Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 25 de março de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (XI)

  Não existe nenhuma ciência que tenha saído de todas as peças do cérebro de um homem; todas, sem excepção, são o produto de observações sucessivas, apoiando-se sobre as observações anteriores como sobre um ponto conhecido para se chegar ao desconhecido. 

  Foi assim que os Espíritos procederam para o Espiritismo; é por isso que o seu ensino é gradual; só abordam as questões à medida que os princípios sobre os quais se devem apoiar forem estando suficientemente elaborados e a opinião for estando madura para os assimilar. É até notável que, de todas as vezes que os centros particulares quiseram abordar as questões prematuramente, só obtiveram respostas contraditórias ou inconclusivas. Quando, pelo contrário, o momento favorável chegou, o ensinamento generalizou-se e unificou-se na quase universalidade dos centros.

 Há no entanto entre o andamento do Espiritismo e o das ciências uma diferença capital, que reside no facto destas só terem atingido o ponto a que chegaram após longos intervalos, enquanto ao Espiritismo bastaram alguns anos, se não para atingir o ponto culminante, pelo menos para recolher uma quantidade de observações suficientemente grande para constituir uma doutrina, isto deve-se ao número incontável de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram simultaneamente, trazendo cada um deles o contingente dos seus conhecimentos. Daqui resultou que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas sucessivamente durante vários séculos, foram-no quase simultaneamente em alguns anos e bastou juntá-las para formar um todo.

 Deus quis que assim fosse, primeiro para que o edifício chegasse mais rapidamente ao cume; em segundo lugar, para que se pudesse, por comparação, ter um controlo por assim dizer imediato e permanente na universalidade do ensino, não tendo cada uma das partes valor e autoridade a não ser através da sua ligação ao conjunto, devendo todas harmonizarem-se, encontrarem o seu lugar na arrumação geral e chegar cada uma a seu tempo.

 Não confiando a um só Espírito o cuidado da promulgação da doutrina, Deus quis além disso que o mais pequeno bem, assim como o maior, entre os Espíritos como entre os homens, levasse a sua pedra ao edifício, a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa que faltou a todas as doutrinas saídas de uma única fonte.

 Por outro lado, cada espírito, tal como cada homem, só possuindo uma soma limitada de conhecimentos, não conseguiria tratar individualmente ex professo as inúmeras questões que o Espiritismo aborda; eis também porque a doutrina, para preencher os objectivos do Criador, não podia ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium; só podia sair dos trabalhos colectivos controlados uns pelos outros. (i)

 Uma última característica da revelação espírita, e que resulta das próprias condições em que é feita, é que, apoiando-se nos factos, ela é e não pode deixar de ser essencialmente progressiva, tal como todas as ciências de observação. Pela sua essência, estabelece uma aliança com a ciência que, sendo a exposição das leis da natureza numa certa ordem de factos, não pode ser contrária à vontade de Deus, autor dessas leis. As descobertas da ciência glorificam Deus em vez de o diminuírem: só destroem o que os homens edificaram sobre as falsas ideias que criaram de Deus.

 Portanto, o Espiritismo estabelece unicamente como princípio absoluto o que é demonstrado com evidência ou que ressalta logicamente da observação. Tocando em todos os ramos da economia social a que dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressistas, sejam de que ordem forem, atingida a ordem de verdades práticas e libertadas do domínio da utopia, sem o que se suicidaria; deixando de ser o que é; mentiria à sua origem e ao seu objectivo providencial. O Espiritismo, avançando com o progresso, nunca se excederá porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está errado num ponto, modificar-se-á nesse ponto; se uma nona verdade se revela, aceita-a. (ii)

 Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, já que não é mais do que a de Cristo? Tem o homem necessidade de uma revelação e não pode encontrar em si mesmo tudo o que lhe é necessário para se governar?

 Do ponto de vista moral, Deus forneceu sem dúvida ao homem um guia na sua consciência que lhe diz: «Não faças aos outros o que não queres que te façam.» A moral natural está certamente inscrita no coração dos homens, mas saberão todos lê-la? Não terão nunca ignorado os seus sábios preceitos? Que fizeram eles da moral de Cristo? Como a praticam esses mesmos que a ensinam? Não se tornou ela letra morta, uma bela teoria, boa para os outros mas não para si mesmo? Censuraríeis um pai por repetir dez vezes, cem vezes, as mesmas indicações aos filhos se eles não as aproveitassem? Por que faria Deus menos que um pai de família? Por que haveria de enviar, de tempos a tempos, mensageiros especiais para o meio dos homens, encarregados de os chamar às suas obrigações e de os recolocar no bom caminho quando se afastam dele, abrindo os olhos da inteligência aos que os fecharam, tal como os homens mais evoluídos enviam missionários para junto dos indígenas e dos bárbaros?

 Os Espíritos não ensinam outra moral que não a de Cristo por não haver nenhuma melhor. Mas então, para que servem os seus ensinamentos, uma vez que apenas dizem o que já sabemos? Poderíamos dizer o mesmo da moral de Cristo que foi ensinada quinhentos anos antes dele por Sócrates e Platão e em termos quase idênticos; de todos os moralistas que repetem a mesma coisa em todos os tons e em todas as formas. Pois bem, os Espíritos vêm muito simplesmente aumentar o número de moralistas, com a diferença que, manifestando-se por todo o lado, fazem-se entender na cabana tão bem como no palácio, tanto pelos ignorantes como pelas pessoas instruídas.

  O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral de Cristo é o conhecimento dos princípios que põem em contacto os mortos e os vivos, que completam as noções vagas que tinha dado da alma, do seu passado e do seu futuro e que sancionam a sua doutrina com as leis da mesma natureza. Com a ajuda do novo saber trazido pelo Espiritismo e pelos Espíritos, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade tornam-se uma necessidade social; faz por convicção o que não fazia por obrigação e fá-lo melhor.

 Quando os homens praticarem a moral de Cristo, só então poderão dizer que já não precisam de moralistas encarnados ou não encarnados; mas então, também Deus não lhes enviará mais nenhum.

 /…

(i) Ver, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, a Introdução e, na Revista Espírita, edição de Abril de 1864, a p. 90: Autoridade da Doutrina Espírita; Controlo Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. (N. do A.)
(ii) Perante declarações tão claras e tão categóricas como as que estão contidas neste capítulo, caem todas as alegações de tendência para o absoluto e para a autocracia dos princípios, todas as falsas assimilações que pessoas preconceituosas ou mal informadas atribuem à doutrina. De resto, estas declarações não são novas; já as repetimos suficientes vezes nos nossos artigos para que não fique alguma dúvida a este respeito. Estabelecem-nos além disso o nosso verdadeiro papel, o único que ambicionamos: o de trabalhadores. (N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 54 a 56 (XI), 13º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 14 de março de 2016

Inquietações Primaveris ~


os amantes | da morte

A teoria psico-fisiológica de que a dor é o exagero do prazer, tem a sua confirmação social, na existência universal, das comunidades dos amantes da morte. Desde todos os tempos, essas comunidades, se desenvolvem no seio ambivalente das religiões, onde se nutrem dos desesperos e das angústias, dos sacrifícios, das autoflagelações, dos cilícios e dos conformismos piedosos, torturando-se para as delícias do Paraíso. A ambivalência dessa situação, é evidente. Desejam e temem o prazer na Terra, onde tudo passa depressa, e escapam do impasse pela porta das promessas divinas que lhes oferecem o prazer eterno. Jogam na lotaria do Além a fortuna da saúde e as moedas doiradas da alegria, cobrindo-se de cinzas e farrapos, como faziam os judeus antigos, ou mergulhando na sujeira, no desinteresse pela comodidade e limpeza, como o faziam os frades penitentes, para morrerem com cheiro a santidade. O fedor da sujeira garantiria a participação nos banquetes da Eternidade. Os frades dos conventos isolados, dos desertos, permaneciam analfabetos para não caírem nas armadilhas do Diabo, cheias de petiscos intelectuais perigosos. As mais perigosas dessas privações sagradas eram benéficas, pois, trocando os prazeres carnais pelos prazeres ideais do outro mundo, desencadeavam nas criaturas ingénuas os delírios do misticismo lúbrico, evitados pelos espíritos de íncubos e súcubos, activíssimos na idade Média. Deus entregava os seus servos interesseiros e egoístas às tentações fatais desses demónios insaciáveis. Mas a lição não produziu efeitos, a não ser à dos expedientes da hipocrisia, com que os mais espertos conseguiam passar por santos prematuros, cujos deslizes ocasionais eram cobertos, piedosamente, por taxas escusas de indulgência. Até mesmo o Apóstolo Paulo, vibrante e culto, mas arcando com o peso do remorso pelas perseguições aos cristãos e pela lapidação de Estêvão, recomendava aos cristãos que não se casassem e aos casados que não praticassem relações sexuais. Mas bem cedo teve de recriminar os santos da Igreja de Corinto, que se tornavam piores do que os pecadores pagãos. Como ainda não havia a pílula anticoncepcional, cresciam os chifres do Diabo nas comunidades dos santos e algumas santas apareciam engravidadas. O culto da nudez, como estado de graça, proveniente do Éden, ainda nos tempos medievais, precisou ser reprimido por medidas enérgicas. Até hoje perduram no mundo cristão os resíduos desses tempos, em que os servos de Deus desobedeciam à lei bíblica; do multiplicai-vos, que não trazia nenhuma recomendação matrimonial, como se vê na Bíblia.

