Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 28 de outubro de 2012

~~~Párias em Redenção~~~


ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL ~

   A chegada ao Palácio T., na parte superior da cidade, fez-se seguida das homenagens dos anfitriões. Francesco e sua esposa, uma morena de grandes olhos claros e tez bronzeada, de aparência sensual e leviana, acolheram o visitante com reais demonstrações de cordialidade e júbilo. Por estranho processo magnético, porém, Girólamo sentiu que a esposa do amigo experimentou a mesma sensação de prazer que ele, ao primeiro encontro, e rejubilou-se interiormente. Francesco conduziu-o à peça interior, em que se deveria hospedar, e apresentou-lhe as bilhas de água fresca e a bacia de fina porcelana, para a higiene corporal.

Sacudido pelas alegrias espontâneas do momento, Girólamo pareceu novamente ouvir ensurdecedora gargalhada a estrugir dentro de sua cabeça, reconhecendo a voz de Assunta assassinada, como se ela estivesse presente. Empalideceu de inopíno e fez-se lívido.

   Francesco, surpreso, inquiriu o amigo a respeito do seu estado.

   – Não é nada de assustar – asseverou o cavaliere.

   – Creio que o sol causticante na viagem me fez mal. Tive um pesadelo e, desde então, estou sendo acometido de desconhecidas sensações, quais delírios produzidos pela maremma *, conquanto não esteja febril. Desejava mesmo perguntar-lhe se há, na cidade, algum ervanário que mereça uma consulta, ou algum médico, embora a minha indiferença e quase perversão total contra os médicos…

   – Sim – redarguiu o anfitrião –, sei que fora da cidade, além da Porta Ovile, reside estranho misto de ervanário e adivinho, que atende seleta clientela, não obstante permaneça em silencioso abandono, entre os seus unguentos e misteres exóticos. Nossa família consultou-o mais de uma vez, com excelentes resultados. Mas, que teria o Conde Cherubini para interessar-se por gente desse jaez?

   – Se me guarda segredo – falou, esfogueado, o nobre –, gostaria de consultá-lo para acalmar-me a respeito de problemas graves de família. Não ignora você a tragédia de que foi palco o solar que hoje é propriedade minha. Não posso negar que cruéis presságios me acossam, desde que para ali transladei residência. E desde que há alguém que se atreve a penetrar nos meandros dos mortos, muito gostaria de inteirar-me de algumas questões que me perturbam, a respeito do assunto.

   Depois de uma pausa de demorada reflexão, Girólamo interrogou:

   – Como a ceia nestes dias de verão é sempre recuada para horas frescas e avançadas da noite, não poderíamos ir ao encontro desse misterioso oráculo? Seriam somente duas horas, no máximo, entre ida e volta. Se você aprova, poderemos chamar o palafreneiro e seguiremos de carruagem até lá.

   Francesco surpreendeu-se com o estado de exaltação do amigo. Os olhos estavam arregalados e o aspeto da face traduzia profunda desesperação. Assentindo, foram dadas ordens para que se atrelassem animais à carruagem e minutos depois os dois moços partiam, apressados, em direção da Porta Ovile.

   Sopravam os ventos campesinos do entardecer, embora o sol ainda estivesse modorrento por sobre o longínquo crepúsculo. Vencida a Porta, os animais galoparam por mais alguns poucos quilómetros e atingiram a habitação do sensitivo.

   Foram recebidos à porta pelo estranho hierofante, que se trajava à grega antiga. De idade avançada e plácido olhar, a cabeleira basta e as barbas crescidas, estas desciam durando-lhe o rosto dando-lhe a feição de venerando vulto bíblico arrancado às páginas do passado. Delicado, o intérprete dos Espíritos convidou os moços a entrarem em pequena câmara profusamente decorada de caratéres astrológicos e com os signos do Zodíaco, ervas perfumadas e turibulos com fumo odorífero. Assentou-se sobre um almofadão, em cima de um tapete envelhecido, e solicitou aos jovens que se acercassem, descalçando-se e sentando-se, também.

   Após demorada concentração, em que as têmporas apareciam dilatadas e suando fartamente, recompôs-se, solicitando a anuência de Francesco para ficar a sós com Girólamo, no que foi atendido.

   De imediato, falou ao moço intrigado e medrica:

   – Vejo sombras vingadoras que o ameaçam. Sua vida está em grave perigo. Ouço choros convulsos de crianças indefesas que suas mãos assassinaram…

   – Mentiroso! – trovejou o consulente, dominado de ira singular.

   – Você não me atemoriza nem me intimida. Estou acostumado às ameaças dos que se encontram julgados ao remorso e dos que temem a verdade. Você sabe que não são mentiras nem infâmias, quanto lhe digo. Vejo e ouço, como você mesmo tem ouvido, as vozes clamando por justiça e suplicando punição contra o criminoso que lhes roubou a vida… Por que, meu filho? Por que investiu contra a vida daqueles que eram os filhos do seu benfeitor? Onde você colocou a Justiça Divina? Não sabe que a vida do próximo é património sagrado da Divindade?...

   Repentinamente, o ancião se tornou muito lívido e, com a boca retorcida em rito cruel, enunciou com voz inesquecível, pelo tom de sarcasmo e ameaça:

   – Não escaparás à Justiça, bandido! Trouxe-te até aqui para que me ouvisses em lucidez. Não poderás dizer que estás sonhando ou em delírio. Ouvirás minha voz onde estejas, causticando-te o cérebro até despertar a tua consciência nefanda. Sigo-te os passos desde a hora do crime, como a sombra acompanha o corpo onde este se encontre. Não te permitirei respirar o ar da paz, como não facultaste aos meus filhos e a Lúcia aspirarem o oxigénio da sobrevivência. Usarei da mesma técnica de que utilizaste: impiedade e segurança! Agora possuis o que um dia seria teu, por outro processo, e que a tua precipitação roubou. Desgraçaste os outros, e doravante sentirás as mãos tingidas de sangue… do sangue das tuas vítimas, de Assunta, que te odeia tanto quanto eu. Também ela aqui está.

   Girólamo desejou evadir-se do local abafado. As ervas, ardendo no incensório, e a fumaça, ondulante na peça quadrada, pareciam ao criminoso, estupidificado, fantasmas dos a quem trucidara, que se corporificavam. Tinha a sensação de enlouquecer.

   Caído, em contrações dolorosas, o oráculo continuava a falar, sôfrego, odiento:

   – Sou o duque di Bicci, homocida nefasto, que a morte libertou para a vida e a justiça. É tarde para que voltes atrás. Já não podes recuar… Apareceu-me a tua tia e rogou-me piedade para ti. Eu, que tanto a tenho amado, sofri-lhe a reprovação à minha conduta. Por ela, recebi-te no meu lar, apesar de jamais ter por ti nutrido compaixão ou simpatia; dei-te o meu amparo legal; tornei-te “filho” e, peçonhento, voltas-te contra o colo que te amamentou… como poderia perdoar-te? Nunca, nunca! Não te concederei o lenitivo da trégua, a fim de que as tuas forças não se removam, nem se refaçam as tuas energias. Impedirei que sigas o caminho que trilhas. Possuis tudo o que antes era meu de outrem; não experimentarás, todavia, uma posse maior: a da paz! Ouvirás sempre minha voz, até à hora em que te arrebatarei para , tomando-te aos meus cuidados. Rolarão séculos de horror sobre nós dois. Nunca, ouve-me: nunca terás o meu perdão. Desgraçado, infeliz criminoso! Recebe, agora, o fruto ácido da tua rapina…

   Uma gargalhada em espasmos doloridos ecoou na sala abafada. O ancião estremeceu e silenciou, dominado por ignota inconsciência.

   O moço, vencido em toda a pusilanimidade, queria chamar o amigo, rogar socorro; não o conseguiu. Parecia chumbado ao solo, aparvalhado, imóvel, com as têmporas dilatadas, a respiração descompassada, com suores álgidos.

   Aqueles minutos pareciam não ter fim. Marmóreo, o oráculo jazia estendido sobre o tapete, respirando com dificuldade, arquejante…
/…

* Maremmas toscana – impaludismo, febres…



VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO PRIMEIRO, 6 ACOSSAMENTO IRREVERSÍVEL (fragmento 4 de 5 texto mediúnico recebido por DIVALDO PEREIRA FRANCO.
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

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