Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 20 de março de 2015

Victor Hugo e o invisível ~

Actualidade Ontológica das Reminiscências Platónicas |

A filosofia de Victor Hugo, assente na preexistência das almas, leva-nos a pensar em Platão, que percebeu na antiguidade, com profunda percepção espiritual, esse mundo novo que aflora na consciência do Ser. Esse mundo interior que se apresenta imperativamente, sem respeitar o conhecimento clássico do homem propõe à filosofia uma das mais intrincadas perguntas: Existe no "tempo actual" do Ser "outro tempo" existencial? 

Todo o desenvolvimento da filosofia ocidental se produziu através de um "tempo único" do Ser, ou seja, de um tempo que vai do nascimento à morte. Aceitou-se que o homem é uma personalidade, mas vazia por dentro, e esta suposição anulou o que o Ser representa como entidade profunda, fazendo dela uma peça compacta e insensível. Esta concepção mecânica do homem causou até uma negação do que o subconsciente representa como abertura do Ser para o mundo exterior. Pois o reconhecimento do subconsciente significou sempre para a nova psicologia a prova de uma dupla natureza do Ser, de um mundo desconhecido cujas raízes se encontram numa provável natureza pré-ôntica da existência.

As reminiscências experimentadas por Platão, ou pelo homem em todos os tempos, são factos que evidenciam as diversas capas psíquicas que conformam o seu mundo interior. Ter, pois, reminiscências é como se o Ser estivesse situado num poço de fundo incomensurável. As emoções, sensações e ideias espontâneas que se registam no ar constituem aflorações misteriosas que, para alcançar uma explicação possível, obrigam a pensar em "reservas" subconscientes adquiridas não se sabe por que meios.

O chamado "mistério do homem" tem a sua principal base nesses estados psíquicos inexplicáveis. De facto, o mistério do homem surge do homem mesmo e não das suas enigmáticas origens biológicas. O mistério é uma presença que se opõe ao homem considerado como pura natureza, o que indicaria que é "algo" ainda indefinido e que se revela contra toda a "naturalidade" que queiram assinalar. No Ser existe um inconsciente misterioso, que paira sobre o consciente racional com o fim de libertá-lo das trevas do não ser. Deste modo, a existência pura se rebela contra a existência impura, ou seja, contra a que se compraz em soltar-se nos abismos do nada.

O conceito de um homem-máquina é um obstáculo para penetrar na natureza supranormal do Ser. Os fenómenos psíquicos que através do Homem se registam estão indicando que a inteligência normal não é toda a inteligência, senão que possui outras dimensões ou substratos que, como misteriosos relâmpagos se apresentam à "razão actual" do Ser para ampliá-la ao aparecer inesperadamente. A intuição, a inspiração, os estados místicos, são factos que não poderiam produzir-se se o homem fosse uma máquina ou uma só peça material. A materialidade do homem se opõe a toda a supranormalidade do Ser. Um homem-corpo só vive de acordo com os seus estados fisiológicos; nele não se produziriam fenómenos psíquicos de nenhuma ordem. O psiquismo, pois, não é de ordem nervosa; o psíquico se origina nas profundidades desconhecidas da personalidade, das quais Platão extraiu as suas célebres reminiscências ontológicas.

As reminiscências platónicas, tão célebres já no campo da filosofia, acentuam-se nos tempos modernos, o que daria uma ideia acerca de uma nova evolução da sensibilidade humana, da qual Victor Hugo foi genial expoente. Ou seja, o homem tem a transbordar os seus cinco sentidos para afirmar-se a si mesmo outra forma sensível com que captar o seu mundo interior e circundante. Pois bem, isso denotaria que o Ser verdadeiro está acima do Ser físico e que existe nele um ente extra-sensorial cuja existência transborda as limitações do tempo presente.

A filosofia do Ser se veria obrigada a reconhecer no homem uma essência que se vincula com uma natureza imaterial, que estabeleceria uma relação com o tempo passado, um tempo presente e um tempo futuro, ou seja, três tipos de "tempo" que gravitariam dinamicamente nas profundidades do Ser.

Destes três tempos emergiram os imperativos espirituais que fizeram ver a Platão o verdadeiro mundo da personalidade humana. Esta concepção do tempo nos levaria a reconhecer um tempo físico e um tempo metafísico. O Ser, desde a sua verdadeira natureza essencial, resultaria um constante devir efectuado através de um tempo mortal e outro imortal, o que relacionaria um processo dialéctico infinito. O homem pensa mas supõe que é um Ser limitado ao seu tempo individual. Ignora que nele existe um tempo espiritual que o faz independente de acidentes aniquiladores. O Ser sente como que uma distância, algo que regressa de outro Ser que já foi e nesta circunstância surge com ele "outra personalidade" que trata de circunstanciar-se com o seu presente, criando no seu mundo moral estados harmónicos ou contraditórios. O Ser se desdobra ao aparecer sob a influência de um ente que regressa de alguma parte, o que determina nele essa instabilidade moral tão frequente no mundo moderno.

Victor Hugo captou o seu Ser passado mediante a sua genial criação poética, mas o que o fez compreender melhor a sua natureza imortal e palingenésica foi o fenómeno mediúnico, cuja origem noumenal surge desse mesmo mundo onde subjazem as reminiscências espirituais percebidas por Platão.

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Actualidade Ontológica das Reminiscências Platónicas, 11º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

terça-feira, 10 de março de 2015

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VIII

Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações

   No seu ensino, os druidas não separavam a noção de imortalidade da noção das vidas sucessivas da alma. Com efeito, entre as grandes leis que regulam a evolução dos seres, nenhuma é mais importante, nem mais necessária para o homem conhecer – após a da sobrevivência da alma no seu envoltório fluídico – que a lei das reencarnações.

   A claridade que ela projecta sobre a estrada da vida dissipa as sombras, as contradições aparentes e revela o sentido profundo da existência. Ela traz a ordem e a harmonia ao lugar da desordem e da confusão.

   Como se explica que essa grande lei, que na realidade deveria ser a base e o cimento de todas as doutrinas espiritualistas, seja ainda ignorada pela maioria dos homens de nosso tempo? Não é ela a essência da tradição céltica inscrita no mais profundo da alma da nossa raça e consignada nas Tríades e nos cantos bárdicos?

   O Cristo, em suas duas encarnações conhecidas, a da Índia e a da Judéia, (i) sob esses nomes quase idênticos, Krishna e Cristo, não ensinou essa mesma doutrina tanto no Evangelho como no Bagavad-Gita? (ii)

   Toda a antiguidade foi iluminada por radiações dessa mesma lei pelos ensinos de Pitágoras, de Platão e aqueles da escola de Alexandria.

   Nos primeiros tempos do Cristianismo (ver meu livro O Problema do Ser e do Destino), homens como Orígenes, São Clemente e quase todos os padres gregos a professaram muito, e no século IV, São Jerónimo, secretário do Papa Dâmaso e autor da Vulgata, na sua controvérsia com Vigilantius, o gaulês, devia ainda reconhecer que ela era a crença da maioria dos cristãos do seu tempo.

   Mas o véu lançado depois, pelas Igrejas, sobre essa grande luz tornou-se uma obscuridade para tudo o que se relaciona com o problema do destino humano. Limitando, no círculo estreito de uma vida única, a passagem da alma sobre a Terra, será que Roma desejaria somente adaptar o seu ensino à compreensão medieval, isto é, ao grau de cultura dos povos ainda bárbaros? Ou teria ela, então, sonhado em assegurar o seu império, pela concepção de uma vida que terminasse num paraíso ou inferno eternos, dos quais ela afirmava deter as chaves? Os dois pontos de vista parecem admissíveis.

   Tais concepções geraram consequências funestas tanto para o génio civilizador como para o espírito religioso dos ocidentais, que elas deformaram no seu princípio e na sua própria existência. Como o fim verdadeiro da vida, isto é, o aperfeiçoamento da alma, a sua educação, a sua preparação para os graus mais altos da escala de ascensão, tenha ficado quase nulo na maioria dos casos, o plano geral da vida tornou-se alterado.

   Entre os crentes, a preocupação constante da salvação pessoal, o temor dos castigos sem-fim, paralisaram a iniciativa, extinguiram toda a independência do espírito, enfraqueceram o seu livre-arbítrio. Entre os outros, a impossibilidade de conciliar, no círculo de uma vida única, a variedade infinita das condições, das atitudes e dos caracteres humanos com a justiça de Deus, deu origem ao cepticismo, ao materialismo e à negação de todo o ideal elevado. Desse estado de coisas nós podemos, no momento, constatar à nossa volta os frutos amargos.

   Como ficar surpreendido, após tantos séculos de erro e de esquecimento, que a noite se tenha feito nos cérebros mais dotados! Não temos visto filósofos eminentes, cujas obras, os sistemas maravilhosamente combinados, se tornaram estéreis, porque lhes faltava a noção essencial, a chave de ouro de todos os problemas: a lei da evolução pelos renascimentos?

   O ser, diziam os druidas, se eleva do abismo da vida e sobe por etapas inumeráveis para a perfeição. Ele se encarna no seio das humanidades, nos mundos da matéria, que são muitas estações de sua longa peregrinação. Essa doutrina é confirmada, em muitos pontos, por todas as grandes religiões e pelas mais importantes filosofias antigas. Lê-se nas Tríades, segundo tradução de Ed. Williams, do original gaulês:

   19 – Três condições indispensáveis para se chegar à plenitude da ciência: transmigrar no “Abred” (a Terra), transmigrar no “Gwynfyd” (o Céu) e relembrar-se de todas as coisas passadas até no “Annoufn” (o Abismo).

