deicista, lidos por eles mesmos e alguns curiosos retardatários, pois só eles entendem o que escreveram, se realmente entendem. São livros tecidos em teses de filigranas brilhantes e sofismas escorregadios, como as de Bizâncio na sua hora final. Dão-nos a impressão do jogo dos velórios da civilização utópica de Hermann Hesse, onde a face gelada de um lago alpino enregelava um teólogo de vez em quando. 

Não nos interessam essas lamentações de carpideira em torno de um hipotético cenotáfio (i), túmulo vazio construído no pós guerra, sobre terreno impuro de ossadas sem sepultura. Esta hora não é de morte, mas de ressurreição. Cumprindo a promessa do Cristo, o seu ensino puro ressuscita das criptas de envelhecidas catedrais e anuncia por toda a parte a nova Alvorada da Verdade. William Hamilton, Thomas Altizer, Paul Van Brune, Gabriel Vahamtaan e todo o bando necrófilo da Morte de Deus não conseguiram até agora dizer mais do que isto: que Deus morreu no nosso século e que esse é um episódio histórico. Mas onde estão as provas históricas dessa morte ideológica e alógica? Só o louco do Nietzsche (i), de quem eles herdaram a loucura, ouviu as pancadas soturnas do coveiro que abria a cova e, esse louco era uma ficção. Se os teólogos continuam a ensinar as suas teologias fanadas, os místicos a destilar os seus óleos sagrados, os sacerdotes a cobrar mais caro os seus sacramentos, o populacho a arrastar-se de joelhos nas velhas escadarias das igrejas, judeus e cristãos a manter os seus cultos por toda a parte, nem mesmo o Deus da Bíblia deixou de existir. Se não aconteceu a morte física de Deus e nem mesmo a morte metafísica, se na mente dos intelectuais e na fé popular Deus continua imperando, é claro que o bando necrófilo está a delirar. 

Mas esse episódio serve para ilustrar a esquizofrenia catatónica deste século estranho, em que vacilamos entre a paranóia e o sadismo, com furacões de obsessão individuais e colectivas a varrerem a face poluída do planeta. A todo o momento os vendavais arrancam os homens do chão e os atiram ao ar em cambalhotas alucinantes. Os espíritas, que conhecem o problema da obsessão e sabem que não são encenações do exorcismo, mas a lógica persuasiva da doutrinação evangélica o remédio certo e eficaz para este momento, precisam, mais do que nunca, firmar-se nas obras de Kardec para não serem também virados de pernas para o ar. Muitos já se deixaram levar pelas rajadas da invigilância, caindo no ridículo e chegando até mesmo à profanação da doutrina. Outros aceitaram e propagam, na teimosia característica da fascinação, obras e doutrinas absurdas, carregadas de malícia das trevas, ludibriando criaturas ingénuas com a falsa importância das suas posições em organismos doutrinários ou o falso brilho dos seus títulos universitários. Outros se aboletam na sua arrogância de pseudo-sábios, pretendendo superar a doutrina com livros encharcados pelo barro escuro das regiões umbralinas. É incrível como todas essas tolices empolgam pessoas desavisadas por toda a parte, formando os quistos de mistificação que minam o movimento doutrinário.

Se mesmo fora do campo doutrinário e, entre pessoas de inegável cultura e brilho intelectual, surgem loucuras como essa da Morte de Deus e da criação do Cristianismo Ateu, pode avaliar-se ao que estamos expostos no Espiritismo, onde só a advertência do Cristo: “Vigiai e orai,” poderá livrar-nos de quedas desastrosas. Mas não basta vigiar montado nas cavalgaduras da pretensão e da vaidade, porque o inimigo não ataca de frente, insinua-se subtil no nosso íntimo, excitando o vírus da vaidade e  infestando-nos por dentro. Desde então, pensamos com as ideias de outrem e aceitamos a sua colaboração, senão o seu Comando, com a ingenuidade dos defensores de Tróia que aceitaram o presente grego do cavalo de pau. Pedro capitulou, por medo, na hora do testemunho. Por vaidade, ignorância e interesses secundários muitos espíritas estão capitulando nesta hora decisiva. A nossa vigilância tem de ser interna, sobre nós mesmos, sobre a nossa fauna interior que o inimigo utiliza contra nós. Se os teólogos necrófilos aceitaram a sugestão da morte de Deus e caíram no ridículo, porque haveriam os espíritas de rejeitar a sugestão de deturpar os textos doutrinários para actualizá-los, prestando enorme serviço à doutrina? As sugestões das trevas são assim: falam-nos do dever para nos lançar na traição. Caímos facilmente porque não vigiamos e não oramos. O orgulho e a ambição substituem em nós as palavras humildes da recomendação do Mestre. E depois reclamamos dos Espíritos Superiores o auxílio que nos faltou na hora crucial, como se já não devêssemos estar há muito preparados para enfrentar essa hora.

Se os teólogos realmente compreendessem Deus e os Espíritas conhecessem de facto a sua doutrina, as entidades sombrias não encontrariam uma nesga de treva para se ocultarem nos seus corações iluminados pelo amor. Não somos traídos, traímo-nos. A traição não vem da malícia, brota da nossa mente transviada e do nosso coração orgulhoso. Se não compreendermos isso profundamente estaremos sempre expostos aos ventos malignos. A fidelidade ao bem tem um preço que pagamos aos poucos, nas moedinhas tilintantes do dia-a-dia, rejeitando os sopros da vaidade que tentam acender a fogueira do arrependimento. Um elogio discreto que nos agrada, uma palavra de estímulo que nos estufa, um gesto de cortesia que nos comove, um ingénuo cartão de saudações, um abraço de fingida gratidão são essas e muitas outras as moedas que não caem como o óbulo da viúva, mas como as moedas envenenadas dos cambistas. Ao som dessa música subtil cresce em nós a mandrágora do orgulho, a flor roxa e perigosa dos filtros mágicos. Acreditamos na nossa grandeza com euforia, para mais tarde cairmos na nossa insignificância com desespero.

Por que motivo Deus, se tivesse de morrer, haveria de escolher o Século XX da Era Cristã? Para morrer cristão, Ele que é o Senhor do Cristo? Por que razão os Espíritas haveriam de escolher o nosso século (XX)* para revisar e corrigir Kardec, justamente quando as Ciências, a Filosofia, a Religião e toda a Cultura Humana estão a comprovar o acerto absoluto de Kardec e seguindo o seu esquema de pesquisa numa realidade sempre vitoriosa? A resposta a essas duas perguntas é uma só: Porque é nas horas de entusiasmo, de vitória, de renovações em marcha, que estamos desprevenidos e confiantes em nós mesmos, certos de que tudo vai bem e de que – (este é o motivo da queda) – chegou o momento em que os nossos esforços serão reconhecidos e nos porão na fronte a coroa de louros que nos negaram. Não é a hora do Cristo nem a da Doutrina, mas a nossa hora, pessoal, que nos fascina.

Vejamos a triste figura desses teólogos, filósofos, historiadores da Cultura, exegetas da Palavra de Deus, que de repente, decepcionados com as atrocidades dos homens (que sempre foram atrozes) proclamam em orações brilhantes e livros falaciosos o absurdo da Morte de Deus, que não conseguem explicar nem justificar, por mais que escrevam. Charles Bent dá-nos uma informação valiosa: William Hamilton foi apresentado como uma espécie de Billy Graham da Morte de Deus. Numa de suas prédicas em São Paulo o famoso Billy, que empolga multidões, respondeu à pergunta de um assistente com a maior leviandade: “O Espiritismo é obra do Demónio.” A glória de Hamilton define-se neste episódio. Hamilton é o novo Billy. Não se precisa dizer mais nada. E Bent considera-o como sendo, talvez, o mais inteligível dos expositores do problema da Morte de Deus. Sobre o cadáver suposto de Deus os camelôs da hecatombe divina disputam a túnica do Cristo. É evidente o fogaréu de vaidade que arde na frágil carne dos homens. Se o Espiritismo, que cumpre a promessa do Consolador na Terra, é obra do Diabo, o que será essa obra de demagogia e sofisma que pretende renovar a concepção cristã de Deus na prática de Brutus, assassinando Deus pelas costas? 

Os homens enrolam-se nas suas próprias palavras, como as abelhas domésticas na barba do seu tratador. Os sofistas gregos provavam todas as contradições, mostrando que a verdade não passava de um jogo de palavras. Mas entre eles estava Sócrates, protegido pelo seu daemon, o seu espírito amigo, que de repente começou a perguntar aos sofistas: O que é isso? Todos os sofismas se esboroavam, como castelos de areia, quando Sócrates pedia a definição dos conceitos. Sim, porque ele descobrira que a verdade estava nos conceitos e não nas palavras. Quando Billy e Hamilton perguntarem a si mesmos o que estão a dizer, terão a verdade, mas enquanto continuarem a jogar com palavras perante as multidões de basbaques e fanáticos, não passarão de sofistas modernos que enganam a si mesmos e aos outros. O mal mais ameaçador da nossa civilização é o desenvolvimento excessivo da mente-oral. O abuso desse processo mental aviltou o mundo das palavras. Vem de longe esse mal, desde os judeus palradores que assustavam os romanos com as suas infindáveis querelas, o matraquear atordoante dos clérigos medievais, as trapaças doiradas dos bizantinos e a demagogia burguesa que produziu o Terror na França e se espalhou pelo mundo no papagaiar político e religioso que estourou em matanças inomináveis na boca de Hitler, Mussolini e as suas quintas-colunas genocidas. Depois das explosões atómicas de Nagasaki e Hiroshima e da escalada norte-americana no Vietname, não era de admirar o assassinato misterioso de Deus, pois quem odeia a Criação deve odiar também o Criador. 

No meio espírita os faladores fazem sucesso, como em toda a parte, pois os espíritas são criaturas humanas contagiadas, como toda a espécie, pelo mal verborrágico (i). Tem sido difícil convencer o povo ingénuo de que os grandes faladores não passam de mistificadores. Falam com atitudes teatrais, de olhos fechados para convencer os basbaques de que estão sendo inspirados por elevadas entidades espirituais, quando na verdade repetem palavrórios decorados ou simplesmente destrambelham os mecanismos repetitivos de sua mente-oral. 

Este é um problema grave num meio interessado numa doutrina lógica, profundamente conceitual, onde a insensatez palavresca funciona como tóxico mental, encobrindo e aviltando a Verdade. Precisamos de expositores doutrinários conscientes da sua responsabilidade e não apenas interessados em fascinar as massas. Não temos nem devemos ter tribunos eloquentes nas nossas assembleias, mas estudiosos (i) da doutrina que procurem transmitir os seus princípios racionais aos adeptos pouco acostumados a raciocinar. Não há lugar para sofistas num movimento que busca unicamente a Verdade, que não está nos sofismas e sim na limpidez dos conceitos. Também os espíritas se comprometem com o complô da Morte de Deus quando dão apoio e estímulo criminoso aos palradores inveterados. 

/… 
* Adenda desta publicação.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XVI – A Morte de Deus e o Século XX, 16º fragmento desta obra. 
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

agonia das religiões ~


~~ Rito e Palavra 

O formalismo das igrejas caracteriza-se principalmente pelos seus rituais. Mas todo o rito implica o uso da palavra. Trata-se de uma conjugação de dois sistemas complementares de comunicação. A eles se junta o instrumento, na explicação clássica da evolução humana. Foi graças ao rito e à palavra que o homem ascendeu do primata ao sábio. Mas, para dar mais alcance ao processo de comunicação, o homem teve de inventar o instrumento. O fogo, a fumaça, as penas de aves nas árvores, as estacas no chão foram os precursores de todos os meios de comunicação à distância de que hoje nos orgulhamos. Mas pouca gente sabe, além dos círculos restritos de especialistas, que os animais também se utilizam de ritos e até mesmo de palavras nos seus processos de comunicação. No tocante aos instrumentos, eles os trazem no próprio corpo, o que não impede que animais superiores se utilizem também de instrumentos naturais, como pedras e varas. Rémy Chauvin, biólogo e entomologista francês da actualidade, no seu livro Les Societés Animales, oferece-nos abundantes informações com este objecto. 

A teoria da evolução criadora, de Henri Bergson, propõe-nos a tese da infiltração do impulso vital na matéria em duas direcções: uma que leva ao desenvolvimento dos insectos sociais, outra que resulta no aparecimento das sociedades humanas. Chauvin chega mesmo a referir-se à civilização das abelhas, advertindo naturalmente que se trata de civilização de insectos e não humana. Ortega y Gasset discorda do uso do termo social para os insectos, mas Chauvin, que pesquisou o problema a fundo, não encontra explicação para o facto de não haverem os insectos sociais alcançado o plano do pensamento criador. Chega mesmo a supor que talvez em outro planeta o tenham feito. Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o orgulho humano, mas nem por isso deixa de ser significativo para os estudiosos da evolução humana na terra. Chauvin é director de pesquisas do Instituto de Altos Estudos de Paris. Menciono este dado a seu respeito para dizer da sua qualificação científica. 

O que nos é útil neste problema é verificar, através de dados científicos, que o formalismo religioso, como o social e o das chamadas sociedades ocultas não provêm de uma revelação divina, mas do impulso vital que, passando através das espécies animais, se projectou e desenvolveu no homem. O sacerdote que se paramenta para uma cerimónia religiosa, o maçom que veste os seus símbolos para uma sessão da loja, o universitário que enverga a sua beca para a formatura, todos, talvez não saibam que repetem processos antiquíssimos – evidentemente refinados pela tradição humana –, que procedem de ritos animais de milhões de anos antes da aparição do homem no planeta. Isso pode desapontar a nossa vaidade, mas servirá para nos lembrar a humildade. Não somos seres privilegiados na Terra. Somos os últimos rebentos de uma evolução multimilenar daquilo que, no Espiritismo, se chama princípio inteligente, o espírito que estrutura a matéria e através dela se desenvolve, despertando as suas potencialidades ocultas e fazendo-as passar de potência a acto, da possibilidade à realidade. 

Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais na Igreja e na Maçonaria, Helena Blavatsky explica a procedência agrária dos ritos principais das religiões e das ordens ocultas. Os estudos de James Frazer, François Berge, René Hubert e outros mostram a relação directa dos ritos humanos com os ritmos da Natureza: a sucessão dos dias e das noites, dos anos, das estações, das gerações. Esses ritmos naturais parecem reflectir-se nos mecanismos da vida em formação e da inteligência em desenvolvimento. O instinto de imitação produz os ídolos grotescos das tribos e mais tarde as imagens artísticas das igrejas, enriquecidos pela imaginação criadora. Pestalozzi tinha razão em dividir as religiões em duas: as animais e as sociais, que correspondem às primitivas e às civilizadas. Nas primeiras ainda imperam os instintos animais, nas segundas as forças centrípetas da aglutinação social, gerando o sócio-centrismo das culturas antigas. Todas essas religiões são de elaboração telúrica, ligadas aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mestre de Kardec, admitia uma religião superior, desligada dos elementos materiais, a que chamava apenas de Moralidade, para a não confundir com as anteriores. Essa, a religião espiritual que o seu discípulo iria formular, com base nas revelações dos espíritos. Nela, por ser espiritual, não há ritos nem mitos, nem sacerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de fé, pois a religião espiritual fundamenta-se na razão e liberta-se dos ritmos telúricos que impregnam a emotividade humana. Bergson aflorou o mesmo problema no seu estudo sobre as fontes naturais da moral e da religião. 

Passar do rito à palavra é rodar no mesmo círculo. Ambos pertencem ao campo da linguagem. Quando falamos de linguagem abrangemos todas as formas de expressão. Se perguntarmos como nasceu a linguagem, a resposta leva-nos à mesma origem do rito. A diferença é apenas de forma. Enquanto o rito pertence ao campo da mímica, da gesticulação e portanto das expressões por meio de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do som, da voz articulada. Por isso, a partir das pesquisas de Pavlov sobre psicologia animal e da formulação teórica de Watson sobre a psicologia do comportamento (Behaviorismo) predominou a tese da linguagem corporal, segundo a qual não falamos apenas com palavras, mas também com os movimentos do corpo. Não obstante, a palavra conserva o domínio da expressão do pensamento, tendo a mímica e a gesticulação como elementos acessórios de expressão. Não importa que a mímica ou a atitude de quem fala possa, não raro, modificar o própria sentido da palavra. No centro do processo de comunicação permanece a palavra como o seu elemento essencial. 

O problema da origem da palavra confunde-se com o da origem da mímica e do rito. Ao apontamos com o dedo um objecto estamos referindo-nos a ele. A palavra faz o mesmo: refere-se a um objecto. Surgiu, portanto, com o desenvolvimento da inteligência e a necessidade de comunicação. Cada palavra é um signo, um sinal, um gesto oral. Não apareceu milagrosamente na Terra, mas pelo esforço do homem na elaboração dos seus instrumentos de comunicação. 

As religiões formalistas dão à palavra um carácter divino e consideram os textos religiosos como a Palavra de Deus. Mas é evidente que Deus, o Ser Absoluto, não necessita dos meios relativos de comunicação de que necessitamos. No Espiritismo considera-se a linguagem dos seres superiores como apenas mental. Os espíritos falam por telepatia. A linguagem telepática é a do pensamento puro que costumamos traduzir em palavras. Por sinal que a palavra telepatia não quer dizer apenas transmissão mental de palavras, mas transmissão do pathus individual de cada um, dos seus pensamentos e das suas emoções, de todo o seu estado psíquico num dado momento. Bastaria isso para nos mostrar a riqueza da linguagem telepática. A palavra de Deus, ou seja, a sua forma de expressão, teria de ser ainda muito mais rica e complexa. 

Psicologicamente podemos figurar assim o mecanismo da palavra: temos uma sensação provocada por um estímulo exterior ou interior, essa sensação produz no nosso íntimo, na nossa afectividade, uma emoção e na nossa vontade uma volição, um impulso de expressá-la, que provoca na mente uma ideia daquilo que sentimos, um conceito que se traduz em um ou em vários sons articulados que constituem uma palavra. Se quisermos gravar essa palavra temos de recorrer às letras de um alfabeto. Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi traduzido em sons e depois em letras. – Como é que podemos aceitar que a palavra de Deus esteja num livro? Isso equivaleria a submeter Deus ao nosso condicionamento humano. 

Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é criadora, tem o poder de criar. Por isso se acredita que Deus criou o mundo pela palavra. Trata-se de uma alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exigem que aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é bela e podemos aceitá-la coma imagem. Deus disse: Faça-se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos isso à letra caímos no absurdo. Deus fala na nossa consciência e no nosso coração, mas não fala por palavras, nem em linguagem humana. Fala na sua linguagem divina, na sua linguagem de Deus. Podemos compreender isso? Sim, se dermos atenção à voz de Deus em nós, que nos fala por intuições, pressentimentos, emoções. Ele toca as nossas teclas internas e soamos como um piano. Mas quem poderia escrever o que Ele nos diz. Nós, propriamente, não o poderíamos fazer. 

Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenadas em cerimónias religiosas não compreendem isso. Esperam a voz de Deus como a de alguém que falasse através da linguagem humana. E, podem ouvir uma voz que lhes fala no silêncio, como ouvem milhões de pessoas diariamente. As pesquisas actuais da telepatia mostram que isso é possível e até mesmo natural. Podemos receber comunicações telepáticas de criaturas vivas e de criaturas que já morreram. Porém, se esperamos a voz de Deus como voz humana, certamente aceitaremos que Deus nos falou... E, esse é o perigo dos que procuram comunicar-se com Deus através de processos artificiais. Deus fala-nos naturalmente, quando estamos em condições de ouvir a sua voz. Mas, só ele sabe quando estamos nessas condições. Os que querem ouvir a voz de Deus a qualquer preço geralmente acabam pagando o alto preço do fanatismo ou da obsessão pela voz de um espírito inferior. Uma experiência de Deus que pode mandar-nos para o inferno das perturbações aqui mesmo, na Terra. 

Mas se estamos a pensar em Deus, dirá o leitor, como podemos ser assediados por vozes intrusas? Quando pensamos em Deus com pretensões descabidas, desejando ser melhores que os outros, separar-nos do rebanho dos impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus orgulhosos oravam no Templo e nas esquinas das ruas, julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus chamou-os de hipócritas, sepulcros caiados e cheios de podridão por dentro. Deus não faz acepção de pessoas. 

De nada valem os rituais pomposos que só nos lembram as épocas de falso esplendor dos homens que se diziam ungidos e coroados por Deus. De nada vale a leitura dos livros sagrados para nossa salvação pessoal, ajeitando-nos comodamente no carro particular dos eleitos. Deus não quer a fidelidade forçada dos filhos que ele criou para herança divina através das experiências da vida. O seu plano mostra-se evidente no espectáculo do mundo. Passam as gerações e as civilizações na roda das ilusões, mas Deus espera paciente por cada um de nós. Precisamos compreender que somos criaturas em evolução e que se Deus nos colocou no mundo não foi pelo pecado ingénuo de Adão e Eva, mas porque precisamos evoluir através das experiências da vida. Todos nós fomos feitos do mesmo barro, segundo a alegoria bíblica que o Espiritismo explica de maneira tão grandiosa e tão lógica. – Somos parte da obra de Deus e não fomos destinados à perdição, mas à salvação. Mas não é através de ritos e palavras que podemos livrar-nos dos nossos erros. Temos de acertar, de corrigir-nos. Deus espera-nos. 

Não devemos extraviar-nos nas ilusões da Terra, para não retardar a nossa evolução para Deus. Entre essas ilusões estão a da santidade fácil, a da hipocrisia que nos leva a considerar-nos melhores que a maioria, a da pretensão de podermos passar através de ritos e sacramentos ao mundo dos eleitos, a audácia de querermos ouvir a voz de Deus em particular, enquanto ela soa no mundo para todos ouvirem. O maior pecado é o da fuga à vida, às experiências que nos desafiam. Nascemos para viver a vida e precisamos vivê-la sem apego às coisas do mundo, mas sem rejeição ao mundo, que é obra de Deus. Esse equilíbrio difícil é o objectivo da nossa ginástica existencial. Jesus preferiu Zaqueu e Madalena aos doutores do Templo, não condenou a mulher adúltera nem a enviou aos juízes do Sinédrio, aconselhando-a apenas a afastar-se da vida desregrada. Não adianta procurarmos Deus em longas meditações, recusando o caminho que ele mesmo nos deu para irmos ao seu encontro: o da vida honesta e cheia de amor e compreensão para com todos os nossos companheiros de existência terrena. A Terra é a nave celeste que Deus nos deu para alcançarmos as muitas moradas da Casa do Pai. 

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões, Capítulo 12,  Rito e Palavra, 12º fragmento desta obra 
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)