Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sábado, 11 de agosto de 2018

agonia das religiões ~


A Criação do Homem |

Concedo-me o direito de me abstrair do problema de Deus para examinar a questão da criação do homem. Os cientistas colocaram-se precisamente nesta posição e admitiram a existência de um processo evolutivo no qual o homem aparece como resultado de uma filogénese fantástica. Dos animais inferiores até aos superiores, num desenvolvimento progressivo e complexo, as forças naturais modelaram formas sucessivas de vida que deram como resultado o aparecimento da espécie humana na Terra. A superioridade do homem perante as espécies animais de que ele procederia, suscitou dúvidas e debates que permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discípula e companheira de Sartre no campo da concepção existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie não pode ser aplicada à humanidade, que não é uma espécie animal, mas um devir, algo em auto-evolução constante e irrefreável. Alfred Russell Wallace, adversário de Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao seu materialismo biológico, sustentando uma posição espiritualista. De Spencer a Bergson a concepção evolucionista conseguiu firmar-se como a mais elevada interpretação da realidade, apesar da insistência das correntes dogmáticas-religiosas e das correntes irracionalistas em combatê-la, considerando-a simples teoria metafísica sem bases científicas.

Após a segunda guerra mundial e em consequência das atrocidades a que grandes nações civilizadas foram conduzidas, o pessimismo levou o homem a novas formas de dúvida. Passou a falar-se em mudanças, não em progresso ou em evolução. Produto do susto e da decepção, esse recuo está a ser superado pelo próprio avanço científico, em que os processos da evolução se confirmam continuamente. Kardec já advertia, no século passado, que o mal das interpretações humanas está na falta de uma visão mais ampla e profunda da realidade. Os homens vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza e apegam-se a essa percepção restrita para a elaboração dos seus pensamentos. Exemplo típico dessa restrição mental é a tentativa, hoje renovada, de separar a evolução biológica, considerada inegável, dos demais aspectos do processo evolutivo universal. Uma restrição arbitrária, característica da orientação analítica da pesquisa científica e oposta à visão de conjunto dos métodos conclusivos da reflexão filosófica.

Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a oposição dos contrários. O método analítico é uma faca de dois gumes. Por um lado faculta-nos a precisão objectiva no conhecimento de uma realidade específica, por outro lado impede-nos a visão de conjunto. Foi exactamente por isso que se tornou necessário, após o aparente desprestígio da Filosofia, perante as conquistas inegáveis da pesquisa científica, recorrer-se à Filosofia das Ciências para se evitar a fragmentação total do Conhecimento. Só no plano filosófico se tornou possível reajustar as conquistas científicas num quadro geral de interpretação da realidade. Mas existe outro factor determinante da desconfiança científica em relação aos princípios espíritas, que é o instinto de conservação, agente preservador da integridade do homem e das suas realizações. Esse instinto, bem manifesto no sócio-centrismo das instituições científicas ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo o que possa modificar o saber já considerado como adquirido. Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de Altos Estudos de Paris, denunciou a existência no campo científico de uma alergia ao futuro, responsável pela rejeição liminar, sem exame, de toda a novidade, mesmo que sustentada por cientistas com mérito. Essa neofobia tem produzido muitos mártires no campo científico e cultural em geral.

Pouco a pouco, porém, e hoje mais rapidamente do que no passado, essa posição acomodatícia vai sendo vencida pelas próprias exigências do progresso, da evolução científica. Nos nossos dias, a descoberta da antimatéria, as pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenómenos paranormais através da Parapsicologia, a recente descoberta do corpo-bioplásmico do homem e de todos os seres, o êxito, ainda incipiente mas já significativo, das pesquisas sobre a reencarnação, a constatação da existência de outras dimensões da realidade, a evolução do conceito de universos-paralelos para o de universos interpenetrados, a aceitação da pluralidade dos mundos habitados e da escala evolutiva dos mundos – proposta há mais de um século pelo Espiritismo – estão a arrancar as corporações científicas das suas cómodas poltronas académicas e lançando-as decisivamente em órbita, nas rotas giratórias do progresso.

Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em que ele se compara a um falcão que gira em círculos crescentes em torno de uma torre secular, símbolo de Deus. É uma imagem feliz da evolução, que se processa em espiral. O retorno à barbárie na segunda guerra mundial não representa o retrocesso da evolução humana, mas apenas uma curva decrescente da espiral que tocou os resíduos bárbaros do homem – a região subterrânea dos instintos animais – para uma espécie de catarse colectiva. Mas tudo serve para a exploração dos que se entregam ao comodismo e aos que ainda não conseguiram desprender o seu pensamento dos objectos materiais. A História da Matemática mostra-nos que o pensamento dos primitivos era de tal maneira apegado ao concreto que, nas tribos selvagens, a contagem das coisas não excedia ao número de dedos das mãos, indo quando muito até à soma dos dedos dos pés. A posição dos anti-evolucionistas actuais assemelha-se, guardadas as distâncias culturais, à dos selvagens presos aos seus próprios dedos. Temos a prova da evolução em nós mesmos e em tudo o que nos rodeia, mas os espíritos sistemáticos e opiniáticos querem as favas contadas onde não há favas.

Espiritismo ensina que tudo se encadeia no Universo, numa sequência constante de relações. No item 540 de “O Livro dos Espíritos”, a obra fundamental da doutrina, encontramos esta proposição: Tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até ao Arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo. Assim, do átomo nasce o minério, deste o vegetal, deste ao animal, deste ao homem e deste ao Anjo, ao Arcanjo e quantas criaturas espirituais quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural desaparece quando admitimos o processo contínuo da evolução. A Natureza mostra-nos as duas faces da concepção de Espinoza, com a sua teoria da Natureza naturata e da Natureza Naturans, equivalente ao conceito de um mundo sensível e um mundo inteligível, do pensamento de Platão, interligados e interatuantes. O que poderia existir fora da Natureza? Deus? Mas já vimos que a fonte originária, pelo facto mesmo de ser a origem de tudo está ligada ao Todo e nele se insere. Podemos, como os druidas (os sacerdotes celtas das Gálias) imaginar o Universo formado por três círculos: o de Gwinfidem que Deus permanece; o de Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais; o de Anunf, correspondente às regiões inferiores do plano evolutivo. Mas na concepção materialista o círculo de Gwinfid não pode existir, uma vez que Deus foi excluído. Como podemos considerar a criação do homem sem a acção de Deus? É o que tentaremos expor agora.

A união de dois princípios fundamentais, força e matéria, existentes no caos primitivo, determina o aparecimento das estruturas atómicas. Os átomos aglutinam-se em formações diversas e produzem os elementos minerais. Mas estes elementos não estão mortos, não são estáticos. No seio da sua aparente placidez os átomos continuam em permanente agitação e produzem, quando as condições se tornam favoráveis, as primeiras formas vegetaisNestas formas temos o nascimento da sensibilidade rudimentar, que vai desenvolver-se até à produção das primeiras formas animais. A actividade atómica transmite-se a essas formas produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação própria, que arranca os animais do solo e os submete às experiências vitais. A sensibilidade aguça-se e aprimora-se através dos milénios. Os cérebros rudimentares desenvolvem-se e enriquecem-se, o sistema nervoso (desenvolvimento do sistema fibroso vegetal) estrutura-se numa rede sensível, permitindo a organização de um aparelho cerebral que capta e reelabora os estímulos exteriores. Os animais evoluem até ao aparecimento dos primatas, que assinalam o salto qualitativo do cérebro animal para o cérebro humano.

Eis, em linhas gerais, neste esquema superficial, o processo de criação do homem. Quanto mais simples este esquema, mais fácil para compreendermos a lenta elaboração da criatura humana a partir da noite dos primórdios. Supor-se-á que essa criatura grosseira, elaborada a partir do mineral, não tenha qualquer outra experiência além das que enfrentou no processo de sua formação. Mas acontece que o homem se mostra dotado de uma inteligência criadora, capaz de desenvolvimento sem limites da sua imaginação e – o que mais assombra – dotada de um anseio crescente para elevar-se além da sua condição humana e atingir uma posição superior de que ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto mais se desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua condição primitiva – de bicho da Terra tão pequeno, como escreveu Camões – e os seus anseios incontidos de elevação e comunicação com os planos e os seres superiores, que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso? Supõem os materialistas que se trata de produto da imaginação excitada pelo medo, num desejo natural de alcançar a segurança através de criações imaginárias. Mas como explicar a coerência dessas criações arbitrárias com os fenómenos paranormais, cuja existência está hoje cientificamente provada? Que dizer de uma ideia primitiva, como a de uma duplicata do corpo material que pode projectar-se à distância, a que Spencer atribuiu simplesmente ao sonho, quando esse corpo hoje se confirma através das pesquisas cientificas no campo da Física e da Biologia, por pesquisadores materialistas?