Os amantes da morte foram sempre muito práticos no trato com a vida. O celibato dos padres e das freiras foi sempre furado por medidas de excepção e até mesmo pela criação de taxas especiais de licença, como no caso referido por Aldous Huxley em Os Demónios de Ludan. No esforço para sufocar a vida em favor da morte, as igrejas sempre fracassaram e fracassarão, a menos que Deus permita a produção em massa da nova bomba de Neutrões, para poupar-se ao terrorismo de um novo dilúvio.

Jesus não violou as leis naturais criadas por Deus; aumentou o vinho que alegrava as Bodas de Caná, livrou a mulher adúltera da sanha feroz dos seus lapidadores, não escolheu celibatários para seus discípulos, aceitou Pedro com a família, como seu apóstolo, recebeu Madalena como discípula e foi a ela que apareceu na ressurreição. Apesar de tudo isso, o fermento velho dos rabinos, do Templo, ainda hoje leveda massas impuras no meio cristão. O Espiritismo não se organizou em igreja para evitar os prejuízos dessa hipocrisia contrária à lei de amor do Evangelho. Mesmo assim, aparecem ainda agora no meio espírita os pregadores da santidade hipócrita. São pregadores angélicos que semeiam essas ideias na ingenuidade pretensiosa das massas espíritas, talvez interessados nos chifres do Diabo ou no restabelecimento dos costumes de Sodoma, tão fartamente restabelecidos no nosso tempo. É inacreditável que isso possa acontecer no meio espírita, contrariando os princípios racionais e científicos da doutrina. Mas tudo pode acontecer, num período de transição como este, que estamos vivendo. Espíritas dizendo-se abstémios, de mãos postas e olhos voltados para o Além, tentando negar a sua condição humana para alcançar o Céu, é o que de mais ridículo e absurdo se possa imaginar. As funções normais da espécie, não podem ser suprimidas num organismo humano, sem causar desequilíbrios perigosos. A função sexual não tem por objecto o gozo sensual, mas a reprodução da espécie. Não obstante, o prazer sexual natural, na ligação normal e afectiva de duas criaturas que se amam, é também importante elemento de equilíbrio orgânico, psicofísico. A condenação do sexo é estúpida manifestação de hipocrisia. Os que tentam agora introduzi-la no meio espírita, só podem ser indivíduos frustrados ou, lamentavelmente desviados das suas funções normais. Esses indivíduos servem aos desequilíbrios dos espíritos vampirescos que se banqueteiam nos vícios inconfessáveis das criaturas humanas por eles subjugadas.

Recentemente tivemos a oportunidade de ver e ouvir, num programa de televisão, em que falavam representantes de várias religiões, um representante de uma casa espírita, declarar que precisamos sofrer intensamente na Terra, para chegarmos aos planos espirituais superiores. Era um amante da morte, e respondendo à pergunta do apresentador: “Como o senhor deseja passar para o outro lado?” disse: “Definhando bem lentamente no leito.” As palavras foram acompanhadas de uma gesticulação padresca e uma expressão fisionómica de delírio imbecil. Uma triste amostra de falta de conhecimento espírita e de tendência masoquista delirante. Aquele pobre homem aprendera o Espiritismo às avessas e sonhava com a morte, pelo definhamento, como se agradasse a Deus a tortura diabólica de uma morte nessas condições de miserabilidade total. Que Deus seria esse, algum Moloch acostumado a alimentar-se de crianças vivas assadas nas suas brasas? E que imagem da doutrina apresentava esse homem aos telespectadores? Seria um dos anjos da casa por ele representada que lhe sugerira essa demonstração de mentalidade masoquista?

Nem mesmo um frade trapaceiro, com cheiro a santidade, trazido como múmia egípcia, da era faraónica, faria com tanta perfeição a mais deturpada e triste figura de um masoquista delirante. O pobre homem parecia saborear, em êxtase, as delícias do seu definhamento no leito, à espera do Paraíso. O masoquista é um esquizofrénico de sensibilidade invertida. A esquizofrenia afasta-o da realidade imediata e envolve-o no delírio dos prazeres futuros que ele transforma em satisfações subjectivas no processo das transposições alienantes. Naquele breve instante de televisão, sob as luzes das lâmpadas atordoantes, o pobre homem sentia-se definhar diante das câmaras e do mundo, na plenitude dos gozos da morte lenta, inversão espasmódica de sensações ancestrais arquivadas no mundo mágico do inconsciente. Era doloroso vê-lo assim, naquela bem-aventurança da frustração.

A dor, o sofrimento e a morte não têm, na concepção espírita, esse sentido delirante que ele lhes dava. Pelo contrário, tudo no Espiritismo se define como articulações do processo único e universal da evolução. E esta não é milagrosa ou sobrenatural, pois é o desenvolvimento das potencialidades das coisas e dos seres no desenrolar histórico, no plano temporal, como no caso da Razão em Hegel. Tudo é teleológico, tem uma finalidade que se entrosa na engrenagem espantosa da teleologia universal. A dor – dizia Léon Denis – é a lei de equilíbrio e de educação. Nessa concepção não há lugar para a dor punitiva, castigo divino ou maldição. A dor é o efeito intrínseco das actividades evolutivas, como o prazer. Por isso a dor e o prazer, são verso e reverso de determinada acção, do ser na existência.

Da mesma maneira, a morte, sendo o limite extremo do processo existencial, liga-se a todo o processo vivencial do desenvolvimento humano. A lei de unidade encadeia a realidade, na direcção única do ser, do que resulta que o espírito, na sua expressão humana superior, reflecte a unidade total do cosmos na sua unidade ôntica. Deus cria e sustenta o real, mas os seres trabalham para si mesmos e para os outros, na facticidade de cada um e de todos. O Cosmos é a Colmeia geral em que cada abelha tem a sua missão, a tarefa vital e espiritual específica e entrosada no programa da espécie ou da raça. A consciência, trás em si, o esquema geral do Sistema, desde o esboço inconsciente dos planos inferiores, até ao desenho nítido e cada vez mais vivo, dos planos super-postos, entrosados e interpenetrados, segundo a visão das hipóstases, de Plotino. Por isso podemos abranger, no nosso microcosmos individual, como ideia geral, imanente em nós, toda a complexidade infinita do Sistema. Dessa maneira, somos também responsáveis pela Criação e, sofremos as consequências das nossas actividades conscienciais, vitais e existenciais, bem como as materiais, sem que nenhuma autoridade externa nos condene ou nos aprove. Assim compreendida, a realidade, podemos também compreender a total liberdade do ser, como decorrência natural da sua responsabilidade total. Somos aquilo que fazemos em nós e por nós no lugar que nos compete.

A morte marca o limite da tarefa que nos foi confiada e, nos transfere para o plano de avaliação de nós mesmos e, do que fizemos. O renascimento resulta desse balanço final, de uma existência e, nos prepara para a seguinte. Os méritos e os deméritos, de tudo quanto fizermos, são exclusivamente nossos, pois o objectivo do Todo é a formação de todos e de cada um, para as actividades futuras no desenvolvimento de toda a perfectibilidade possível, em tudo, em todos e no Todo.

