Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Génio Céltico e o Mundo Invisível~


Capítulo V

A Auvergne. Vercin-gétorix, Gergovie e Alésia

Como uma cidadela que coroa alguns cumes de suas torres e de seus baluartes, a Auvergne ergue a corrente de suas montanhas acima das planícies e dos vales da França Central. Dos altos planaltos e dos contrafortes descem e rolam as torrentes, os ribeirões que se transformarão, mais adiante, em grandes rios cujas bacias, dirigidas para três mares, dão à Gália esse aspeto regular, essa forma predestinada que parece, dizia Estrabão, a obra de um deus.

O país dos arvernos era, para seus habitantes, como uma terra sagrada. Os génios invisíveis rondavam sobre suas florestas e suas montanhas. De seu solo jorravam em abundância as fontes quentes, os vapores benéficos, manifestação de um poder subterrâneo que inspirava, nesses povos primitivos, uma espécie de temor religioso.

O Puy de Dôme, que domina toda a região por seu alto porte, era o altar gigantesco de onde a oração dos druidas se elevava para o céu, o templo natural do deus Teutatès, ou melhor, do espírito protetor que simboliza a força e a bravura dos arvernos.

O panorama dos montes desperta na alma uma impressão quase tão viva como as noites estreladas. Essa impressão não se exprime por palavras, mas, geralmente, por uma contemplação silenciosa, por uma admiração tanto mais viva quanto mais profundamente a alma possua o sentido de harmonia e de beleza. Ela é aumentada, ainda, na Auvergne por marcas deixadas pela ação do fogo central, que, no seu esforço para alcançar a superfície, transtornou as camadas terrestres. Se do alto do Puy de Dôme se observa a longa cadeia de crateras que se sucedem do norte ao sul, em linha reta, e se reconstitui, pela imaginação, o período de atividade onde todos esses vulcões expeliam correntes de lavas, das quais se pode ainda seguir os rastos deixados em muitas léguas, e que as pessoas da região chamam de “cheires”, tem-se a visão grandiosa do dinamismo que sacudia o globo nos tempos quaternários.

O solo da Auvergne, tanto na região dos montes Dôme quanto na região dos montes Dore e Cantal, é gretado, crivado de crateras extintas, invadidas depois pelas águas. A mais notável é o lago Pavin, corte vasto e profundo de paredes de pórfiro, que coroa um círculo de florestas. Pela brecha onde se escoavam outrora as lavas, hoje se expandem as águas límpidas do ribeirão La Couze.

Pelo caminho que contorna o lago, através da floresta umbrosa, se atinge o planalto elevado que domina muitas crateras, entre outras a de Moncineire, ou montanha das cinzas. Ali está um dos sítios mais maravilhosos de nossa região. A natureza selvagem das primeiras eras da Terra ali se revela ainda sob o enfeite cambiante das águas e dos bosques. Pelas emanações sulfurosas e pelas lamas quentes que se encontram em alguns pontos da Auvergne, pode-se crer que a atividade subterrânea não cessou inteiramente e que um despertar de forças plutonianas é sempre possível.

O contacto dessa natureza agreste tinha comunicado às populações primitivas essas qualidades rudes e fortes que caracterizam quase todos os montanheses.

Se o sentimento que os gauleses tinham de sua origem comum, de seu parentesco de raça, se a unidade moral e religiosa que resultava fosse mudada em unidade política, os arvernenses teriam sido os primeiros a aproveitá-la. Sua província não era o núcleo ativo e, ao mesmo tempo, a principal força material da Gália?

O Puy de Dôme era o maior santuário. Para ali convergiam peregrinos de todos os locais. Gergovie era o lugar mais importante, e Vichy, situado então em região arvernense, atraía, unicamente pela virtude de suas águas, multidões de doentes e feridos.

O Rei Bituit havia mobilizado duzentos mil combatentes contra os romanos e a cavalaria arverna era considerada como a melhor de todas. Mas Bituit foi vencido e o império arverno se eclipsou durante certo tempo. Entretanto, vastos grupos políticos se formavam em outros lugares: A Federação Armoricana, no oeste; a Federação Belga, no norte de Marne. A de Auvergne se reconstituiu, incorporando todos os povos das Cévennes. Mas a rivalidade ciumenta dos eduenos comprometeu tudo. Eles recorreram a César, cujas legiões penetraram, pouco a pouco, na Gália, e fizeram aliança com ele. A influência do pérfido procônsul aumentou rapidamente e tornou-se logo ameaçadora para a independência gaulesa.

É então que a grande e nobre figura de Vercingétorix (72-46 a.C.) aparece. Educado pelos druidas, foi na sua educação que ele adquiriu essas raras qualidades, essa elevação de caráter que o distinguiam. A morte cruel de seu pai, Celtil, queimado vivo por julgamento do Senado, por ter aspirado à coroa, lançou uma sombra sobre sua juventude e contribuiu para torná-lo, muito cedo, circunspecto, meditativo e sonhador. Ele experimentou, diz-se, a sensação do mundo invisível, essas intuições inexprimíveis que são, talvez, reminiscências de lembranças anteriores, formando um conjunto de coisas enterradas na subconsciência profunda e que tendem a reviver, a se expandir em plena luz.

Camille Jullian, tão reservado nessas matérias, não hesita ao nos ensinar que Vercingétorix, enviado cedo para a escola dos druidas, vivia na familiaridade respeitosa desses sacerdotes. Ele aprende com estes que há uma alma imortal e que a morte é uma simples mudança de estado. Eles lhe ensinam que o mundo é uma coisa imensa e que a humanidade se estende ao longe, bem fora das terras paternais e dos caminhos da caça ou da guerra. Assim o jovem imaginava, pouco a pouco, a grandeza do mundo, a eternidade da alma e a unidade do nome gaulês.

Tudo em Vercingétorix lhe predispunha ao comando; seu corpo alto e soberbo, diz Camille Jullian, o indicava para a admiração das multidões. Ele tinha a superioridade física e intelectual que dá à vontade uma segurança nova, e os arvernos podiam se perguntar se Luern ou Bituit, os chefes ainda célebres da Gália triunfante, não voltavam sob a forma juvenil do último de seus sucessores.

Instruído e amado pelos bardos, tornou-se um deles. Ele sabia se exprimir em versos e empregar em seus discursos essa atitude arrebatadora que impressiona sempre os celtas. Sobre este assunto, lembremos a citação seguinte de Mommsen, o grande historiador alemão, que demonstra que nossos antepassados não eram tão bárbaros como se pretendia: “O mundo céltico se liga mais estreitamente ao espírito moderno do que ao pensamento greco-romano.” |*

E o Sr. Camille Jullian insiste sobre este facto:
“Vercingétorix não era por isso fechado e hostil à civilização greco-latina. Ele tomou emprestado muitos princípios da guerra científica e aceitou uma certa supremacia intelectual dos dois grandes povos vizinhos.”
/…

|* Ver Vercingétorix, de Camille Jullian, p. 93, Editora Hachette.


LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Primeira Parte OS PAÍSES CÉLTICOS, CAPÍTULO V – A Auvergne. Vercingétorix, Gergovie e Alésia 1 de 3, 16º fragmento da obra.
(Imagem: A Apoteose dos heróis franceses que morreram por seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)

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