Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 22 de março de 2013

~~~Párias em Redenção~~~


OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ ~

   O homem é os seus actos. A soma das acções de cada ser constitui o carácter, qualidade inalienável do indivíduo. Legatário doa próprios feitos, o espírito evolui mediante as actividades empreendidas, ressarcindo em cada avatar os compromissos negativos granjeados na vida passada, sob os estímulos das realizações enobrecidas de que se tenha feito autor. Todos conduzimos a soma das nossas qualidades, que formam o património que nos capacita a avançar ou estagnar, aprendendo, porém, sempre e incessantemente, de modo a crescer na direcção da Vida. O destino, portanto, estamos a tracejá-lo cada momento, mediante as atitudes assumidas em cada etapa vencida, em cada jornada a vencer. Fiamos e desfiamos a rede do provir, estabelecendo as medidas necessárias à felicidade ou à desdita de que somos responsáveis, autores do nosso sofrer ou alegria. A esse emaranhado, que faculta a ascese ao planalto da alegria ou a descida ao vale dos sofrimentos, denominados carma, ou “lei de causa e efeito”, perante cujas directrizes nos fazemos joguetes dos próprios desejos. Deus, a Suprema Governação do Universo, estabeleceu leis de perfeita e soberana harmonia, que o homem não pode desconsiderar levianamente. Toda a acção que lhe é dada. Cada vez que desrespeitamos, por preguiça ou rebeldia, o Estatuto Sagrado da Vida sofremos, naturalmente, a desarmonia de que nos fizemos promotores. É Justiça e é também Amor. A todos são concedidos os tesouros do discernimento, e a responsabilidade é valorizada, tendo-se em vista o grau de entendimento de cada criatura. Mais lucidez, maior soma de responsabilidade. Por isso, o Senhor Jesus foi categórico: “Mais se dará àquele que mais haja dado.” Ante a grandiosidade da vida, que nos escapa no actual estado de inteligência, todos somos iguais, crescendo pelo próprio esforço, a ingentes conquistas, sob a excelsa misericórdia do Nosso Pai. Assim, o amor é a fonte inexaurível, à disposição de quantos desejam felicidade e paz. O ódio, do mesmo modo, é reacção do primitivismo animal, instinto em trânsito para a inteligência, que ainda não pôde superar as expressões dos começos passados. Portanto, o homem é o que pensa, o que faz e deseja.

   Ninguém consegue evadir-se do país da consciência. Ali não há portas escancaradas para a fuga permanente. A lucidez obliterada pelo ópio da ilusão, ou anestesiada pelo tóxico do prazer, um dia se aclara, desperta para o óbvio da realidade, e o indivíduo acorda para as amargas meditações em torno do já feito, do deixado de fazer e do que poderia ter sido realizado. Mágico desenhador, quando a razão desperta, apresenta nas telas da mente o painel vivido das acções, e como num cinemascópio tridimensional movimentam-se todas as acções, em carácter duplo: como fizemos e como poderíamos ou deveríamos ter produzido. O que decorre desse encontro consigo mesmo, para o espírito que se redescobre em falta, constitui o travo ácido do arrependimento, que, alongado, é inoperante e negativo, e do remorso, que, demorado, é verdugo implacável, mas que não resolve a palpitante questão. Somente a consciencialização da responsabilidade e do legítimo desejo de reparar, empenhando todo o esforço, sob o preço da renúncia e da abnegação, constitui amenidade na canícula da dor superlativa que domina o ultrajante, ora ultrajado pelo despautério em que se comprazia. O gozo furtivo e a glória indébita, a ambição desmesurada e a sovinice soez, a inveja criminosa e a prepotência venal, a incúria de qualquer matiz e a traição sob qualquer ângulo, o orgulho vão e a soberba nula, a luxúria absurda e o despotismo de toda espécie, a indiferença à dor e o egoísmo nos seus disfarces, por mais se encontrem velados na astúcia ou na habilidade da dissimulação, diluem-se ante a luz da consciência desperta, produzindo alucinação nos seus famanazes, que padecem, então, séculos a fio nos sorvedores da reparação, ou nas situações estanque da autopunição em que se depuram, para reencetar o caminho, atravancado de escolhos que constituem barreiras a superar e testes para avaliar o esforço despendido na recomposição das leis divinas antes desrespeitadas. “A cada um segundo as suas obras” – afirmou Jesus, reflectindo a Justiça e o Amor de Deus.