Este é o momento em que temos de voltar à ideia de Deus inata na criatura humana – o Ser perfeito de Descartes encontrado no fundo da sua própria imperfeição – à lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu papel decisivo na orientação do homem para a sua humanização. O acaso da concepção materialista se transforma necessariamente numa inteligência cósmica a desafiar, pela sua grandeza e a sua inegável sabedoria na construção universal, a miserável inteligência humana, capaz de tudo atribuir a um jogo de forças cegas no seio de uma nebulosa. Não precisamos nem mesmo de pensar nas formações complexas do homem ou do anjo. Podemos ficar nos primórdios, a examinar apenas a estrutura do átomo, a construção infinitesimal desse universo microscópico, ou melhor, infra-microscópico. Mas se olharmos para cima e pensarmos nos sistemas solares, nas galáxias e nas super-galáxias, o absurdo da concepção materialista tornar-se-á simplesmente monstruoso. Sentiremos as orelhas de Midas substituírem, peludas e agudas, as nossas delicadas orelhas humanas.

E o que dizer da experiência de Deus procurada através de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão percorrida pela humanidade através dos milénios, numa experiência natural e vital em que as forças da vida vão brotando do chão do planeta e projectando-se às profundidades cósmicas? É como se milionários ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de portas e janelas fechadas, para contar os níqueis do bolso do colete a fim de avaliar quanto possuem, para terem a experiência do dinheiro. Basta isso para nos mostrar a razão da crise religiosa do presente. Os homens começaram a descobrir que possuem muito mais do que as igrejas lhes podem dar.

Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica, arrancado das entranhas do reino mineral, segundo a teoria evolucionista espírita, o homem está ainda em formação, em desenvolvimento, amadurecendo nas experiências que enfrenta na existência corporal. O corpo é o seu instrumento de evolução. Um instrumento vivo e activo que ele precisa controlar pela força do espírito. Na proporção em que avança, o espírito se impõe ao corpo e o domina. A dialéctica da evolução torna-se nele um processo consciente. É o único responsável pelo sucesso ou fracasso do seu destino. Deus está nele como um poder de manutenção e orientação, mas não com poder punitivo. Ele mesmo se castiga ante o tribunal da sua consciência. Quando se dispõe a progredir, o prémio que recebe é a graça que o fortalece para que possa vencer o mal. Ninguém pode perdoar os seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe da jurisdição de si mesmo e supera o seu condicionamento determinista pelas decisões do seu livre-arbítrio. Juiz e réu ao mesmo tempo, pode julgar-se com pleno conhecimento de causa.

/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 6 – A Criação do Homem, 7º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel).

segunda-feira, 30 de julho de 2018

~ em torno do mestre


Marta e Maria ~

Marta e Maria eram irmãs de Lázaro, a quem Jesus ressuscitara. Residiam em Betânia (i), a aldeia onde o Senhor, de vez em quando, se refugiava em busca de descanso.

Ambas eram boas e tementes a Deus; entretanto, havia entre elas certo traço particular de carácter que as distinguia. O Mestre excelso apreciou devidamente esse facto, legando-nos, nessa apreciação, um elevado ensinamento, conforme o que se verifica na seguinte passagem:

"Quando iam de caminho, entrou Jesus em uma aldeia; e uma mulher chamada Marta o hospedou. Esta tinha uma irmã por nome Maria, a qual, sentada aos pés do Senhor, lhe ouvia o ensino. Marta, porém, andava preocupada com muito serviço e absorvida nas contínuas lides domésticas; e, aproximando-se do divino hóspede, lhe disse: Senhor, a ti não se te dá que minha irmã me deixe só a servir? Mas, respondeu-lhe o Senhor: Marta, Marta, estás ansiosa e te ocupas com muitas coisas; entretanto, poucas são necessárias, ou antes uma só; pois Maria escolheu a boa parte que lhe não será tirada."

Marta era sensata, laboriosa e ponderada; agia sempre com método e cálculo, de maneira que em todos os seus actos se podia descobrir o predomínio de uma razão amadurecida.

Maria tinha um temperamento apaixonado; descuidada, talvez, daquilo que o mundo classifica de coisas práticas, vivia num ambiente algo místico e de puro idealismo.

Em Marta, se a razão de todo não predominava, tinha acentuada influência na sua conduta. Em Maria, o coração quase que reinava discricionariamente. Marta oferece-nos o tipo da mulher exemplar, impecável, verdadeira encarnação do bom senso, Maria é um astro que resplende no além e só de longe pode ser contemplado.

Marta, recebendo Jesus, teria pensado em cercá-lo do máximo conforto no seu modesto lar. Maria, defrontando o Mestre amado, esquecia-se de tudo, embalada ao som mágico da palavra da vida. A existência terrena com os seus cuidados e tribulações, o lar, o mundo mesmo se fundiam no fogo sagrado do seu ardente entusiasmo. A palavra do Senhor exercia na sua mente verdadeira fascinação: ela sorvia o divino verbo como a planta ressequida se embebe do orvalho matutino. Jesus representava para Maria o alfa e o ómega.

E, afinal, como não ser assim, se foi sob a influência incoercível daquele Verbo que Maria ressurgiu para a vida imortal? Como não ser assim, se foi daqueles lábios que Maria ouviu a voz maravilhosa que, lhe penetrando a consciência e o coração, a transformou radicalmente? Como não ser assim, se foi ao influxo maravilhoso daquelas mesmas palavras que o lírio de Magdala se transplantou dos pântanos da terra para os jardins siderais onde vicejam flores cujo mimo, frescor e perfume permanecem para sempre!

Resumindo, definiremos com acerto as duas irmãs, nas palavras de Victor HugoMarta está onde termina a terra; Maria, onde começa o céu.

O mundo vê no idealismo de Maria uma espécie de desequilíbrio; e no idealista, um insano. O critério de Jesus, contrastando com o dos homens, classifica esse estado de alma como sendo a boa parte que será sempre mantida. Poucas coisas são necessárias, ou antes uma só — afirma o Profeta da verdade. Realmente, que justifica, e que espécie de benefício proporciona ao homem as mil preocupações que o absorvem? Nada justifica, e nenhum bem lhe outorga; é, antes, a causa das suas tribulações, desenganos e angústias.

As necessidades reais da vida são poucas, enquanto que as fictícias, puros caprichos forjados pelas paixões desenfreadas e pelos vícios, são infinitas. Rigorosamente falando, como estatui o soberano Mestre, uma só necessidade realmente existe: o conhecimento de nós próprios, de nossa origem e de nossos destinos. Em tal importa a magna questão da vida; para no-la revelar, enviou Deus o seu Cristo ao mundo. Desse conhecimento depende tudo. De nada vale ao homem alcançar largos cabedais representados na riqueza ou mesmo nos bens intelectuais acumulados pelo estudo, se ele ignora aquele assunto. Ser pobre ou ser rico, errar ou acertar em todas as matérias, sabê-las ou não, são coisas de importância relativa: o que importa é que o homem se inteire em "primeiro lugar do reino de Deus e de sua justiça, por isso que tudo o mais lhe será dado por acréscimo".

A posse da verdade acima é que valoriza, de facto, tudo quanto o homem venha a possuir. Sem aquele requisito, as nossas conquistas serão vãs e estéreis. Uma inteligência de escol, verdadeiro repositório de erudição, desacompanhados da luz que aclara os horizontes da vida, não passam de fogo de artifício que entretêm a vista por alguns momentos.

O mesmo progresso que se verifica na vida complicada, artificial e enervante dos grandes centros, é pura ficção, pois o verdadeiro progresso é aquele de cujo surto advém tranquilidade, segurança e bem estar para a sociedade. Exactamente o contrário, no entanto, é o que se observa: vida febril, excitada, inquieta, áspera, complexa e confusa, originando indivíduos impacientes, neurasténicos e nevropatas; criando, de outra sorte, terreno propício à eclosão de todas as formas do vício e de todas as modalidades do crime.

Será isso progresso ou insânia?

Aprendamos com Maria a escolha da boa parte que não nos será tirada, isto é, daquela parte que transportaremos connosco além do túmulo. Sonho? Ilusão? Não importa; há sonhos que se convertem em realidade e há realidades que se transformam em sonhos e mesmo em pesadelos!


