Capítulo V
A Auvergne. Vercin-gétorix, Gergovie e Alésia
A Auvergne. Vercin-gétorix, Gergovie e Alésia
Como uma cidadela que coroa alguns cumes de suas torres e de
seus baluartes, a Auvergne ergue a corrente de suas montanhas acima das
planícies e dos vales da França Central. Dos altos planaltos e dos contrafortes
descem e rolam as torrentes, os ribeirões que se transformarão, mais adiante,
em grandes rios cujas bacias, dirigidas para três mares, dão à Gália esse aspeto
regular, essa forma predestinada que parece, dizia Estrabão, a obra de um deus.
O país dos arvernos era, para seus habitantes, como uma
terra sagrada. Os génios invisíveis rondavam sobre suas florestas e suas
montanhas. De seu solo jorravam em abundância as fontes quentes, os vapores
benéficos, manifestação de um poder subterrâneo que inspirava, nesses povos
primitivos, uma espécie de temor religioso.
O Puy de Dôme, que domina toda a região por seu alto porte,
era o altar gigantesco de onde a oração dos druidas se elevava para o céu, o
templo natural do deus Teutatès, ou melhor, do espírito protetor que simboliza
a força e a bravura dos arvernos.
O panorama dos montes desperta na alma uma impressão quase
tão viva como as noites estreladas. Essa impressão não se exprime por palavras,
mas, geralmente, por uma contemplação silenciosa, por uma admiração tanto mais
viva quanto mais profundamente a alma possua o sentido de harmonia e de beleza.
Ela é aumentada, ainda, na Auvergne por marcas deixadas pela ação do fogo
central, que, no seu esforço para alcançar a superfície, transtornou as camadas
terrestres. Se do alto do Puy de Dôme se observa a longa cadeia de crateras que
se sucedem do norte ao sul, em linha reta, e se reconstitui, pela imaginação, o
período de atividade onde todos esses vulcões expeliam correntes de lavas, das
quais se pode ainda seguir os rastos deixados em muitas léguas, e que as
pessoas da região chamam de “cheires”, tem-se a visão grandiosa do dinamismo
que sacudia o globo nos tempos quaternários.
O solo da Auvergne, tanto na região dos montes Dôme quanto
na região dos montes Dore e Cantal, é gretado, crivado de crateras extintas,
invadidas depois pelas águas. A mais notável é o lago Pavin, corte vasto e
profundo de paredes de pórfiro, que coroa um círculo de florestas. Pela brecha
onde se escoavam outrora as lavas, hoje se expandem as águas límpidas do
ribeirão La Couze.
Pelo caminho que contorna o lago, através da floresta
umbrosa, se atinge o planalto elevado que domina muitas crateras, entre outras
a de Moncineire, ou montanha das cinzas. Ali está um dos sítios mais
maravilhosos de nossa região. A natureza selvagem das primeiras eras da Terra
ali se revela ainda sob o enfeite cambiante das águas e dos bosques. Pelas
emanações sulfurosas e pelas lamas quentes que se encontram em alguns pontos da
Auvergne, pode-se crer que a atividade subterrânea não cessou inteiramente e
que um despertar de forças plutonianas é sempre possível.
O contacto dessa natureza agreste tinha comunicado às
populações primitivas essas qualidades rudes e fortes que caracterizam quase
todos os montanheses.
Se o sentimento que os gauleses tinham de sua origem comum,
de seu parentesco de raça, se a unidade moral e religiosa que resultava fosse
mudada em unidade política, os arvernenses teriam sido os primeiros a
aproveitá-la. Sua província não era o núcleo ativo e, ao mesmo tempo, a principal
força material da Gália?
O Puy de Dôme era o maior santuário. Para ali convergiam
peregrinos de todos os locais. Gergovie era o lugar mais importante, e Vichy,
situado então em região arvernense, atraía, unicamente pela virtude de suas
águas, multidões de doentes e feridos.
O Rei Bituit havia mobilizado duzentos mil combatentes
contra os romanos e a cavalaria arverna era considerada como a melhor de todas.
Mas Bituit foi vencido e o império arverno se eclipsou durante certo tempo.
Entretanto, vastos grupos políticos se formavam em outros lugares: A Federação
Armoricana, no oeste; a Federação Belga, no norte de Marne. A de Auvergne se
reconstituiu, incorporando todos os povos das Cévennes. Mas a rivalidade
ciumenta dos eduenos comprometeu tudo. Eles recorreram a César, cujas legiões
penetraram, pouco a pouco, na Gália, e fizeram aliança com ele. A influência do
pérfido procônsul aumentou rapidamente e tornou-se logo ameaçadora para a
independência gaulesa.
É então que a grande e nobre figura de Vercingétorix (72-46
a.C.) aparece. Educado pelos druidas, foi na sua educação que ele adquiriu
essas raras qualidades, essa elevação de caráter que o distinguiam. A morte
cruel de seu pai, Celtil, queimado vivo por julgamento do Senado, por ter
aspirado à coroa, lançou uma sombra sobre sua juventude e contribuiu para
torná-lo, muito cedo, circunspecto, meditativo e sonhador. Ele experimentou,
diz-se, a sensação do mundo invisível, essas intuições inexprimíveis que são,
talvez, reminiscências de lembranças anteriores, formando um conjunto de coisas
enterradas na subconsciência profunda e que tendem a reviver, a se expandir em
plena luz.
Camille Jullian, tão reservado nessas matérias, não hesita
ao nos ensinar que Vercingétorix, enviado cedo para a escola dos druidas, vivia
na familiaridade respeitosa desses sacerdotes. Ele aprende com estes que há uma
alma imortal e que a morte é uma simples mudança de estado. Eles lhe ensinam
que o mundo é uma coisa imensa e que a humanidade se estende ao longe, bem fora
das terras paternais e dos caminhos da caça ou da guerra. Assim o jovem
imaginava, pouco a pouco, a grandeza do mundo, a eternidade da alma e a unidade
do nome gaulês.
Tudo em Vercingétorix lhe predispunha ao comando; seu corpo
alto e soberbo, diz Camille Jullian, o indicava para a admiração das multidões.
Ele tinha a superioridade física e intelectual que dá à vontade uma segurança
nova, e os arvernos podiam se perguntar se Luern ou Bituit, os chefes ainda
célebres da Gália triunfante, não voltavam sob a forma juvenil do último de
seus sucessores.
Instruído e amado pelos bardos, tornou-se um deles. Ele
sabia se exprimir em versos e empregar em seus discursos essa atitude
arrebatadora que impressiona sempre os celtas. Sobre este assunto, lembremos a
citação seguinte de Mommsen, o grande historiador alemão, que demonstra que
nossos antepassados não eram tão bárbaros como se pretendia: “O mundo céltico
se liga mais estreitamente ao espírito moderno do que ao pensamento
greco-romano.” |*
E o Sr. Camille Jullian insiste sobre este facto:
“Vercingétorix não era por isso fechado e hostil à
civilização greco-latina. Ele tomou emprestado muitos princípios da guerra
científica e aceitou uma certa supremacia intelectual dos dois grandes povos
vizinhos.”
/…
|* Ver Vercingétorix,
de Camille Jullian, p. 93, Editora Hachette.
LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível,
Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO V – A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia
1 de 3, 16º fragmento da obra.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que
morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis
Girodet-Trioson)
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