   Na aferição dos valores, a renúncia ante o gozo não fruído, a abnegação face ao sofrimento, tendo em vista a felicidade de outrem, o sacrifício ignorado, praticado na intimidade do silêncio, com o objectivo de ajudar o próximo, o perdão indistinto, a bondade generosa e ampla, o amor dilatado até mesmo aos inimigos, as lâmpadas acesas da caridade, toda expressão de virtude incendeia o céu interior do homem e fá-lo dulcificado pela paz, multiplicando nele as bênçãos do júbilo, que pode continuar a esparzir como semente de felicidade pela senda por onde segue. Por isso, o Mestre Divino acentuou que são bem-aventurados os padecentes, os sacrificados, os pacíficos, os que amam, deles sendo o Reino dos Céus, desde a Terra, na qual estabelecem as balizas da superior construção.

   Em sentido oposto, todo o homem que ludibria equivoca-se em si mesmo. Aquele que consuma um crime infelicita-se. Quem proscreve o dever, prescreve a aflição para o provir. Ninguém há, portanto, que atravesse a evolução sem a experiência conseguida a pesado tributo de amor, para poupar-se ao afligente joeirar na dor, a perene mestra e sábia amiga dos corruptos e corruptores, defraudadores todos eles das leis soberanas. O carma, pois, é a verdade estabelecendo os critérios, os arbítrios do futuro, emboscada em nossa consciência vigilante que, a seu turno, é “Deus connosco”.

   O ar fresco da noite, penetrando em lufadas pelas janelas da carruagem, conseguiu acalmar Girólamo, que parecia angustiado e exaltado simultaneamente. Estacando o carro antes da Porta Ovile, saltou ainda esfogueado e, com Francesco, se adentrou pela estalagem regurgitante, sorvendo amplo caneco de fino chianti, que fazia famosa a bisca. Transcorridos alguns minutos, e estimulado pelo suave licor, cuja dosagem de álcool lhe penetrava o sangue, convidado pelo amigo, ambos saíram na direcção do Palácio T., para a ceia e posterior surtida pelas casas de prazer espalhadas pela cidade libertina.

   Os tocheiros ardentes e as lâmpadas de óleo crepitantes ofereciam à residência de Francesco aspecto festivo. A movimentação de servos activos e a agradável música que chegava da Via del Moro produziam nos moços, excitados pelo vapor alcoólico, estranhas satisfações. O repasto, servido no pátio interno da mansão, próximo a caprichoso repuxo de água cristalina, cantarolante, foi acompanhado de finos vinhos e de alacridade. A anfitriã, igualmente acostumada às explosões dos sentidos, apesar da sua juventude, proporcionava a Girólamo antevisões de facilidades que lhe seriam ofericidas ali, sem a necessidade da evasão para os centros embriagantes das profissionais do comércio dos desejos.

   - Música! Desejo música! – gritou Francesco, açulado pelos licores.

   Rubro e entusiasmado, avançou na direcção da esposa e, arrebatando-a com ruído, ensaiou passos de dança ligeira, entre palmas e gritos dos servos e do hóspede, arriando, por fim, exausto, sobre a cadeira de alto espaldar, acolchoada e bordada de gobelinos, à guisa de trono, reservada ao dono da casa.

