Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo V

A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 
(III)

   É no ano de 53 a.C. que, dolorosamente influenciado pela situação da Gália, Vercingétorix toma a resolução de se consagrar à salvação de sua nação. César tinha derrotado separadamente os éburons, os trévires, os sénones, depois retornou para a Itália, deixando suas dez legiões dispersas no norte e no leste. Aproveitando as circunstâncias, Vercingétorix, em pleno inverno, percorreu as tribos preparando uma sublevação geral e, por sua eloquência máscula, reanimou os ardores patrióticos e levantou as coragens abatidas.

   Uma assembleia solene, de todos os chefes gauleses, teve lugar na floresta sagrada dos carnutos. Ali, sob as bandeiras das tribos, reunidas em aglomerados, os chefes fizeram o juramento de se unirem contra os romanos e proclamaram Vercingétorix como chefe supremo. Eles sonhavam com uma pátria colectiva, com uma grande Gália livre e federada, realização dessa fraternidade céltica, concebida pelos druidas. Vercingétorix tentou introduzir mais ordem e método na organização militar e nos movimentos da armada gaulesa. Ele mostrou tanta habilidade e precisão que provocou este elogio pouco comum de seu inimigo: “Ele foi tanto activo quanto severo no seu comando.” *

   Pode-se perguntar onde o grande chefe arverno, ainda jovem, tinha obtido suas aptidões e seu conhecimento. Parece que a função que se deve atribuir ao mundo invisível na história começa a sair do domínio exclusivo das religiões para penetrar pouco a pouco na ciência. Esta função o Sr. Camille Jullian a reconhece, ou melhor, a discerne na vida de seu herói, e a relaciona a outros exemplos célebres; os de Sartório e de Mário, que tiveram suas profetisas, como Civilis teve Velléda. “Vercingétorix disse que teve ao seu redor agentes que o colocavam em relação com o céu.” **

   Mas o terrível procônsul, ao ser informado da sublevação da Gália, deixou rapidamente Ravenna e, após uma viagem rápida, realizou um acto tido como irrealizável em pleno inverno. Ele atravessou as Cévennes por veredas abruptas, com 30 centímetros de neve, e investiu com sua pequena armada sobre o país arverno, obrigando, assim, Vercingétorix a dirigir suas forças para o sul e a libertar as legiões cercadas. Após esse desvio estratégico, César desceu pelo vale do Loire e juntou, às pressas, a parte principal das legiões a fim de ser capaz de enfrentar os acontecimentos.

   Não é surpreendente achar, a dezoito séculos de distância, factos análogos nessa outra existência do mesmo homem de génio que foi sucessivamente Júlio César e Napoleão Bonaparte? A passagem de Cévennes não teria por complemento aquela do Grand Saint Bernard, e o 18 brumário *** não lembra a passagem do Rubicão?

   Alguns meses depois, o cerco de Bourges pelos romanos, heroicamente sustentado pelos seus habitantes, mostrou toda a utilidade das reformas de Vercingétorix.

   Para devastar a área da armada romana, os bitúriges põem fogo, por sua ordem, em vinte de suas vilas. César sobe de novo até a Auvergne com suas legiões e ataca a Gergovie, foco da independência gaulesa; ele é repelido, forçado a deixar seu campo e a bater em retirada durante a noite.

   O general romano, que não tinha cavalaria, não hesitou em mandar vir de além do Reno, para alistar, bandos de cavaleiros germânicos semi-selvagens. E é assim que, após ter proclamado muitas vezes, altissonante, que ele não vinha à Gália a não ser para defendê-la contra os germanos, foi ele mesmo que abriu o caminho às invasões. Na batalha de Dijon, os pesados esquadrões germânicos romperam a cavalaria gaulesa e Vercingétorix, reduzido à sua única infantaria, teve que se refugiar na Alésia.

   Finalmente, vem o cerco memorável dessa vila pelos romanos, os trabalhos gigantescos das legiões para sitiar o lugar e a chegada da armada de socorro, isto é, quase toda a Gália em armas. Esta armada foi lenta para se reunir, os chefes se ajuntaram, de início, em Bibracte, formando um conselho geral, para discutir os planos de Vercingétorix. Se havia entre eles homens devotados, sem excepção, à liberdade da Gália, havia, também os ambiciosos de duas caras, como os dois jovens eduenos Viridomar e Eporédorix, ambos decididos a favorecer, em segredo, os desígnios de César.

   Numa luta horrorosa de três dias, o impulso furioso dos arvernos desbarata as linhas romanas, mas a traição dos eduenos aniquila seus esforços e a armada gaulesa se dispersa, abandonando os defensores de Alésia à sua própria sorte.

   Vercingétorix, vencido, poderia fugir, mas preferiu se oferecer como vítima expiatória a fim de poupar a vida de seus companheiros de armas. César, estando assentado num tribunal, no meio de seus oficiais, vê as portas da Alésia se abrirem. Um cavaleiro de alta estatura, coberto de uma magnífica armadura, aparece a galope, descreve três círculos com seu cavalo ao redor do tribunal e, com ar altivo e grave, joga sua espada aos pés do procônsul. Era o chefe arverno que se entregava ao seu inimigo. Os romanos, impressionados, se afastaram com respeito, mas César, mostrando a baixeza de seu carácter, prostra-o com injúrias, acorrenta-o, manda-o para Roma e o joga na prisão mamertina, calabouço escuro, com uma única entrada, pela abóbada. Após seis anos de prisão horrenda, ele foi retirado para figurar como triunfo de César, e daí foi entregue ao carrasco (46 a.C.).

   Um dia, no correr dos tempos, esses dois homens se reencontraram servindo à mesma causa, sob o mesmo estandarte. César se chamou, então, Napoleão Bonaparte e Vercingétorix tornou-se o general Desaix. Em Marengo, quando a batalha parecia perdida para os franceses, Desaix chegou na hora exacta, com a sua divisão, para salvar seu antigo inimigo, e esta foi toda a sua vingança!

   Edouard Schuré escreveu a respeito de Desaix, **** após ter lembrado seus grandes feitos:

   “Ele foi a modéstia na força, a energia na abnegação. Procurava sempre o segundo lugar, e aí se conduzia como se fosse o primeiro. Batido mortalmente em Marengo, nesta grande batalha que ganhou para o primeiro cônsul, e temendo que sua morte desencorajasse os seus, disse simplesmente àqueles que o dominavam: “Não lhes digam nada.”

   Nesses detalhes históricos, não se encontra uma confirmação daquilo que nos têm dito nossos instrutores do espaço sobre a identidade desses dois personagens, Vercingétorix e Desaix, animados pelo mesmo espírito no correr dos séculos? Foi assim com César e Napoleão e com muitos outros casos semelhantes.

   Se o olhar do homem pudesse sondar o passado e reconstituir o elo que une suas vidas sucessivas, muitas surpresas lhe seriam reservadas, porém más lembranças e angústias também viriam se misturar às dificuldades da vida presente e agravá-las! Eis por que o esquecimento lhe é dado durante a passagem do vau, isto é, durante a estada terrestre. Mas no desprendimento corporal, nas horas de sono e, sobretudo, após a morte, o espírito evoluído retoma o encadeamento de suas existências passadas, e na lei das causas e efeitos, em vez de vidas isoladas, incoerentes, sem precedentes e sem sequência, ele contempla o conjunto lógico e harmonioso de seu destino.

   Do mesmo modo que visitei a pé, com um sentimento de respeito, o santuário céltico da Bretagne, creio dever fazer a peregrinação da Gergovie e da Alésia. Eu escalei as escarpas da Acrópole arverna e mais tarde subi a inclinação suave que, da estação de Laumes, leva à Alise. Uma neblina fria e penetrante envolvia a planície, enquanto no horizonte o disco avermelhado do Sol parecia se esforçar para furar a cerração.

   Percorrendo as ruas da vila, percebi, com surpresa, uma estátua equestre com esta inscrição: “À Jeanne d’Arc, la Bourgogne”. Este é, então, um monumento expiatório? Prosseguindo minha ascensão, atingi o planalto onde se ergue a estátua gigantesca do grande antepassado. Ali, solitário, pensei por muito tempo, meditei tristemente em tudo que é preciso – lutas, sangue e lágrimas – para assegurar a evolução humana.

   A figura grandiosa e nobre de Vercingétorix se liberta da sombra dos tempos como um exemplo sublime de sacrifício e de abnegação. Ele acreditava na pátria gaulesa, no seu futuro, na sua grandeza, e por essa pátria lutou, sofreu e morreu. Ele foi lembrado, na hora suprema, do juramento pronunciado em frente ao céu, no promontório bretão, no seio das vagas furiosas.