As preparações religiosas para a morte e, os sacramentos extremos, não oferecem ao homem, os dados necessários à compreensão de todo esse processo. Simplesmente reforçam, no espírito do moribundo, as vagas esperanças do perdão e das terríveis ameaças do castigo. Os familiares, podem orar pelos que participam, mas nunca sabem para onde partiram e o que realmente acontece nessa viagem misteriosa. A Educação para a Morte é um curso de bem viver para bem morrer, com plena consciência do sentido e da significação da morte e da sua importância para a vida. Os amantes da morte, não a conhecem, como não conhecem os mortos, dos quais só vêem os cadáveres. A Espiritualidade actual, do mundo, é uma a-espiritualidade, como a definiu Kierkeggard. Se não tratarmos da Educação para a morte, não sairemos do círculo vicioso em que entramos, sem ter vivido.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 16 – Os Amantes da Morte, 21º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O Mundo Invisível e a Guerra ~

XI 
A Hora do Espiritismo

|Junho de 1917|

  A visão do espaço e a contemplação dos céus, nas horas serenas da noite, despertam em nós uma espécie de temor respeitoso.

  A noção das distâncias, a quantidade dos focos luminosos que nele resplandecem, o pensamento de que cada um desses focos é um sol, um sistema planetário e que para além dos limites que a nossa vista pode alcançar existem outras legiões de astros que se movem no meio dos abismos, tudo isso nos domina e esmaga. Compreendemos então quanto é grande a nossa fraqueza e a nossa impotência, face ao vasto Universo.

  Igual ideia, misturada de angústia, sentimos diante dos grandes acontecimentos que se desenrolam à nossa volta e no meio da borrasca, nós nos sentimos quais fragmentos de palha agitados pelos vagalhões do oceano.

  A razão aparente de todas essas desgraças é a Alemanha ambiciosa e feroz; porém, acima do livre-arbítrio das nações, há uma intuição segura que nos revela a existência de algo misterioso e muito poderoso que fará surgir, do caos das paixões desencadeadas, a ordem e a regeneração para a humanidade.

  Os impérios saqueadores planeavam dominar e escravizar o mundo, entretanto, violentas correntes impulsionam todos os povos para a liberdade. Até mesmo entre eles os tronos e as instituições milenares são abalados surdamente.

  O desejo dos nossos inimigos era garantir para sempre a riqueza e a glória dos alemães, mas prepararam para si próprios a vergonha e a ruína. Do meio das trevas que caem sobre nós, entrevê-se a aurora nascente de um novo dia e uma vegetação nova vai surgir e florescer sobre os destroços e os túmulos.

  É chegada a hora do Espiritismo, pois que nos tempos de provações em que vivemos ele apresenta a consolação e a esperança para as almas tristes, para todos os que lamentam os entes desaparecidos e todos aqueles que têm filhos na frente de batalha, os queridos filhos pelos quais tiveram tantos cuidados, solicitude e temor.

  São incontáveis os oprimidos pela dor e que sentem a necessidade de um conforto, de um socorro moral.

  Todos os países que lutam pela liberdade do mundo, pelos direitos dos fracos e pela justiça, viram a sua juventude metralhada e essas perdas cruéis se repercutem em profundas e dolorosas vibrações dentro do coração da nossa raça.

  A humanidade jamais teve tanta necessidade de uma doutrina que a amparasse e consolasse nas horas dolorosas e só o Espiritismo oferece; esses raios de luz a todas as almas colhidas pela tristeza e pelo desespero, estendendo-lhe o bálsamo consolador a todas as chagas.

  A guerra, ao mesmo tempo que é causa incontável de ruínas, poderá tornar-se, pelo excesso de sofrimento que provoca, a causa de um ressurgimento moral. Uma das suas consequências imprevistas é a de tornar mais sensível a comunhão entre o mundo dos vivos e o dos mortos.

  A maior parte dos soldados das linhas de combate sabe do socorro poderoso que vem do Alto e que lhes inspira o estado de ânimo experimentados nos momentos de perigo, a coragem e a confiança inabaláveis que não os abandonam nunca, criando neles uma mentalidade bem diversa da que imperava na retaguarda. A esse respeito recebi muitas cartas comprobatórias.

  Existe um episódio célebre que torna este facto ainda mais concreto: No meio de um tenebroso combate nas trincheiras, o tenente Péricard lançou um grito sublime, dizendo: “De pé, os mortos!”

  Numa sua carta a Maurice Barrès, ele explica o significado destas palavras:

  “O grito não é só meu, mas de todos nós. Quanto mais identificarem o meu papel com o da multidão dos soldados, mais se aproximarão da realidade. Tenho a certeza de que fui apenas um instrumento nas mãos de um poder superior.”

  Encontramos já esse sentimento em muitos dos nossos contemporâneos, começa a compreender-se que existem dois mundos no nosso. Para além daquele que se vê, existe um outro – mais verdadeiro, mais seguro e mais duradouro – onde todos os esplendores da vida imortal se expandem. Dessa forma se comprova, cada vez mais; a necessidade do saber e do crer, apegando-se ao que existe de elevado, estável e permanente no Universo.

  Por toda a parte me falam da formação de grupos espíritas, formados, principalmente, por intelectuais: professores e professoras, oficiais aposentados, etc. A circulação de novos livros, brochuras e revistas tem-se tornado mais intensa, abalando assim os nossos adversários tal estado de coisas.

  A Igreja Católica mobilizou os seus melhores pregadores, mas as conferências do padre Coubé, juntamente com as actividades de Dickson, combinadas previamente, não lograram o resultado desejado.

  A tese sobre a intervenção do demónio e os artifícios de Dickson provocaram o desdém dos seus audientes, despertando-lhes curiosidade pública e atiçando neles o desejo de estudar a nossa doutrina e experimentar-lhe os fenómenos que temos conseguido.

  Dessa forma, os nossos contraditores, na sua malevolência, marcharam contra o que se haviam insurgido; desejando sufocar a verdade, lograram, tão-só, dar-lhe mais liberdade.

  Há mais ou menos 50 anos, o bispo de Barcelona mandou incinerar na praça pública os livros de Alan Kardec com o que só conseguiu com isso, chamar mais à atenção para o Espiritismo. Naquele tempo os espíritas espanhóis eram raros, sendo hoje a Catalunha uma das regiões do mundo, onde os espíritas são mais numerosos.

  Por seu turno, a Inglaterra nos mostra um grande contributo; a iniciativa, a pertinácia e o espírito de continuidade que ela consegue para a guerra, também são encontrados na área científica, na pesquisa metódica das causas e efeitos dos fenómenos mediúnicos. As suas sociedades de estudos psíquicos são as mais bem organizadas e as que conseguem os melhores resultados.

  Os sábios ingleses que se declararam favoráveis ao Espiritismo já formam uma verdadeira plêiade, bastando citar o nome de Oliver Joseph Lodge que, neste momento, brilha com vivo fulgor.

  Após notáveis discursos ele acaba de publicar um livro sobre o seu filho Raymond, morto na Flandres e acerca das manifestações espíritas ocorridas depois da morte do jovem oficial. Essa obra causou profunda sensação em toda a Inglaterra, trazendo para a nossa causa muitas almas que a guerra submeteu a provas cruéis como a perda dos seus entes queridos durante as batalhas.

  Devemos, em grande parte, aos ingleses, a vitória definitiva do espiritualismo no mundo, todavia não podemos ser injustos para com os nossos próprios sábios.

  É verdade que a ciência francesa foi por muito tempo hostil aos trabalhos psíquicos, ocupando-se deles apenas para modificá-los e lhes atribuir causas fantasiosas, todavia apareceram clarividentes, precursores no seu meio, mostrando-lhe o caminho certo. À sua frente encontramos o notável astrónomo Camille Flammarion e depois dele o professor Charles Richet, o director Boirac e o advogado J. Maxwell.

  Não esqueçamos aqueles que já se transferiram para o Além e continuam ajudando-nos: o coronel de Rochas e o doutor Paul Gibier. Com o seu exemplo e influência crescentes das afirmativas provenientes do outro lado do Canal da Mancha, é impossível que os nossos sábios não abandonem a sua indiferença e a sua rotina, entrando francamente no terreno da experimentação leal e sincera. É a voz do povo que a isso os conclama, exigindo a sua parte de verdade e de luz.

  Dos seus contraditores, o Espiritismo nada tem a temer, mas deve temer de si mesmo, isto é, dos exageros que podem advir de uma falsa interpretação dos fenómenos ou da má direcção dada às experiências.

  Ao mesmo tempo em que as nossas crenças se espalhavam e se difundiam, apareceram sérias dificuldades. Com milhares de almas consoladas e reconfortadas, chamadas para o sentimento de uma vida mais elevada e para a noção dos deveres e das responsabilidades, havia casos de obsessão, de exaltação e desordenação mentais e, por vezes, gritos de alarme chegaram até nós em razão desses factos.