   Girólamo, conhecedor que se fizera da alma humana pervertida, antegozou a embriaguez do amigo, imaginando apropriar-se da sua invigilante esposa, logo os bons fados lho permitissem. Sabendo que melhor e mais eficiente técnica de conquista é fazer-se distante, ignorando a oferta e espicaçando, habilmente, o desejo naquele que se permitiu arrastar pela viciação, o moço pretextou visita a amigos, dispensando Francesco, que se apresentava incapaz de acompanhá-lo, e, com estudada cortesia, demandou a via pública. Teria tempo de cuidar da reprochável mulher, em momento próprio, sem qualquer perigo para a sua condição de hóspede e amigo.

   Toda a cidade vivia, naquele Agosto, o entusiasmo e agitação próprios dos dias que precedem as festas do “Palio”. Hóspedes chegavam das cercanias, das cidades mais distantes, e as casas de estalagem, alberghi, pensões encontravam-se abarrotadas. Os trajes coloridos inundavam as ruas e os lampiões, presos às paredes ou pendurados sob os arcos das estreitas alamedas e becos, ofereciam claridade avermelhada, contrastando com o luar sonhador e argênteo que a tudo inundava.

   De taberna em taberna, usufruindo até ao cansaço os prazeres imediatos. Girólamo parecia esquecido dos acontecimentos do dia que ainda não findara.

   Em um único período diurno, a vida lhe facultara muito conhecer. Desabituado, porém, às cogitações menos vulgares, não se apercebia de que, estando à borda do abismo, aqueles eram os seus minutos finantes de loucura inconsciente. Afogava-se, pois, mais e mais, na taça da volúpia: se buscando viver, ou tentando finar-se, nem ele mesmo poderia saber. Certo é que, após os voluteios noctivos, refugiava-se em afamado bordel, em que a inconsciência o dominara horas sem-termo, até ao despertar no dia imediato, sol alto, dorido, cansado, em desassossego. Informando-se do tempo transcorrido, procurou recobrar o ânimo e saiu precipite, na direcção do lar que o hospedava, procurando justificar a falta em que incorrera, granjeando o perdão dos anfitriões, sem dúvida igualmente dissolutos.

   Aqueles dias eram dias de festa e em tais comenos se perdoavam todos os deslizes morais, sob uma tolerância de falsa compreensão das fraquezas que os nobres se podiam permitir, em detrimento das classes desfavorecidas pela cornucópia da fortuna e pela condição do berço.

   Depois de refrescar-se confortavelmente e narrar a Francesco a odisseia dos gozos exaustivos da véspera, aceitou o repasto frugal e procurou o leito para recobrar energias vitais, a fim de desperdiçá-las logo mais em nova diferente dissipação.

   Eram vésperas da grande festa. A Praça do Campo, também chamada Conchiglia, estava ricamente decorada. O Palácio Público exibia já as bandeiras representativas dos diversos bairros que disputariam o palio. Coberturas foram distendidas sobre os balcões que circundavam o largo e as cores da cidade, em guarnições e arazzi bem cuidados, de tecidos valiosos, se encontravam desfraldadas, dando movimento e vida ao local das disputas. Colchões foram espalhados pela periferia circular do Campo, para forrar as paredes dos edifícios, impedindo-se quedas de consequências lutuosas. No centro do picadeiro se aglutinaria o povo e, em volta, na pista aladeirada, a grande Mossa daria começo à parte mais importante dos jogos. Na Torre do Mangia tremulava, desde cedo, a bandeira da cidade, em vermelho vivo, com a loba simbólica. E, contrastando com toda a luz e cor, as lajes do campo, divididas em nove sectores, como evocando o Governo dos Nove, sobressaiam entre as listas longitudinais de pedra branca.

   A cidade estava esplendente e as ansiedades espocavam nos peitos intumescidos de júbilo.
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VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 7. OBSESSÃO VINGADORA E PERTINAZ 1 de 4, 22º fragmento da obra. Texto mediúnico ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgar Maxence)

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