   Ao se oferecer em holocausto para salvar seus companheiros de armas, ele se inspirou também naquilo que lhe tinham ensinado os druidas: é pelo esquecimento de si mesmo, por imolação do “eu” em proveito dos outros, que se alcança o “Gwynfyd”.

   Para lembrança desses heróis, Gergovie e Alésia tornaram-se, para sempre, os lugares sagrados onde a alma céltica adora se recolher para meditar e orar.
/…

* Comentários da Guerra Gálica, César.
** Obra citada, p. 133.
*** Brumário – Segundo mês do calendário republicano francês. (N.T.)
**** Ver Les Grandes Légendes de France, p. 65



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO V – A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 3 de 3, 18º fragmento da obra.
(imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

domingo, 14 de abril de 2013

O peregrino sobre o mar de névoa ~


Motivos de Dificuldades nas Curas

Há curas que se verificam com surpreendente facilidade e rapidez, dando às vítimas de graves perturbações e às suas famílias a impressão de um socorro divino especial. Nosso povo, de formação geralmente católica, está sempre disposto a se deslumbrar com milagres. Não há privilégios numa estrutura orgânica perfeita, como a do Universo, regida por leis infalíveis e teleológicas, ou seja, leis que dirigem tudo no sentido de fins previstos. A cura fácil e rápida decorre de méritos pessoais do doente, de compensações merecidas por esforços despendidos por ele no seu desenvolvimento espiritual e em favor da evolução humana em geral. O objectivo da vida é o desenvolvimento das potencialidades que trazemos em nós como sementes de angelitude e divindade semeadas na imperfeição humana. Os que compreendem isso, se procuram conscientemente trabalhar para que essas sementes germinem mais depressa, adquirem créditos que lhes são pagos no momento exacto das necessidades. Quando Jesus dizia a um doente: “Perdoados foram os teus pecados”, não era porque ele fizesse um milagre naquele instante, mas porque o doente vencera a sua prova graças aos seus méritos.

As doenças revelam desajustes da nossa posição existencial. Esses desajustes decorrem da liberdade de que dispomos em face das exigências evolutivas. A dor, a angústia, as inibições são como campainhas de alarme prevenindo-nos de abusos ou descuidos. Sem a liberdade de errar não poderíamos desenvolver as nossas potencialidades espirituais. A ideia do castigo divino, do juízo de Deus condenando os que erram é uma maneira humana, antropomórfica, de interpretarmos os acidentes de nossa viagem na astronave planetária que nos faz rodar em torno do Sol. Podemos socorrer-nos dessa imagem para modificar a nossa antiquada maneira de ver e interpretar a nossa precária passagem pela Terra. Somos passageiros de uma nave cósmica, envoltos no escafandro de carne e osso, submetidos a experiências semelhantes às dos astronautas que, não podendo ainda atingir as estrelas, fazem exercícios na órbita planetária. Acidentes da viagem, falhas técnicas, dificuldades, fracassos perigosos, dor e morte dependem da nossa maneira de agir durante a viagem e da nossa perícia ou imperícia, do grau de responsabilidade, de perspicácia, de bom senso, de calma, de amor e respeito ao semelhante que conseguimos desenvolver. Deus, consciência Cósmica, não interfere em nosso aprendizado, mas também não está alheio ao que se passa connosco. Da mesma maneira que um telepata na Lua pode captar as mensagens mentais que lhe sejam enviadas da Terra ou de outras naves espaciais, a mente suprema de Deus capta, naturalmente, ligada a tudo o que se passa no Universo, nos seus mínimos detalhes. Se necessário, as entidades a seu serviço serão enviadas a socorrer-nos. Por toda a parte os seres espirituais agem continuamente no universo. Como dizia o filósofo e vidente Tales de Mileto, na Grécia Antiga: “O mundo está cheio de deuses, que trabalham na terra, nas águas e no ar.” É fácil compreendermos isso se nos lembrarmos da infinidade de seres invisíveis e visíveis que enchem o Universo agindo em todos os sentidos, sob uma orientação secreta, como robôs vivos, para manterem as condições adequadas em cada organismo dos reinos naturais e em nós mesmos. Se isso se passa no plano material denso, com muito mais facilidade podemos imaginar essa vigilância infinita no plano espiritual. A Providência Divina é o modelo supremo, arquetípico, de todas as formas de providência que os homens organizam na Terra. As grosseiras imagens de Deus e de sua acção no Universo, que as religiões nos deram no passado, são agora substituídas por visões mais lógicas, racionais e justas, graças aos progressos do homem, no conhecimento progressivo e incessante da realidade em que vivemos. São retrógrados todos aqueles que ainda se apegam, em nossos dias, às ideias ingénuas de um passado de milhares de anos. Mal iniciamos os primeiros passos na Era Cósmica e já podemos compreender melhor a beleza e a ordem da Obra de Deus e a importância suprema de seus objectivos que são, na verdade, o destino de cada um de nós.

As dificuldades nas curas pela terapia espírita decorrem, portanto, de nossas atitudes e acções no passado e no presente. Se prejudicámos a evolução de criaturas e comunidades em nossos avatares anteriores, é natural que agora tenhamos de suportar a sua companhia e sofrer a sua inferioridade em nosso ambiente individual. Nenhum mago ou sacerdote nos livrará disso, nenhum exorcismo nos libertará, mas a nossa compreensão espiritual do problema e o nosso desejo natural de reparar os erros do passado nos fará livres através dos entendimentos possíveis que os fenómenos mediúnicos nos propiciam. Como ensinou Jesus, devemos aproveitar a oportunidade de estarmos no mesmo caminho com o adversário, para nos entendermos com ele. Se soubermos fazer isso com amor, chegaremos ao fim da caminhada comum como companheiros e amigos, prontos para novas conquistas em nossa evolução. A terapia espírita nos dá o socorro possível na medida exacta da nossa capacidade de recebê-lo. Não é, porém, por meio de actos vulgares e interesseiros de caridade e nem de medidas artificiais de reforma interior que chegaremos a esse resultado. Lembremo-nos do moço rico que procurou Jesus, perguntando-lhe o que faltava para ele merecer o Reino dos Céus. Jesus tocou-lhe no ponto decisivo da questão – o desapego dos bens terrenos –, mandando-o vender tudo o que possuía e distribuir o resultado aos pobres. O moço entristeceu-se e retirou-se da presença do Mestre. Não era a fortuna em si que o prejudicava, mas o seu apego a ela, a sua incapacidade de compreender ainda o verdadeiro sentido da vida. Por isso também a definição de Paulo sobre a caridade, num arrebatamento espiritual do apóstolo, ainda não foi compreendida por nós. O apego às condições passageiras da vida terrena, aos seus bens transitórios, perecíveis, nos impede de abrir o coração e a mente para a suprema e imperecível grandeza da realidade espiritual. Dar esmolas, socorrer as necessidades do próximo são apenas meios de aprendizagem que nos levam à libertação. Temos de ir além, de abrir a nossa mente e o nosso coração para ver, sentir, brotando em nós mesmos, sem nenhum interesse inferior, a fonte oculta que não está no poço de Jacó, mas na realidade ôntica, espiritual, profunda da pobre mulher samaritana. Temos em nós toda a riqueza do Universo, com todas as suas constelações e todas as hipóstases da teoria de Plotino, mas continuamos apegados às vaidades e intrigas da Terra. A terapia espírita, que é a mesma de Cristo, nos oferece a água viva da sua nova concepção do ser e do mundo. Enquanto essa água não jorra em nós, não seremos curados.
/…


José Herculano Pires, Ciência Espírita e suas implicações terapêuticas, Motivos de Dificuldades nas Curas 1 de 2, 13º fragmento da obra.
(imagem: O peregrino sobre o mar de névoa, por Caspar David Friedrich)

terça-feira, 9 de abril de 2013

Seres Radiantes do espaço ~


Capítulo III

A Natureza, nos seus diversos aspectos, nos oferece um eterno encanto. Nossa vista, órgão ao mesmo tempo delicado e grosseiro, não percebe as formas de conjunto. Mas se, munidos de um microscópio, estudarmos a estrutura íntima dos corpos, o que acontecerá? Seremos obrigados a reconhecer que esses corpos são todos compostos de uma quantidade quase incalculável de partículas de uma subtileza prodigiosa, animadas de movimento constante e que se entrechocam, continuamente, num vertiginoso turbilhão. (I)

Por exemplo, quando a Ciência descobrir a causa da desintegração molecular das partículas do rádio, os cientistas conhecerão as forças profundas da natureza universal, forças misteriosas que, do centro da Terra até à mais distante estrela, interligam todos os mundos numa formidável unidade.