  O Espiritismo possui perigos, assim como todas as forças da natureza. Tudo quanto é poderoso para o bem pode tornar-se poderoso para o mal, conforme o uso que dele se faça.

  Certos críticos só vislumbram os maus aspectos do Espiritismo e exageram em combatê-los, não levando em consideração a benéfica influência que emana da sua doutrina e dos seus ensinamentos. Compete aos espíritas esclarecidos desmascarar esse procedimento, fazendo justiça à nossa causa e pondo em relevo o seu nobre e elevado carácter.

  O bem e o mal, tanto no mundo invisível como no nosso, equilibram-se e espalham a sua acção sobre os homens que a provocam ou atraem. O estudo sério do Espiritismo depende de certas qualidades: espírito culto, juízo seguro, autodomínio, perseverança incansável, não nos esqueçamos de que só a pesquisa dos fenómenos e a paixão e preferência pelos factos psíquicos, sem o seu complemento moral, são apenas uma profanação de morte.

  O Espiritismo não é apenas uma ciência, é também uma revelação, uma obra de verdade e de luz, falando simultaneamente à inteligência e ao coração.

  Ele tem, como um edifício, os seus sucessivos andares. Os seus alicerces repousam na rocha sólida dos factos criteriosamente examinados e constatados. Nos seus porões os espíritos inferiores se alegram com os fenómenos vulgares, em ambiente marcado pelas obsessões, alucinações e as tendências para a fraude e as trapaças. Porém, à medida que subimos para os andares superiores, vão surgindo as manifestações intelectuais e as mais puras revelações. As actividades das almas elevadas realizam-se nos lugares mais altos que, como as torres pontiagudas de uma catedral, se lançam para o azul infinito.

  Cada um, no Espiritismo, se coloca no lugar de preferência e do adiantamento do seu espírito. Uns se apegam só aos factos, que são apenas a sua superfície; outros preferem os frutos, isto é, a sua filosofia e a sua moral.

  Principalmente, nesse sentido, é que o Espiritismo está conclamado a representar um papel regenerador, porque a sua doutrina atende a todas as necessidades do pensamento e preenche todas as dúvidas do conhecimento; resolve os enigmas da vida, os problemas do mal e do sofrimento.

  Nestes tempos de provações e desordem, dá-nos confiança no futuro, mostra-nos que o Universo é dirigido por leis harmónicas e que a última palavra, em todas as coisas, cabe sempre ao direito e à justiça. Proporciona também, à nossa existência, uma razão de ser e uma finalidade: conquistar a verdade, a sabedoria e a virtude.

  Ele nos conforta nas nossas desilusões e nos nossos fracassos com a explicação de que, se o bem é quase sempre ignorado neste mundo, pelo menos reina, sem restrições, nas elevadas esferas que temos de alcançar um dia. Afasta os espíritos das preocupações egoístas e materiais e das actividades estéreis, mostrando-nos o real objectivo da nossa vida. Consta, portanto, de uma tarefa essencial para reestruturar o homem interior, sem a qual qualquer reforma social seria inútil ou precária.

  O valor de tais soluções, aparecerá aos nossos olhos no dia em que, depois da guerra, se desejar criar um objectivo nacional, fazendo-o entrar na alma francesa por meio de uma educação popular, pois qualquer nação está ameaçada de morrer moralmente, quando está desprovida de um ideal que a inspire e oriente nas horas difíceis: foi o caso da França e a razão da sua passageira queda.

  Já podemos calcular quanto o sombrio e feroz ideal alemão foi gerador de poder e energia, fundamentando-se em ideias falsas que só podiam acabar na queda e no fracasso.

  No lugar das nobres qualidades morais, que formam a verdadeira civilização, ele desenvolveu na alma alemã o orgulho, a arrogância e a crueldade. A tal doutrina do super-homem que pretende dominar toda a Terra, não obedecendo senão às suas próprias leis, a Alemanha buscou nos seus filósofos materialistas.

  Foi intoxicada pelo seu ensino nas universidades, por meio de uma falsa cultura que, em verdade, era somente a negação do que existe de mais nobre e mais sagrado na humanidade.

  Os graves acontecimentos que se passaram são a pedra de toque que garante avaliar os homens e as coisas, as teorias e os sistemas.

  Ao vento do tufão, o que havia de convencional, de fictício e de mentiroso dissipou-se, sobressaindo, na sua beleza ou na sua fealdade, toda a verdade. Podemos avaliar o alcance das diversas doutrinas, se não pelos seus princípios, pelo menos pelas suas consequências e, o ideal germânico provocou indignação e horror na consciência mundial.

  Quanto a nós, a indiferença e a incredulidade, resultantes do ensino oficial, revelaram-se insuficientes nos dias de provações.

  As doutrinas do orgulho e do terror mostraram a sua nulidade. Crenças abandonadas e desprezadas mostraram-se, ao contrário, plenas de consolação e de esperança, capazes de alentar os corações e reerguer as almas esmagadas pelo peso da dor.

  O Espiritismo leva-nos às grandes tradições da nossa raça, embelezadas ainda pelas conquistas da ciência e pelo trabalho dos séculos.

  Ao domínio através da força bruta, da espoliação e do assassinato, o Espiritismo contrapõe a liberdade e a fraternidade das almas, em paz e harmonia.

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LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XI A Hora do Espiritismo / Junho de 1917, 27º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O sentido da vida ~


Negativas da Ciência

A natureza profundamente deísta do Espiritismo e a sua posição filosófica ao lado do dualismo de Descartes, contra o monismo de Espinoza, no que se refere às relações entre o corpo e o espírito, suscitam contra ele as negativas da ciência académica. E o dizemos, ciência académica tendo em conta que muitos cientistas, do maior renome mundial, constituindo uma plêiade suficiente para a organização da verdadeira academia da ciência espírita, já demonstraram publicamente, até mesmo através de obras científicas como o Tratado de Metapsíquica, de Charles Richet, a evidência dos factos espíritas e a legitimidade de sua interpretação doutrinária.

A tendência moderna da biologia é a de considerar o homem do ponto de vista de Espinoza, a que acima aludimos, ou seja, como um todo de corpo e espírito, em que um não actua sobre o outro, pela simples razão de que são ambos diferentes aspectos de uma só e a mesma coisa. Mas há uma diferença, que devemos lembrar. Espinoza ia muito além na sua concepção das coisas, dos simples limites orgânicos, materiais, a que se prende a biologia moderna.

A ciência académica, porém, prefere o monismo de Espinoza naquele sentido restrito, negando a possibilidade, já tantas vezes comprovada, da existência independente do espírito. Para ela, morto o corpo, estará extinto o espírito. Também a existência de Deus para ela é uma simples hipótese.

Dessa maneira e, uma vez que os atributos de Deus estão ao alcance de todos, o materialista e o descrente podem amar a Deus e, consequentemente, chegar à crença e ao espiritualismo através do amor a Deus por um dos seus atributos, ou seja, do amor à verdade.

A ciência também pode ser definida, neste caso, como um acto de amor a Deus. Pois o que procura a ciência, senão descobrir a verdade? As suas negativas actuais decorrem apenas das suas próprias limitações, da sua temporária impossibilidade de atingir o conhecimento da verdade mais ampla, que ela deseja atingir e atingirá fatalmente no futuro. Para isso, a ciência terá de juntar aos seus dados os conseguidos através da experiência filosófica e da busca religiosa. No dia em que isso se fizer, não mais veremos cientistas materialistas, esforçando-se ao máximo para negar a evidência das manifestações espíritas. Nesse dia, o pensamento humano, que partiu da análise científica, chegará à síntese filosófica, pela reunião de todos os dados do conhecimento, hoje divididos em campos opostos e até mesmo antagónicos.

Mas, assim como um homem que avança pela estrada vai aos poucos descortinando o panorama das regiões que atingirá mais tarde, assim também a humanidade tem vislumbres e visões antecipadas das suas conquistas futuras. O Espiritismo é bem uma dessas visões, perfeitamente delineadas nos seus contornos. Na sua estrutura doutrinária ele já nos oferece a síntese daqueles três ramos do conhecimento humano. Apoiando-se na ciência, que observa e regista os fenómenos considerados supranormais, ele ergue ante os nossos olhos o edifício de uma filosofia que é a interpretação do mundo e da vida em espírito e verdade, culminando, por isso mesmo, naquilo que Kardec chamou de consequências religiosas, isto é, na religião espírita, que não depende de aparatos exteriores porque é todo um processo interior de sentimento e compreensão.