Ecce Homo (*)

Que melhor apresentação nos é dado fazer de Jesus senão aquela que ele próprio revelou? Consideremos, pois, a sua auto-apresentação:

"João Baptista enviou dois dos seus discípulos ao Senhor para perguntar: És tu aquele que há de vir, ou havemos de esperar outro? Quando estes homens chegaram a Jesus, disseram:

João Baptista (i) enviou-nos para indagar de ti se és o Cristo esperado? Na mesma ocasião Jesus curou a muitos de moléstias, de flagelos e de espíritos malignos; e deu vista a muitos cegos. Então lhes respondeu: Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, aos pobres anuncia-se-lhes o Evangelho; bem-aventurado é aquele que em mim não encontrar motivo de tropeço."

Tal é o Cristo: o amigo e defensor dos humildes e dos oprimidos sofredores. O objecto de sua paixão é o pecador. A individualidade humana representa para ele um valor infinito. Deus é pai dos pecadores. Quanto mais abatido e vexado pela dor física ou moral, mais interesse o homem lhe desperta. Haja vista estes dois exemplos: o leproso e a mulher adúltera.

Os leprosos, no tempo em que Jesus passou pela Terra, eram corridos a pedradas das cidades e aldeias. A lei de Moisés os condenava à lapidação (i), se tentassem penetrar nos povoados. Sobre a crueldade dessa lei que visava a evitar a propagação da lepra, havia ainda a superstição com carácter religioso, segundo a qual os leprosos eram réprobos a quem Deus punia com o terrível mal.

E que fez Jesus com relação àqueles infelizes? Curou-os. As chagas humanas não lhe causavam asco nem pavor, mas comiseração e piedade. E não só as mazelas do corpo lhe inspiravam aqueles sentimentos, como também as da alma. O seu gesto de compaixão pela mísera adúltera apupada pela horda de fariseus, aliado à sublime lição contida no "aquele que se julgar isento de culpa atire a primeira pedra" — é outro atestado eloquente do quanto lhe interessava a sorte dos pecadores, particularmente dos aflitos e oprimidos.

O Cristianismo é a historio do Cristo junto do pecador. Na sua maneira de agir está a sua doutrina. Conta Stanley Jones, missionário que há vinte anos (estamos em 1947) vive na Índia, que naquele país, quando se fala em Cristianismo, o povo se mostra céptico e completamente desinteressado. Quando, porém, se faz referência à vida do Cristo no seio da Humanidade, defendendo os explorados, suavizando as angústias alheias, ensinando ao povo o meio de viver feliz, então os hindus se tornam atenciosos e, ávidos de curiosidades, pedem que se fale mais nesse Jesus amorável e bom.

Esse facto é muito significativo. Quer dizer que as lendas forjadas pelas escolas sectárias em torno do Cristianismo estão comprometendo o surto daquele credo. Cumpre, portanto, deixar de lado as teorias, o escolasticismo, os dogmas, os rituais, e anunciar Jesus-Cristo tal como ele é, qual ele próprio se apresentou aos emissários do Baptista, sarando os enfermos e anunciando aos humildes o Evangelho do amor. E bem-aventurados aqueles que se não escandalizarem nesse Jesus que é o real e verdadeiro Cristo de Deus.

Não estamos nos tempos das teorias, mas na era dos factos. O Cristianismo não é uma teoria: é o mesmo Cristo revelando as leis divinas à Humanidade. Jesus é um facto histórico e, ao mesmo tempo, uma necessidade de todos os momentos, porque ele sintetiza, na moral em si mesmo personificada, a solução de todos os problemas da vida humana: Ecce Homo!

O método para ensinar a verdade religiosa é o mesmo que se emprega para ensinar a verdade científica: dedução e indução. Ora temos que partir dos factos para os seus efeitos, ora destes somos levados a remontar àqueles. Não se pode mais impor crenças: temos que convidar o povo a raciocinar connosco. A fé oficializada está nos últimos estertores; não tem prestígio moral, não tem vigor, jaz de há muito na esterilidade.

O momento reclama uma religião que melhore o mundo. Jesus não é inimigo da sociedade. Conviveu com os homens, tomando parte nas suas reuniões e festividades. Ele é adversário do vício, do crime, da corrupção e da maldade.

Se não tivermos desde já o céu em nós mesmos, não poderemos encontrá-lo depois da morte; Jesus não veio tão pouco livrar-nos desse inferno localizado não se sabe onde: veio tirar o inferno de dentro de nós. Como? Ensinando-nos a conhecer e vencer as paixões egoísticas e animalizadas que nos torturam o espírito e nos aviltam o carácter.

Jesus curava e prevenia as enfermidades. A sua terapêutica era curativa e profilática. "Vai, e não peques mais." A saúde do corpo e do espírito é a lei da Natureza, é o normal. As doenças físicas e morais são as anomalias, o distúrbio na vida. Sarando o leproso, Jesus não fez milagres: restabeleceu no pecador a ordem natural. As curas maravilhosas que operou foram todas no sentido de fazer voltar, à Natureza, o que dela estava divorciado.

O pecado está na vida anormal que o homem leva no mundo, Jesus veio normalizá-la. A sua fé é um canto de louvor à Natureza.

Outro característico peculiar a Jesus é a sua atitude de servidor da Humanidade. Não veio para ser servido, mas para servir: todos os seus actos comprovam esta frase. A sua vida terrena foi toda de dedicação pelo homem. Viveu para outrem. Viver para outrem, como ele viveu, não é uma teoria: é um facto que impressiona profundamente os pensadores. Os seus próprios adversários — Strauss e Renan —, analisando as suas pegadas, acabaram rendendo-se à evidência do seu altruísmo e do seu poder de atracção, reconhecendo em tudo que ele fez o fruto do seu imenso amor pela Humanidade. Ecce Homo!

O eclesiasticismo ou imperialismo na esfera religiosa, está em franca decadência. O tempo não comporta mais imperialismos em qualquer terreno. Jesus quer ser o que ele é, e não o que a clerezia pretende à viva força que ele seja. Jesus se revela por si mesmo àqueles que o procuram. Precisamos sair do Paganismo, buscando com Jesus a saúde, a pureza, o valor, a bondade, a alegria de viver e a imortalidade. Ele é o modelo a ser imitado. É o médico do corpo e da alma. É o pastor deste rebanho. Onde houver lágrimas a enxugar, chagas e dores a lenir, aí está Jesus no desempenho de sua missão. Ele é por excelência o servidor da Humanidade. "Vinde a mim todos vós que vos encontrais aflitos e sobrecarregados e eu vos aliviarei" Ecce Homo!

A frase de Pilatos, que nos serve de epígrafe, tornou-se célebre.

E a quem se referia o pró-consul romano?

A Jesus açoitado, escarnecido, trazendo aos ombros um manto de púrpura como usavam os reis, à cabeça uma coroa de espinhos e na destra uma cana à guisa de ceptro. O Cristo de Deus assim ultrajado e envilecido, sangrando pela fronte e pelo dorso, coberto de pó, suarento e todo em desalinho, foi conduzido ao pretório, e dali apresentado, ao poviléu enfurecido, pelo representante de César na Palestina.

Essa figura trágica, do Filho do Homem, sendo uma realidade histórica, é também eloquente símbolo.

Vemos através daquela matéria flagelada, daquele corpo contundido, chagado e lastimoso, refulgir em todo o seu esplendor um Espírito varonil que se alteia imponente e sublime sobre os troféus da carne abatida e mortificada!

Jesus vilipendiado é a imagem do soldado que volta de encarniçada luta, descalço, magro, olhos macilentos, maltrapilho, mas vitorioso, repassado de glória, sobraçando virentes louros colhidos através de sua bravura, de seu heroísmo mil vezes comprovado no ardor das refregas e dos combates cruentos.

Realmente, em síntese, que nos veio ensinar e que nos exemplificou tão ao vivo o Mestre excelso, senão a luta do espírito com a matéria, o que vale dizer da vida com a morte?

Ciúmes, invejas, rivalidades e ambição; orgulho, pruridos de domínio, de ostentação e de grandeza; luxúria, comodismo, ócios intermináveis, prazeres que só gratificam os sentidos, inclinações que tendem para a materialidade; vícios que deleitam e embriagam, que fascinam, que desfibram e amolentam (cortejos dos ministros da morte) devem ser tragados na vitória.

Imitar a Jesus — é servir a Humanidade; conservar a vida é permanecer no seu ideal; e vencer cada um a si mesmo, à viva força, é penetrar o reino dos céus, que é o reino do Espírito, o reino da imortalidade.

O Ecce Homo de Pilatos tornou-se frase de renome, cumprindo assinalar que é ao mesmo tempo profundamente simbólica, pois, na realidade, só deve ser apresentado como HOMEM aquele que venceu.


"ECCE HOMO"
(VINÍCIUS)

A quem se referia a epígrafe, Pilatos?
A Jesus, a sofrer todos os desacatos,
tendo à cabeça em sangue a coroa de espinhos,
pensado pelo pó que voara dos caminhos,
a espádua chicoteada, a púrpura do manto,
e para completar o escárnio, metro a metro,
pusera-se-lhe à destra humílima de santo
a cana recurvada à guisa então de ceptro.

E vemos-lhe, através do corpo flagelado,
refulgir, nesse dia, o espírito elevado,
no máximo da dor,
no máximo esplendor,
imponente, pairando, na escalada,
sobre os troféus da carne, assim, dilacerada.

Ciúme, inveja, ambição, a sede de extermínio,
o orgulho a ostentação, pruridos de domínio,
os prazeres da vida transitória,
só gratos aos sentidos,
é assim que devem ser vencidos,
e como o fez Jesus, tragados na vitória.

Imitá-lo é dever nosso, ainda que a esmo,
aprender cada um a vencer-se a si mesmo.

O "Ecce Homo" de Pilatos,
além de frase de renome
que nada mais consome,
é um símbolo que os factos
enriqueceu:

pois que só deve ser apresentado,
como HOMEM, quem assim, vilipendiado, torturado,
venceu!

Arnaldo Barbosa

/…
(*) Eis aqui o homem!


"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
                                                                                Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do MestrePrimeira Parte / Seixos e Gravetos; Marta e Maria / Ecce Homo / "ECCE HOMO", 4º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), de Johannes Vermeer)

domingo, 15 de julho de 2018

Hippolyte Léon Denisard Rivail

~~~ período psicológico ~

Se bem que as manifestações espíritas tenham acontecido em todas as épocas, é incontestável que hoje se produzem de maneira excepcional. Interrogados sobre esse facto, os Espíritos foram unânimes na sua resposta: “Os tempos – dizem eles – marcados pela Providência para uma manifestação universal são chegados. Estão encarregados de dissipar as trevas da ignorância e dos preconceitos; é uma era nova que começa e prepara a regeneração da Humanidade.” Esse pensamento encontra-se desenvolvido de maneira notável numa carta que recebemos de um dos nossos assinantes, da qual extraímos a seguinte passagem:

“Cada coisa tem o seu tempo; o período que acaba de escoar-se parece ter sido especialmente destinado pelo Todo-Poderoso ao progresso das ciências matemáticas e físicas e, provavelmente, foi tendo em vista dispor os homens aos conhecimentos exactos que ele se opôs, durante muito tempo, à manifestação dos Espíritos, como se tal manifestação pudesse ser prejudicial ao positivismo, que requer o estudo da Ciência; numa palavra, quis habituar o homem a procurar, nas ciências de observação, a explicação de todos os fenómenos que deviam produzir-se a seus olhos.

“Hoje, o período científico parece ter chegado ao seu termo. Depois dos imensos progressos realizados, não seria impossível que o novo período que deve suceder-lhe fosse consagrado pelo Criador às iniciações de ordem psicológica. Na imutável lei de perfectibilidade que estabeleceu para os seres humanos, o que poderá fazer depois de havê-los iniciado nas leis físicas do movimento e ter-lhes revelado os motores com os quais muda a face do globo? O homem sondou as profundezas mais longínquas do espaço; a marcha dos astros e o movimento geral do Universo já não têm segredos para ele; lê nas camadas geológicas a história da formação do globo; à sua vontade, a luz se transforma em imagens duráveis; domina o raio; com o vapor e a electricidade suprime as distâncias e o pensamento transpõe o espaço com a rapidez do relâmpago. Chegado a esse ponto culminante, do qual a história da Humanidade não oferece nenhum exemplo, qualquer que tenha sido o seu grau de avanço nos séculos recuados, parece-me racional pensar que a ordem psicológica lhe abre um novo caminho na via do progresso. É, pelo menos, o que se poderia deduzir dos factos que se produzem nos nossos dias e se multiplicam por todos os lados. Esperemos, pois, que se aproxime o momento, se é que ainda não chegou, em que o Todo-Poderoso venha iniciar-nos em novas, grandes e sublimes verdades. Cabe-nos compreendê-lo e secundá-lo na obra da regeneração.”

Esta carta é do Sr. Georges, do qual havíamos falado no nosso primeiro número. Não podemos senão felicitá-lo pelos seus progressos na Doutrina; os elevados pontos de vista que desenvolve demonstram que a compreende no seu verdadeiro sentido; para ele a Doutrina não se resume na crença nos Espíritos e nas suas manifestações: é toda uma filosofia. Como ele, admitimos que entramos no período psicológico e achamos perfeitamente racionais os motivos que nos apresenta, sem crer, todavia, que o período científico tenha dito a sua última palavra; ao contrário, acreditamos que ainda nos reserva muitos outros prodígios. Estamos numa época de transição, em que os caracteres dos dois períodos se confundem.

Os conhecimentos que os Antigos possuíam sobre a manifestação dos Espíritos não serviriam de argumento contra a ideia do período psicológico que se prepara. Com efeito, notamos que na Antiguidade esses conhecimentos estavam circunscritos ao estreito círculo dos homens de elite; sobre eles o povo possuía somente ideias falseadas pelos preconceitos e desfiguradas pelo charlatanismo dos sacerdotes, que delas se serviam como meio de dominação. Como já o dissemos alhures, jamais esses conhecimentos se perderam e as manifestações sempre se produziram; mas ficaram como factos isolados, certamente porque o tempo de os compreender não havia ainda chegado. O que se passa hoje tem um carácter bem diverso; as manifestações são gerais; impressionam a sociedade desde a base até ao cume. Os Espíritos não mais ensinam nos recintos fechados e misteriosos de um templo inacessível ao vulgo. Esses factos se passam à luz do dia; falam a todos uma linguagem inteligível por todos. Tudo, pois, anuncia, do ponto de vista moral, uma nova fase para a Humanidade.

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Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, La Revue Spirite, Período Psicológico, Jornal de Estudos Psicológicos de Abril de 1858, 3º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quinta-feira, 5 de julho de 2018

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XV
O Futuro do Espiritismo ~

(Julho de 1918)

  No desenrolar dos trágicos acontecimentos, o pensamento ansioso procura vencer as brumas e as sombras do futuro, levantando o véu que o esconde dos nossos olhos, perguntando a si mesmo como será o amanhã. Quando tudo parece desmoronar-se à nossa volta, o pensamento sonha com uma reconstituição da ordem política e social. 

  Há 50 anos que trabalhamos, preparando um mundo onde os homens aprendam a amar-se, vivendo na santa comunhão da inteligência com o coração, mas assistimos a uma interminável série de lutas selvagens, aos gigantescos esforços que fazem o espírito de dominação (i) para escravizar os povos, colocando-os debaixo do seu jugo! 

  Quem, então, ensinará as verdadeiras leis aos homens, quem os ensinará a progredir livremente na paz e na harmonia? Neste momento a Doutrina dos Espíritos (i) aparece como um raio consolador, um astro novo, que se ergue sobre um mundo de escombros e ruínas.

  Os incrédulos nos responderão com um sorriso de zombaria e nos perguntarão se o Espiritismo é realmente capaz de desempenhar um papel regenerador. Como argumento, será suficiente para nós medir o caminho que a nossa doutrina percorreu e os progressos que realizou desde a morte de Allan Kardec. Podemos afirmar que não foram inúteis os nossos esforços comuns, porque já se começa, por toda a parte, a conhecer a verdade e a grandeza das ideias que defendemos.

  No decorrer das minhas inúmeras viagens por todos os lugares e da minha presença num número incontável dos mais diversos ambientes, pude acompanhar os notáveis e crescentes progressos da ideia espírita na opinião geral.

  Há três anos, sob o impacto dos actuais acontecimentos, no meio do grande drama que sacode o mundo, muitas almas se entristecem e os seus pensamentos se dirigem para o Além, ávidos de consolações e de esperanças.

  No mesmo grau, se sente, por toda a parte, a insuficiência e a pobreza dos ensinamentos dogmáticos, a sua incapacidade para curar as chagas, consolar a dor e explicar o destino humano.

  Qual deve ser o objectivo principal do Espiritismo? Antes de tudo, provocar, pesquisar e coordenar as provas experimentais sobre a sobrevivência da alma depois da morte.

  Tal pesquisa da verdade deve fazer-se através de uma fiscalização rigorosa e metódica, porque as justas exigências do espírito moderno obrigam-nos a passar todos os factos pelo crivo de um exame imparcial, prevenindo-nos contra os perigos da credulidade e das afirmações precipitadas.

  Charles Richet e outros nos têm acusado de falta de rigor nas nossas pesquisas e experiências, mas o Espiritismo, baseando-se em provas bem estabelecidas, deve preparar e renovar a educação científica, racional e moral do homem por todos os meios. A sua acção tem que exercer-se em todos os sectores: experimental, doutrinário, moral e social, porque existe nele um elemento restaurador (i) do qual podemos esperar tudo.

  Pode afirmar-se que ele será chamado o grande libertador do pensamento que está escravizado há muitos séculos e que lançará no mundo, cada vez mais, sementes de bondade e fraternidade humana que, cedo ou tarde, haverão de frutificar.

  Ficamos impacientes porque a vida é curta e parece que os progressos são lentos, todavia podemos garantir que, em 50 anos, o Espiritismo fez muito mais do que qualquer outro movimento do pensamento humano em igual período de tempo e, em qualquer outra época da História.

  Sim, estamos impacientes e a nossa piedade se comove com o espectáculo da ignorância, da rotina, dos preconceitos, dos sofrimentos e misérias da humanidade, principalmente no momento actual. Queríamos obter resultados imediatos.

  Entretanto já podemos ver que, paulatinamente, tudo muda em torno de nós, tudo evolui sob a pressão dos acontecimentos e o sopro das novas ideias.

  Muitas trevas se desfazem e muitas resistências desaparecem. Os ódios que as nossas crenças despertavam à nossa volta alteram-se, muitas vezes, em simpatia e até em amizade, visto que os homens só se combatem e só se desprezam porque se desconhecem...

  A magnífica obra do Espiritismo será a de aproximar os seres humanos, as nações e as raças, formando os corações e desenvolvendo as consciências; para isso, porém, são necessários o trabalho, a perseverança, o espírito de dedicação e o auto-sacrifício.

  A guerra não nos revelou apenas um perigo exterior que nos acompanhará por muito tempo, mas também nos mostrou as feridas vivas e os males interiores de que padece a nossa infeliz pátria. Contrastando com as heróicas virtudes dos nossos soldados, com a espera estóica e laboriosa do pessoal da retaguarda, rebentaram escândalos políticos que descobriram a falência de certas consciências, o completo esquecimento da lei do dever, bem como da lei de responsabilidades.

  Não vacilamos em atribuir a causa destes males à educação confusa que o Estado dispensa às gerações; um ensino sem ideal, sem grandeza, sem beleza moral e incapaz de retemperar as almas, preparando-as para as duras necessidades da vida, resultando daí que, no nosso mundo coberto de tristeza e afogado em sangue e lágrimas, muitas almas se entregaram às vacilações da dúvida, da paixão e, com muita frequência, ao desespero.