As desintegrações de átomos geram enormes quantidades de energia, maiores do que todas as reacções químicas. Por exemplo, a desintegração de um átomo de urânio libera 400.000 vezes mais energia do que a combustão de um átomo de carbono, segundo os químicos. Os raios catódicos, dizem eles, são produzidos por uma espécie de “bombardeio” contínuo de partículas infinitesimais a que chamamos electrões. Ao se fazer um vácuo suficiente em ampolas de vidro, como provou William Crookes, devolvem-se essas partículas ao estado de liberdade e de actividade, tanto mais acentuado quanto maior for a rarefacção. Com vácuo maior, sob a influência de uma corrente eléctrica, essas radiações apresentam cores delicadas, carmins e violetas e produzem-se, então, fluorescências que atingem o prodígio.

Esses fenómenos luminosos vêm confirmar o que nos dizem os espíritos sobre as propriedades da matéria subtil e os efeitos de luz, o uso das cores que desempenham tão grande papel em todas as situações da vida do Espaço.

Aumentando-se mais a rarefacção, obtêm-se radiações mais poderosas. Os raios catódicos, ao chocar as paredes de vidro, aumentam de intensidade e tomam o nome de raios X. (II) O seu poder de penetração ultrapassa tudo o que se conhecia antes deles; eles atravessam a madeira, os tecidos, os metais e mesmo as paredes; e verificou-se que sua acção se fazia sentir até 50 metros do ponto de emissão. O seu uso necessita de cuidados minuciosos, pois, se contribuíram para tratar de várias doenças, causaram também, às vezes, doenças mortais.

Todas essas descobertas nos revelam a existência de forças evidenciadas pela dissociação da matéria e que os espíritos utilizavam, desde muito tempo, nos fenómenos familiares aos estudantes do mundo invisível.

Não é demais insistir no facto de que os corpos ditos sólidos têm apenas uma densidade aparente, que resulta da imperfeição de nossos sentidos, e que, na realidade, eles se compõem de moléculas separadas umas das outras, por intervalos mais ou menos grandes, conforme a natureza desses corpos. Isso nos explica a sua penetrabilidade por radiações da matéria subtil e dos fluidos, em particular. O fenómeno de transporte, de materialização de espíritos e todos os factos dessa ordem encontram, aí, a sua explicação e todos aqueles que estudam, com atenção, essa Ciência do invisível, chegam a compreender e a admirar a harmonia das leis que unem o mundo sensível às forças e às manifestações do Além.
/…

(I) A análise da matéria, seja sólida, líquida ou gasosa, apresenta resultados inesperados. Foi assim que um físico calculou que um litro de ar (respirável) contém milhares de triliões de moléculas de oxigénio. Essas partículas, elas próprias, seriam apenas grupos de partículas ainda mais subtis; é assim que se chega à unidade da matéria reconhecida, agora, pela Ciência e que, segundo os alquimistas, justificam as esperanças no que se refere à transmutação dos corpos.

(II) Descobertos por W. Roentgen (1845-1923), físico alemão.



Léon Denis, O Espiritismo e as Forças Radiantes, Capítulo III, 1 de 4, 7º fragmento da obra.
(imagem: Anos e Anos de Viagem Sideral, pintura em acrílico de Costa Brites)

sábado, 6 de abril de 2013

Deus na Natureza ~


A Força e a Matéria I Posição do Problema

   O século que vivemos está desde já inscrito com caracteres indeléveis nas páginas da História. A partir dos mais remotos tempos, das velhas civilizações, nenhuma época viu, qual a nossa, esse magnífico despertar do espírito humano, para simultaneamente afirmar os seus direitos e a sua força. O mundo já não é o vale de lágrimas medieval, onde a alma vinha expiar a falta do primitivo pai e, confundindo-se no isolamento e na oração, acreditava conquistar um lugar no paraíso, ciliciando o corpo e cobrindo-se de cinzas.

  Os frutos da inteligência já não atestam as longas, abstrusas e infindáveis discussões de estéril metafísica, construídas de palitos e escoradas em subtilezas escolásticas, a que se entregaram cegamente poderosos génios, consagrando-lhes uma preciosa vida de estudos e despercebidos de assim perderem não apenas o seu tempo, mas o de algumas gerações.

  Lá, onde em murados claustros se concentravam monges e oratórios, ouve-se agora o ruído das máquinas, o ranger das engrenagens e o silvo do vapor das caldeiras combustíveis.

  Se as instituições monásticas tiveram o seu papel no período das invasões bárbaras, nem por isso deixou de soar a sua hora extrema, como sucede a todas as coisas perecíveis: o trabalho fecundo do operário e do agricultor substitui a decadência senil pela juvenilidade laboriosa e fecunda.

  No anfiteatro das Sorbonnes, onde se discutiam exaustivamente os seis dias da Criação, as línguas de fogo da Pentecoste, o milagre de Josué, a passagem do Mar Vermelho, a forma da graça actual, a consubstancialidade, as indulgências parciais ou plenárias, etc., etc., e mil assuntos outros difíceis de aprofundar, vemos hoje instalar-se o laboratório químico, no ambiente do qual a Matéria se faz docilmente pesar e mensurar; a mesa do anatomista, sobre cujo mármore se desvendam o mecanismo orgânico e as funções vitais; o microscópio do botânico, que surpreende os primeiros, oscilantes passos da esfinge da vida; o telescópio do astrónomo, que deixa entrever, para além dos céus transparentes, o movimento majestoso dos sóis gigantescos, regulados pelas mesmas leis que accionam a queda de um fruto; a cátedra de ensinamento experimental, à volta da qual as inteligências populares vêm agrupar suas filas atentas.

  O próprio globo terrestre transformou-se. Circunavegaram-no, mediram-no, e já não haverá Carlos Magnos que pretendam enfeixá-lo na mão. O compasso do geómetra destituiu o ceptro imperial.

  Oceanos e mares, em todas as latitudes, fendem-se ao impulso das quilhas levadas por velas pandas ou pela rotação das hélices potentes e trepidantes.

  Também – dragão flamívomo – a locomotiva percorre célere os continentes e, graças ao telégrafo, podemos falar de um a outro hemisfério. O vapor deu vida nova e inesperada a inúmeros motores; a electricidade nos permite auscultar, num momento e de conjunto, as pulsações da Humanidade inteira.

  Certo, a Humanidade jamais conheceu fase como esta; jamais se repletou em seu seio, de tanta vida e tanta força; jamais seu coração enviou, com tamanha pujança, a luz e o calor às mais longínquas artérias. Nem nunca o seu olhar se iluminou de um tal clarão. Por mais vastos que se deparem os progressos ainda conquistáveis, nossos descendentes serão sempre forçados a reconhecer que a Ciência deve à nossa época o estribo do seu Pégaso e que, embora engrandecendo-se e vendo o Sol ascender ao zénite, brilhante não lhes fora o dia se o não precedera a nossa aurora.

  Mas, o que à Ciência outorga força e poder, convém sabê-lo, é ter por base de estudo elementos determinados, que não abstracções e fantasmas. Assim é que, na Química, ela investe com o volume e peso dos corpos, examina-lhes as combinações, determina-lhes as relações; na Física, investiga-lhes as propriedades, observa-lhes as relações e as leis que as regem; na Botânica, aborda o estudo das primeiras condições da vida; na Zoologia, acompanha as formas existenciais e regista as funções orgânicas peculiares, os princípios da circulação da matéria nos seres vivos, sua manutenção e metamorfoses; na Antropologia, constata as leis fisiológicas em actividade no organismo humano e determina o papel dos diversos aparelhos que o compõem; na Astronomia, inscreve o movimento dos corpos celestes e daí deduz a noção de leis directivas universais; e na Matemática, finalmente, formula essas leis e reconduz à unidade as relações numéricas das coisas.

  Essa exacta determinação de objectivo dos seus estudos é que dá valor e autoridade à Ciência. Aí temos como e porque a Ciência se engrandece. Mas, esses títulos também lhe acarretam um imperioso dever. Se, deslembrada dessa condição de poderio ela se desvia desses objectivos fundamentais para divagar no vácuo imaginário, perde simultaneamente o seu carácter e a sua razão de ser.

  E, desde então, os argumentos que pretende impor, nesses domínios exorbitantes do seu alcance e finalidades, deixam de ter valor científico, e mais ainda do que isso, porque ela se desqualifica e já não pode reivindicar o nome de ciência. Torna-se, por assim dizer, em soberana que acaba de abdicar e não é mais a ela que se ouve, mas aos sábios que peroram, o que nem sempre é a mesma coisa. E estes sábios, seja qual for o seu valor, já não serão mais intérpretes da Ciência, uma vez operando fora da sua esfera.