Friedrich Engels, na Dialética da Natureza, depois de fazer várias críticas a Russel Wallace e a William Crookes, não perdoando mesmo a interpretação do apocalipse feita por Isaac Newton, chega à conclusão, por sua conta e risco, de que o Espiritismo é a mais estéril de todas as superstições (aliás, trata-se de um artigo de Engels, adicionado ao manuscrito do livro). Para Engels, os cientistas espíritas pertencem todos à classe dos empíricos ingleses, que só se ocupam com o assunto na decrepitude. Engels, porém, era o defensor de uma nova teoria nascente, a da interpretação materialista do mundo, sendo justo que assim reagisse, diante da teoria que surgia para combater a sua, a da interpretação espiritualista racional, científica e não empírica. Engels defendia a sua posição por amor à verdade, e nesse sentido, embora não crendo em Deus, ele o amava, através do seu atributo “verdade”.

Muitos anos mais tarde, Leonidio Ribeiro e Murillo de Campos, no Brasil, apossaram-se dos argumentos de Engels. Mais tarde ainda, Osório César tentou fazer o mesmo, com o seu livro Misticismo e loucura, que foi forçado a negar. E ainda mais tarde, já agora, nos nossos dias, quando quase cem anos se passaram sobre a Dialéctica de Engelsa ciência tomou novos rumos, aproximando-se cada vez mais das verdades espirituais, agora que entramos no campo aberto da desintegração atómica, provando que a matéria não é mais do que uma condensação de energia, agora que Einstein rasga os horizontes da Física, através da sua nova teoria, da gravitação generalizada e do campo unificado, outro médico brasileiro, o prof. Silva Mello, escreve e publica o seu livro Mistérios e realidades deste e do outro mundo, repetindo os mesmos e encanecidos argumentos de Engels.

É claro que, do nosso ponto de vista, estes doutores não estão incluídos no número dos materialistas que podem amar a Deus, pelo menos através do amor à verdade.
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José Herculano Pires, O Sentido da Vida, Negativas da Ciência, 5º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

| o grande enigma ~

necessidade da ideia de | Deus

Demonstrámos nos capítulos precedentes a necessidade da ideia de Deus. Ela se afirma e se impõe, fora e acima de todos os sistemas, de todas as filosofias, de todas as crenças. É também livre de todo o liame com qualquer religião, a cujo estudo nos entreguemos, na independência absoluta do nosso pensamento e da nossa consciência.

Deus é maior que todas as teorias e todos os sistemas. Eis a razão por que não pode Ele, ser atingido, nem minorado pelos erros e faltas que os homens têm cometido em seu nome.

Deus é soberano a tudo.

O Ser divino escapa a toda a denominação e a qualquer medida, e se lhe chamamos Deus é por falta de um nome maior, assim o disse Victor Hugo.

A questão de Deus é o mais grave de todos os problemas suspenso sobre as nossas cabeças e cuja solução se liga, de maneira estrita, imperiosa, ao problema do ser humano e do seu destino, ao problema da vida individual e da vida social.

O conhecimento da verdade sobre Deus, sobre o mundo e a vida é o que há de mais essencial, de mais necessário, porque é Ele que nos sustenta, nos inspira e nos dirige, mesmo à nossa revelia. E essa verdade não é inacessível, como veremos; é simples e clara; está ao alcance de todos. Basta procurá-la, sem preconceitos, sem reservas, ao lado da consciência e da razão.

Não lembraremos aqui as teorias e os sistemas inúmeros que as religiões e as escolas filosóficas arquitectaram através dos séculos. Pouco nos importam hoje as controvérsias, as cóleras, as agitações vãs do passado.

Para elucidar tal tema, temos agora recursos mais elevados que os do pensamento humano; temos o ensino daqueles que deixaram a Terra, a apreciação das Almas que, tendo franqueado o túmulo, nos fazem ouvir, do fundo do mundo invisível, os seus conselhos, os seus apelos, as suas exortações.

Verdade é que nem todos os Espíritos são igualmente aptos a tratar dessas questões. Acontece com os Espíritos do Além-Túmulo o mesmo que com os homens. Nem todos estão igualmente desenvolvidos; não chegaram todos ao mesmo grau de evolução. Daí as contradições, as diferenças de vistas. Acima, porém, da multidão das Almas obscuras, ignorantes, atrasadas, há Espíritos eminentes, descidos das altas esferas para esclarecer e guiar a Humanidade.

Ora, que dizem esses Espíritos sobre a questão de Deus?

A existência da Potência Suprema é afirmada por todos os Espíritos elevados. Aqueles, dentre nós, que têm estudado o Espiritismo filosófico sabem que todos os grandes Espíritos, todos aqueles cujos ensinamentos têm reconfortado as nossas almas, mitigado as nossas misérias, sustentado os nossos desfalecimentos, são unânimes em afirmar, em repetir, em reconhecer a alta Inteligência que governa os seres e os mundos. Eles dizem que essa Inteligência se revela mais brilhante e mais sublime à medida que se escalam os degraus da vida espiritual.

O mesmo se dá com os escritores e filósofos espíritas, desde Allan Kardec até aos nossos dias. Todos afirmam a existência de uma causa eterna no Universo.

Não há efeito sem causa – disse Allan Kardec – e todo o efeito inteligente tem forçosamente uma causa Inteligente.” Eis o princípio sobre o qual repousa o Espiritismo. Esse princípio, quando o aplicamos às manifestações do Além-Túmulo, demonstra a existência dos Espíritos. Aplicado ao estudo do mundo e das leis universais, demonstra a existência de uma causa inteligente no Universo. Eis por que a existência de Deus constitui um dos pontos essenciais do ensino espírita. Acrescento que é inseparável do resto desse ensino, porque, neste último, tudo se liga, tudo se coordena e se encadeia. Que não nos falem de dogmas! O Espiritismo não os comporta. Ele nada impõe; ensina. Todo o ensino tem os seus princípios. A ideia de Deus é um dos princípios fundamentais do Espiritismo.

Dizem-nos frequentemente: – “Para que nos ocuparmos dessa questão de Deus? A existência de Deus não pode ser provada!” Ou ainda: – “A existência de Deus ou a sua não existência é sem predomínio sobre a vida das massas e da Humanidade. Ocupemo-nos de alguma coisa mais prática; não percamos o nosso tempo em dissertações vãs, em discussões metafísicas.” Pois bem! Em que pese àqueles que mantêm essa linguagem, repetirei que é questão vital por excelência; responderei que o homem não se pode desinteressar dela, porque o homem é um ser. O homem vive e importa-lhe saber qual é a fonte, qual é a causa, qual é a lei da vida. A opinião que tem sobre a causa, sobre a lei do Universo, quer queira quer não, quer saiba ou não, reflecte-se nos seus actos, em toda a sua vida pública ou particular.

Qualquer que seja a ignorância do homem no que respeita às leis superiores, na realidade – e segundo a ideia que forma dessas leis, por mais vaga e confusa que possa ser tal concepção – é em conformidade com essa ideia que a criatura age. Desta opinião – sobre Deus, sobre o mundo e sobre a vida (notareis que esses três assuntos são inseparáveis) –, as sociedades humanas vivem ou morrem! É ela que divide a Humanidade em dois campos.

Por toda a parte vêem-se famílias em desacordo, em desunião intelectual, porque há muitos sistemas acerca de Deuso padre inculca um à mulher; o professor ensina outro ao homem, quando não lhe sugere a ideia do Nada.

Essas polémicas e essas contradições explicam-se, entretanto. Têm a sua razão de ser. Devemos lembrar-nos que nem todas as inteligências chegaram ao mesmo ponto de evolução; que nem todos podem ver e compreender de igual modo e no mesmo sentido. Daí, tantas opiniões e crenças diversas.

A possibilidade que temos de compreender, de julgar e de discernir só se desenvolve lentamente, de séculos em séculos, de existências em existências. O nosso conhecimento e nossa compreensão das coisas se completam e se tornam claros à medida que nos elevamos na escala imensa dos renascimentosTodos sabem que alguém, colocado ao pé da montanha, não pode descortinar o mesmo panorama aberto ao que já chegou ao vértice; mas, prosseguindo a sua ascensão, um chegará a ver as mesmas coisas que o outro. O mesmo acontece com o Espírito na sua ascensão gradual. O Universo não se revela senão pouco a pouco, à medida que a capacidade de lhe compreender as leis se desenvolve e engrandece no indivíduo.