  É certo que sob o jugo das provações sentimos nascer, por toda a parte, um vago desejo de crer, de acreditar, mas ninguém sabe qual a fé que deve seguir.

  As afirmações dogmáticas, baseadas em textos de autenticidade contestável, já não se aceitam mais e só o Espiritismo, pelas provas que fornece da sobrevivência da alma, pela demonstração experimental que oferece no sentido de que a vida é um dever renascente e de que sobre nós recaem as consequências de todos os nossos actos, poderá introduzir no ensino nacional elementos suficientes de renovação.

  Tornou-se evidente, para todo o pensador, que as sociedades humanas nunca atingirão um estado de paz e harmonia por processos políticos (i), mas sim pela reforma interior e individual, isto é, por uma educação moral (i) que aperfeiçoe a colectividade ao aperfeiçoar cada criatura (i) que dela faça parte.

  Não são suficientes as leis, os decretos e as convenções; é necessário um ensino que determine o papel e o lugar do homem no Universo, que garanta a disciplina moral e social, sem a qual não há força, nem estabilidade para uma nação. O mesmo acontece com a liberdade que só é possível obter quando a ela se juntam a prudência e a razão.

  Nos seus elementos fundamentais, a Doutrina dos Espíritos (i) proporciona-nos os recursos necessários para se estabelecer esse ensino, demonstrando que a liberdade tem o seu princípio no livre-arbítrio (i) do homem e que esse livre-arbítrio é sempre proporcional aos nossos méritos e ao nosso grau de evolução. Dessa forma, o Espiritismo lhe dá uma espécie de consagração. As lutas bárbaras que, periodicamente, banham de sangue o nosso atrasado planeta só cessarão quando a doutrina dos espíritos se irradiar pelo mundo.

  Pode, portanto, dizer-se que os divulgadores do Espiritismo são os melhores obreiros da paz universal pela tarefa a que se consagram, da qual só conhecem as dificuldades, sem recolher ainda as suas alegrias e os seus frutos.

  Todavia, quando houver terminado o reinado do ódio na Terra, a história saudará esses bons operários do pensamento e, a liberdade guardará a memória dos que lhe fixaram as suas bases, traçando-lhe o caminho e facilitando-lhe o voo.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XV O Futuro do Espiritismo, Junho de 1918, 30º fragmento desta obra.
(imagem: Dois soldados um alemão e o outro britânico, no dia de Natal durante a primeira guerra mundial (1914), quando fizeram um cessar-fogo não oficial entre soldados alemães e britânicos e, que, ao longo de uma semana, trocaram saudações, cantaram músicas e até trocaram presentes com os seus inimigos)

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Da sombra do dogma à luz da razão ~


a visão | de Deus

   Dado que Deus está em todo o lado, por que não o vemos? Vê-lo-emos quando deixarmos a Terra? São estas as perguntas que fazemos diariamente. A primeira é fácil de resolver; os nossos órgãos materiais têm percepções limitadas que os tornam impróprios para verem certas coisas, mesmo materiais. É assim que certos fluidos escapam totalmente à nossa vista e aos nossos instrumentos de análise e, no entanto, não duvidamos da sua existência. Vemos os efeitos da peste e não vemos o fluido que a transporta; vemos os corpos moverem-se sob a influência da força da gravidade e não vemos essa força.

   As coisas de essência espiritual não podem ser apercebidas pelos órgãos materiais; é só com visão espiritual que podemos ver os Espíritos e as coisas do mundo imaterial; só a alma pode então ter a percepção de Deus. Ela vê-o imediatamente após a morte? É o que só as comunicações de além-túmulo nos podem ensinar. Através delas, sabemos que a visão de Deus é privilégio unicamente das almas mais depuradas e que, assim, bem poucos possuem, ao abandonar o seu invólucro terrestre, o grau de desmaterialização necessário. Uma comparação vulgar fará com que seja facilmente entendido.

   Quem se encontra ao fundo de um vale, mergulhado numa bruma espessa, não vê o sol; no entanto, na luz difusa, tem a percepção da presença do sol. Se subir a montanha, à medida que vai subindo, o nevoeiro vai aclarando, a luz vai-se tornando cada vez mais viva, mas ainda não vê o sol. Só depois de se ter completamente elevado acima da camada de bruma, encontrando-se numa atmosfera perfeitamente pura, o vê em todo o seu esplendor.

   É também assim com a alma. O invólucro de perespírito, apesar de invisível e impalpável para nós, é ela uma autêntica matéria, ainda demasiado grosseira para determinadas percepções. Este invólucro espiritualiza-se à medida que a alma se eleva em moralidade. As imperfeições da alma são como camadas nebulosas que obscurecem a sua visão; cada uma das imperfeições de que se desfaz é uma mancha a menos, mas só depois de se ter totalmente depurado goza da plenitude das suas faculdades.

   Sendo Deus a essência divina por excelência, só pode ser visto em todo o seu esplendor pelos Espíritos que tenham atingido o mais elevado grau de desmaterialização. Se os Espíritos imperfeitos não o vêem, não é por estarem maisafastados que os outros; como eles, como todos os seres da natureza, estão mergulhados no fluido divino tal como nós o estamos na luz. Simplesmente, as suas imperfeições são vaporosas que lhe ocultam a visão; depois de o nevoeiro se ter dissipado, vê-lo-ão resplandecer. Para isso, não terão necessidade nem de subir nem de o ir procurar às profundezas do infinito; estando a visão espiritual liberta das teias morais que a obscurecem, vê-la-ão em qualquer lugar onde se encontrem, até mesmo sobre a Terra, pois ele está em todo o lado.

   O Espírito só se purifica a longo termo e as diferentes encarnações são os alambiques no fundo dos quais deixa de cada uma das vezes algumas impurezas. Ao deixar o seu invólucro corporal não se despoja instantaneamente das suas imperfeições; é por isso que alguns, depois da morte, não vêm Deus melhor do que quando vivos; mas, à medida que se vão purificando, têm dele uma intuição mais distinta; se não o vêem, compreendem-no melhor: a luz é menos difusa.Então, quando os Espíritos dizem que Deus os proíbe de responderem a esta ou a àquela pergunta, não é que Deus lhes apareça ou lhes dirija a palavra para lhes prescrever ou proibir isto ou quilo, não; mas eles sentem-no; recebem oseflúvios do pensamento tal como nos acontece a respeito dos espíritos que nos envolvem com o seu fluido, apesar de não os vermos.

   Nenhum homem pode então ver Deus com os olhos da carne. Se este favor fosse concedido a alguns, seria só no estado de êxtase, quando a alma está tão separada dos laços da matéria que o torna possível durante a encarnação. Um tal privilégio não seria de resto o das almas de elite, encarnadas para cumprirem uma missão e não para expiação. Mas como os Espíritos de ordem mais elevada resplendem com um brilho ofuscante, pode acontecer que os Espíritos menos elevados, encarnados ou não encarnados, atingidos pelo esplendor que os rodeia, tenham julgado ver o próprio Deus. É também assim que, às vezes, tomamos um ministro pelo seu soberano.

   Sob que aparência se apresenta Deus aos que se tornaram dignos deste favor? Sob uma forma humana ou como uma fogueira resplandecente de luz? É o que a língua humana é impotente para descrever, porque não existe para nós nenhum ponto de comparação que nos possa dar uma ideia; nós somos como cegos a quem se tentasse em vão fazer compreender o brilho do Sol. O nosso vocabulário está limitado às nossas necessidades e ao círculo das nossas ideias; o dos primitivos não podia depender das maravilhas da civilização; o dos povos mais civilizados é demasiado pobre para descrever os esplendores dos céus, a nossa inteligência demasiado limitada para os entender e a nossa visão demasiado fraca ficaria perturbada com ele.

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ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo II | Deus, A natureza divina, A Providência, A visão de Deus | – A visão de Deus (de 31 a 37) 18º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

sexta-feira, 8 de junho de 2018

o sentido da vida ~


Sobrevivência e Imortalidade ~

Prega a ciência moderna, como já vimos, baseada nos seus resultados materialistas, a imortalidade do homem e de todas as coisas através da eternidade do Universo. A imagem do mar, eterno no seu conteúdo, e no seu aspecto, e variável na sucessão das ondas, dá-nos maior compreensão desse quadro transcendente e supranormal que a ciência materialista nos pinta. Os homens e as coisas são como simples vagas, que aparecem e desaparecem. Não têm qualquer espécie de forma permanente. Só a água, o conteúdo universal, é que sobrevive através dos tempos, renovando as formas, sem qualquer continuidade daquelas em si mesmas.

Essa visão, que muito se assemelha à do antigo panteísmo e à de certas escolas de ocultismo, que consideram o homem como fagulha divina momentaneamente destacada de Deus, e que a Ele voltará depois da morte – excluindo-se naturalmente as que assim pensam dentro da linha reencarnacionista – já foi estudada por Allan Kardec em O Livro dos Espíritos.

Em certo momento pergunta ali o codificador:

“Que nos importa ter uma alma, se, extinguindo-se-nos a vida, ela desaparece na imensidade, como as gotas d’água no oceano? A perda da nossa individualidade não equivale, para nós, ao nada?”

Realmente, duas concepções existem, que conduzem o homem à desesperança. A de aniquilamento total do ser por meio da morte física e a dessa imortalidade por transmissão, que nada significa. Também a ideia da imortalidade através da sobrevivência de um princípio místico e misterioso, que seria a alma destinada ao inferno ou ao céu, não satisfaz a nenhuma inteligência racionalista. Somente a concepção espírita, aliás, comprovada pela observação, que nos fala da imortalidade pessoal, oferece ao homem a visão real do seu destino e, mais do que isso, da sua responsabilidade em face da vida e do mundo.

Entre os que aceitam o Espiritismo, subsiste, entretanto, uma pequena divergência de opinião, no tocante à interpretação do sentido imortalista da sobrevivência. Provamos, através das comunicações e dos fenómenos espíritas, a sobrevivência do homem. Provamos que a morte física não é o fim do indivíduo consciente. Provamos mesmo, que essa morte não chega a modificar o homem, pois ele continua, na vida espiritual, com todas as suas características individuais da vida material. A perda do corpo unicamente priva o indivíduo do contacto visível com a matéria. Assemelha-se extraordinariamente ao abandono do escafandro pelo escafandrista, que, longe de perder em si mesmo alguma coisa com isso, readquire a sua agilidade corporal e perde apenas a capacidade de viver no fundo do mar.

Entretanto, isso não nos prova a imortalidade, que implica na eternidade do ser. Imortalidade pessoal, portanto, é um termo com o qual se procura interpretar uma suposição, decorrente da verificação do facto real da sobrevivência. Nesse caso, dizem alguns, o que está provado é a sobrevivência, não a imortalidade.

Os espíritos que transmitiram a Kardec as linhas mestras da doutrina ensinaram que o homem é imortal. Seguiram, aliás, a linha tradicional dos ensinamentos superiores, das revelações dadas ao homem em todos os tempos, pelas forças do Alto. Todas as religiões afirmam o carácter imortalista do homem e as ordens ocultas e esotéricas do passado, algumas das quais ainda sobrevivem, também ensinaram sempre a mesma coisa. A revelação espírita não fugiu a essa norma geral e o simples facto dessa concordância nos faz pensar na possibilidade de se tratar de um facto real.

Do ponto de vista espírita, entretanto, essa questão não tem razão de ser. O Espiritismo não se perde em cogitações dessa natureza, tão semelhante às infindáveis controvérsias escolásticas da idade média. Se não temos recursos para investigar a possibilidade dessa coisa que mal podemos compreender, a imortalidade, que equivale à eternidade, como poderemos manter discussões estéreis a respeito? Basta-nos, evidentemente, saber que há a sobrevivência. E é indiscutível que a sobrevivência nos autoriza a super-existência ilimitada, pelo menos com os seus limites muito além das possibilidades de verificação.

No primeiro capítulo de O Livro dos Espíritos, questão nº 14, título Panteísmo, os espíritos que orientavam Kardec deixaram de maneira clara, bem definida, a posição do Espiritismo em face desses enigmas escolásticos.

Respondendo a uma pergunta do codificador sobre a natureza de Deus, responderam eles:

“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não avanceis além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, pois, de lado todos esses sistemas; tendes muitas coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretender penetrar no que é impenetrável.”

Afirma a ciência moderna que o homem é limitado na sua capacidade de conhecimento. O Espiritismo concorda com essa afirmação, não procurando iludir-se e iludir os demais a respeito de coisas inverificáveis. A natureza experimental da doutrina não nos permite essas fugas para o mais além. E embora os materialistas nos acusem de desertores, repetindo, como papagaios, que não sabemos enfrentar a realidade, os que se derem ao trabalho de estudar a doutrina verificarão que, pelo contrário, procuramos enfrentar a realidade num sentido muito mais amplo, racional e coerente do que o defendido pelos materialistas.

Basta-nos, pois, verificar o facto, já agora incontestável, da sobrevivência, que continuaremos a chamar de imortalidade porque ela representa, na verdade, a negação da morte.

Aos conceitos pretensamente científicos de imortalidade-cósmica, num sentido geral e não individual, opomos o resultado das nossas experiências, que demonstram à saciedade a sobrevivência pessoal. Contra factos não há argumentos, nem prevalecem os raciocínios, por mais bem tecidos que se nos apresentem.

Os espíritas não inventaram uma explicação para os fenómenos; foram estes mesmos que revelaram a sua natureza íntima. Os próprios espíritos desencarnados se incumbiram de dizer aos homens, por múltiplas formas e em múltiplas ocasiões, dirigindo-se a sábios, filósofos, teólogos e simples curiosos, que eram eles os agentes, conscientes e intencionais, dos fenómenos observados. Eles mesmos se incumbiram de provar que não eram entidades misteriosas, pertencentes a qualquer escala desconhecida de seres infernais ou celestiais, mas simplesmente as almas daqueles que haviam morrido.

A nossa crença na imortalidade pessoal não se baseia, pois, em suposições, mas em factos concretos, mil vezes repetidos e comprovados e, cuja ocorrência jamais se interrompeu na face da Terra.

A essa convicção, que podemos sem a menor dúvida chamar de científica, pretendem alguns eruditos de hoje opor, em nome da própria investigação científica, o absurdo da imortalidade cósmica, através dos elementos naturais e da sua constante transformação. Não se baseiam, para isso, em nenhuma experiência demonstrativa. Partem apenas da base frágil das suposições e, mais espantoso é que, defendendo os métodos científicos, não se lembram de que toda a teoria contraditada pelos factos não pode subsistir.

Uma das teses mais recentes e perigosas é a de que a imortalidade individual contradiz o princípio da evolução geral. Afirma-se isso com foros de grande e profunda verdade, com a intenção evidente de fechar a porta, de uma vez por todas, a qualquer tentativa de esclarecimento do assunto. Mas temos o direito de perguntar ainda aqui os motivos dessa contradição e, de afirmar justamente o inverso do que pretendem dizer os defensores ilustres desse ponto de vista. Para isso, não precisamos de silogismos de espécie alguma. Basta-nos lembrar que toda a evolução das coisas, à nossa volta e nas imensas extensões do Universo conhecido, se processa através de um único método, firmado pela natureza em toda a parte, sem excepção: o da evolução individual.

Evoluem os espécimes, para que evolua a espécie. Evoluem os homens, evoluem os povos, uns se adiantando aos outros para que evolua a humanidade. Evoluem os elementos, para que evolua a Terra. Evoluem os mundos no espaço para que, certamente, evoluam os sistemas planetários e o próprio cosmos. Por que estranha razão, mais uma vez encontramos o pensamento humano deslocado da ordem geral, no momento em que tem de encarar o problema da própria evolução? Por que motivo misterioso a evolução individual, unicamente no tocante ao problema da sobrevivência, teria de contrariar o princípio da evolução geral? Mistérios, ou melhor, delícias da caturrice humana.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Sobrevivência e Imortalidade, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Victor Hugo e o invisível ~


A consciência palingenésica nos homens | e nos povos

   Sem dúvida alguma, é no Oriente que a concepção palingenésica do ser tem as suas mais profundas raízes. Embora a sua interpretação seja tristemente estática entre os orientais, a ideia dos renascimentos é uma realidade espiritual e religiosa. Países como a Índia e o Japão têm-na como "base moral" do mundo. No Egipto e na Grécia, a ideia paligenésica do homem é interpretada como uma sucessão de provas planetárias, o que fornece ao Ocidente bases para os primeiros vislumbres de um conceito reexistencialista do Ser.

   Na Grécia, a ideia de reencarnação expressou-se através desse luminoso fenómeno poético que são os poemas órficosOs poetas dessa escola, sentiam em si mesmos, o imperativo moral das vidas sucessivas, que lhes surgia inesperadamente dos extractos mais profundos do subconsciente. Filósofos como Sócrates, Platão, Pitágoras, Apolónio de Tiana e, Empédocles apresentaram-se como uma realidade nas suas concepções filosóficas. Em quase toda a filosofia órfica e druídica está presente essa ideia do renascimento do Ser que Nietzsche denominou "eterno retorno".

   Platão escreve com toda a clareza a ideia da reencarnação em A Répública, Fedra, Timeu e em Fédon. Em Fedra lê-se: "É certo que os vivos nascem dos mortos e que as almas dos mortos renascem ainda". Em Fédon"A alma é mais velha que o corpo. As almas renascem sem cessar do Hado, para voltar à vida actual".

   Este pensamento socrático-platónico sobre a reencarnação não foi valorizado ontologicamente nem teologicamente como seria correcto, fazendo com que caísse como que um véu sobre a mentalidade do Ocidente. A história da filosofia não penetrou, como era de esperar, na exposição palingenésica de SócratesPlatão e de PitágorasAs chamadas ''reminiscências platónicas'' deveriam ter penetrado fundo no pensamento filosófico do cristão; ter-se-ia evitado assim, a tragédia agonística e existencial de homens como Pascal, Nietzsche, Kierkegaard, Chestov, Unamuno e, de existêncialistas como Sartre, Camus, Berdiaev e até de alguns tomistas contemporâneos. O homem como expressão da existência, ou seja, com a lei da reencarnação teria dado ao pensamento do Ocidente um novo sentir sobre a vida e a história. Um novo dinamismo moral teria surgido do chamado sentido trágico da existência. A vida como prova planetária do Ser estaria assente na sucessão de existências vividas pelo espírito. O homem, como acontece agora, não seria um Ser espiritual alheio aos variados processos da história; seria uma potência que do visível e do invisível manejaria conscientemente toda a realidade histórica.

   Isso daria um novo sentido às responsabilidades morais dos actores intervenientes no drama universal.

   palingenesia expressou-se no Egipto através dos chamados mistérios de Ísis, onde seres preparados para isso estavam destinados a revelar os segredos das vidas passadas do homem. Por isso, toda a ciência egiptológica se viu na necessidade de voltar ao passado em busca das verdadeiras raízes do Ser e da pessoa humana. Na Grécia, as vidas sucessivas do homem e dos seres era ensinada nos mistérios de Elêusis, tão profundos como os de Ísis. Mas, nos segredos eleusinos intervinham os mistérios de Perséfone, que simbolizavam a representação existencial dos renascimentos do homem.

   Toda a arte grega está impregnada dessa beleza espiritual cuja origem se encontra na mentalidade palingenésica, que prevalecia entre os maiores pensadores da antiga HéladeA beleza entre os gregos não era apenas uma idealização do Ser, mas uma expressão divina da vida como função vivente dos actos morais do homem. A beleza era entre os antigos gregos um estado superior da alma, que se engrandecia cada vez mais pela prática do Bem e da Verdade.

   Mas esta ideia palingenésica do homem encontrou também o seu clima favorável no império romano. Os homens mais destacados desse período, como OvídioCícero e Virgílio, sustentaram-na nas suas obras literárias. Virgílio cantou-a em Eneida, dizendo que a alma ao fundir-se com a carne perde a noção de si mesma. Embora não se tenha expandido muito na cultura romana, os seus mais ilustres pensadores consideraram a ideia palingenésica como uma realidade necessária para explicar os variados assuntos psicológicos do Ser.

   A fortaleza e têmpera dos antigos romanos deveu-se a esse conhecimento da lei da reencarnação que possuíam. César, nos seus "Comentários sobre a guerra das Gálias", fez alusão ao carácter imperturbável que possuíam os druídas frente à morte, tendo como causa a consciência palingenésica que haviam atingido. O historiador francês Arbois de Jubainville assim se expressou: "Nos combates contra os romanos, os druídas permaneciam imóveis como estátuas, recebendo as feridas sem fugir nem defender-se. Sabiam que eram imortais e esperavam encontrar noutra parte do mundo um corpo novo e sempre jovem". Tácito confirmou também esse carácter palingenésico que se havia desenvolvido.

   A ideia palingenésica do Ser e da História há de reaparecer com a mesma intensidade que possuía nas idades passadas. O génio poético será um meio para atingir esse fim; os poetas contemporâneos inspirar-se-ão nesta nova visão do Ser, tal como o génio de Victor Hugo o fez na sua época.

/…


Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, A consciência palingenésica nos homens e nos povos, 18º fragmento, o último desta obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

segunda-feira, 14 de maio de 2018

~~~Párias em Redenção~~~


INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM
(I)

   Na superlativa angústia em que se encontrava, hipnotizado pelo ódio de Dom Giovanni, Girólamo, que oscilava na demência, entre as alucinações e o remorso que lhe deixavam o travo do desespero, não pôde reflectir quanto ao gesto nefando da destruição da própria vida física, permitindo-se arrastar ao crime mais grave que o ser pode cometer contra si mesmo e a Divindade: o autocídio.

   Sem qualquer reflexão, porquanto as forças infelizes acalentadas na mente em desalinho e no coração rebelde produzem constrição impiedosa, que termina por vencer aqueles que as cultivam, arrojara-se desde cedo na mais infeliz das situações, qual a que ora o surpreendia.

   O suicídio revela no homem civilizado o estado aviltante a que ele relega a existência planetária, conduzido ao supremo ódio às Leis Divinas, por ver-se atingido pela inapelável força da evolução, cobrando ao infractor as dívidas não resgatadas. Nesse mister, o tempo não tem qualquer significação, importando não o período transcorrido entre o débito e o ressarcimento mas a dívida em si mesmo.

   O suicida é um espírito soberbo e calceta (i) que, na impossibilidade de atingir o fulcro da Divindade que lhe não permite continuar semeando destruição, alucinado pelas ambições crescentes e selvagens, se destrói, tentando, desse modo, alcançar o Sumo Espírito da Vida. Odiento e infeliz, arroja-se, porém, nos mais fundos despenhadeiros, cujo anteparo não consegue encontrar, experimentando inominável dor, enquanto perduram as novas impressões que se lhe adicionam às angústias das quais desejou fugir e que o enlouquecem, sem roubar-lhe a consciência da própria insânia.

   Os séculos de civilização, de ética e cultura não conseguiram fazer que o instinto de autodestruição – que apenas no homem se manifesta, já que os demais animais, não raciocinando, não se fazem vítimas do hediondo crime – fosse dominado pela análise fria e nobre da razão. Pelo contrário: parece que nas nações chamadas super-civilizadas, pelo abuso das faculdades que revestem o ser, o homem se atira cada vez mais opiado (i) no sorvedouro da autodestruição, consumido pelos excessos de todo o porte, ensoberbecido pela técnica e amolentado pela comodidade perniciosa.