  Ora, esta é, precisamente, a situação dos defensores do Materialismo contemporâneo, aplicando a Astronomia, a Química, a Física, a Fisiologia, a problemas que elas não podem resolver. E note-se que tais sábios não só constrangem essas ciências a responderem a problemas que lhes escapam à alçada, como ainda as torturam, quais pobres servas, para que confessem a seu mau grado, e falsamente, proposições de que jamais cogitaram. São, assim, inquisidores do facto, e não da palavra. Mas, dessarte, não é a Ciência, é um simulacro de ciência que manejam.

  Nas seguintes controvérsias, demonstraremos que esses cientistas se encontram absolutamente fora da Ciência, que se enganam e nos enganam, que os seus raciocínios, deduções e consequências são ilegítimos e que no seu louco amor por essa virginal ciência eles a comprometem simplesmente e chegariam a lhe alienar de todo a estima pública, se não houvesse o cuidado de mostrar que, ao invés da realidade, eles não possuem dela mais que uma ilusória sombra.

  A circunstância mais penosa e a razão predominante que nos impelem a protestar contra as explorações de um falso rótulo radicam-se ao facto de estarmos vivendo um tempo em que se sente, ou pelo menos se pressente, universalmente, o papel e a finalidade da Ciência. Compreende-se que fora dela é que não há salvação e que a Humanidade, tanto tempo balouçada no oceano do ignorantismo, só tem um porto a proejar – o da terra firme do saber. Também por isso, o espírito público se volta, convicto e esperançoso, para a Ciência. Tantas provas de seu poder e riqueza tem ele recebido, de um século a esta parte, que se predispôs a acatar-lhe, com simpatia e reconhecimento, todos os ensinos e teorias. Mas, nisso está, precisamente uma armadilha para o Espiritualismo. É que um certo número de cultores da Ciência, que a representam ou que se fazem dela intérpretes, ensinam falsas e funestas doutrinas.

 Os espíritos sôfregos e despercebidos, que procuram em seus livros os conhecimentos de que necessitam, absorvem neles um tóxico pernicioso e susceptível de lhes destruir no âmago uma parte dos benefícios do saber.

  Eis porque se impõe sobrestar um tão deplorável arrastamento, aliás, tendente a universalizar-se.

  Eis porque se torna absolutamente indispensável discutir essas doutrinas e demonstrar que longe estão elas de entrosar na Ciência, com tanto rigor e facilidade, quanto pregoam, mas, ao invés, que são o produto grosseiro de pensamentos sistemáticos, que, perpetuamente voltados sobre si mesmos, têm a ilusão de se crerem fecundados pela Ciência, embora do radioso sol que ela simboliza não hajam recebido mais que um tênue raio desviado de sua direcção natural.
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Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria I - Posição do Problema 1 de 6, 5º fragmento da obra.
(imagem: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sexta-feira, 29 de março de 2013

Diálogos de Kardec ~


Primeira Notícia de Uma Nova Encarnação

(Em casa do Sr. Baudin; médium: Srta. Baudin / 17 de janeiro de 1857)

O Espírito prometera escrever-me uma carta por ocasião da entrada do ano. Tinha, dizia, qualquer coisa de particular a me dizer. Havendo-lhe eu pedido numa das reuniões ordinárias, respondeu que a daria na intimidade ao médium, para que este ma transmitisse. É esta a carta:

“Caro amigo, não te quis escrever terça-feira última diante de toda a gente, porque há certas coisas que só particularmente se podem dizer.

“Eu queria, primeiramente, falar-te da tua obra, a que mandaste imprimir. (O Livro dos Espíritos entrará para o prelo.) Não te afadigues tanto, de manhã à noite; passarás melhor e a obra nada perderá por esperar.

“Segundo o que vejo, és muito capaz de levar a bom termo a tua empresa e tens que fazer grandes coisas. Nada, porém, de exagero em coisa alguma. Observa e aprecia tudo judiciosa e friamente. Não te deixes arrastar pelos entusiastas, nem pelos muito apressados. Mede todos os teus passos, a fim de chegares ao fim com segurança. Não creias em mais do que aquilo que vejas; não desvies a atenção de tudo o que te pareça incompreensível; virás a saber a respeito mais do que qualquer outro, porque os assuntos de estudo serão postos sob as tuas vistas.

“Mas, ah! a verdade não será conhecida de todos, nem crida, senão daqui a muito tempo! Nessa existência não verás mais do que a aurora do êxito da tua obra. Terás que voltar, reencarnado noutro corpo, para completar o que houveres começado e, então, dada te será a satisfação de ver em plena frutificação a semente que houveres espalhado pela Terra.

“Surgirão invejosos e ciosos que procurarão infamar-te e fazer-te oposição: não desanimes; não te preocupes com o que digam ou façam contra ti; prossegue na tua obra; trabalha sempre pelo progresso da Humanidade, que serás amparado pelos bons Espíritos, enquanto perseverares no bom caminho.

‘Lembras-te de que, há um ano, prometi a minha amizade aos que, durante o ano, tivessem tido um proceder sempre correcto? Pois bem! declaro que és um dos que escolhi entre todos.”

Teu amigo que te quer e protege. — Z.

NOTA — Já tive ocasião de dizer que Z. não era um Espírito superior, porém muito bom e muito benfazejo. Talvez fosse mais adiantado do que o deixava supor o nome que tomara. Legitimavam esta suposição o carácter sério e a sabedoria de suas comunicações, conforme as circunstâncias. Sob a capa daquele nome, ele se permitia usar de uma linguagem familiar apropriada ao meio onde se manifestava e dizer, como frequentemente sucedia, duras verdades, sob a forma leve do epigrama. Como quer que seja, dele guardei sempre grata recordação e muito reconhecimento pelas boas advertências que sempre me deu e pelo devotamento que me testemunhou. Desapareceu com a dispersão da família Baudin, dizendo que em breve reencarnaria.
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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, A minha Primeira Iniciação no Espiritismo, Primeira Notícia de Uma Nova Encarnação, 4º fragmento da obra.
(imagem de ilustração: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

sexta-feira, 22 de março de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ ~

   O homem é os seus actos. A soma das acções de cada ser constitui o carácter, qualidade inalienável do indivíduo. Legatário doa próprios feitos, o espírito evolui mediante as actividades empreendidas, ressarcindo em cada avatar os compromissos negativos granjeados na vida passada, sob os estímulos das realizações enobrecidas de que se tenha feito autor. Todos conduzimos a soma das nossas qualidades, que formam o património que nos capacita a avançar ou estagnar, aprendendo, porém, sempre e incessantemente, de modo a crescer na direcção da Vida. O destino, portanto, estamos a tracejá-lo cada momento, mediante as atitudes assumidas em cada etapa vencida, em cada jornada a vencer. Fiamos e desfiamos a rede do provir, estabelecendo as medidas necessárias à felicidade ou à desdita de que somos responsáveis, autores do nosso sofrer ou alegria. A esse emaranhado, que faculta a ascese ao planalto da alegria ou a descida ao vale dos sofrimentos, denominados carma, ou “lei de causa e efeito”, perante cujas directrizes nos fazemos joguetes dos próprios desejos. Deus, a Suprema Governação do Universo, estabeleceu leis de perfeita e soberana harmonia, que o homem não pode desconsiderar levianamente. Toda a acção que lhe é dada. Cada vez que desrespeitamos, por preguiça ou rebeldia, o Estatuto Sagrado da Vida sofremos, naturalmente, a desarmonia de que nos fizemos promotores. É Justiça e é também Amor. A todos são concedidos os tesouros do discernimento, e a responsabilidade é valorizada, tendo-se em vista o grau de entendimento de cada criatura. Mais lucidez, maior soma de responsabilidade. Por isso, o Senhor Jesus foi categórico: “Mais se dará àquele que mais haja dado.” Ante a grandiosidade da vida, que nos escapa no actual estado de inteligência, todos somos iguais, crescendo pelo próprio esforço, a ingentes conquistas, sob a excelsa misericórdia do Nosso Pai. Assim, o amor é a fonte inexaurível, à disposição de quantos desejam felicidade e paz. O ódio, do mesmo modo, é reacção do primitivismo animal, instinto em trânsito para a inteligência, que ainda não pôde superar as expressões dos começos passados. Portanto, o homem é o que pensa, o que faz e deseja.