Daí vem o sistema, as escolas filosóficas e religiosas, que correspondem aos diversos graus de adiantamento dos Espíritos que nuns e noutros se fiam e, muitas vezes, aí se insulam.

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Léon Denis, O Grande Enigma, Primeira parte / Deus e o Universo, V Necessidade da ideia de Deus, 16º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: As majestosas e violentas palavras dos poemas, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Victor Hugo e o invisível ~


PORQUÊ A CRÍTICA LITERÁRIA ESCONDE O PENSAMENTO ESPÍRITA DE VICTOR HUGO?

   A crítica literária dedicada à obra de Victor Hugo nunca se dignou referir as suas investigações mediúnicas. Sem dúvida, que a sua obra é como um relâmpago proveniente do invisível e só poderá realmente ser compreendida  à luz da filosofia espírita. É incompreensível que a crítica tema o conceito espírita do homem e da arte, posto que não são poucos os poetas que directa ou indirectamente se têm relacionado com a mediunidade. A crítica parece ignorar que uma interpretação mediúnica da arte daria lugar a uma melhor compreensão do próprio fenómeno surrealista, que tantas vinculações possui com o fenómeno mediúnico. O surrealismo na ordem artística e literária está pois inspirado num neo-mediunismo cujas origens, apesar dos cuidados que teve André Breton em não os misturar com o mediunismo espírita, são similares às práticas kardecianas.

   A poesia e a mediunidade estão intimamente ligadas. O verdadeiro poeta é sempre um médium nos seus momentos de inspiração poética. Fazer pois do poeta um simples obreiro da pena seria desconhecer o que é a beleza como expressão do homem espiritualizado. O poeta, como repentista, está sujeito a transes especiais pelos quais se podem alcançar as mais belas manifestações poéticas. O poeta não é um escritor cerebral; ao contrário, o poeta está sempre exposto ao transe poético, o que não ocorre quando as letras são cultivadas como simples ofício. A crítica literária, dominada por antigos juízos, não se dispõe a reconhecer na obra de Victor Hugo uma inspiração proveniente do mundo invisível. Considera que um Victor Hugo espírita diminuiria o valor do grande poeta da França. Sem dúvida, a crítica terá de evoluir para o reconhecimento do fenómeno mediúnico se deseja na realidade compreender a verdadeira essência do génio poético e artístico. Os factos que estão a produzir-se actualmente a obrigarão a despojar-se de toda a prevenção contra o mediunismo. O génio poético foi sempre de natureza mediúnicaA beleza é uma contínua infiltração do invisível no visível. Por isso, uma poesia sem mediunidade não será mais que um esqueleto; donde, a crítica literária equivoca-se ao se deixar dominar por juízos intelectuais e não reconhecer o aspecto mediúnico da obra poética de Victor Hugo. Aqui estamos frente ao génio, que será sempre um mistério enquanto se recusar penetrá-lo por meio do que hoje se chama o homem psi ou mediúnico.


O ADVENTO DA LITERATURA MEDIÚNICA E ESPÍRITA

   A obra literária de Victor Hugo – pode dizer-se – é a origem da aparição da literatura espírita e mediúnica. Esta nova corrente nada terá de raro se nos recordarmos de escolas como a dadaísta, cubista, ultraísta, surrealista, romântica e existencialista, baseadas noutros recursos estéticos supranormais. A literatura mediúnica difere dessas correntes ao basear-se numa nova visão do homem e do universo. E mais, a literatura espírita mediúnica apresenta duas notáveis modalidades: uma baseada na criação inspirada e outra puramente mediúnica. Ambas respondem ao mesmo fim espiritual, social e religioso. Victor Hugo, iluminado pelos tripés da ilha de Jersey, acentuou de tal maneira a sua criação literária que poetas e escritores europeus, especialmente espanhóis, trataram de seguir as suas geniais pegadas. Salvador Sallés, o grande poeta espírita, autor do livro Rumo ao Infinito, deu origem a uma poesia realmente existencial. Com o seu poema ''En la noche de difuntos'', a poesia espírita se apresenta como uma nova esperança para o ser quando diz:

?Por qué las lentas campanas
clamam dolientes a muerto
si de! fúnebre concierto
las vibraciones son vanas?
Cese en la regiôn vacia
ese lamento profundo:
desde el principio dei mundo
nadie ha muerto todavia;
nadie en tan larga jornada
sufrió tan misera suerte:
no ha muerto más que la muerte,
no ha muerto más que la nada.

   Esta poesia espírita que chegou a comover espiritualmente poetas como Antonio Hurtado, Miguel Giménez Eieto, Vicente Neria, Krainfort de Nínive e até o próprio Núñez de Arce produziu em Espanha dos fins do século XIX obras de grande valor literário e filosófico. Mas foi pela psicografia mediúnica que se obtiveram obras preciosas no fundo e na forma como Marietta y Estrella, Páginas de dos existencias, escrita por Daniel Suárez Artazu. Sobre a mesma o filósofo espírita espanhol, Quintín Lopez Gómez, disse que era a obra literária "mais bela recebida mediunicamente em idioma espanhol".

   Em toda a Espanha espiritualista dos fins do século passado a filosofia espírita produziu obras de grande valor estético e literário, especialmente na poesia e filosofia. Mas, o que realmente comoveu os críticos opositores ao Espiritismo foi a monografia de Ernesto Bozzano intitulada Literatura do além-túmulo, onde as obras criticadas foram escritas por escritores médiuns. Na América do Sul este tipo de literatura tem produzido obras poéticas consideráveis. O psicógrafo brasileiro, Francisco Cândido Xavier, deu à publicidade livros de poemas como Parnaso de Além-Túmulo, Antologia dos Imortais e outros títulos de não menos importância, que desconcertaram os críticos literários. O caso dos escritos mediúnicos de Humberto de Campos, notável escritor brasileiro, resultou em litígio jurídico ante os tribunais, em razão das reclamações da viúva do escritor, que acreditou que o seu esposo havia sido vítima de roubo de originais ao comprovar a grande similitude de estilo nos escritos recebidos por Francisco Cândido Xavier.

   Os críticos e os juristas brasileiros viram-se na necessidade de arquivar o processo, porquanto qualquer decisão resultaria tendenciosa. Se condenassem o médium por roubo de originais estariam  a cometer um grande erro moral e jurídico considerando a sua vida limpa e honrada, e se aprovassem os seus escritos como mediúnicos estariam reconhecendo que os mortos vivem e são capazes de transmitir o seu pensamento filosófico e estético aos médiuns. O certo é que a mediunidade literária de Francisco Cândido Xavier é um verdadeiro expoente das bases da literatura espírita e mediúnica. Monteiro Lobato disse que se os poemas de Parnaso de Além-Túmulo fossem de Francisco Cândido Xavier, este poderia ocupar quantas cadeiras quisesse na Academia Brasileira de Letras.

   Outra escritora-médium de nacionalidade irlandesa foi Geraldine Cummins, que recebeu páginas ao estilo religioso e evangélico que comoveram a crítica teológica e literária internacional. A sua obra, Escritos de Cleófas, foi reconhecida como uma ampliação suplementar para maior conhecimento do livro Os Actos dos Apóstolos, contido no Novo Testamento. Foi considerada uma obra mediúnico-literária de verdadeiro valor histórico e como "crónica sagrada" complementar de Actos dos Apóstolos, que nos chegaram mutilados em algumas partes, consequência da perseguição aos primeiros cristãos (ver Literatura do Além-Túmulo, de Ernesto Bozzano).

   Este livro mediúnico chamou a atenção do célebre escritor inglês Sir Arthur Conan Doyle e de destacadas personalidades católicas. Além disso, nesse mesmo período brilhante para as letras mediúnicas apareceram escritores-médiuns como Willian Sharp e Hester Dowen, que receberam as partes não concluídas de trabalhos de Oscar Wilde e comédias póstumas deste mesmo autor. Seguiram na Patience Worth, entidade desencarnada que, segundo os críticos anti-espíritas era ''uma fracção da personalidade da médium", conceito que ela assim contestou: "Quem ousa sustentar que sou uma parte da imaginação da médium? Quem ousa dizer que uma grande intelectualidade é filha da imaginação de uma pequena intelectualidade? A voz de quem proclama este absurdo cairá sem eco. Que venha e que me una à médium se lhe apraz; o futuro di-lo-á tonto.

