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sexta-feira, 20 de março de 2015

Victor Hugo e o invisível ~

Actualidade Ontológica das Reminiscências Platónicas |

A filosofia de Victor Hugo, assente na preexistência das almas, leva-nos a pensar em Platão, que percebeu na antiguidade, com profunda percepção espiritual, esse mundo novo que aflora na consciência do Ser. Esse mundo interior que se apresenta imperativamente, sem respeitar o conhecimento clássico do homem propõe à filosofia uma das mais intrincadas perguntas: Existe no "tempo actual" do Ser "outro tempo" existencial? 

Todo o desenvolvimento da filosofia ocidental se produziu através de um "tempo único" do Ser, ou seja, de um tempo que vai do nascimento à morte. Aceitou-se que o homem é uma personalidade, mas vazia por dentro, e esta suposição anulou o que o Ser representa como entidade profunda, fazendo dela uma peça compacta e insensível. Esta concepção mecânica do homem causou até uma negação do que o subconsciente representa como abertura do Ser para o mundo exterior. Pois o reconhecimento do subconsciente significou sempre para a nova psicologia a prova de uma dupla natureza do Ser, de um mundo desconhecido cujas raízes se encontram numa provável natureza pré-ôntica da existência.

As reminiscências experimentadas por Platão, ou pelo homem em todos os tempos, são factos que evidenciam as diversas capas psíquicas que conformam o seu mundo interior. Ter, pois, reminiscências é como se o Ser estivesse situado num poço de fundo incomensurável. As emoções, sensações e ideias espontâneas que se registam no ar constituem aflorações misteriosas que, para alcançar uma explicação possível, obrigam a pensar em "reservas" subconscientes adquiridas não se sabe por que meios.

O chamado "mistério do homem" tem a sua principal base nesses estados psíquicos inexplicáveis. De facto, o mistério do homem surge do homem mesmo e não das suas enigmáticas origens biológicas. O mistério é uma presença que se opõe ao homem considerado como pura natureza, o que indicaria que é "algo" ainda indefinido e que se revela contra toda a "naturalidade" que queiram assinalar. No Ser existe um inconsciente misterioso, que paira sobre o consciente racional com o fim de libertá-lo das trevas do não ser. Deste modo, a existência pura se rebela contra a existência impura, ou seja, contra a que se compraz em soltar-se nos abismos do nada.

O conceito de um homem-máquina é um obstáculo para penetrar na natureza supranormal do Ser. Os fenómenos psíquicos que através do Homem se registam estão indicando que a inteligência normal não é toda a inteligência, senão que possui outras dimensões ou substratos que, como misteriosos relâmpagos se apresentam à "razão actual" do Ser para ampliá-la ao aparecer inesperadamente. A intuição, a inspiração, os estados místicos, são factos que não poderiam produzir-se se o homem fosse uma máquina ou uma só peça material. A materialidade do homem se opõe a toda a supranormalidade do Ser. Um homem-corpo só vive de acordo com os seus estados fisiológicos; nele não se produziriam fenómenos psíquicos de nenhuma ordem. O psiquismo, pois, não é de ordem nervosa; o psíquico se origina nas profundidades desconhecidas da personalidade, das quais Platão extraiu as suas célebres reminiscências ontológicas.

As reminiscências platónicas, tão célebres já no campo da filosofia, acentuam-se nos tempos modernos, o que daria uma ideia acerca de uma nova evolução da sensibilidade humana, da qual Victor Hugo foi genial expoente. Ou seja, o homem tem a transbordar os seus cinco sentidos para afirmar-se a si mesmo outra forma sensível com que captar o seu mundo interior e circundante. Pois bem, isso denotaria que o Ser verdadeiro está acima do Ser físico e que existe nele um ente extra-sensorial cuja existência transborda as limitações do tempo presente.

A filosofia do Ser se veria obrigada a reconhecer no homem uma essência que se vincula com uma natureza imaterial, que estabeleceria uma relação com o tempo passado, um tempo presente e um tempo futuro, ou seja, três tipos de "tempo" que gravitariam dinamicamente nas profundidades do Ser.

Destes três tempos emergiram os imperativos espirituais que fizeram ver a Platão o verdadeiro mundo da personalidade humana. Esta concepção do tempo nos levaria a reconhecer um tempo físico e um tempo metafísico. O Ser, desde a sua verdadeira natureza essencial, resultaria um constante devir efectuado através de um tempo mortal e outro imortal, o que relacionaria um processo dialéctico infinito. O homem pensa mas supõe que é um Ser limitado ao seu tempo individual. Ignora que nele existe um tempo espiritual que o faz independente de acidentes aniquiladores. O Ser sente como que uma distância, algo que regressa de outro Ser que já foi e nesta circunstância surge com ele "outra personalidade" que trata de circunstanciar-se com o seu presente, criando no seu mundo moral estados harmónicos ou contraditórios. O Ser se desdobra ao aparecer sob a influência de um ente que regressa de alguma parte, o que determina nele essa instabilidade moral tão frequente no mundo moderno.

Victor Hugo captou o seu Ser passado mediante a sua genial criação poética, mas o que o fez compreender melhor a sua natureza imortal e palingenésica foi o fenómeno mediúnico, cuja origem noumenal surge desse mesmo mundo onde subjazem as reminiscências espirituais percebidas por Platão.

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, Actualidade Ontológica das Reminiscências Platónicas, 11º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

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