   Ninguém consegue evadir-se do país da consciência. Ali não há portas escancaradas para a fuga permanente. A lucidez obliterada pelo ópio da ilusão, ou anestesiada pelo tóxico do prazer, um dia se aclara, desperta para o óbvio da realidade, e o indivíduo acorda para as amargas meditações em torno do já feito, do deixado de fazer e do que poderia ter sido realizado. Mágico desenhador, quando a razão desperta, apresenta nas telas da mente o painel vivido das acções, e como num cinemascópio tridimensional movimentam-se todas as acções, em carácter duplo: como fizemos e como poderíamos ou deveríamos ter produzido. O que decorre desse encontro consigo mesmo, para o espírito que se redescobre em falta, constitui o travo ácido do arrependimento, que, alongado, é inoperante e negativo, e do remorso, que, demorado, é verdugo implacável, mas que não resolve a palpitante questão. Somente a consciencialização da responsabilidade e do legítimo desejo de reparar, empenhando todo o esforço, sob o preço da renúncia e da abnegação, constitui amenidade na canícula da dor superlativa que domina o ultrajante, ora ultrajado pelo despautério em que se comprazia. O gozo furtivo e a glória indébita, a ambição desmesurada e a sovinice soez, a inveja criminosa e a prepotência venal, a incúria de qualquer matiz e a traição sob qualquer ângulo, o orgulho vão e a soberba nula, a luxúria absurda e o despotismo de toda espécie, a indiferença à dor e o egoísmo nos seus disfarces, por mais se encontrem velados na astúcia ou na habilidade da dissimulação, diluem-se ante a luz da consciência desperta, produzindo alucinação nos seus famanazes, que padecem, então, séculos a fio nos sorvedores da reparação, ou nas situações estanque da autopunição em que se depuram, para reencetar o caminho, atravancado de escolhos que constituem barreiras a superar e testes para avaliar o esforço despendido na recomposição das leis divinas antes desrespeitadas. “A cada um segundo as suas obras” – afirmou Jesus, reflectindo a Justiça e o Amor de Deus.

   Na aferição dos valores, a renúncia ante o gozo não fruído, a abnegação face ao sofrimento, tendo em vista a felicidade de outrem, o sacrifício ignorado, praticado na intimidade do silêncio, com o objectivo de ajudar o próximo, o perdão indistinto, a bondade generosa e ampla, o amor dilatado até mesmo aos inimigos, as lâmpadas acesas da caridade, toda expressão de virtude incendeia o céu interior do homem e fá-lo dulcificado pela paz, multiplicando nele as bênçãos do júbilo, que pode continuar a esparzir como semente de felicidade pela senda por onde segue. Por isso, o Mestre Divino acentuou que são bem-aventurados os padecentes, os sacrificados, os pacíficos, os que amam, deles sendo o Reino dos Céus, desde a Terra, na qual estabelecem as balizas da superior construção.

   Em sentido oposto, todo o homem que ludibria equivoca-se em si mesmo. Aquele que consuma um crime infelicita-se. Quem proscreve o dever, prescreve a aflição para o provir. Ninguém há, portanto, que atravesse a evolução sem a experiência conseguida a pesado tributo de amor, para poupar-se ao afligente joeirar na dor, a perene mestra e sábia amiga dos corruptos e corruptores, defraudadores todos eles das leis soberanas. O carma, pois, é a verdade estabelecendo os critérios, os arbítrios do futuro, emboscada em nossa consciência vigilante que, a seu turno, é “Deus connosco”.

   O ar fresco da noite, penetrando em lufadas pelas janelas da carruagem, conseguiu acalmar Girólamo, que parecia angustiado e exaltado simultaneamente. Estacando o carro antes da Porta Ovile, saltou ainda esfogueado e, com Francesco, se adentrou pela estalagem regurgitante, sorvendo amplo caneco de fino chianti, que fazia famosa a bisca. Transcorridos alguns minutos, e estimulado pelo suave licor, cuja dosagem de álcool lhe penetrava o sangue, convidado pelo amigo, ambos saíram na direcção do Palácio T., para a ceia e posterior surtida pelas casas de prazer espalhadas pela cidade libertina.

   Os tocheiros ardentes e as lâmpadas de óleo crepitantes ofereciam à residência de Francesco aspecto festivo. A movimentação de servos activos e a agradável música que chegava da Via del Moro produziam nos moços, excitados pelo vapor alcoólico, estranhas satisfações. O repasto, servido no pátio interno da mansão, próximo a caprichoso repuxo de água cristalina, cantarolante, foi acompanhado de finos vinhos e de alacridade. A anfitriã, igualmente acostumada às explosões dos sentidos, apesar da sua juventude, proporcionava a Girólamo antevisões de facilidades que lhe seriam ofericidas ali, sem a necessidade da evasão para os centros embriagantes das profissionais do comércio dos desejos.

   - Música! Desejo música! – gritou Francesco, açulado pelos licores.

   Rubro e entusiasmado, avançou na direcção da esposa e, arrebatando-a com ruído, ensaiou passos de dança ligeira, entre palmas e gritos dos servos e do hóspede, arriando, por fim, exausto, sobre a cadeira de alto espaldar, acolchoada e bordada de gobelinos, à guisa de trono, reservada ao dono da casa.

   Girólamo, conhecedor que se fizera da alma humana pervertida, antegozou a embriaguez do amigo, imaginando apropriar-se da sua invigilante esposa, logo os bons fados lho permitissem. Sabendo que melhor e mais eficiente técnica de conquista é fazer-se distante, ignorando a oferta e espicaçando, habilmente, o desejo naquele que se permitiu arrastar pela viciação, o moço pretextou visita a amigos, dispensando Francesco, que se apresentava incapaz de acompanhá-lo, e, com estudada cortesia, demandou a via pública. Teria tempo de cuidar da reprochável mulher, em momento próprio, sem qualquer perigo para a sua condição de hóspede e amigo.

   Toda a cidade vivia, naquele Agosto, o entusiasmo e agitação próprios dos dias que precedem as festas do “Palio”. Hóspedes chegavam das cercanias, das cidades mais distantes, e as casas de estalagem, alberghi, pensões encontravam-se abarrotadas. Os trajes coloridos inundavam as ruas e os lampiões, presos às paredes ou pendurados sob os arcos das estreitas alamedas e becos, ofereciam claridade avermelhada, contrastando com o luar sonhador e argênteo que a tudo inundava.

   De taberna em taberna, usufruindo até ao cansaço os prazeres imediatos. Girólamo parecia esquecido dos acontecimentos do dia que ainda não findara.

   Em um único período diurno, a vida lhe facultara muito conhecer. Desabituado, porém, às cogitações menos vulgares, não se apercebia de que, estando à borda do abismo, aqueles eram os seus minutos finantes de loucura inconsciente. Afogava-se, pois, mais e mais, na taça da volúpia: se buscando viver, ou tentando finar-se, nem ele mesmo poderia saber. Certo é que, após os voluteios noctivos, refugiava-se em afamado bordel, em que a inconsciência o dominara horas sem-termo, até ao despertar no dia imediato, sol alto, dorido, cansado, em desassossego. Informando-se do tempo transcorrido, procurou recobrar o ânimo e saiu precipite, na direcção do lar que o hospedava, procurando justificar a falta em que incorrera, granjeando o perdão dos anfitriões, sem dúvida igualmente dissolutos.

   Aqueles dias eram dias de festa e em tais comenos se perdoavam todos os deslizes morais, sob uma tolerância de falsa compreensão das fraquezas que os nobres se podiam permitir, em detrimento das classes desfavorecidas pela cornucópia da fortuna e pela condição do berço.

   Depois de refrescar-se confortavelmente e narrar a Francesco a odisseia dos gozos exaustivos da véspera, aceitou o repasto frugal e procurou o leito para recobrar energias vitais, a fim de desperdiçá-las logo mais em nova diferente dissipação.

   Eram vésperas da grande festa. A Praça do Campo, também chamada Conchiglia, estava ricamente decorada. O Palácio Público exibia já as bandeiras representativas dos diversos bairros que disputariam o palio. Coberturas foram distendidas sobre os balcões que circundavam o largo e as cores da cidade, em guarnições e arazzi bem cuidados, de tecidos valiosos, se encontravam desfraldadas, dando movimento e vida ao local das disputas. Colchões foram espalhados pela periferia circular do Campo, para forrar as paredes dos edifícios, impedindo-se quedas de consequências lutuosas. No centro do picadeiro se aglutinaria o povo e, em volta, na pista aladeirada, a grande Mossa daria começo à parte mais importante dos jogos. Na Torre do Mangia tremulava, desde cedo, a bandeira da cidade, em vermelho vivo, com a loba simbólica. E, contrastando com toda a luz e cor, as lajes do campo, divididas em nove sectores, como evocando o Governo dos Nove, sobressaiam entre as listas longitudinais de pedra branca.

   A cidade estava esplendente e as ansiedades espocavam nos peitos intumescidos de júbilo.
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 1 de 4, 22º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

quarta-feira, 13 de março de 2013

O Espiritismo na Arte ~


Parte IV

(A oratória e o gesto; A inspiração dos grandes oradores)

|Abril de 1922|

Na oratória, o movimento do pensamento é representado não apenas pela palavra, mas também pelo gesto que sobre ele chama a atenção e acentua seus efeitos. Nisso, mais que em qualquer outra matéria, uma justa medida se impõe porque tanto o excesso como a ausência de mímica devem ser igualmente evitados com cuidado.

A maior parte dos grandes oradores recebe a inspiração do invisível. Essa inspiração chega até eles em ondas rápidas e faz surgir as expressões, as formas, as imagens que provocam o entusiasmo das multidões. Em certos momentos, eles se sentem como se fossem erguidos da Terra e levados por uma corrente irresistível. No transcorrer da minha carreira de conferencista, experimentei muitas vezes a sensação de uma poderosa ajuda oculta, e eu conhecia a sua causa. O Espírito Jerónimo de Praga, meu protector, meu guia, sempre me assistiu na minha tarefa de divulgador. Às vezes, no momento de aparecer diante de um numeroso público, com frequência indiferente ou mesmo hostil, e de tomar a palavra, eu era vítima de um mal físico, de uma violenta enxaqueca que paralisava meu pensamento e minha acção. Mas então, respondendo ao meu ardente apelo, à minha prece, o espírito do meu guia intervinha. Por uma enérgica magnetização, ele restabelecia o equilíbrio orgânico e devolvia minha lucidez, meus meios de agir. Outras vezes, após debates contraditórios que duravam várias horas, após lutas oratórias com contraditores obstinados, materialistas ou religiosos, apesar do meu esgotamento, eu ainda encontrava inflexões, entonações vibrantes que pasmavam e abalavam o auditório.

Um dia, tive a compreensão desse fenómeno ao vê-lo acontecer sob os meus olhos. Encontrava-me em Aix-les-Bains, na igreja paroquial, no decorrer de uma solenidade religiosa em homenagem a Joana d’Arc. Na presença do Cardeal Dubillard e de uma multidão compacta, um jovem padre subiu ao púlpito para pronunciar o panegírico (*) da heroína. Minha médium, a senhora Forget, que estava sentada ao meu lado, disse-me de repente: “Vejo o Espírito Jerónimo, ele está de pé no púlpito, atrás do padre.” Fiquei atento ao que ia se passar. O jovem padre começa com um tom calmo; suas frases harmoniosas se desenrolavam com método, depois, pouco a pouco, o tom se eleva, a voz torna-se vibrante e, por fim, inflexões poderosas, que eu reconhecia, fizeram ressoar as abóbadas do edifício. Eu tinha um exemplo do que se produzira comigo em muitos casos.

Essa inspirada eloquência eu a encontrei em certos médiuns, bastante raros na verdade. Há os que incorporam, em uma mesma sessão, vários espíritos dos quais as palavras revelam personalidades muito diferentes, de grande originalidade e que é impossível serem confundidas entre elas ou com a do médium.

O médium mais notável que encontrei, no decorrer de minhas viagens, foi a filha de um professor do liceu de Marselha. Quando em estado de transe, ela servia de voz não somente a oradores do espaço, mas também a outras entidades extraordinárias, por exemplo a célebre Sra. Geoffrin, que por sua delicadeza de espírito, sua amabilidade e o encanto penetrante de suas maneiras, por sua linguagem um pouco antiquada, não deixava, temos que convir, margens para a simulação.

É assim que as influências do alto se fazem sentir de mil maneiras, e que mais e mais se confirma a prova da sobrevivência da alma e da solidariedade que liga o mundo dos vivos ao mundo dos mortos.
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(*) Panegírico: discurso público de louvor, de elogio a alguém. (N.T., segundo o D.K.L.)


LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte IV – A oratória e o gesto; A inspiração dos grandes oradores, 16º fragmento da obra.
(imagem: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

quinta-feira, 7 de março de 2013

Da sombra do dogma à luz da razão ~


NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA (II)

   No sentido particular da fé religiosa, a revelação aplica-se mais espe-cialmente às coisas espirituais que o homem não pode saber só por si, que não pode descobrir através dos sentidos e cujo conhecimento lhe é dado por Deus ou pelos seus mensageiros, quer através da palavra directa, quer pela inspiração. Neste caso, a revelação é sempre feita a homens privilegiados, designados com o nome de profetas ou messias, isto é, enviados, missionários, que têm como missão transmiti-la aos homens. Considerada sob este ponto de vista, a revelação implica uma passividade absoluta; aceitamo-la sem controlo, sem exame, sem discussão.

   Todas as religiões têm os seus reveladores e, apesar de todos terem estado longe de conhecer toda a verdade, tinham a sua razão de ser providencial; porque estavam de acorde com o tempo e com o meio onde viviam, com a sabedoria particular dos povos a quem falavam e aos quais eram relativamente superiores. Apesar dos erros das suas doutrinas, não deixaram por isso de agitar os espíritos e, assim, espalharam os germes do progresso, que mais tarde se iriam desenvolver ou que um dia se irão desenvolver ao sol do Cristianismo. É por tanto injustamente que se lança sobre eles um anátema em nome da ortodoxia, pois virá o dia em que todas estas crenças, tão diversas na sua forma mas que na realidade da alma, se fundirão numa grande e vasta unidade, assim que a razão tenha vencido os preconceitos.

   Infelizmente, as religiões têm sempre sido instrumentos de domínio; o papel de profeta tentou as ambições secundárias e vimos surgir uma multidão de pretensos relevadores ou messias que, a coberto do prestígio deste nome, exploram a credulidade em benefício do seu orgulho, da sua cupidez ou da sua preguiça, achando mais cómodo viver à custa dos que enganavam. A religião cristã não esteve a coberto destes parasitas. A este respeito chamamos seriamente a atenção para o Capítulo XXI de O Evangelho Segundo o Espiritismo: «Haverá falsos Cristos e falsos profetas».

   Há revelações directas de Deus para os homens? Trata-se de uma questão que não nos atreveríamos a resolver nem afirmativa nem negativamente de uma maneira absoluta. A tarefa não é de forma nenhuma radicalmente impossível, mas nada nos dá disso uma prova certa. O que não oferece dúvidas é que os Espíritos mais próximos de Deus pela perfeição se impregnam do Seu pensamento e podem transmiti-lo. Quanto aos reveladores encarnados, consoante a ordem hierárquica a que pertencem e o grau do seu conhecimento pessoal, podem ir buscar as suas instruções aos seus conhecimentos pessoais ou recebê-las de Espíritos mais elevados, até mesmo mensagens directas de Deus. Estes, falando em nome de Deus, podem ter sido às vezes tomados pelo próprio Deus.

   Este tipo de comunicações nada tem de estranho para quem conhece os fenómenos espíritas e a forma como se estabelecem os contactos entre os encarnados e os não encarnados. As instruções podem ser transmitidas por diversos meios: por inspiração pura e simples, por audição da palavra, pela observação dos Espíritos instrutores em visões e aparições, quer em sonhos quer em estado de vigília, tal como se encontram vários exemplos na Bíblia, no Evangelho e nos livros sagrados de todos os povos. É portanto rigorosamente exacto dizer-se que a maior parte dos reveladores são médiuns inspirados, auditivos ou videntes, de onde não se pode concluir que todos os médiuns são reveladores e, ainda menos, que são os intermediários directos da Divindade ou dos seus mensageiros.

   Só os Espíritos puros recebem a palavra de Deus com a missão de a transmitirem; mas sabemos agora que os Espíritos estão longe de serem todos perfeitos e que há os que se revestem de falsas aparências; foi o que levou São João a dizer: «Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus ouve-nos; aquele que não é de Deus não nos ouve. Nisto conhecemos nós o espírito da verdade e o espírito do erro.» (1.ª Epistola de S. João, 4:6.)

   Pode, portanto, haver revelações sérias e verdadeiras, assim como as existem apócrifas e mentirosas. O carácter essencial da revelação divina é o da verdade eterna. Qualquer revelação manchada de erros ou sujeita a mudança não pode emanar de Deus. É assim que a lei do Decálogo conserva todo o carácter da sua origem, enquanto as outras leis moseístas, essencialmente transitórias, muitas vezes em contradição com a lei do Sinai, são obra pessoal e política do legislador hebreu. Suavizando-se os costumes do povo, estas leis caíram em desuso enquanto o Decálogo se manteve de pé como farol da humanidade. Cristo fez dele a base do seu edifício, ao mesmo tempo que abolia as outras leis. Se fossem obra de Deus, teria evitado tocar-lhes. Cristo e Moisés são os dois grandes reveladores que mudaram a face do mundo e nisso reside a prova da sua missão divina. Uma obra puramente humana não teria um tal poder.

   Uma revelação importante está a acontecer no tempo actual: é a que nos mostra a possibilidade de comunicarmos com os entes do mundo espiritual. Este conhecimento não é novo, sem dúvida, mas tinha ficado até aos nossos dias numa espécie de estado de letra morta, quer dizer, sem benefício para a humanidade. A ignorância das leis que regem estas relações tinha-o abafado sob a superstição: o homem era incapaz de retirar daí qualquer dedução salutar; estava reservado para a nossa época libertá-lo dos seus acessórios ridículos, compreender-lhe o alcance e dele soltar a luz que deve iluminar o caminho do futuro.
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" Na senda e no espírito de Pedro A. Barboza de La Torre em seu livro, De la sombra Del dogma a la luz de la razón.


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 7 a 11, 4º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 1 de março de 2013

Inquietações Primaveris ~


Inquietações Primaveris

A adolescência é a fase mais difícil e perigosa da vida, mas também a mais bela. Tudo é esperança e sonho, mesmo para os espíritos mais práticos. Mas existem as adolescências desastradas, carregadas de provas esmagadoras. É nessa fase – entre os 13 e 14 anos até aos 18 ou 20 –, que o jovem toma consciência de suas novas responsabilidades, em sua nova residência na Terra, para lembrarmos o título de um dos mais belos livros de poemas de Pablo Neruda. Nesse período as lições e os exemplos da infância amadurecem lentamente e precisam, mais do que nunca, ser acrescidos de novos e vigorosos estímulos. Porque, nessa primavera da vida avivam-se o perfume das flores, o cheiro estonteante do pólen e as condições de vagas lembranças do passado. O adolescente sente-se atraído por sectores diversos de actividades e arrastado para comportamentos anteriores quase sempre perigosos. Ele se mostra rebelde, insatisfeito, opõe-se aos pais e pretende corrigi-los. Torna-se crítico, irónico, não raro zombeteiro, pretensioso, acreditando saber mais do que os outros, especialmente do que os mais velhos. É o momento da reelaboração da experiência das gerações anteriores, bem acentuado na obra de Dewey. Ele tem razão e sabe que a tem, mas não sabe como definir, expor e orientar o seu pensamento ainda informe e já ansioso por externar-se e impor-se ao mundo. Não se pode contrariá-lo frontalmente nem aprová-lo sem restrições. Qualquer dessas atitudes poderá mesmo exasperá-lo. Deve-se tratá-lo com cuidado, evitando excessos, e dar-lhe exemplos positivos sem alarde, sem propaganda. Ele, só ele é quem deve perceber o que se faz de bom ou de mau em seu redor. Estímulos bons e tentações perigosas perturbam a sua alegria, pequenas decepções lhe parecem definitivas. É nessa fase que se pode perceber, mais ou menos, quais os tipos de experiências por que ele passou na última encarnação. Essa percepção oferece indicações importantes para a orientação do processo educativo, desde que consideradas com cautela e confrontadas com outras manifestações que as corroborem. De qualquer maneira, não se deve dar ciência dessas observações ao jovem. Elas servem apenas para os pais e os familiares integrados no trabalho de orientação. Comunicações de entidades sérias e suficientemente conhecidas poderão também auxiliar.

Nas famílias espíritas, bem integradas na Doutrina, o processo se torna mais facilmente realizável. Nas famílias católicas e protestantes, ou integradas em seitas anti-reencarnacionistas, as dificuldades são maiores, mas não insuperáveis. A leitura e o estudo das obras de Kardec ajudarão muito o desenvolvimento do processo educativo, desde que o adolescente se mostre interessado pelo conhecimento do problema. Forçá-lo a isso seria contraproducente. Tudo o que representar ou parecer imposição será fatalmente rejeitado. A leitura referida poderá ser sugerida por outro adolescente, sem que se deixe transparecer o dedo de um adulto por trás da tentativa.

De maneira geral, a observação da vocação e das tendências do adolescente são importantes. Mas o mais importante será sempre o exemplo dos mais velhos, na família e na escola, pois o instinto de imitação da criança subsiste no adolescente e se prolonga, geralmente, na maturidade, diluído mas constante, o que podemos verificar facilmente no meio social comum. Os tempos actuais não são favoráveis a bons exemplos, mas há sempre bons livros a se presentear a um adolescente no seu aniversário, sem se deixar perceber qualquer intenção orientadora. Os livros que tratam de problemas espirituais e morais devem ser de autores arejados, que encarem o mundo e a vida de maneira objectiva, sem cair no sermonário ou no misticismo piegas. Ou tratamos com os jovens numa linguagem clara, directa e positiva ou não seremos ouvidos. As novas gerações são vanguardistas de um novo mundo e não querem compromissos com o mundo de mentiras e hipocrisias em que vivemos até agora.

Não se pense, porém, que todos os adolescentes são difíceis. No seu excelente estudo A Crise da Adolescência, Maurice Debusse tem muito para nos ensinar.

As inquietações primaveris da adolescência reflectem amarguras e alegrias de outras encarnações. As amarguras correspondem a fracassos dolorosos de uma vida passada, que tanto pode ser a última como também uma encarnação anterior, até mesmo longínqua. As alegrias reflectem acontecimentos felizes, que por isso carregam também as sombras da saudade, gerando no adolescente estranhas e profundas nostalgias. Não se trata propriamente de lembranças ou recordações, mas apenas de um eco soturno que parece ressoar nas profundezas de uma gruta. O adolescente sofre essas repercussões sem identificá-las, sem saber de onde chegam à sua acústica interior esses ruídos semelhantes ao das vagas numa praia deserta. Anseios indefinidos brotam do seu coração, tentando arrastá-lo para distâncias desconhecidas, mundos perdidos no tempo, criaturas amadas mas desconhecidas que o chamam e anseiam por encontrá-lo. Os sonhos o embalam às vezes, ao dormir, em situações que o confundem, pois as imagens de outros tempos e as do presente se embaralham no processo onírico, não lhe permitindo a identificação de lugares, edifícios, cidades em que ele parece ter vivido. Os terrores nocturnos o assaltam com visões que muitas vezes nada têm de trágico ou perigoso, mas que não obstante o despertam apavorado e trémulo. Atrevido e audacioso à luz do dia, disposto a enfrentar o mundo dos velhos e transformá-lo heroicamente num mundo melhor, mostra-se infantil e frágil nesses momentos de ressonância imprecisa do passado. Às vezes um pequeno incidente do presente, uma troca de palavras ásperas com alguém, uma jovem que o encarou distraidamente na rua e depois lhe virou abruptamente o rosto, é suficiente para levá-lo a fugir para o seu quarto, fechando-se à chave para chorar angustiado sem saber por que motivo chora. A crise da adolescência não é fatal, obrigatória, pelo menos nessa intensidade. Varia enormemente nos graus de sua manifestação e em alguns adolescentes parece nunca se manifestar. Na verdade, manifesta-se atenuada, traduzindo-se em caprichos estranhos, numa espécie de esquizofrenia incipiente, que logra os psicólogos e psiquiatras. São as variações de temperamento, de situações vividas, de sensibilidade mais ou menos aguçada, de maior ou menor integração do espírito na nova encarnação, que determinam essa variedade. A ressonância existe sempre, mas nem sempre desencadeia a crise. Os temperamentos estéticos, sonhadores, são os mais afectados. Os espíritos práticos apegam-se mais facilmente à nova realidade e a ressonância se produz neles de maneira esmaecida, sem afectar o seu comportamento.

Há criaturas que desde a infância começam a sentir os sintomas da crise. Certos adolescentes passam pelo período da crise como abobados, em estado de permanente distracção. Rejeitam o mundo e o meio em que vivem e desejam morrer. Acham que jamais se integrarão a realidade presente. Realidade que vai aos poucos se impondo a essas criaturas que acabam por se adaptarem a ela. A vida tem as suas leis e sabe domar a rebeldia humana. Algumas dessas almas rebeladas acomodam-se ao mundo, mas nunca o aceitam de bom grado. Parecem exiladas em nosso planeta. O período mais difícil que atravessam é o da adolescência, rejeitando companhias, fugindo às reuniões festivas, entregues a uma espécie de desânimo permanente.

Na pesquisa espírita verifica-se, na maioria desses casos, a presença de entidades inconformadas que aumentam a inquietação desses espíritos saudosistas. Nas reuniões mediúnicas e através de passes encontram geralmente a solução dessa nostalgia aparentemente sem motivo.

O mundo actual pressiona de maneira arrasadora essas almas sensíveis, que muitas vezes estão passando pelos resgates de privilégios que usaram e abusaram aqui mesmo, na Terra. As mudanças de posição social, a troca de um meio refinado pelas situações inferiores, no processo reencarnatório, causa os desajustes naturais de todas as mudanças. Mas cada alma já vem preparada espiritualmente para superar essas dificuldades dos períodos de adaptação.

Na Educação para a Morte esses casos são naturalmente prevenidos através dos esclarecimentos da finalidade da existência. Ensinando-se e provando-se, com os dados científicos hoje amplamente conseguidos, que a evolução é lei geral do Universo e que a evolução humana se desenvolve em etapas sucessivas que nos levam sempre a situações melhores, as inquietações da adolescência são compensadas pela esperança e até mesmo a certeza de um futuro melhor. O desespero e o desânimo são sempre produzidos pela ausência da esperança. Em geral essa ausência decorre de informações negativas sobre o destino humano. As informações positivas e desinteressadas, fornecidas por cientistas que buscam a verdade e não a ilusão mística das religiões, sempre interessadas no proselitismo de que vivem, são mais facilmente aceitas e compreendidas. A desmoralização natural das religiões da morte abriu as portas do mundo às concepções negativas do materialismo e do ateísmo. Por isso o mundo se tornou mais árido e insuportável, uma espécie de prisão espacial em que a espécie humana está condenada a uma vida de réprobos sem perspectiva. E de tal forma essa prisão asfixiou a Terra que os próprios cientistas, adversos à questão espiritual, se incumbiram de derrubar a Ditadura da Física, como assinalou Rhine. O cálculo de probabilidades substituiu a rigidez das operações exactas e invariáveis da concepção mecanicista. Introduzido o espírito nas equações físicas, a liberdade se impôs nas avaliações da mecânica e da dinâmica da Natureza. Em vão surgiu a revolta filosófica do Estruturalismo de Strauss, que não passou de sonho de uma noite de verão para os anti-evolucionistas apegados ao bolor rançoso do Fixismo dogmático. As perspectivas actuais, não obstante as loucuras do momento, são de esperança para a Terra e o Homem. Bastaria esse facto para alentar os corações inquietos e as mentes perturbadas. O princípio da Ordem Universal perdeu a sua rigidez estática e o fluir da vida revelou a sua fluidez na surpreendente flexibilidade das estruturas vivas.

Não há mais lugar para os adeptos da nadificação em nossa cultura. O Universo revelou-se energético de força, espírito e matéria. Não se pode mais falar, como no tempo de Bukner, apenas em força e matéria. Voltamos ao pensamento grego de Talles de Mileto, o vidente que dizia: “O Mundo é pleno de deuses.” Na época, os deuses eram os espíritos que o povoavam e, por sua natureza específica, pairavam acima da natureza humana comum. Todos os sofismas da Mística milenar e todas as dúvidas do Cepticismo antigo e moderno morreram nas explosões atómicas de Hiroshima e Nagasaki. Nada se perde, nada se acaba, tudo se integra, desintegra e reintegra nas incessantes metamorfoses do Cosmos. Inadmissível o conceito vazio do Nada, esse buraco no absurdo. O Nada não existe em parte alguma e a vida não é chama que apague ao sopro de deuses ou demónios. As sondagens astronáuticas provaram o princípio kardeciano da relação criadora e dialéctica entre força e matéria. Ninguém, nenhuma coisa ou objecto, nenhum ser se frustra em parte alguma, simplesmente porque as coordenadas do tempo e do espaço repousam na duração, esse conceito moderno e dinâmico que substituiu o conceito estático de eternidade.

A natureza ôntica revela a essência do ser como síntese consciencial da dialéctica espírito e matéria. Como Geley demonstrou, a realidade una e densa é um fluxo energético ininterrupto que vai do inconsciente ao consciente. Léon Denis, que Conan Doyle chamou de O Druída de Lorena, ofereceu-nos a síntese poética e racional (Razão e Poesia – confirmando o hilosoismo grego) nesta visão espantosa da realidade universal: “A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem.” A consciência é potência no mineral, desenvolvimento progressivo no vegetal, onde a sensibilidade aflora, transição vital no animal, que desenvolve a motilidade, e acto no homem, a caminho inevitável e irreversível da transcendência na existência. Deus, a Consciência Absoluta, não é o Primeiro motor Imóvel de Aristóteles, mas a Consciência Funcional do Cosmos. Como na definição da Educação por Hubert, Deus é a Consciência Plena que eleva e atrai sem cessar as consciências embrionárias para integrá-las em sua plenitude Divina.
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José Herculano Pires – Educação para a Morte, Inquietações Primaveris, 12º fragmento da obra.
(imagem: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O Mundo Invisível e a Guerra ~

VI 
O Despertar do Génio Céltico *

   Assim como um lago que a tempestade agita vê surgir à superfície as coisas submersas no fundo de suas águas, também o drama imenso que perturba o mundo faz aparecer, com as forças latentes, todas as violentas paixões, as cobiças e os ódios que dormitavam no fundo da alma humana.

   Neste momento cruel, é agradável descansar o pensamento nos grandes vultos que guiaram, iluminaram e confortaram a humanidade, estando nesse número Allan Kardec.

   Há cerca de 20 anos percorria eu as praias da Bretanha, essa terra de granito agitada pelas tempestades e varrida pelos fortes ventos do mar. Lá estão os colossos de pedra, os imponentes monumentos megalíticos, erguidos por nossos antepassados, os celtas, à beira do oceano.

   É verdade que Camille Jullian e outros sábios lhe dão origem mais antiga, porém, sejam quais forem os seus autores, representam um grande pensamento religioso e os druidas dele se utilizaram para as necessidades de seu culto austero.

   Falarei aqui dos célebres alinhamentos de Carnac, que contavam, ainda na Idade Média, doze mil pedras do Menhir de Locmariaquer, dividido hoje em três pedaços com 25 metros de altura!

   Precisarei falar dos dolmens e das grutas funerárias que cobrem toda a região?

   Quantos viajantes passaram perto desses blocos misteriosos sem entender o seu sentido?

   De minha parte sempre me esforcei em estudar essa gigantesca bíblia de pedra e ela me revelou a religião de nossos antepassados, tão caluniados pelo Catolicismo idólatra: Deus é grande demais, pensavam eles, para ser representado por imagens e só a natureza, virgem e livre, pode dar uma ideia de seu poder e de sua grandeza.

   Toda pedra talhada é pedra maculada e somente debaixo das abóbadas sombrias das florestas seculares ou do alto das penedias, de onde o olhar abarca os imensos horizontes do mar, podemos entrever o Ser Infinito e Eterno!

   Vós bem sabeis que eles acreditavam na pluralidade dos mundos habitados, no progresso das almas pelo caminho das vidas sucessivas, e mantinham o intercâmbio dos vivos com os mortos.

   Nessas profundas fontes Allan Kardec ilustrou o seu espírito e em ambientes idênticos ele outrora viveu. Talvez não na Bretanha, mas na Escócia, conforme indicação de seus guias. A Escócia era habitada pela mesma raça e ali os monumentos megalíticos são numerosos. Ainda hoje a tradição céltica paira sobre os lagos e os montes, entre as neblinas melancólicas do norte.

   As faculdades psíquicas, principalmente a vidência, são hereditárias em muitas famílias e Kardec aprendeu nessa terra a filosofia dos druidas, preparando-se para as grandes empresas futuras, no estudo e na meditação.

   Em sua última existência, tudo nele, o carácter grave, o ardente amor pela natureza, o nome de Allan Kardec, que ele mesmo escolheu, até o dólmen erguido no seu túmulo em cumprimento do seu desejo, tudo nele, repito, recorda o homem do visco ** do carvalho, que retornou a esta Gália para fazer renascer a fé extinta, revivendo nas almas o sentido de imortalidade, a crença nas existências sucessivas e a estreita solidariedade que liga o mundo visível ao mundo invisível.

   Kardec, meu mestre! É sob esse aspecto, bem pouco conhecido, que desejo considerar-te! É em nome dessas lembranças comuns que te venho dizer: inspira-nos na realização da obra começada, guiando-nos no caminho que teus primeiros esforços abriram.
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* Lido no Cemitério Père-Lachaise em 31 de março de 1916, aniversário do falecimento de Allan Kardec.
** Visco: planta parasita, originária das regiões temperadas do hemisfério norte, que vive agarrada aos troncos e aos ramos das árvores e que se mantém sempre verde. (N.R.)


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, VI – O Despertar do Génio Céltico, 1 de 2, 18º fragmento da obra.
(imagem: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)