   "Que pequena é a sua pena! A minha é de ouro e está molhada na sabedoria antiga. Não canto por cantar, mas para que o meu canto permaneça. A ideia de apresentar-me como uma fracção da harpa vivente que eu emprego equivale a distribuir a crianças livros, crânios, espadas, vinho e sacramentos para que se divirtam. Vede, toco a harpa vivente e ela responde vibrando em uníssono com a voz da sabedoria antiga''.

   Não existe neste ditado mediúnico um estilo parecido com o pensamento de Victor Hugo? Não se deduz que a autêntica mediunidade literária possui expressões que fazem pensar no génio?

   Este fenómeno literário-mediúnico que ocorria na época não muito distante da presente contribuiu notavelmente para o desenvolvimento deste novo aspecto da literatura no campo internacional da filosofia espírita.

   Vamos referir-nos agora a um volume que colaborou de forma brilhante na luta contra a escravidão na América do Norte. Falamos dessa genial novela chamada A Cabana do Pai Tomaz que, segundo a sua autora, Harriet Beecher-Stowe, não foi escrita por ela, mas que Deus a escreveu através de sua inspiração mediúnica.

   Entre esses médiuns poetas e escritores cabe mencionar o psicógrafo italiano Héctor Bernardini, de dez anos de idade, que recebeu em menos de seis meses 314 tercetos, "nos quais descreve, segundo disse o escritor Mariano D' Aragona, à luz da moderna razão, as penas transitórias do além-túmulo, sobre a base da revelação espírita, corrigindo assim as impressões vertidas na sua obra de seis séculos atrás". Logo acrescentou: "Os 314 tercetos ditados ao médium de dez anos são de tão formosa feitura poética e num todo similares ao estilo trecentesco do divino vate, que deixaram perplexos e desorientados os mais modernos estudiosos do classicismo. Os tercetos foram publicados em Nápoles, em 1904, em edição de escassos exemplares que foram disputados por insignes escritores, sem outra posterior edição porque o tempo maduro (assim disseram alguns) para nova revelação só recentemente está a penetrar na consciência humana".

   Esta reaparição mediúnica de Dante Alighieri é da mesma natureza da que Victor Hugo obteve através desta entidade espiritual chamada A Sombra do Sepulcro, que disse: "Subi ao Sinai e me entendereis no fulgor dos relâmpagos... Ascendei ao Gólgota e me vereis nos raios. Eu sou a realidade".

   O doutor Santiago Smith, presidente da Sociedade Dantesca de Londres, no último decénio do século passado obteve inequívocas comunicações mediúnicas com o grande poeta florentino, que possuíam o mesmo estilo poético e profundo. A revista Luce e Ombra, de Milão, publicou uma relação referente a tão extraordinário acontecimento literário, a qual conclui com esta declaração do excelso poeta: ''Enquanto escuto as invocações da terra, cultivo no meu pensamento uma segunda Divina Comédia''.

   A literatura mediúnica é, como se pode ver, uma nova realidade espiritual, que vem ampliar o campo das letras. Se na literatura e nas artes não se operar um renascimento sobre a base do génio mediúnico, ou seja, na relação com o mundo dos espíritos, a alma do homem acabará por afogar-se nos abismos aterradores do niilismo e do nada. O médium-poeta e escritor é uma necessidade moral e existencial nos tempos modernos; sem ele a criação literária se converterá num jogo de palavras vazias e áridas.

   Victor Hugo sentiu na sua época a necessidade do génio literário-mediúnico, razão porque se ufanou ao dar à cultura universal obras de raiz supranormal, que nunca serão esquecidas. Experimentou um real e vivo contacto com o mundo invisível que, lamentavelmente, a crítica literária não quer considerar nem reconhecer. Mas o seu elevado espírito está agora gravitando sobre as almas predispostas para isso que foi chamado "o outro lado das coisas". O seu canto espiritual está a chegar à terra através da mediunidade do homem e das vozes misteriosas do vento, do trovão e do mar.

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Humberto MariottiVictor Hugo Espírita, PORQUÊ A CRÍTICA LITERÁRIA ESCONDE O PENSAMENTO ESPÍRITA DE VICTOR HUGO? / O ADVENTO DA LITERATURA MEDIÚNICA E ESPÍRITA, 13º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Criança com uma boneca, pintura de Anne-Louis GIRODET-TRIOSON)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

O Génio Céltico e o Mundo Invisível ~


Capítulo VIII

Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (III)

   Ora, aquilo que tantas religiões ensinaram e ensinam ainda e, que tantos pensadores, antigos e modernos, discerniram por meio da reflexão profunda, o Espiritismo acaba de demonstrar pela experiência. Ele tem para si não somente o testemunho universal do mundo dos espíritos, que se levanta de todos os pontos do globo e sobre o qual falaremos mais adiante, mas ele já reuniu um conjunto de factos comprovantes dos quais vamos citar alguns.

   Notemos, inicialmente, que um ser suficientemente evoluído, quando o estado normal da consciência e o estado subconsciente estão em equilíbrio, isto é, atingem uma estabilidade perfeita, quando esse ser se desliga dos ambientes materiais, ele pode lembrar-se das vidas anteriores e perceber, por intuições profundas, suscitadas pelos espíritos desencanados, a forma das suas vidas passadas.

   Daí as lembranças de certos homens célebres, o reconhecimento dos lugares onde eles viveram. Por exemplo, o caso de Lamartine na sua viagem ao oriente, de Mery pela Índia e à Flórida e de tantos outros casos análogos que poderíamos lembrar.

   Mencionemos os testemunhos publicados (i) por certas revistas inglesas relativos às crianças hindus que, durante o período de crescimento, no decorrer do qual a incorporação da alma não é completa, conservam o uso da memória subconsciente e a lembrança das suas vidas passadas.

   Casos análogos não são raros no ocidente, mas não se lhes dá muita atenção, pois considera-se sempre, sem razão, as narrações infantis como imaginárias.

   Às vezes, me pedem para dar as razões pelas quais creio nas minhas vidas anteriores e as provas pessoais que possuo. Para isso basta me recolher e, nas horas de calma e de silêncio, interrogar as camadas profundas da minha memória, para aí encontrar alguns vestígios do meu passado. Se eu me dedico a uma análise severa e rigorosa do meu carácter, dos meus gostos, das minhas faculdades, reconstituo o encadeamento das causas e dos efeitos, por meio dos quais se formou a minha personalidade, o “eu” consciente através dos tempos.

   O detalhe dos acontecimentos me foi comunicado pelos meus guias, porquanto a minha clarividência não atinge tão longe. É precisamente esse rigoroso exame interior que serve de verificação e de controlo, porque nele eu encontro a confirmação e a prova da exactidão das revelações feitas e que compreendem os nomes, as datas, as identidades recolhidas nas minhas pesquisas bibliográficas.

   Com esse método de estudos, o que não se pode obter no estado de vigília pode provocar-se pela exteriorização completa do “eu” no estado hipnótico; é o que, frequentemente, pude realizar com a minha excelente médium, Sra. Forget. Sob a influência magnética do guia, ela reconstituía as suas personalidades anteriores com atitudes, linguagem e um conjunto de detalhes que lhe teria sido impossível imaginar.

   É preciso notar, entretanto, que os resultados obtidos, através da sua natureza íntima, não podem interessar e convencer a não ser aos experimentadores. Mas raros são os homens do nosso tempo que se dispõem a fazer essas pesquisas. A sua vida é toda exterior e eles ignoram os recursos ocultos na alma. Existe aí toda uma psicologia misteriosa que é preciso explorar com extrema prudência e que reserva aos pesquisadores avisados, grandes surpresas.

   As experiências realizadas por Albert de Rochas, administrador da Escola Politécnica de Paris, e relatadas no seu livro As Vidas Sucessivas, foram contestadas; entretanto, não se teria razão de rejeitá-las no seu todo, porque, se em certos casos a superstição foi evidente, noutros elas apresentavam um aspecto real de sinceridade. Assim parece ser o caso de Joséphine, a moça de Voiron (Isère), que, adormecida por de Rochas, se encontrava na sua personalidade anterior de Claude Bourdon, habitante, outrora, de uma aldeia do Departamento de Ain, onde Joséphine nunca estivera. Ali se encontrou o atestado de nascimento de Claude no registo da paróquia. Este facto foi enriquecido de muitos detalhes curiosos que constituem, no seu conjunto, bons elementos de autenticidade.