   Se anteriormente a força anunciava a presença da civilização numa cidade, o alto índice de suicídios num povo, actualmente, revela a sua elevada cultura. Cultura, no entanto, pervertida, sem Deus nem amor, sem vida nem sentimento. Cultura da inteligência, com amarguras do sentimento, altas aquisições externas sem qualquer conquista interior. Vitórias sobre as realidades de fora e escravidão aos impositivos de dentro.

   Face às concessões facultadas pela moderna tecnologia e graças à decadência ética do mundo, favorecida pelo desgoverno e empobrecimento da fé nas grandes massas humanas, o ser marcha sob o azorrague (i) de mil angústias, encontrando no suicídio a porta falsa para a equação de problemas que a ele compete resolver pelos processos da não-violência, perseverando no dever sob o recto amparo do tempo. Impaciente, por acomodação ao imediatismo, cujos frutos sempre colhe na árvore da oportunidade ligeira, transforma a paisagem íntima num inferno e, entre as labaredas da inquietação levanta a mão que converte em sicário da vida e atira-se na inditosa loucura da morte voluntária, em busca de nada que seria o repouso eterno, numa violação das mais graves ao Estatuto Divino.

   Preferindo aceitar que o ser humano é um acidente biológico na escala zoológica, por retirar da sua consciência as responsabilidades para consigo mesmo o homem cultiva o orgulho, a soberba, desenvolve a ferocidade, a rebeldia e jacta-se (i) de ser o senhor do mundo, sempre menos, senhor de si mesmo.

   Vivendo na condição predatória de explorar a mãe-Terra quanto lhe facultam as possibilidades, faz-se ingrato, esquecendo de retribuir todas as concessões gratuitas que usufrui sem a menor consideração: a vida física e mental, o ar, a água refrescante, o fruto silvestre, a paisagem rica de colorido e perfume, a maravilha do sol, a bênção da noite, a dádiva das tempestades que lhe renovam a atmosfera… para somente pensar em si mesmo e nas baixas expressões do prazer animalizante.

   Escravo nas paredes celulares, encarcerado nas limitações do sentimento, entorpece-se cada vez mais, até que um último grito de dor o arroja do acume da vida – que deve sempre ser cultivada a qualquer preço de sacrifício e sofrimento –, ao abismo em que se consumirá sem extinguir-se, enquanto lentos, pela dor aumentada, correrão os tempos, realizando o seu abençoado trabalho purificador.

   Louca Humanidade! Conquista o mundo, transforma condições climáticas, corrige o terreno, arrasa montanhas, rectifica ilhas e as faz penínsulas, vence abismos com pontes audaciodas, reduz distâncias com aparelhos velozes, envia imagens sonoras e visuais a qualquer parte do orbe, graças aos satélites artificiais, atinge a Lua, mas prefere adiar o encontro com a consciência.

   Vã cultura! Estuda a História do passado e do presente, vaticina o futuro, arregimenta princípios de escolaridade intelectual, procede a julgamentos de vultos que foram factores lídimos da Civilização, examina estratégias bélicas e recompõe monumentos de arte, na pintura, na estatuária, na arquitectura, na arqueologia, ressuscita partituras que trazem a música dos Mundos Felizes e, no entanto, prossegue descontrolada, estiolando (i) esperanças e espalhando pessimismo, sem penetrar no imortal conceito do “Nosce te ipsum” (*), mediante o qual poderia resolver os magnos problemas da vida, pelo auto-descobrimento das virtudes e dos defeitos, desenvolvendo as primeiras e limando os segundos, em incessante labor de superação dos males acarretados pelas mesclas renascentes dos erros pretéritos, na busca da luz futura.

   Insensata Tecnologia! Invade o microcosmo e decifra milhares de enigmas que antes infelicitavam a vida organizada no mineral, no vegetal, no animal e no homem, e criavam graves desconcertos nas formas vivas, identificando germens, vírus, flora e fauna de estrutura infinitesimal, adentrando-se pelos laboratórios para proceder à elaboração de fórmulas e soluções capazes de aniquilar os focos pestilenciais (i) que fazem sucumbir o corpo, não conseguindo, porém, estancar as fontes do ódio, da inveja, da malquerença, do ciúme, do despeito, da intriga, da impiedade, da ira, do orgulho, do egoísmo – esses semens de acção corrosiva, por criarem campo de proliferação nos tecidos subtilíssimos da alma. Irrompe pelo macrocosmos e mede as estrelas, sonha com as colmeias globulares e as ilhas interplanetárias, identificando-as, classificando-as, conhecendo-as mediante os sinais de rádio, amando-as; prevê-lhes a idade, a distância em que se encontram, o envelhecer paulatino, a transformação pelo desgaste da energia em que se consomem e, até as visualiza nos movimentos célicos, em órbitas inconcebíveis, mas não utiliza as lunetas que penetram no continente do espírito, para escudar os centros de vida que gravitam em torno da nebulosa excelsa que envolve todo o Cosmo, como continente e conteúdo.

   Após quase dose mil anos de Civilização, o homem parece apetecer em ser não apenas “o lobo do homem” mas o chacal de si mesmo.

   O suicida é o imaturo desajustado na escola da vida, fugindo da consciência culpada para despertar de coração e mente estraçalhados.

   Enquanto não rutilar a fé poderosa e pura, que traduza a verdade maior do Amor no coração da Humanidade, o homem fugirá da vida para a Realidade, afogando-se nos rios da Imortalidade, sem consumir-se no aniquilamento que tanto persegue, não colimando o cobiçado objectivo.

   A ética, que na Antiguidade oriental afirmava o “espírito e negava o mundo”, renasceu no Cristianismo, oferecendo no pessimismo, em relação ao imediato, o optimismo de referência à Imortalidade, com as credenciais da esperança e da paz.

   No Espiritismo, o mais eficiente antídoto contra o suicídio – suicídio em cujo corpo sempre se encontram as fortes amarras da obsessão pertinaz, em conúbio danoso, de consequências imprevisíveis –, o optimismo no tocante à vida real e indestrutível estabelece uma ligação entre a cultura actual e as culturas pretéritas, em perfeita sintonia de ideias, dos quais a técnica e as modernas conquistas podem extrair os frutos óptimos a beneficio da Civilização contemporânea.

   Provenientes de séculos de nefasta ignorância e contínuo primitivismo do sentimento, em que a força sobrepairou à legalidade e o absolutismo do poder esteve em mãos fortes e ingratas, engendrando misérias colectivas, infindáveis, renascem aqueles que foram factótum dos males, embrulhados nos tecidos dos resgates, experimentando, entre revoltas injustificáveis, o clima de dor e sombra que produziram para si mesmos.

   Ambientados à dominação e açoitados pelas vítimas que demoram em outra vibração da vida, raramente têm o carácter capaz de suportar os impositivos evolutivos, deixando-se solapar pelo desânimo e pela acrimónia (i), que culminam no suicídio enganoso e cruel.

   Verdadeira chaga social, na velha Roma constituía honra dar a sua pela vida do Imperador e, não poucas vezes homens ilustres foram convidados ao suicídio, porque discordassem das diatribes e loucuras da sua época: Petrónio, o arbiter elegantiarum, Séneca, o filósofo, passando à imortalidade o exemplo de Sócrates, o pai da Filosofia, que vem da Grécia, condenado a beber cicuta. Todos eles, no entanto, sacrificados pela ferocidade do poder desmedido, tornaram as suas vidas alicerces para as construções da dignidade humana, que sempre soube, também, expulsar do dorso os usurpadores e criminosos.

   A liberdade humana num crescendo transformou-se em degradante libertinagem, nos dias modernos e, fez-se factor preponderante para tornar o suicídio uma solução, considerando que o desvitalizar da pujança do carácter faz que o homem seja somente o seu exterior dourado e enganoso, não as suas qualidades morais elevadas.

   Período cíclico, que representa trânsito na evolução do ser e do planeta que o agasalha, o apagar das luzes da cultura optimista sob as sombras destrutivas do pessimismo impõe que surja um claro-escuro, uma fímbria representativa do acender de novas luzes que significam a madrugada do Novo Dia, no qual o aforismo latino Veneratio vitas (**) estabelecerá novas linhas de comportamento humano e social, facultando ao homem a vitória sobre as tentações da fuga, o primitivismo das sensações – altos objectivos que devem caracterizar a própria Humanidade.

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(*) Conceito que se encontrava inscrito no pórtico do Santuário de Delfos, em grego: “Gnothi seauton” e que significa: “Conhece-te a ti mesmo”, estrutura moral da filosofia de Sócrates, na sua escola maiuêutica.
(**) Conceito básico da ética latina, que significa “Respeito pela vida”, em toda e qualquer manifestação.


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 1. INFELIZ DESPERTAR NO ALÉM (1 de 3) 34º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)