   25 – Por três coisas o homem cai sob a necessidade do “Abred” (ou da transmigração): por ausência do esforço em direcção ao conhecimento, pelo desinteresse do bem e pela afeição ao mal. Em consequência dessas coisas ele desce ao “Abred” até ao seu análogo e recomeça o curso de suas transmigrações.

   26 – As três forças (fundamentos) da ciência: a transmigração completa para todas as situações dos seres; a lembrança de cada transmigração e de seus incidentes; o poder de passar de novo, quando se quiser, por um estado qualquer em vista da experiência e do julgamento. E isso será obtido no círculo de “Gwynfyd”.

   Os cantos bárdicos não são menos afirmativos. Nós citaremos somente o mais célebre, o de Taliésin, que data do século IV da nossa era, segundo a tradução gaélica do Barddas, cad. Goddeu:

   “Existindo desde remota antiguidade no seio de vastos oceanos, não sou nascido de um pai e de uma mãe, mas de formas elementares da natureza, dos ramos da bétula, do fruto dos frutos, das flores da montanha. Toquei a noite, adormeci na aurora; fui peixe no lago, águia nos cumes, lince na floresta. Depois, escolhido pelo “Gwyon” (espírito divino), pelo sábio dos sábios, adquiri a imortalidade. Passou-se muito tempo desde que fui pastor. Por muito tempo andei na terra antes de ser hábil na ciência. Enfim, brilhei entre os chefes superiores; vestido de hábitos sagrados, segurei a taça dos sacrifícios. Vivi em cem mundos, agitei-me em cem círculos.”

   Sublinhamos, de passagem, a analogia notável que aparece entre esse documento vindo de priscas eras e as descobertas recentes da ciência sobre as propriedades vitais da água do mar. O texto nos diz: “Existindo no seio de vastos oceanos, nasci de formas elementares da natureza”. Deve ler-se sobre esse assunto, na Revue de Biologie Appliquée, de 1926, as experiências realizadas no laboratório do Colégio de França, pelos Drs. L. Hallion e Carrion, estabelecendo que a vida animal surgiu no mar e os seus primeiros representantes tiveram a forma de células isoladas. Consultar igualmente a recente obra do Dr. Quinton intitulada L’eau de la Mer, Milieu Organique (Água do Mar, Meio Orgânico) que diz: “O reino animal é inteiramente de origem aquática, provavelmente de origem marítima.”

   Não há, no documento acima, uma série de testemunhos que concluem em favor da alta inspiração e do valor das doutrinas célticas, já que ensinavam, há 1500 anos ou mais, o que os nossos sábios somente agora acabam de descobrir?

   A literatura céltica relata numerosos casos de reencarnação. D’Arbois de Jubainville, que por longo tempo ocupou a cadeira de Celtismo, no Colégio de França, pôde escrever a propósito das tradições irlandesas: (iii)

   “É a fé nessa metamorfose universal dos homens que inspirou a crença nas metamorfoses de Tüan Mac Cairill e de Taliésin. Estes não são os únicos personagens cuja alma tenha, na Irlanda, revestido sucessivamente dois corpos de homem e que tenham nascido muitas vezes. Mongân, o rei de Ulster, no início do século VI, era idêntico ao célebre Find, morto dois séculos antes do nascimento de Mongân: a alma do ilustre falecido tinha voltado do país dos mortos para animar, neste mundo, um novo corpo.

   Assim, a sobrevivência da alma ao corpo e a possibilidade de a alma de um morto ter, de novo, um corpo neste mundo são crenças célticas.

   Há algum tempo os espíritos dos antepassados, julgando que a hora das grandes renovações é chegada, projectam com mais intensidade radiações dos seus pensamentos para o solo da França. Eis o que nos ditou o espírito Allan Kardec, em 25 de Novembro de 1925, por incorporação:

   “Desejaríamos inspirar os nossos homens políticos com o espírito da tradição céltica, de honestidade, a fim de que os homens novos possam chegar a regenerar o nosso país. Vemos claramente os pensamentos entrelaçados, como que formando uma mescla de cores múltiplas. As paixões dificultam a formação de pensamentos elevados. O materialismo é inerente a uma geração que não gozou, na sua vida pregressa, a não ser vis prazeres e que, no astral, permaneceu nas esferas de densidade muito grosseira. Ela voltou para a vida com os apetites mal satisfeitos.

   Pensei que devia haurir, na minha consciência profunda, a centelha da fé ardente, de luz pura, que me foi legada por minha existência céltica, para tentar lançar sobre certos homens um raio de luz inspiradora.

   Como temos a facilidade, no espaço, de rememorar as nossas vidas, quando estamos numa esfera de densidade média, nos agrupamos espiritualmente, do mesmo modo que, na nossa vida terrestre, as paixões e as aspirações se agrupam conforme as suas afinidades. Os grandes filósofos da antiguidade, os iniciados das velhas religiões nos ajudam, quando estão de volta ao espaço. Os ascetas, os budistas, são agentes poderosos para auxiliar a desagregar a matéria que pesa sobre os seres carnais de vossas regiões. Vós sabeis que alguns entre eles tinham um poder de irradiação muito grande.

   Os druidas deixaram na alma das gerações primitivas, que habitaram o vosso solo, uma centelha que ficou latente no fundo de cada consciência. Isto faz com que toda a esperança não esteja perdida para reavivar uma chama que adormece entre alguns de vós.

   Temos como missão agrupar os verdadeiros celtas que são a própria essência da França. Posso falar disso, pois que vivi na Bretagne, fui druida em Huelgoat. Mais tarde, por uma graça insigne, senti as forças emanadas do círculo superior e a minha fé se tornou viva e forte, ela me seguiu nas minhas existências ulteriores, até àquela em que vós me conhecestes.

   Fui recompensado, visto que as intuições sustentaram de modo suficiente a pequena chama interior e, lembrando-me das leis da vida universal, julguei dever disseminar a Doutrina que vós conheceis e que estava inscrita no fundo do meu superespírito!”

   Essa mensagem nos demonstra que o Espiritismo moderno, na realidade, não é mais do que um despertar do génio céltico que dormitava desde séculos e que reaparece, em todo o seu esplendor, sob formas apropriadas às necessidades da evolução humana.

   Aliás, ele se mostra semelhante, em muitos pontos, ao Cristianismo esotérico, porque as grandes verdades emanam todas de uma fonte única para se difundirem em matizes diversos, conforme os tempos e os meios, como os raios de luz do prisma.

/...
(i) Na obra A Caminho da Luz, Francisco C. Xavier, FEB, o autor espiritual, Emmanuel, dá a entender que Jesus só teve uma vida na Terra (capítulo I, p. 18 e capítulo XXIV, p. 210, 9ª edição). Ver também A Génese, Allan Kardec, capítulo XVII, pp. 45 e 58. (N.T.)
(ii) Ver meus livros Cristianismo e Espiritismo e O Problema do Ser e do Destino. Segundo o Bagavad-Gita (tradução de Emile Burnouf, C. Schlegel e Wilkins, Krishna assim se exprime: “Eu e vós temos tido vários nascimentos. Os meus são conhecidos apenas por mim, mas vós não conheceis os vossos. Ainda que eu não seja mais, por minha natureza, sujeito a nascer ou a morrer, todas as vezes que a virtude declina no mundo, e que o vício e a injustiça vencem, então eu me torno visível, e assim eu me apresento, de tempo em tempo, para a salvação do justo, o castigo do mau e o restabelecimento da virtude.”
(iii) Segundo Le Cycle Mythologique Irlandais et la Mythologie Celtique. Ver também Annales de Tigernach, de Whitley Stokes, com casos de reencarnação, e o Cours de Littérature Celtique, de d’Arbois de Jubainville.



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo VIII Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (1 de 5) 24º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

sábado, 21 de fevereiro de 2015

O peregrino sobre o mar de névoa ~


O Perigo das Religiões Primitivas

As práticas do Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro correspondem à mentalidade primitiva dos povos selvagens, mentalidade que Durkheim considerou como pré-lógica, anterior ao desenvolvimento da razão propriamente lógica, ou seja, não só discriminadora, mas também organizadora e classificadora da experiência natural do mundo. Essa mentalidade mítica, idólatra, nascida da experiência empírica não controlada pelos processos racionais, é determinada por impressões de uma realidade fantástica. É dela que surgem as visões deformadoras das coisas e dos seres. É dessa mentalidade que surgem as mitologias grotescas dos deuses indianos de muitos braços e pernas, a magia dos ritos e cerimónias até hoje residuais nas práticas religiosas da nossa cultura lógica. A mentalidade teológica e politeísta, que sucede à pré-lógica, é essencialmente sensorial e impressionista, gerando a concepção fantasiosa de um mundo de mistérios e superstições que caracterizam as civilizações agrárias e pastoris. Entre esse mundo e o nosso temos a distância entre a selva e a civilização, entre a imaginação e a realidade. O Sincretismo superpõe esses mundos contraditórios, misturando à força mundividências discrepantes e gerando desequilíbrios perigosos no comportamento do homem civilizado.

A convivência bastarda dessas duas mundividências ou concepções do mundo no plano sócio-cultural perturba o desenvolvimento da civilização e deforma o comportamento do homem racional. A razão é esmagada debaixo das patas do instinto, dando motivo aos surtos de bestialidade que rompem brutalmente o equilíbrio racional do homem e das colectividades, no pandemónio do arbítrio, da violência e das eclosões do sexualismo desvairado e criminoso das multidões místicas e delinquentes de Ortega y Gasset. A recente tragédia da seita Templo do Povo, de São Francisco da Califórnia, nas selvas da Guiana Inglesa, com o suicídio colectivo de mais de novecentas pessoas e a morte de mais de cem crianças, serve de exemplo recente das consequências desses desajustes. Nas vésperas do natal tivemos a repetição da matança dos inocentes em Belém de Judá, como advertência à nossa incúria. As tragédias deste século, incluindo as duas Conflagrações Mundiais, o desencadeamento do terror nazi-fascista, o domínio dos instintos selvagens nas nações africanas, a figura tragicómica de Idi Amim no Uganda, os bombardeios atómicos no Japão, a ameaça da bomba de neutrões, o impacto da pornografia europeia, a devassidão homossexual nas cúpulas governamentais de países altamente civilizados, como a Inglaterra, a explosão ridícula das teologias da Morte de Deus (imitando a Morte de Pan no mundo mitológico), a eclosão arrasadora da toxicomania e assim por diante, têm a sua origem nos desajustes de uma civilização em conflito com as suas raízes selvagens.

O Espiritismo surgiu, em meados do século passado, como um socorro espiritual a essa civilização, firmando o princípio da Razão sobre os resíduos mágicos do irracionalismo religioso dogmático, para reorientar a Civilização Cristã, mas o mundo preferiu a volta ao paganismo, na sua mais deslavada expressão. Nos países em que a mensagem espírita penetrou mais amplamente, como os latino-americanos, as raízes amargas da barbárie tentaram e tentam deformá-lo com os tóxicos do misticismo selvagem. A nossa luta tem de se desenvolver no sentido de mostrar ao povo os perigos dessa infiltração de bárbaros no Império da Cultura. Todo o espírita que se entrega às fascinações bastardas das religiões selvagens é um traidor da Civilização Cristã, desde o seu início atacada sem cessar pelos vândalos inconscientes. Não podemos combater as práticas sincréticas em si mesmas, pois elas correspondem à incultura da maioria, apegada ainda à placenta selvagem, mas podemos e temos de lutar pelo esclarecimento doutrinário, afastando dos terreiros de macumba os que julgam encontrar ali formas mais eficazes, porque mais fortes, de manifestações mediúnicas, como se o poder do espírito dependesse dos precários poderes da matéria. As criaturas arrastadas pela fascinação das práticas selvagens revelam a sua sintonia com o passado bárbaro e a sua incapacidade para ajustar-se à Civilização. Mas essa incapacidade é motivada pela incultura geral, pois todas as criaturas encarnadas nesta fase de transição evolutiva do planeta têm condições para superar a barbárie e integrar-se no meio civilizado. Todo o esforço deve ser feito pelos espíritas para manterem a integridade da Doutrina Espírita nesta fase crucial da nossa evolução. Estamos na hora da escolha: ou ficaremos no passado, apegados ao materialismo dos rituais, dos mitos e da voracidade carnal, ou buscaremos o espírito e o seu poder na espiritualidade pura que o Espiritismo nos oferece. Procuremos compreender claramente esse problema. Temos um exemplo histórico, na nossa própria história, da impossibilidade de mistura de graus evolutivos diferentes. Todo o esforço de catequese cristã dos jesuítas no nosso país fracassou por completo, ante o desnível cultural existente entre os padres, de um lado, e os indígenas e negros do outro lado. O livro do Padre Nóbrega, A Catequese do Gentio, constitui uma confissão dolorosa do fracasso dessa catequese. Nem mesmo os esforços de Anchieta, com as suas peças teatrais e a sua dedicação aos índios conseguiu superar as dificuldades do desnível cultural. Ele mesmo admitiu, com Nóbrega, que só a força e a violência poderiam sujeitar o gentio ao Cristo, o que negava a própria essência do Cristianismo.

Nos grupos sociais, que englobam clãs e famílias, as heranças individuais, as tradições, aspirações e instintos, bem como as características raciais em mistura formam o ser colectivo da visão spenceriana, com o seu psiquismo e mentalidade colectivos. Essas pequenas estruturas fundem-se no ser maior e mais complexo das sociedades, que a lei de inércia consolida. A dinâmica interna dessas estruturas gera o clima mental e emocional de um novo processo cultural, de uma nova cultura. As tendências gregárias reforçam o instinto de conservação e toda a interferência discrepante gera reacções de defesa do status quo. Numa civilização que já atingiu a sua maturidade possível e luta para superar-se, o repúdio ao retrocesso histórico-cultural torna-se uma constante irredutível, na busca da transcendência. Indivíduos e grupos que se oponham a essa tendência formam quistos negativos que resistem às forças evolutivas e desencadeiam atritos e conflitos. O isolamento desses quistos em si mesmos não os torna marginais mas transforma-os em focos de oposição interna. Esses focos tendem a negar as conquistas evolutivas da estrutura geral e levam a situações conflitivas e a explosões de desespero. Palmares, Canudos, entre nós, a minoria basca na Espanha, o IRA na Irlanda são exemplos desse processo. No desenvolvimento da Civilização Cristã temos o massacre impiedoso pela piedade cristã das seitas divergentes da estrutura geral. No processo actual do desenvolvimento da cultura espírita, que retoma os valores cristãos na sua originalidade, as forças discrepantes recorrem ao lastro do passado e reactivam o fermento velho de que trata o Evangelho, na reactivação dos processos mágicos das religiões primitivas, do paganismo mítico formalista, idólatra e supersticioso. Para superarmos essa fase perigosa temos de superar primeiro a nossa própria ignorância dessa realidade ameaçadora, firmando-nos nos princípios espíritas de rejeição ao mito, ao falso fazer da magia com os seus rituais e cerimoniais emotivos. Só a razão kardeciana, em que a verdade se comprova na investigação fenoménica, pode nos dar os elementos eficazes da libertação espiritual. Não se trata de apelo à Providência Divina, mas de tomada de consciência do momento em que vivemos. Todos os recursos igrejeiros a que se apegam os mestres improvisados de nada valem nesta fase em que só a consciência lúcida pode libertar o espírito do visco da matéria, segundo a imagem de Kardec, e do acúmulo milenar de superstições místicas e mágicas.

Dizia o Apóstolo Paulo aos seus discípulos que, em pequenos, eles se alimentavam de líquidos, mas, ao crescer, necessitavam de alimentos sólidos. A recomendação aplica-se aos espíritas actuais, que não querem largar o "mingau" da infância pelo "tutu" de feijão. O Espiritismo tem por finalidade libertar o espírito humano do visco da matéria, para que ele possa alçar o voo da transcendência. A Religião Espírita não comporta lamúrias e ladainhas, nem exige dos adeptos atitudes formais, voz modulada, gestos artificiais e estudados, olhares lânguidos e lágrimas ou carpideiras em velórios e funerais. As dores e angústias do mundo não são castigos do céu, mas provas necessárias ao desenvolvimento das potencialidades do espírito. Viver é lutar, como no verso de Gonçalves Dias. A luta da vida não se destina a angelizar as criaturas, mas a virilizar o espírito, predispondo-o para voos de águia e não para o esvoaçar das borboletas. A Angelitude, que é o quarto reino da natureza, nada tem a ver com anjinhos de procissão com asas de papel de seda. Da Humanidade temos de evoluir para a Angelitude, que é o plano imediatamente superior ao plano terreno, povoado de espíritos elevados em saber e moral, responsáveis por si mesmos e pelo desenvolvimento espiritual dos homens. O anjo espírita não tem asas. Não voa como um pássaro, pois levita no seu corpo espiritual. Os Anjos não constituem uma criação à parte na Natureza, onde tudo se encadeia. Os Anjos são homens que se tornaram mais fortes e viris, capazes de enfrentar as mais pesadas e difíceis tarefas da vida superior. Ninguém pense que chegará com rezas e humildade fingida ao plano dos Anjos. A virilidade angélica é de dignidade, coragem, moralidade e permanente disposição para o trabalho. A graça, como explicou Kardec, não é um privilégio concedido gratuitamente a alguém, em detrimento de outros. A graça, segundo Kardec, é a força que Deus concede ao homem de boa-vontade para vencer as suas imperfeições. Lutar e vencer são as duas espadas simbólicas das vitórias do espírito. O Espiritismo é o Consolador prometido por Jesus, mas o consolo espírita não é cantiga de embalar e sim conhecimento da razão e das finalidades da vida. Só o conhecimento real, o encontro com a verdade pode dar ao espírito a consolação necessária.

Na concepção espírita da vida a morte não é morte, é apenas passagem de um plano da vida para outro. A morte é a páscoa do espírito, que nela e através dela conquista a ressurreição. A palavra páscoa vem do hebraico. A Páscoa dos judeus foi a travessia do mar Vermelho, que os livrara da morte no Egipto. Jesus ressuscitou, como todos ressuscitamos, e a sua ressurreição transformou a páscoa judaica em páscoa cristã, mudando o sentido material da palavra em sentido espiritual. Não há morte para os espíritas, pois Deus não é deus de mortos, mas de vivos. Os que temem a morte não sabem que ela, como afirmou Richet, é a porta da vida.

A palavra eternidade foi substituída nos nossos dias pela palavra duração. Quem diz eternidade exprime um conceito estático, lembrando a pasmaceira de um céu de asilo para inválidos. Quem diz duração exprime um conceito dinâmico e vital. O tempo, como Galileu o definiu, pela mediunidade de Flammarion, é a sucessão das coisas no Infinito. Tudo é vida e movimento em todo o Universo. Tudo é luta e trabalho, construção incessante. Kardec lembrou que, se somos seres humanos, de natureza espiritual, temos também o ser do corpo, que mesmo na metamorfose da morte é vida e movimento. A concepção estática das coisas é uma ilusão sensorial. A Física actual abandonou a concepção material do Universo. Vivemos em espírito e pelo espírito, desde a pedra até ao anjo.

Ante essa abertura do mundo, que o Espiritismo nos apresentou muito antes da evolução da Física, o espírita é obrigado a sair da sacristia e fugir dos velórios para proclamar a continuidade da vida em todas as dimensões da realidade cósmica. Seria estranho e inexplicável se os espíritas, possuindo essa visão nova do mundo e da vida, resolvessem voltar aos terreiros de macumba. As religiões primitivas são formas superadas de interpretação do mundo. Serviram no seu tempo, conviviam com os bichos e não com as ideias. A religião verdadeira, segundo Pestalozzi, mestre de Kardec, é a Moralidade; não a moral social de regras e normas, mas a Moralidade, como processo de elevação espiritual do homem. Para evitar o religiosismo comum e banal, Kardec explicou que a Ciência e a Filosofia espíritas tinham consequências morais. Só no final de sua missão declarou que o Espiritismo é a Religião em Espírito e Verdade, anunciada pelo Cristo. Essa Religião Verdadeira não está nos templos, nas Igrejas, mas no coração do homem, na forma de uma lei fundamental da natureza humana – a Lei de Adoração –, que leva o homem a adorar a Deus no recesso de si mesmo, sem alardes nem fantasias. Se não pudermos compreender essa rotação de noventa graus no pensamento humano, o recurso é mergulharmos na leitura e estudo sistemático das obras de Kardec, meditando a sério sobre os seus ensinos. A razão kardeciana não tem a frieza do racionalismo científico, porque o Espiritismo é a síntese de todas as potencialidades ônticas do homem; Razão e Fé, intuição e pesquisa globalizante da doutrina.

A razão é considerada como um processo linear de captação da realidade sensível. Ela fragmenta e esmiúça a estrutura das coisas e dos seres, trocando em miúdos a sua inteireza global. As Ciências apegaram-se a esse processo de percepção quantitativa, considerando-o meio seguro para a obtenção da certeza. Com essa ambição de medidas exactas perderam a visão de conjunto. Era natural que assim acontecesse, em virtude da nossa confiança ingénua na percepção sensorial. Mas o reconhecimento da intuição como forma de percepção e captação imediatas da realidade, gerando o flash do insight, o processo racional da razão mostrou-se deficiente. No campo da percepção da forma na sua inteireza, descoberto pela Psicologia da Gestalt, verificou-se que a captação das estruturas globais nos oferece a totalidade do objecto, com os seus elementos de pregnância interna e de integração externa na realidade total. A nossa mundividência científica deu um salto da fragmentação para a globalização. A realidade misteriosa da forma (Gestalt em alemão) produziu a revolução copérnica da Psicologia da Percepção. Mas essa revolução já tinha os seus precedentes na pesquisa espírita da natureza humana, por Kardec, no plano da fenomenologia paranormal. Dessa maneira, as divergências entre as chamadas ciências da matéria e a ciência espírita derivavam do avanço da desprezada e malsinada ciência espírita sobre a arrogante e intransigente ciência oficial e académica. Hoje a Física atómica e nuclear está fazendo justiça a Kardec nas suas descobertas mais recentes. A visão gestáltica de toda a realidade como interacção constante de espírito e matéria, cabendo ao espírito a função essencial de aglutinação e estruturação da matéria em elementos formais, revela a necessidade de conjugação dos dois campos científicos.

Foi o que Rhine ressaltou na sua observação sobre as duas antropologias em que se dividiu a nossa concepção do homem, o que vale dizer da nossa self-conception. De um lado o conceito material do homem como animal e de outro o conceito psíquico-espiritual. A Parapsicologia e a Medicina Psicossomática eliminam actualmente essa dualidade, graças ao desenvolvimento nas ciências de uma mentalidade gestáltica. O Espiritismo resgata os seus direitos na cultura do século.

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José Herculano Pires, Ciência Espírita e as suas implicações terapêuticas, O Perigo das Religiões Primitivas, 19º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: O peregrino sobre o mar de névoa, pintura de Caspar David Friedrich)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

o grande desconhecido ~


O Espírito como Elemento da Natureza |

Os conceitos de naturalidade e normalidade decorrem das experiências da Cultura Empírica e subsistem na Cultura Científica como resíduos daquela fase primária. Esses resíduos emocionais foram alimentados ao longo de todo o processo religioso, por enquadrarem-se na concepção mágica e mística do Universo Misterioso, inacessível à compreensão humana normal. As Religiões ligaram estreitamente esses conceitos aos do sagrado e do profano e não tiveram condições para superá-los. O misticismo é uma forma de alienação, de fuga necessária do homem à dureza da realidade objectiva, onde as leis da estruturação sensorial agem de maneira inflexível. O místico é um desertor do real. O anseio de transcendência no homem, não esclarecido na sua motivação, leva-o a rejeitar o real e buscar o sucedâneo de uma suposta realidade, imaginada como refinamento do real-sensível. Surgem daí as categorias do espiritual e do material, que se mostram confusas na fase mitológica e posteriormente geram a divisão arbitrária e misteriosa das concepções teológicas. Os principais factores desse processo são:

a intuição da indestrutibilidade do ser;

o medo da morte como aniquilamento total;

o desejo de libertação do condicionamento material.

O ser é o que é e recusa-se a deixar de ser. Ele se reconhece como forma existencial subjectiva integrada na estrutura objectiva da realidade material, mas sabe por experiência empírica que esse condicionamento material é efémero e terá fatalmente de se desfazer na morte. O instinto de conservação leva-o a reagir contra essa fatalidade. As provas de sobrevivência dadas pelos fenómenos mediúnicos não o satisfazem, pois essa sobrevivência espiritual o desliga do sensível, a única que lhe parece natural. Ele se apega a essa realidade através de uma concepção mística indefinida, que lhe permite aceitar a possibilidade de uma continuidade natural após a morte. As múmias e os mausoléus egípcios, o paraíso sensorial dos árabes e os dogmas religiosos da ressurreição no próprio corpo carnal atestam essa esperança no próprio processo histórico. Há pessoas cultas, ainda hoje, que não conseguem conceber a sobrevivência humana após a morte em termos espirituais. Condicionaram a sua mente, de tal maneira, ao mundo tridimensional, assustadas com os delírios da cultura religiosa, que temem afastar-se da segurança sensorial da matéria. A concepção materialista do mundo, tão absurda como a concepção mística, nasce da frustração do ser ante o pandemónio das alucinações do fabulário religioso. Kardec teve de agir com prudência na divulgação do Espiritismo, para que a reacção violenta e fanática das religiões não asfixiasse no berço a nova mundividência que nascia das suas pesquisas mediúnicas. Mas no seu livro O Céu e o Inferno colocou o Cristianismo sincrético da igreja no banco dos réus e mostrou que a mitologia dos clérigos era mais absurda e mais cruel do que a do mundo clássico mitológico. A vida eterna oferecida pela Igreja depende de quinquilharias sagradas, de crendices simplórias, de condicionamento mental a um dogmatismo irracional, enquanto os mitos do paganismo se radicavam na realidade empírica, nas experiências naturais do homem no mundo e na lei universal da metamorfose, da incessante transformação das coisas e dos seres ao longo do tempo e do processo histórico racional. A indestrutibilidade do ser não se condicionava, no pensamento mitológico, às exigências de uma corporação religiosa artificial e autoritária, mas às condições visíveis e palpáveis da realidade natural. A simbologia mítica não criava a loja de bugigangas, não dependia de um comércio de contrabandistas nas fronteiras despoliciadas da morte, mas de representações emotivas da sensibilidade humana ante os mistérios do mundo ainda indevassável. A indestrutibilidade do ser, e portanto a sua imortalidade, decorria espontaneamente da indestrutibilidade do mundo, em que as coisas e os seres se transformam por lei natural, sem depender de bênçãos ou maldições sacramentais. Os deuses nasciam das águas e da terra, como nascem todas as coisas. Essa naturalidade do pensamento mitológico foi rejeitada pela cultura teológica, que fugiu do real para o irreal, do natural para o imaginário.

O medo da morte como destruição total do ser humano tinha no paganismo a compensação da continuidade da alma além das dimensões da matéria. Sócrates expôs bem esse problema ao defender-se no tribunal de Atenas. Segundo a apologia que Platão lhe dedicou, Sócrates considerou a morte como natural e até mesmo conveniente na idade em que se encontrava. Lembrou que os juízes que o condenaram também já estavam condenados e analisou as duas alternativas da morte: sobreviver a ela e encontrar os sábios do passado no plano espiritual, o que seria uma felicidade, ou não sobreviver e dissolver-se no todo, o que seria o descanso total. De nenhum modo a morte o preocupava. A lei humana que o condenara apenas apressava o cumprimento inevitável da lei natural a que todos estão sujeitos. Ele era médium vidente e audiente, consultava sempre o seu daimon ou espírito protector, conhecia o problema da sobrevivência espiritual, mas falava a homens que não tinham essa experiência e usava o raciocínio mais apropriado ao momento. Esse episódio nos mostra que o medo da morte não era tão angustiante entre os gregos pagãos, que encontravam no pensamento dos filósofos uma consolação racional que a Igreja Cristã jamais ofereceu aos seus adeptos, sempre aterrorizados com o julgamento final, a ira de Deus e as crueldades eternas a que estariam sujeitos se caíssem nas garras do Diabo. Entre os celtas, nas Gálias devastadas pela brutal conquista romana, os bardos cantavam nas tríades druídicas, a felicidade dos que sobreviviam após uma existência dedicada ao cumprimento dos deveres humanos. A morte não os assustava. Mas o terror cristão da morte, na era teológica de deformação do Cristianismo, revestiu a morte com todos os aparatos trágicos de uma civilização insegura e angustiada, semeando o terror na mente popular. A pressão excessiva dessa forma coercitiva de terrorismo mental. Como em todos os excessos, a pressão esmagadora gerou a revolta e a descrença, levando os cristãos a optar pela segunda alternativa de Sócrates: o materialismo inconsequente, mas pelo menos racional.

Era natural e inevitável. Só a volta à experiência empírica poderia sustar a evasão mística, reconduzir os homens ao bom-senso, às medidas controladoras do pensamento racional. O desejo de libertação do condicionamento material, provocado pelo êxtase místico, pelos delírios da imaginação excitada, tinha de chocar-se com a dúvida metódica de Descartes e logo mais com o cepticismo desolador e o materialismo árido. Era necessário esvaziar o mundo das alucinações teológicas para que o homem voltasse a pisar o chão, a apalpar a terra. Kardec assinalaria, mais tarde, que a finalidade do Espiritismo era transformar o mundo, afastando o homem do egoísmo e do materialismo. Mas isso porque, no seu tempo, a vitória da razão já se definia, através das conquistas científicas de três séculos, do XVI ao XVIII, preparando o século XIX para a Renascença Cristã através do Espiritismo. Nessa fase, tão próxima da nossa, urgia restabelecer no homem a fé em termos de razão, mostrar-lhe que a insensatez mística devia ser corrigida pela experiência não menos insensata do materialismo. Se a mística levara o homem a querer fugir das limitações corporais através de cilícios e isolamentos negativos, que o afastavam das experiências da relação humana, o materialismo o levava a agarrar-se ao corpo, perdendo a visão espiritual da sua realidade subjectiva. A grande tarefa do Espiritismo se definia com clareza: era conter a emoção e a imaginação, ligar a fé à razão, unificar o psiquismo humano nos quadros da realidade terrena.

Era o que Jesus havia feito na Palestina, combatendo os excessos do misticismo judeu e as misérias do materialismo saduceu. O Espiritismo dava continuidade, quase dois mil anos depois, ao pensamento cristão desfigurado pelo sincretismo religioso dos clérigos ambiciosos, que não vacilavam em trocar o Reino de Deus pelos reinos da Terra. Kardec podia então proclamar a verdade simples que não havia sido aceite, por falta de condições culturais válidas: o espírito não era sobrenatural, mas natural, o parceiro da matéria na constituição de uma realidade única, a realidade espiritual e material do mundo e do homem. A conclusão de Kardec é límpida e simples: os espíritos são uma das forças da Natureza. Sem compreendermos isso não poderemos compreender o Espiritismo. Espírito e matéria são os elementos constitutivos de toda a realidade. Esses elementos são dimensionais, constituem dimensões diversas da realidade única. Não podemos dividi-los em natural e sobrenatural, pois ambos se fundem na unidade real da Natureza, como a Ciência actual o demonstra, sem ainda compreender as suas conexões profundas e subtis.

Léon Denis, discípulo e continuador de Kardec, considerou o Espiritismo como a síntese conceptual de toda a realidade. O mistério da Trindade, que se manifesta em forma mitológica ou mística em todas as grandes religiões do mundo, define-se na racionalidade espírita nos termos da explicação kardeciana:

Deus
Espírito
Matéria

Deus é a Inteligência Suprema, a Consciência Cósmica de que tudo deriva e que a tudo controla. Só Ele é sobrenatural, pois sobrepõe-se a toda a Natureza. É a Unidade Solitária da concepção pitagórica, que paira no Inefável. Esse é o seu aspecto transcendente. Mas Pitágoras nos fala de um estremecimento da Unidade que desencadeou a Década, gerando o Universo. E temos, assim, o aspecto imanente de Deus, que se projecta na sua criação e a ela se liga, fazendo-se espontaneamente a sua alma e a sua lei: Dessa maneira, o próprio Sobrenatural se torna Natural. A consciência Cósmica impregna o Cosmos e imprime-lhe o esquema infinito dos seus desígnios. Leibniz desenvolveu a teoria da mónada para explicar filosoficamente o processo da criação. As mónadas seriam partículas infinitesimais do pensamento divino que, como as sementes, trazem em si mesmas o plano secreto daquilo que vai ser criado. Da dinâmica das mónadas invisíveis aos nossos olhos formam-se os reinos naturais:

Mineral
Vegetal
Animal
Hominal
Espiritual.

Esse processo criador é explicado por Kardecsob orientação do Espírito de Verdade, como um desenvolvimento incessante das potencialidades monádicas, num fluxo evolutivo que sobe sem cessar dos reinos inferiores aos reinos superiores. Léon Denis explica esse fluxo numa expressão poética: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem. Deus, a Lei Suprema, controla todo esse processo nos seus mínimos detalhes. A alma é a mónada, princípio individualizador que se caracteriza como princípio inteligente n’O Livro dos Espíritos. É assim que o espírito estrutura a matéria dispersa no espaço infinito. As hipóteses científicas do Universo Finito decorrem da incapacidade da Ciência para abranger a infinitude cósmica. Kardec adverte que, por mais que ampliemos os limites supostos do Universo, sempre haverá na nossa imaginação uma infinita continuidade do espaço cósmico. A consideração científica dos limites é puramente metodológica, determinada pela necessidade de ordenação na nossa mente. A própria Criação é infinita, incessante. Gustave Geley, metapsiquista francês, considera a mónada como um dínamo-psiquismo-inconsciente que dirige a constante metamorfose das coisas em seres, até chegar ao homem, que por sua vez, tomando consciência do seu destino, se transforma em anjo, integrando o reino espiritual da Angelitude, dos espíritos superiores.

Nessa cosmogonia dinâmica vemos que nada escapa do plano natural. Os espíritos nascem das entranhas da matéria, inseridos nela e nela se metamorfoseando. Os filósofos existenciais do nosso tempo referendam nas suas teorias essa concepção naturalista do espírito. Pois o que é o espírito senão a própria criatura humana? A morte nos mostra que o corpo perece, mas o espírito não. Ensinava o Padre Vieira: Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma. A Filosofia Existencial proclama: A existência é subjectividade pura. E a existência, no caso, é o espírito, que faz do homem um existente, um ser que existe, sabe que é e por que existe e busca a sua transcendência. A Vida é comum a todas as coisas e todos os seres, mas a Existência é a condição específica do homem, que não se limita a viver, mas luta por transcender-se. Nessa transcendência o homem passa da humanitude (do reino hominal) para a Angelitude (o reino espiritual). Sendo o espírito a nossa própria essência, o que somos realmente, com toda a nossa personalidade, é evidente que o espírito não é sobrenatural, mas natural, um elemento vivo e dinâmico da Natureza. Quando tomamos consciência dessa concepção espírita do mundo e do homem, a realidade se impõe à nossa mente, afugentando as confusas e incongruentes fabulações teológicas.

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José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, 2 – O Espírito como Elemento da Natureza, 3º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, pintura em acrílico de Costa Brites)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – O Céu ~

               A contemplação da Natureza oferece ao homem culto, sem lugar a contestação, inefáveis, particulares encantos. Na organização dos seres descobre-se o incessante movimento dos átomos que os compõem, tanto quanto a permuta constante e operante entre todas as coisas.

   Justa é a nossa admiração por tudo o que vive na superfície da Terra. O mesmo calor solar, que mantém no estado líquido a água dos rios e dos mares, conduz a seiva à fronde das árvores e faz pulsar o coração dos abutres e das pombas. A luz que espalha a viço nos prados e nutre as plantas com um sopro impalpável também povoa a atmosfera de maravilhosas belezas aéreas. O som que estremece a folhagem canta na orla dos bosques, ruge nas plagas marinhas. Em tudo vemos, enfim, uma correlação de forças físicas, que abrange num mesmo sistema a totalidade da vida sob a comunhão das mesmas leis. Ora, quanto mais fervente for a nossa admiração pelo esplendor da vida planetária, mais extensiva e aplicável se tornará, em relação aos mundos que aí fulguram acima de nossas cabeças, no cenáculo das noites silenciosas. Esses mundos longínquos que, como o nosso, se embalam no mesmo éter, sob o império das mesmas energias e das mesmas leis, são igualmente sedes de actividade e vida. Poderíamos apresentar este grandioso e magnífico espectáculo da vida universal como eloquente testemunho da inteligência, sabedoria e omnipotência da causa anónima, que houve por bem reverberar, dos primórdios da Criação, o seu mágico esplendor no espelho da Natureza criada. Mas, não é sob este prisma que desejamos aqui desdobrar o panorama das grandezas celestes. Apenas, para o teatro das leis que regem o nosso mundo, queremos convocar os negadores da inteligência criadora.

   Se, abrindo os olhos diante desse espectáculo, eles persistirem na sua negativa, já não teremos como nos eximir de responder-lhes, em consciência, que também duvidaremos de suas faculdades mentais. Porque, para falar com franqueza, a inteligência do Criador parece-nos infinitamente mais curta e incontestável que a dos ateus franceses e estrangeiros.

   E, como o método positivo consiste em não julgar antes de observar os factos, temos o dever de examinar primeiro os factos astronómicos de que falamos e depois da interpretação com que se satisfazem os nossos antagonistas. Se, depois disso, essa sua interpretação satisfizer, subscreveremos de antemão as suas doutrinas; mas, se, ao contrário, se revelar insensata, temos, como dever de honra e por amor à verdade, de a desmascarar e entregar ao apupo da plateia.

   Esqueçamos por momentos o átomo terrestre, no qual o destino nos fixou por alguns dias. Que o nosso espírito se lance ao espaço e veja rolar diante de si o mecanismo gigantesco – mundos e mundos, sistemas após sistemas, na infinita sucessão de universos estrelados. Ouçamos, com Pitágoras, as harmonias siderais nas amplas e céleres revoluções das esferas e contemplemos, na sua realidade, esses movimentos simultaneamente vertiginosos e regulares que enfeudam as terras celestes nas suas órbitas ideais. Observamos que a Lei suprema, universal, dirige esses mundos. Em torno do nosso sol, centro, foco luminoso, eléctrico, calorífico do sistema planetário, giram os planetas obedientes. Os mais extraordinários labores do espírito humano deram-nos a fórmula da lei, que se divide em três pontos fundamentais, conhecidos em Astronomia por leis de Kepler, laborioso sábio que a descobriu graças ao seu génio, como à sua paciência, e que discutiu opiniaticamente, 17 anos, as observações do seu mestre Tycho-Braheantes que distinguisse sob o véu da matéria a força que a rege.

   Esses três pontos são:

   1º – Cada planeta descreve em torno do Sol uma órbita elíptica, na qual o centro do Sol ocupa sempre um dos focos.

   2º – As áreas (ou superfícies) descritas pelo raio vector (*) de um planeta em volta do foco solar são proporcionais aos tempos que levam a descrevê-las.

   3º – Os quadrados dos tempos de revolução planetária, em torno do Sol, são proporcionais aos cubos dos grandes eixos orbitários.

   (*) Assim se denomina a linha ideal que liga um planeta ao Sol.

   A síntese dessas leis integra o grande axioma que Newton foi o primeiro a formular na sua obra imortal sobre os Princípios.

   Nesse livro, ensina-nos ele – como bem adverte Herschel – que todos os movimentos celestes são consequências da lei, isto é: – que duas moléculas materiais se atraem na razão directa do volume de suas massas e na inversa do quadrado das distâncias. Partindo deste princípio, ele explica como a atracção exercida entre as grandes massas esféricas, componentes do nosso sistema, é regulada por uma lei cuja expressão é exactamente idêntica, como os movimentos elípticos dos planetas em volta do Sol e dos satélites à volta dos planetas, tal como os determinou Képler, se deduzem consequentes necessários da mesma lei, e como as próprias órbitas dos cometas não são mais que casos particulares dos movimentos planetários. Passando em seguida às aplicações difíceis, faz-nos ver como as desigualdades tão complicadas do movimento lunar se prendem à acção perturbadora do Sol, assim como se originam as marés da desigualdade de atracção que esses dois astros exercem sobre a Terra e o oceano que a rodeia. E demonstra-nos, enfim, como também a precessão dos equinócios não passa de consequência necessária da mesma lei.

   Pois é à execução dessas leis que está confiada a harmonia do sistema planetário; é a elas que os mundos devem os seus anos, as suas estações, os seus dias; é nelas que haurem a luz e o calor distribuídos em diversos graus pela fonte cintilante; é delas que derivam a eclosão da vida, a forma e ornamento dos corpos celestes. Sob a acção incoercível dessas forças colossais, os mundos se transportam no espaço com a rapidez do relâmpago e percorrem centenas de mil léguas por dia, sem parar, seguindo estritamente a rota certa e previamente traçada por essas mesmas forças.

   Se nos fosse dado libertar-nos um momento das aparências, sob cujo império nos acreditamos em repouso no centro do Universo, e se pudéramos abranger num olhar de conjunto os movimentos que animam todas as esferas, haveríamos de ficar surpreendidos com a imponência desses movimentos. Aos nossos olhos maravilhados, enormíssimos globos turbilhonariam rápidos sobre si mesmos, projectados no vácuo a toda a velocidade, quais gigantescas balas que uma força de projecção inimaginável houvesse enviado ao infinito. Admiramo-nos desses comboios ferroviários que devoram distâncias como dragões flamantes e, no entanto, os globos celestes mais volumosos que a nossa Terra deslocam-se com uma rapidez que ultrapassa a das locomotivas tanto quanto a destas ultrapassa a das tartarugas. A terra que habitamos, por exemplo, percorre o espaço com a velocidade de seiscentos e cinquenta mil léguas por dia. Rodeando esses mundos, veríamos satélites em circulação e a distâncias diferentes, mas adstritos e submissos às mesmas leis. E todas essas repúblicas flutuantes inclinam os pólos alternativamente para o calor e para a luz, a gravitarem sobre o próprio eixo, apresentando, cada manhã, os diferentes pontos de sua superfície ao beijo do astro-rei. Tiram, assim, da combinação mesma dos seus movimentos, a renovação da beleza e da juventude; renovam a fecundidade no ciclo das primaveras, dos estios, dos outonos e dos invernos; coroam de frondes as montanhas onde o vento suspira; reflectem no espelho dos lagos a magia de suas paisagens; envolvem-se, às vezes, na lanugem atmosférica, fazendo dela um manto protector, ou transformando-a em cadinho retumbante de raios e granizos; desdobram por superfícies imensas a força das ondas oceânicas, que, também por si, se alteiam sob a atracção dos astros, qual seio ofegante; iluminam crepúsculos com os matizes policrómicos dos ocasos comburentes e fremem nos seus pólos às palpitações eléctricas despedidas dos leques de boreais auroras; geram, embalam e nutrem a multidão de seres que as povoam; e renovam o filão da vida desde as plantas fósseis, do passado, até ao homem que pensa e sonda o futuro. Todos esses mundos, todas essas moradas do espaço, departamentos da vida, nos apareceriam quais naves bussoladas, conduzindo através do oceano celeste tripulantes que não têm a temer escolhos nem imperícias de comando, nem falta de combustível, nem fome, nem tempestades.

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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II – O Céu 1 de 3, 11º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Diálogos de Kardec ~

O Perispírito como princípio das manifestações ~

Os Espíritos, como já foi dito, têm um corpo fluídico, a que se dá o nome de perispírito. A sua substância é haurida do fluido universal ou cósmico, que o forma e alimenta, como o ar forma e alimenta o corpo material do homem. O perispírito é mais ou menos etéreo, conforme os mundos e o grau de depuração do Espírito. Nos mundos e nos Espíritos inferiores, ele é de natureza mais grosseira e se aproxima muito da matéria bruta.

Durante a encarnação, o Espírito conserva o seu perispírito, sendo-lhe o corpo apenas um segundo envoltório mais grosseiro, mais resistente, apropriado aos fenómenos a que tem de prestar-se e do qual o Espírito se despoja por ocasião da morte. O perispírito serve de intermediário ao Espírito e ao corpo. É o órgão de transmissão de todas as sensações. Relativamente às que vêm do exterior, pode dizer-se que o corpo recebe a impressão; o perispírito a transmite e o Espírito, que é o ser sensível e inteligente, a recebe. Quando o acto é de iniciativa do Espírito, pode dizer-se que o Espírito quer, o perispírito transmite e o corpo executa.

O perispírito não se acha encerrado nos limites do corpo, como numa caixa. Pela sua natureza fluídica, ele é expansível, irradia para o exterior e forma, em torno do corpo, uma espécie de atmosfera que o pensamento e a força da vontade podem dilatar mais ou menos. Daí se segue que pessoas há que, sem estarem em contacto corporal, podem achar-se em contacto pelos seus perispíritos e permutar a seu mau grado impressões e, algumas vezes, pensamentos, por meio da intuição.

Sendo um dos elementos constitutivos do homem, o perispírito desempenha importante papel em todos os fenómenos psicológicos e, até certo ponto, nos fenómenos fisiológicos e patológicos. Quando as ciências médicas tiverem na devida conta o elemento espiritual na economia do ser, terão dado um grande passo e horizontes inteiramente novos se lhes patentearão. As causas de muitas doenças serão a esse tempo descobertas e encontrados poderosos meios de as combater.

Por meio do perispírito é que os Espíritos actuam sobre a matéria inerte e produzem os diversos fenómenos mediúnicos. A sua natureza etérea não é que a isso obstaria, pois se sabe que os mais poderosos motores se nos deparam nos fluidos mais rarefeitos e nos mais imponderáveis. Não há, pois, motivo de espanto quando, com essa alavanca, os Espíritos produzem certos efeitos físicos, tais como pancadas e ruídos de toda a espécie, levantamento, transporte ou lançamento de objectos. Para se explicarem esses factos, não há porque recorrer ao maravilhoso, nem ao sobrenatural.

Actuando sobre a matéria, podem os Espíritos manifestar-se de muitas maneiras diferentes: por efeitos físicos, quais os ruídos e a movimentação de objectos; pela transmissão do pensamento, pela visão, pela audição, pela palavra, pelo tacto, pela escrita, pelo desenho, pela música, etc. Numa palavra, por todos os meios que sirvam a pô-los em comunicação com os homens.

Podem ser espontâneas ou provocadas as manifestações dos Espíritos. As primeiras dão-se inopinadamente e de improviso. Produzem-se, muitas vezes, entre pessoas de todo estranhas às ideias espíritas. Nalguns casos e sob o império de certas circunstâncias, pode a vontade provocar as manifestações, sob a influência de pessoas dotadas, para tal efeito, de faculdades especiais.

As manifestações espontâneas sempre se produziram, em todas as épocas e em todos os lugares. Sem dúvida,  já na antiguidade se conhecia o meio de as provocar; mas, esse meio constituía privilégio de certas castas que somente a raros iniciados o revelavam, sob condições rigorosas, escondendo-o ao vulgo, a fim de o dominar pelo prestígio de um poder oculto. Ele, contudo, se perpetuou, através das idades até aos nossos dias, entre alguns indivíduos, mas quase sempre desfigurado pela superstição, ou de mistura com as práticas ridículas da magia, o que contribuiu para o desacreditar. Nada mais fora até então senão o germen lançado aqui e ali. A Providência reservara para a nossa época o conhecimento completo e a vulgarização desses fenómenos, para os expurgar das ligas impuras e torná-los úteis ao melhoramento da Humanidade, madura agora para os compreender e lhes tirar as consequências.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, I – O Perispírito como princípio das manifestações, 10º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

O Espiritismo na Arte ~


Nona lição de O Esteta

– A música e a transmissão do pensamento artístico
– Perispírito, receptor das ondas musicais

|10 de Fevereiro de 1922|

“Hoje falaremos sobre a música do espaço, considerada como meio de transmissão do pensamento artístico. Sei que um outro espírito, mais perto de vós (i), já tentou fazer-vos compreender a forma como as ondas, que chamais de musicais, são criadas e depois transmitidas através do espaço, para chegarem aos diferentes mundos. Já vos disseram que o que chamais de sonoridades para nós é comparável às cores que, transportadas em moléculas fluídicas, percorrem os campos vibratórios e vão comunicar aos seres impressões semelhantes àquelas que os vossos ouvidos percebem quando ouvis uma gama de sons harmonizados neste ou naquele grau de vibrações.

(i) Trata-se do Espírito Massenet, do qual publicaremos as lições mais adiante, nos tópicos especialmente dedicados à música (Nota do Autor; as suas notas sequentes conterão apenas as iniciais N.A.)

Na Terra, quando uma nota é tocada, se ela provém do tom maior, essa nota transmite-vos uma sensação de alegria plena e irrestrita. Se ela é em tom menor, ao contrário, o vosso cérebro receberá uma sensação de profundidade, algumas vezes de tristeza ou de grande dor, de acordo com a modulação dos acordes e o número de notas tocadas.

Portanto, a esses dois grandes princípios, maior e menor, correspondem duas sensações: a alegria e a dor. Entre essas notas, tendes uma infinidade de combinações que, por isso mesmo, formarão imagens. Assim como o escultor forma uma imagem virtual, o grupo de notas, os acordes, conforme sejam moduladas em tom maior ou menor, formarão pelo seu estilo uma série de pensamentos, que se tornam mais ou menos compreensíveis, segundo a evolução dos modos (ii) da música. Eis aqui um ponto estabelecido: as artes plásticas formam imagens e a arte das ondas musicais forma, igualmente, imagem, mas uma imagem mais subtil, da qual o teor é mais frágil e a compreensão mais delicada. Segundo o grau de evolução dos seres, essa compreensão será mais ou menos profunda. É por isso que muitas vezes, na vossa Terra, um ser de uma cultura média será impressionado, enquanto que o seu cérebro ficará refractário quando ele quiser servir-se do alfabeto para exprimir os seus pensamentos por meio de ondas que qualificais de musicais.

(ii) Modo: (em música) maneira como se dispõem os intervalos de tom e meio-tom numa escala; padrão rítmico constante numa composição (N.T.)

No espaço, como sabeis, não temos instrumentos, são os nossos perispíritos que recebem as ondas transmissoras do pensamento musical. Também será preciso impregnar directamente os seres que devem receber ondas dessa natureza. Como os outros artistas, o espírito evoluído no sentido musical, e que pode experimentar sensações infinitamente suaves e subtis, também pode transmiti-las com a ajuda dos vossos instrumentos e por intermédio do cérebro de um dos vossos executantes.

A matéria, para ser posta em movimento pelas ondas fluídicas, necessita de um intermediário, que será o vosso cérebro, o qual, em decorrência, age como um pólo atractivo e uma placa sensível, de onde partem todas as irradiações que emanam dos fluidos.

Os vossos grandes músicos podem, como os outros artistas, receber a inspiração, seja do espaço, seja como resultado de trabalhos anteriores. É exactamente o mesmo fenómeno que se produz com os outros artistas.

No espaço os nossos meios são muito mais rápidos que os vossos; não temos necessidade de instrumentos para trocar pensamentos, e a nossa música é toda de impressões, agindo directamente sobre a parte mais sensível do nosso ser fluídico, aquela que contém, em diversos graus, a centelha divina e que, entre vós, é representada pelo órgão do coração.

As outras artes reflectem-se por imagens esculturais ou pictóricas, que são as formas de transmissão de pensamento e, para nós, substituem a palavra. A música é uma impressão especial que invade todo o nosso ser fluídico, lança-o no êxtase, na beatitude, faz com que ele sinta sensações de alegria, de quietude, de angústia, de desgosto, de dor, de pena, de remorsos. Tal é, mais ou menos, a gama de todas as sensações ascendentes e descendentes, que vão do rosa ao preto; o preto representando o nada.

Compreendeis, por conseguinte, sob o ponto de vista puramente artístico, que sensações infinitas podem agir sobre um espírito já evoluído. Agora podeis, na Terra, preparar-vos para receber essas sensações no Além, afastando de vós qualquer satisfação material e sensual. Procurai as atracções artísticas, por mais pobres que sejam; enriquecei o vosso pensamento, dai aos vossos nervos um alimento de fortes vibrações; enchei o vosso cérebro de sensações que, no vosso mundo, se traduzem por estudos analíticos das vossas vidas terrestres. Tudo isso, um dia, repercutirá no espaço, ao cêntuplo, porquanto as vibrações armazenadas no vosso ser carnal despertarão e atrairão, como uma lira com mil asas (iii), todas as sensações atractivas que podem gerar os sentimentos mais harmoniosos, os mais elevados, que circulam nas correntes que emanam directamente da esfera divina.

(iii) Observe-se o profundo sentido desta frase: “como uma lira com mil asas”. A lira, símbolo da poesia, da expressão poética, teria mil asas, mil formas de agasalhar todas as sensações geradoras de sentimentos harmoniosos (N.T.)

É o mais alto grau da arte, uma sensação artística infinita.

As vossas pobres criaturas não podem experimentar as alegrias inefáveis que sentimos quando essas sensações vêm tocar os nossos espíritos extasiados.

Quais são essas sensações? Tentarei, como conclusão, dizer-vos, com a permissão de Deus, o que elas podem ser. Isso não será fácil, porque seria como o vos abrir uma visão directa sobre a obra divina. Os vossos guias vão orar. Espero poder dar-vos, em algumas palavras, uma ideia dessa grande obra de beleza, de luz e de harmonia.”

/... 



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte V – Nona lição de O Esteta – A música e a transmissão do pensamento artístico – Perispírito, receptor das ondas musicais (3 de 4) 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

~~~Párias em Redenção~~~


A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (II)

   À porta do palácio, formou-se um pequeno cortejo: os amos, os porta-estandartes, os convidados, os áulicos e os amigos, que desceram na direcção da Praça do Campo, já regurgitante.

  Diante das autoridades presentes, fez-se o sorteio dos bairros inscritos, dos quais seriam destacados os que deviam competir. Logo após, começou o corteo. As multidões vibraram de entusiasmo.

  Evocando os dias passados da cidade, as suas glórias e as suas conquistas, as suas tradições e o folk-lore, desfilaram, pela ordem de importância, os representantes das diversas classes, tendo à frente as Entidades Governamentais e os componentes dos diversos bairros inscritos, destacando-se nas suas cores características. Crianças ostentavam bandeiras dos contrada. Cada bairro se faz representar por 13 figurantes. O jogo das bandeiras brilha e nele os exímios acrobatas conquistam ensurdecedores aplausos: é nota viva, comovedora, agradável na festa. E atrás, encerrando o cortejo, aparece o Carroccio, puxado por quatro bovinos seleccionados, conduzidos, a seu turno, por dois homens encapuzados. Nesse carro de guerra está o Pallium – donde derivou o nome da festa – que será entregue ao vencedor, e na qual está estampada a efígie de Maria de Nazaré. O Pallium faz-se guarnecer por quatro trompetistas, a rigor, que anunciam a hora culminante.

  Tem início, então, a grande mossa dos animais escolhidos, representando os bairros atribuidos pelo sorteio. Os animais de raça, adestrados para disputa, partem com desabalada sofreguidão, enquanto os partidários se esganam aos gritos, louvando e encorajando os seus jóqueis preferidos. A corrida sobre lajes derrapantes é feita de emoções e receios. Alguns animais escorregam e atiram longe os condutores, que se ferem no atrito com as pedras luzidias.

  O Conde Lorenzo, entre as autoridades, na tribuna de honra, freme e alardeia as excelências do seu palafrém, do ginete florentino e estertora, ansioso.

  Girólamo, graças às deferências do Senhor Bispo, que a seu turno indicou ao Arcebispo aqueles que deveriam compor o Carroccio, como guardas de honra, figura em destaque, deslumbrado, provocando inveja e erguendo as insígnias da sua herdade e dos sítios que representava.

  A chegada dos concorrentes deu ao Bairro Oca a honra de receber o Pallium. Desceram da tribuna o Conde e a Condessa di Castaldi, que, ao lado do florentino, empapado de suor, receberam das mãos de Sua Eminência o cobiçado troféu.

  Carlo, ovacionado delirantemente, agradeceu o aplauso natural, espontâneo, festivo. Era o homem do dia. Os Castaldi foram cercados pelos amigos, pelos bajuladores, pelo povo e, com o animal, deixaram-se conduzir pela multidão, que carrega o ginete, entre delírios e animações. As cordas que isolam da pista a multidão são arriadas e toda a praça se transforma num imenso palco, para as festas regionais, bailes, teatros, espectáculos improvisados, e grupos alegres, bebendo em odres trabalhados o capitoso vinho, relaxam-se no prazer.

  Girólamo, conquanto os triunfos colhidos, martiriza-se com o êxito daquela estranha personagem, cuja lembrança o aflige e por quem nutre crescente despeito, que se transforma em surto de ódio.

  À noite, o Palácio Castaldi está regurgitante e o nobre casal abre-lhe as portas aos amigos que os vão saudar, homenageando-os pela honra do alto prémio conquistado. Empalmando as apostas numerosas, Dom Lorenzo retribui regiamente ao servo, atestando a generosidade de que se encontra possuído, e concede-lhe a liberdade de viver intensamente quanto possível aquela noite, que lhe será inesquecível.

  Longas serão as horas de oferendas a Baco e às dissipações. Tem-se a impressão de que todo o povo delira e não há problemas na Siena triunfadora. Ninguém recorda o amanhã. “Hoje, agora, é o nosso dia, a nossa hora!” – gritam bandos álacres, agitados.

  Tendo acompanhado o cortejo que seguiu, pressuroso, à casa dos sogros, Girólamo, ante a presença indesejável do moço engalanado pelos louros da vitória, cumpre o dever de banquetear-se e rever os amigos, retirando-se depois, na direcção das tabernas e casinos, onde a ilusão venenosa se desprende a peso de ouro e se faz colher com as ávidas mãos da loucura. Desgarrando-se de Francesco, que, após conduzir a esposa ao palácio, retorna aos ninhos de encantamento da cidade, misturando juventude e excessos, acorre ao casino “La Conchiglia”, para fruir as horas de enlevo e embriaguez.

  Vencido quase pelos vapores do álcool e do fumo, que emprestam ao grande salão, o moço senense divisou Carlo numa banca larga de dados, exibindo as qualidades de ganhador.

  – “Feliz no jogo, infeliz no amor”, – cantarola, abraçando mulheres atormentadas e profissionais da luxúria. Apresentando a bolsa recheada de moedas, o hábil cavaleiro, invejado e comentado, desafia ao jogo. Espicaçado pela inveja e por injustificável ciúme, Girólamo aceita a provocação, e a sala silencia para ouvir, sentir e viver a disputa. O ar abafado, pestilento, enche todos os recantos. De quando em quando, rebentam gargalhadas e gritos. Os dados correm no pano de feltro verde bem cuidado, as apostas aumentam e o Conde, jogador ardiloso e inveterado, reduz o adversário a mísera condição, para zombaria geral.

  – “Feliz nos cavalos, desditoso nos dados, impotente no amor” – baldoa Girólamo, picado pela jactance et forfanterie que o dominam acerbadamente.

  Vencido e humilhado naquele ambiente infeliz, ferido nos seus brios de ganhador do palio, Carlo sente que se deve desforçar do rival. Sai da sala em busca do ar da noite. Precisa pensar. Algo conspira contra ele, mas o seu signo o protege, – pensa revoltado. – Doestos e chacotas zombam, na comparação que fazem dele com o nobre Conde, com quem desejou duelar nos dados…

  Não obstante a hora avançada, a cidade continua febril e a taça do prazer generosamente derrama os seus perfumes abundantes e fáceis.

  Depois de caminhar até à Via del la Sapienza e atingir a Piazza de San Domenico, (i) o rapaz recebe as lufadas do ar brando, que sopram na larga área fronteira ao templo imponente. Olha o santuário, que é uma das glórias da cidade; aquele edifício teve o início da sua construção por volta de 1225 e o término somente 240 anos depois, estando situado em local de destaque, donde oferece ampla visão da cidade, em várias direcções. Sentando-se na relva macia, Carlo rebusca a imaginação:

  “O Conde Cherubini – pensa, estimulado pelo ódio que o domina –, após espezinhá-lo, vencido ante todos… Embora sob o estigma das tragédias que deveriam esmagar qualquer homem, aparenta triunfo e galhardia… Conforme lhe narraram os pajens e cavalariços, falou-se que ele bem poderia ter contribuído para que a fortuna do duque lhe viesse parar às mãos, flutuando em abundante rio de sangue e crimes… O duque di Bicci…”

  No mundo espiritual, o duque concertava um plano para atirar Girólamo entre as grades do cárcere ou no laço da forca. Estimulara, pela inspiração, a jovem Senhora Lucrécia a cair-lhe nos braços, a fim de que Francesco o convidasse a duelo reparador, não colimando o desejo. Ajudado, agora, pela conjuntura das Leis Desconhecidas para ele, – Leis que trouxeram Carlo a Siena –, eis surgida a oportunidade ambicionada pelo inimigo desencarnado.

  Aproximou-se do moço em reflexão, cujo pensamento desordenado conseguia perceber, conquanto não apreendesse a forma como lhe chegavam as vibrações mentais, começou a falar, acusador, acolitado por Assunta, em desalinho total, na sua deformação espiritual – vítima do homicídio e vítima, simultânea, do novo sicário que a exauria em crua vampirização psíquica, roubando-lhe todas as energias e fazendo-a tresloucada, em longo curso de desesperação

  Em lugar, distante da bulha, debaixo do aplauso das estrelas miúdas e faiscantes, engastadas na transparência do céu de verão, Carlo interrogava-se, freneticamente. A perseverança do ódio consegue, não raro, vencer os negligentes do amor e os comparsas da insensatez, graças à constrição actuante do pensamento que vibra destruição, aniquilamento.

  Mergulhado cada vez mais nas recordações, exigindo da mente um esforço raro, passou a sintonizar com as duas entidades desditosas que lhe compartilhavam a aversão. Estabelecida a ligação psíquica, pôs-se a recordar a infância, os primeiros anos da juventude em Florença, quando pastoreava as colinas de San Miniato… (San Miniato brilhou-lhe na mente, como o espocar de fogos.) reviu a cena de sangue. Sim, era de lá que o conhecia, era ele o assassino, cujo crime vira naquela primavera do horror – reflectiu.

– Na tela mental, estimulada pelas evocações e sincronizada com o pensamento dos verdugos espirituais, delineou-se o rosto de Assunta, debatendo-se no punhal certeiro do criminoso em fúria. Evocou o desespero que dele se apossara – mantendo vivas as tintas do crime hediondo e do soberbo assassino –, fazendo-o correr logo recuperou as forças e o comando das pernas. Sim, não havia dúvidas… Saberia cobrar a dívida ao infame. “À quelque chose malheur est bon.”(*)

(*) “Para alguma coisa serve a desgraça.”

  “Na ocasião, – continuava a desfilar o novelo das recordações –, comunicara ao pai, que o acompanhara ao local  e nada encontrara, senão os sinais da terra revolvida e as manchas de sangue dos animais em fúria, como lhe dissera o genitor, ao aplicar-lhe algumas bastonadas, afirmando-lhe que delirava… E como nada mais soubesse, perdurou-lhe a dúvida. Agora, tinha a certeza.”

/...



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 8. A ESTRANHA PERSONAGEM QUE SURGE DO PASSADO (2 de 3) 27º fragmento da obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)