   Pode acrescentar-se a este caso o de Mayo, moça de Aix-en-Provence, que, transformando-se nas suas personalidades de outros tempos, revivia as cenas trágicas das suas vidas. Por exemplo, o estado de gravidez e de asfixia por imersão foram constatados pelo Dr. Bertrand, prefeito de Aix, convencido de que esses estados não podiam ser simulados por uma pessoa de 18 anos. Deve ver-se neste caso, como alguns pensam, a revelação de uma lei fisiológica pouco conhecida, uma correlação do físico e do mental que abre o caminho a investigações de uma nova ordem, a descobertas biológicas de uma alta importância? Seja como for, esses factos vêm confirmar as nossas asserções a propósito do poder do pensamento sobre os fluidos e sobre a própria matéria concreta.

   Um fenómeno mais complexo ainda, pela variedade de formas que envolve, é a reencarnação, na mesma família, da pequena Alexandrine, filha do Dr. Samona, de Palermo, que voltou uma segunda vez após uma morte prematura. Encontram-se nesse caso todas as particularidades morais e físicas muito características da sua curta vida precedente. Alexandrine conta muitas lembranças dessa existência, por exemplo uma excursão a Montreal, onde ela encontrou sacerdotes gregos vestidos de vermelho, o que é pouco comum na Sicília.

   Este segundo nascimento, anunciado antes pela manifestação de espíritos, ainda que considerado pelos parentes como impossível, por causas patológicas, realizou-se no dia marcado. Esses factos apoiam-se sobre uma série de atestados de testemunhas e de amigos que relataram todas as fases desse fenómeno.

   Hoje (1927) Alexandrine tem 13 anos, escreveu Gabriel Delanne na sua última obra Documentos para servir ao estudo da Reencarnação, (ii) e pode acompanhar-se, através dessa moça, todo o desenvolvimento das primícias indicadas pelos espíritos.

   Não podemos enumerar aqui todos os casos de reencarnação anunciados de antemão, todos os fenómenos de lembranças de vidas anteriores, com crianças e adultos, e os casos relativos à regressão hipnótica de lembranças.

   Mas, independentemente dos factos de ordem experimental, à nossa volta, quantas anomalias anunciados não são explicadas pela noção das anterioridades; em muitas fisionomias nós poderíamos ler a demonstração disso. Essas mulheres de corpos pesados, de gestos masculinos, esses homens de maneiras efeminadas, que todos nós conhecemos, não são eles os espíritos que mudaram de sexo ao se reencarnarem? No meio do povo, a despeito da lei da hereditariedade, todas essas inteligências, esses talentos, até esse génio, que surgissem entre famílias, de preferência materiais e grosseiras, não são eles a manifestação de trabalhos e aptidões anteriores? O mesmo problema se relaciona a esses temperamentos delicados e apurados, vindos de pessoas rudes e não evoluídas.

   Pelo contrário, entre certos anarquistas, fomentadores de greves, ávidos de subversão e de desordem, não se reconhecem os antigos burgueses egoístas, condenados a renascer entre aqueles que eles exploravam outrora e aos quais um vago instinto torna a sua nova situação insuportável? E quantos outros contrastes, extravagâncias inexplicáveis na aparência, se esclarecem pela lei dos renascimentos. Pode reconhecer-se César em Napoleão, Virgílio em Lamartine, Vercingétorix no general Desaix. Certos espíritos ainda acrescentam: Pompeu em Mussolini.

   Há individualidades que reaparecem no decorrer dos séculos, de tal modo que se pode reconhecê-las pela originalidade dos caracteres que se formam com a nitidez de uma efígie, como o perfil de uma medalha antiga.

   Mas não insistamos, pois que estas comparações poderiam ser a fonte de muitos abusos. Devido a essa hipertrofia do “eu”, que é uma doença tão espalhada, muita gente seria tentada a ver em si a reencarnação de alguma celebridade da antigamente.

   A cada renascimento, o véu da carne recai sobre a memória subconsciente, o acúmulo de lembranças submerge nas profundezas do ser. Só há excepção para certos casos de crianças e de pessoas evoluídas que podem exteriorizar as suas faculdades psíquicas, como nós vimos anteriormente. Mas, para a generalidade dos humanos, o esquecimento das vidas anteriores é uma regra e, talvez, um benefício da natureza, porque, nos mundos inferiores e atrasados, como naquele em que nós habitamos, o panorama das vidas primárias está longe de ser reconfortante para as almas, muito mescladas de angústias, de impressões dolorosas e humilhantes, de pesares supérfluos, cuja intensidade paralisaria sempre a nossa acção, enfraqueceria a nossa iniciativa, pois que nós aqui voltamos para resgatar e para evoluir. O detalhe dos acontecimentos torna-se inútil e o que importa é conhecer a grande lei que religa todas as nossas existências e as torna solidárias umas com as outras.

   Essa concepção palingenésica parece oferecer-nos o remédio indispensável para o estado de espírito de muitos de nossos contemporâneos. Com efeito, uma brisa de pessimismo sopra em certos momentos sobre o nosso país. Chega até a duvidar-se do futuro da França, da possibilidade do seu reerguimento, semeando assim o desânimo entre as almas. Esse pessimismo é o fruto mórbido do cepticismo materialista que corrói, desde há um século, a sociedade contemporânea. A nossa literatura tem, em parte, a responsabilidade.

   Escreve-se muito na nossa época, mas, entre os autores, a maioria não sente que é uma honra temível falar às massas ignorantes e impressionáveis. Esses escritores não parecem conhecer este vasto mundo invisível que nos envolve e que nos domina, nem essas imensas reservas de forças e de almas que, pela reencarnação, vêm incessantemente alimentar, entreter e renovar as correntes da vida humana. Eis por que este estudo da reencarnação se impõe, pois sem ela não se pode resolver nenhum dos problemas relativos à vida e à evolução dos seres e das sociedades.

   De acordo com os elementos que a reencarnação nos fornece, o nível moral se baixa ou se eleva. Quando ela traz sobre o nosso globo os contingentes dos mundos inferiores, a perturbação se acentua e a humanidade parece recuar. Mas, também, pela reencarnação, nas horas de angústia, indivíduos poderosos podem surgir para dirigir em caminhos mais seguros os passos hesitantes da caravana em marcha.

   É isso que ocorre, neste momento, no nosso país. Os espíritos evoluídos e outros de uma ordem elevada vêm aqui tomar lugar, por meio de renascimentos, com a finalidade de regeneração. Esse movimento vai continuar, dizem os nossos instrutores invisíveis, e em vinte anos poder-se-á assistir a uma obra de reedificação dos povos ocidentais e, particularmente da França.

   Não se deve desesperar. Os prognósticos sombrios, os julgamentos pessimistas, os temores e os alarmes são provenientes de uma concepção insuficiente da existência à qual uma ciência rotineira impõe os limites reduzidos da nossa curta duração e do nosso pequeno globo, enquanto que, na realidade, a vida possui recursos infinitos, visto que ela se desenrola no seio dos espaços de onde ela inspira, estimula e fecunda a vida terrestre.

   Se a nossa literatura, a nossa filosofia e a nossa política continuam a se inspirar em regras de uma ciência limitada e envelhecida; se uma compreensão geral da vida evolutiva e de suas leis não vem penetrar, impregnar, transformar a alma humana, haverá menos esperança de se ver mudar a situação moral e social do nosso país. É, sobretudo, a noção de uma única vida que alterou tudo, obscureceu tudo e tornou incompreensível a evolução do ser e da justiça de Deus.

   Se a vida terrestre fosse também restrita, os nossos estudos e progressos estariam perdidos, para o indivíduo e para a humanidade, enquanto que, pela reencarnação, tudo se perpetua e tudo se renova. Nós trabalhamos para todos e, consequentemente, trabalhamos para nós mesmos. Assim, nada se perde, os indivíduos e as gerações são solidários entre si, solidários através dos séculos.

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(i) Ver estudo ordenado pelo Marajá de Bhartpur e confiado ao Dr. Rao Bahadur que o realizou com uma perfeita consciência científica; a revista Kàlpaka publicou quatro casos circunstanciados e detalhados de lembranças de vidas passadas em crianças. Ver Revue de Métapsychique de Paris, Julho e Agosto, 1924.
(ii) Editado em português, pela FEB, sob o título A Reencarnação. (N.T.)



LÉON DENIS, O Génio Céltico e o Mundo Invisível, Segunda Parte – Capítulo VIII Palingenesia: preexistências e vidas sucessivas. A lei das reencarnações (3 de 5) 26º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: A Apoteose dos heróis franceses que morreram pelo seu país durante a guerra da Liberdade, pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson)