Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 11 de outubro de 2020

Hippolyte Léon Denisard Rivail


A Caridade 
(Sociedade de Estudos Espíritas, Paris, sessão de 8 de Junho de 1858) 

Pelo Espírito São Vicente de Paulo (*) 

Sede bons e caridosos, eis a chave do Céu, posta em vossas mãos. Toda a felicidade eterna está contida nesta máxima: “Amai-vos uns aos outros.” Não pode a alma elevar-se às regiões espirituais senão pela dedicação ao próximo; ela não encontra felicidade e consolação senão nos arroubos da caridade. Sede bons, ajudai os vossos irmãos, ponde de lado essa horrível chaga do egoísmo. Esse dever cumprido vos abrirá as vias da felicidade eterna. Aliás, quem dentre vós não sentiu já o coração pulsar e a sua alegria íntima se expandir pela prática de uma obra de caridade? Não deveríeis pensar senão nesta espécie de volúpia proporcionada por uma boa acção, com o que permaneceríeis sempre no caminho do progresso espiritual. Não vos faltam exemplos. Só a boa vontade é que é rara. 

Vede a multidão de homens de bem, cuja lembrança piedosa a vossa história relembra. Eu poderia citar aos milhares aqueles cuja moral não tinha por objectivo senão melhorar o vosso globo. Não vos disse o Cristo tudo quanto concerne às virtudes da caridade e do amor? Por que são postos de lado os seus divinos ensinamentos? Por que os ouvidos são tapados às suas divinas palavras e o coração é fechado para todas as suas máximas suaves? 

Eu gostaria que a leitura do Evangelho fosse feita com mais interesse pessoal. Mas abandonam esse livro; transformam-no em expressão vazia e letra morta; deixam no esquecimento esse código admirável. Os vossos males provêm do abandono voluntário em que deixais esse resumo das leis divinas. Lede, pois, essas páginas de fogo do devotamento de Jesus e meditai-as. Eu mesmo me sinto envergonhado de ousar prometer-vos um trabalho sobre a caridade, quando penso que nesse livro encontrais todos os ensinamentos que vos devem levar às regiões celestes. 

Homens fortes, armai-vos; homens fracos, forjai as vossas armas da vossa doçura e da vossa fé; tende mais persuasão, mais constância na propagação da vossa nova doutrina. Nós só vimos trazer-vos um encorajamento; é apenas para vos estimular o zelo e as virtudes que Deus permite nos manifestemos a vós. Mas, se quisésseis, não necessitaríeis senão do auxílio de Deus e da vossa própria vontade. As manifestações espíritas não foram feitas senão para os olhos fechados e para os corações indóceis. Há, entre vós, homens que devem realizar missões de amor e de caridade: escutai-os, exaltai a sua voz; fazei resplandecer os seus méritos e vós próprios sereis exaltados pelo desinteresse e pela fé viva de que vos impregnarão. 

Muito extensos e detalhados seriam os conselhos que vos deveriam ser dados sobre a necessidade de alargamento do círculo de caridade; sobre a inclusão nesse círculo de todos os infelizes cujas misérias são ignoradas; sobre todas as dores que devem ser procuradas nos seus próprios redutos, para consolá-los em nome dessa virtude divina, a caridade. Vejo com satisfação quantos homens eminentes e poderosos colaboram na busca desse progresso que deve reunir todas as classes humanas: os felizes e os desgraçados. Coisa estranha! Todos os infelizes se dão as mãos e se ajudam reciprocamente na sua miséria. Por que os felizes demoram tanto para ouvir a voz do infeliz? Por que se torna necessária uma poderosa mão terrena para dar impulso às missões de caridade? Por que não respondem com mais ardor a esses apelos? Por que permitem que a miséria, como por prazer, macule a imagem da Humanidade? 

A caridade é a virtude fundamental que deve sustentar todo o edifício das virtudes terrenas. Sem ela não existem as outras. Sem caridade não há fé nem esperança, porque sem a caridade não há esperança de uma sorte melhor nem interesse moral que nos guie. Sem a caridade não há fé, porque a fé é um raio puro que faz brilhar uma alma caridosa; ela é a sua consequência decisiva. 

Quando deixardes que o vosso coração se abra à súplica do primeiro infeliz que vos estender a mão; quando lhe derdes sem lhe perguntar se a sua miséria é fingida ou se o seu mal tem um vício como causa; quando deixardes toda a justiça nas mãos de Deus; quando deixardes a cargo do Criador o castigo de todas as falsas misérias; enfim, quando praticardes a caridade só pelo prazer que ela proporciona, sem questionardes a sua utilidade, então sereis os filhos que Deus amará e que chamará para si. 

A caridade é a âncora eterna de salvação em todos os globos; é a mais pura emanação do próprio Criador; é a sua própria virtude, que ele dá às criaturas. Como poderíeis desconhecer essa suprema bondade? Com tal pensamento, qual seria o coração suficientemente perverso para recalcar e repelir esse sentimento divino? Qual seria o filho suficientemente mau para se rebelar contra a doce carícia da caridade? 

Não ouso falar daquilo que fiz, porque os Espíritos também têm pudor das suas obras. Mas penso que a obra que iniciei é uma daquelas que devem contribuir, muito, para aliviar os vossos semelhantes. Com frequência vejo Espíritos que pedem a missão de continuar a minha obra; vejo as minhas suaves e queridas irmãs no seu piedoso e divino ministério; vejo-as a praticar a virtude que vos recomendo, com toda a alegria proporcionada por essa existência de devotamento e de sacrifícios. É para mim grande felicidade ver quanto o seu carácter é honrado; quanto a sua missão é apreciada e docemente protegida. Homens de bem, de boa e forte vontade, uni-vos para continuardes ampliando a obra de propagação da caridade. Encontrareis a recompensa dessa virtude pelo seu próprio exercício. Não há alegria espiritual que ela não proporcione, já na presente existência. Sede unidos; amai-vos uns aos outros, conforme os preceitos do Cristo. Assim seja. 

(Dirigindo-nos à entidade comunicante). 

─ Agradecemos a São Vicente de Paulo a boa e bela comunicação que teve a bondade de nos dar. 
Resp. ─ Gostaria que fosse proveitosa a todos. 

─ Poderíeis permitir-nos algumas perguntas complementares a respeito do que acabastes de dizer? 
Resp─ Certamente, pois o meu objectivo é esclarecer-vos. Perguntai o que quiserdes. 

1. ─ A caridade pode ser compreendida de duas maneiras: a esmola propriamente dita e o amor aos semelhantes. Quando nos dissestes que era necessário abrir o coração ao pedido do infeliz que nos estende a mão, sem lhe perguntar se a sua miséria é fingida, não quisestes falar da caridade do ponto de vista da esmola? 
Resp. ─ Sim, apenas nesse parágrafo. 

2. ─ Dissestes que deveríamos deixar à justiça de Deus a apreciação de falsa miséria. Entretanto, parece-nos que dar sem discernimento àqueles que não necessitam ou que poderiam ganhar a vida por um trabalho honesto, é encorajar o vício e a preguiça. Se os preguiçosos encontrassem facilmente aberta a bolsa alheia, multiplicar-se-iam ao infinito, em prejuízo dos verdadeiramente necessitados. 
Resp. ─ Podeis identificar os que podem trabalhar e então a caridade vos obriga a tudo fazer para lhes proporcionar trabalho. Entretanto, também há pobres mentirosos, que sabem muito bem simular misérias que não padecem. Esses é que devem ser deixados à justiça de Deus. 

3. ─ Aquele que pode dar apenas um centavo e que pode escolher entre dois infelizes que lhe pedem, tem o direito de inquirir qual deles é realmente necessitado, ou deve dar sem exame ao que chega primeiro? 
Resp. ─ Deve dar àquele que parece sofrer mais. 

4. ─ Não se deve considerar como parte da caridade a maneira de a fazer? 
Resp. ─ É sobretudo na maneira de a fazer que está o mérito da caridade. A bondade é sempre indício de uma alma bela. 

5. ─ Que tipo de mérito reconheceis naqueles geralmente chamados benfeitores rabugentos? 
Resp. ─ Fazem o bem apenas pela metade. Os seus benefícios são recebidos, mas não comovem. 

6. ─ Disse Jesus: “Que a vossa mão direita não saiba o que faz a esquerda.” Têm algum mérito aqueles que dão por ostentação? 
Resp. Têm apenas o mérito do orgulho, pelo qual serão punidos. 

7. ─ A caridade cristã, na sua mais larga acepção, não compreende também a doçura, a benevolência e a indulgência para com as fraquezas alheias? 
Resp. ─ Fazei como Jesus. Ele vos disse tudo isso. Escutai-o mais do que nunca. (**) 

8. ─ É bem entendida a caridade, quando exclusiva entre as criaturas da mesma opinião ou do mesmo partido? 
Resp. ─ Não. É sobretudo o espírito de seita e de partido que deve ser abolido, porquanto todos os homens são irmãos. É sobre isso que concentramos os nossos esforços. 

9. ─ Admitamos que uma pessoa veja dois homens em perigo, mas não possa salvar senão um. Um é seu amigo e o outro, inimigo. A quem deve ele salvar? 
Resp. ─ Deve salvar o amigo, pois esse amigo poderia acusá-lo de não lhe ter amizade. Quanto ao outro, Deus (inteligência directriz)*** se encarregará. 

/… 
(*) Esta instrução de São Vicente de Paulo, com algumas modificações que a reduziram, foi inserida por Allan Kardec em O Evangelho segundo o Espiritismo. Corresponde, na edição definitiva de 1866, ao capítulo XIII, item 12. 
(**) Vide questão 886, de O Livro dos Espíritos
(***) Adenda desta publicação.


Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, A Caridade, pelo Espírito São Vicente de Paulo (Sociedade de Estudos Espíritas, sessão de 8 de Junho de 1858 / Publicada na Revista de Agosto), Revista Espírita – Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, 8º fragmento da Revista objecto do presente titulo desta publicação. 
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

~~~Párias em Redenção~~~


~~ O JULGAMENTO SOB O AÇODAR* DA CONSCIÊNCIA
(III de III) 

Na mente de Girólamo, em crescente desejo de reparar e diminuir as dores excessivas, surgiu um intercâmbio benéfico, de cuja continuidade resultariam os planos libertadores, para o futuro, de todos os implicados nas sucessivas tragédias. 

Assim, algumas décadas passadas, a duquesa conseguiu dos Espíritos Superiores que Dom Giovanni e Girólamo fossem recolhidos das penosas circunstâncias em que se encontravam, para reiniciarem a caminhada, recuperarem o tempo e a se reaparelharem para a vida. Na mesma dimensão de misericórdia foi o apelo estendido a Assunta e a Carlo, que sofriam noutros recintos a desídia da loucura pessoal decorrente das desregradas existências. 

Considerados os títulos da benigna senhora, os infelizes foram, cada um a sua vez, recolhidos dos tormentos em que se debatiam e levados a esferas de refazimento, pois que enxameiam, também, os pousos de paz e os redutos de reconforto, onde os trânsfugas se retemperam para o amanhã, lares de amor e misericórdia onde vigem as concessões da ventura, multiplicados em nome do Sumo Pai para o exercício da virtude e as experiências do bem, quais escolas de luz e hospitais de recuperação, em que se amparam todos aqueles que, mesmo inveterados criminosos, aspiram à redenção, dispostos ao tributo do recomeço na Terra da sua anterior desventura. 

Recebidos em recintos próprios, considerando as diversas enfermidades de que se faziam portadores, face ao desrespeito das Leis, passaram a tratamento generoso, através dos tempos, enquanto se lhes refaziam os centros do perispírito desgovernado e se medicavam as imensas feridas da alma. 

O sacerdócio da cura exige largo período junto ao leito dos portadores dos profundos males que destroçam os tecidos delicados da estrutura perispiritual. 

Vivendo os pesadelos dos antros em que se encontravam anteriormente, traduziam a loucura que deles se apossara e que deveria ser dirimida à força de muita caridade, para que o reinício na Terra, em nova provação, lhes concedesse o retempero de ânimo, porquanto, se a Justiça da Terra invariavelmente tem a preocupação de punir, sem nunca retribuir ao amor e à rectidão, por considerar que tal é dever, a Justiça Divina objectiva corrigir e amparar, estimulando todos os pródromos da esperança, a fim de que se multiplique e transforme em sementeira de abundante reconforto e paz. 

Só a pouco e pouco Girólamo passou a dormir, recolhido a longa hibernação, na qual se apagariam as impressões gravadas na mente desvairada. 

O duque, igualmente hospitalizado, foi tratado pelo carinho de enfermeiros sábios que buscaram frenar a ardência e a volúpia do ódio sob os pensos do sono refazedor e calmante. 

Assunta, devidamente atendida, começou a experimentar assistência maternal e amiga, a fim de despertar-lhe os sentimentos superiores da feminilidade, em promessas redentoras para o futuro. 

E Carlo, igualmente socorrido, ele que se permitira penetrar na trama daqueles destinos, foi medicado nas lesões danosas que o martirizavam, preparando-se todos, sem o saberem, para novas incursões na carne bendita, onde expungiriam, pelo imperativo do renascimento, os erros, formando a família da fraternidade, que é o primeiro passo para a família do amor. 

Graças ao sublime concurso do amor, através do paulatino transcorrer do tempo, aqueles espíritos rebeldes, à semelhança de milhões de outros tantos, mergulhavam nas dúlcidas águas dos rios do sono, para que fossem diminuídas, a princípio, e apagadas depois, quanto possível, as impressões muito dolorosas causadas pelos períodos longos de perversidade a que se entregaram. 

Enfermeiros abençoados, que fazem da existência o miraculoso recurso do auxílio ao próximo, desdobravam-se nas enfermarias em que se encontravam internados, aplicando-lhes recursos múltiplos de refazimento, atenuando no perispírito os efeitos das calamidades vividas, especialmente em Girólamo, de modo a reajustá-lo para o tentame futuro sem violento comprometimento da matéria de que deveria revestir-se, resgatando, em etapas, os graves compromissos firmados com a ferocidade e o vandalismo. 

Quando lhe permitiam os deveres superiores, a senhora os visitava, oferecendo-se para atendê-los, aplicando-lhes valiosos fluidos de refazimento e meditando à cabeceira do esposo profundamente hibernado – tratamento de grande significação para o estado de desvario a que o mesmo se permitia entregar. 

Naqueles momentos, conquanto a elevação de que era portadora, não adormecia as lágrimas, e pérolas transparentes rolavam, falando das suas dores perante os lances de agonia e sombra por onde deveriam recomeçar aqueles amores. 

Acontece que não há céu para quem tem na retaguarda os seres queridos, perdidos nos dédalos da treva. 

O Reino de Venturas seria um lugar deserto, caso ali não estivessem os anelos do coração, representados por aqueles outros espíritos amados, a quem todos nos entregamos e em cujo concurso sublime defrontamos a alegria de lutar e o estímulo constante para crescer. 

Dir-se-á que a felicidade é uma conquista pessoal e intransferível. Todavia, ninguém suporta vencer os múltiplos estágios da purificação se não colocar o ideal do amor como meta próxima e remota. Próxima, na representação do ser vinculado ao sentimento superior e, remota, na dimensão do Cristo, representando o Excelso Amor. 

Face a essa inatingida meta, aquela veneranda mulher, que alcançara a ventura de ser feliz, descia dos Cimos aos baixios, fazendo recordar o sol jornaleiro visitando as furnas, para ministrar luz e vida, sem contaminar-se com a emanação pestilencial do charco que oscula e depura. 

Vendo-a em atitude de reflexão profunda, perante o leito alvinitente do enfermo amado, em que a inconsciência arrancava, de período a período, estertores patológicos que reflectiam as profundas intoxicações espirituais absorvidas no largo período de quase um século, graças ao ódio corrosivo, emanado e absorvido pela fonte mental dele mesmo, não se poderia negar que a felicidade jamais se expressa em regime de solidão, de individualismo, de personificação única. É hálito de luz que se transfunde, enquanto clarifica e liberta das trevas envolventes. 

Os enfermos, todavia, não obstante o carinho de que eram alvo, não conseguiam facilmente anular todo o passado de choques violentos e conúbios degradantes, a que se fixaram fortemente, com outros seres infelizes dos recintos donde procediam. Assim, mesmo amparados, recebiam, não poucas vezes, a visita mental dos antigos comparsas e, nesses momentos, eram dominados por singulares pesadelos que os atormentavam, fazendo-os reviver, através do intercâmbio dos pensamentos afins, as antigas torturas das furnas… 

/… 
* priberam, dicionário: açodar (i). Adenda desta publicação. 


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO” – LIVRO SEGUNDO, 2. O JULGAMENTO SOB O AÇODAR DA CONSCIÊNCIA (III de III), 39º fragmento desta obra. Texto mediúnico, ditado a DIVALDO PEREIRA FRANCO. 
(imagem de contextualização: L’âme de la forêt | 1898, tempera e folha de ouro sobre painel de Edgard Maxence)

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

O Mundo Invisível e a Guerra ~


XX 
Nascimento de um Mundo Novo ~ 

(1 de Dezembro de 1918) 

  A análise que acabamos de fazer nos nossos últimos cinco artigos mostrou-nos como, ao longo de 50 anos, o Espiritismo criou para si um lugar de destaque em todos os domínios da actividade humana. 

  A grande onda que varreu tantos erros e ilusões recolocará muita coisa no seu lugar e a França recuperará o seu papel, a sua missão histórica e a compreensão de seus verdadeiros rumos, isto é, espalhará ideias, verdades e luzes pelo mundo. 

  Os nobres espíritos que zelam por ela e a livraram do perigo aguardam apenas o momento apropriado para utilizar todo o seu poder e então encaminhá-la na rota do seu destino. 

  Como já vimos, já se anuncia enorme reacção espiritualista contra o materialismo e a indiferença do passado e, dentro desse movimento intelectual, o Espiritismo está conclamado a desempenhar um grande papel. 

  Os estudos que ele promove e as convicções que estabelece nunca foram tão oportunas como agora, porque só uma elevada compreensão do mundo, da alma e da vida pode propiciar a serenidade de espírito e a força moral indispensáveis para suportarmos as provações do tempo actual, olhando confiantes para o futuro. 

   Ao iniciar a guerra, a Alemanha e a Áustria não calculavam o abismo de dores que iam produzir e hoje não são apenas os gritos das vítimas que se ouvem, mas também surgem vozes de reprovação de todos os quadrantes do mundo; todas as potências morais se levantaram para acusar e condenar os autores de tantos males. 

    A consciência humana lançou a sua opinião infalível e deseja uma paz baseada na justiça, que garanta a punição dos culpados e impeça a repetição de calamidades semelhantes. 

   Graças ao socorro espiritual, o horizonte se aclara, pouco a pouco e, os acontecimentos tomam direcção favorável à causa do direito. O actual conflito, que poderia ter trazido para a humanidade uma fase de decadência e aviltamento, promete ser um meio de recuperação, desempenhando a França, nessa obra, um importante papel. Ela se destaca aos olhos do mundo pela extensão de seus padecimentos e sacrifícios. 

   Há muito tempo que os seus inimigos lhe haviam preparado a ruína e o esmagamento. Todavia a França está de pé; renascendo sempre, ela segue levando ainda nas dobras de sua bandeira uma grande parte do futuro humano. Resgatada de seus erros e de suas ambições desregradas, ela hoje representa o direito dos fracos e os sagrados direitos do pensamento. 

   Dessa forma todos os povos livres voltam os seus olhos e as suas esperanças para a França e os seus aliados. Se ela fosse vencida, seria o fim da independência de todos, mas com a vitória francesa, o pensamento adquirirá o seu livre curso e se espalhará com intensidade sobre a Terra ensanguentada. 

   Vemos também o nascer de um novo mundo; tudo quanto está reservado para viver e crescer se realiza com sangue e lágrimas, vendo-se surgir as formas ainda vagas e imprecisas de uma humanidade restaurada pela dor, no meio das convulsões de uma terrível guerra. 

   As grandes nações aliadas, no início divididas por interesses económicos e que, sem os actuais acontecimentos nunca se compreenderiam, aglutinaram todos os seus recursos e meios de acção para enfrentar o perigo comum, chamando para seu lado a maior parte dos povos do mundo. 

   Isso determina um entendimento das inteligências e dos pensamentos, uma reunião de caracteres e vontades, plenas de consequências para o futuro do mundo. 

   Os povos dirigem-se para uma solidariedade verdadeira e activa, para uma organização mundial que parece ser a última fase da evolução e do direito. Uma ordem de coisas se estabelece, primeiro uma ordem económica, depois política e, mais tarde, filosófica e moral.

   Em virtude dos rápidos progressos feitos pelo Espiritismo na Inglaterra e na América, há a promessa de que ele se tornará uma doutrina universal, fortalecendo a união de todos num ideal comum. Até a Alemanha, decepcionada e obrigada a renunciar ao seu sonho de dominação brutal, será constrangida a participar do concerto das nações, ocupando apenas o lugar que merecer.

   Aí então a paz e a justiça poderão reinar sobre a Terra. Dia virá em que teremos orgulho de haver vivido numa época que está a preparar tão grandes coisas.

   Louvemos a Deus que sabe extrair a harmonia desse conflito de paixões e de ódios. Lutemos, cada um no limite de suas forças, para preparar melhores tempos para a humanidade. 

/…


LÉON DENIS, O Mundo Invisível e a Guerra, XX Nascimento de um Mundo Novo, 1 de Dezembro de 1918, 35º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Tanque de guerra britânico capturado pelos Alemães, durante a Primeira Guerra Mundial)

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Da sombra do dogma à luz da razão ~


~ Uranografia Geral (*)
O espaço e o tempo ~

| Galileu, Espírito
(Études Uranographi-ques) (I)

~ O espaço e o tempo 🌈

  Têm-se dado várias definições de espaço; a principal é esta: o espaço é a extensão que separa dois corpos. De onde certos sofistas deduziram que onde não houver corpos, não haverá espaço; foi no que se basearam os doutores em teologia para estabelecer que o espaço era necessariamente finito, alegando que corpos limitados num certo número não poderiam formar uma sucessão infinita; e que onde os corpos parassem, o espaço também pararia. Definiu-se também o espaço: o lugar onde os mundos se movem, o vazio onde a matéria age, etc. Deixemos nos tratados onde repousam todas estas definições que não definem nada.

 O espaço é uma dessas palavras que representam uma ideia primitiva e axiomática, evidente por si mesma, e as diversas definições que lhe podemos dar só servem para a obscurecer. Sabemos todos o que é o espaço e eu só quero estabelecer a sua infinidade para que os nossos ulteriores não tenham qualquer barreira a opor-se às investigações da nossa maneira de ver.

 Ora, digo que o espaço é infinito por ser impossível imaginar-lhe um limite e que apesar da dificuldade que temos em conceber o infinito, é-nos no entanto mais fácil viajar eternamente no espaço, em pensamento, que pararmos num sítio qualquer para além do qual não encontrássemos mais extensão a percorrer.

  Para imaginarmos, tanto quanto o permitem as nossas faculdades da Terra, perdida no meio do infinito, em direcção a um ponto qualquer do Universo e isto com a velocidade prodigiosa da faísca eléctrica que percorre milhares de milhas em cada segundo, mal tivéssemos saído deste globo, tendo percorrido milhões de léguas, encontrávamo-nos num sítio de onde a Terra já só nos aparecia com o aspecto de uma pálida estrela. Um instante depois, seguindo sempre a mesma direcção, chegávamos às estrelas longínquas que mal se avistam da nossa estação terrestre; e daí, não só a Terra estaria completamente perdida para o nosso olhar nas profundezas do céu como também o vosso próprio Sol no seu esplendor estaria eclipsado pela extensão que nos separa dele. Animados sempre com a mesma rapidez do relâmpago, atravessávamos estes sistemas de mundos à medida que íamos avançando na vastidão, ilhas de luz etérea, vias estelares, paragens sumptuosas onde Deus semeou mundos com a mesma profusão com que semeou as plantas nas pradarias terrestres.

 Ora, há só alguns minutos que caminhamos e já centenas de milhões e milhões de léguas nos separam da Terra, milhares de mundos nos passaram debaixo dos olhos e, no entanto escutai! Na realidade, não avançamos um único passo no Universo

 Se continuarmos durante anos, séculos, milhares de séculos, milhões de períodos cem vezes seculares e incessantemente com a mesma velocidade do relâmpago, não teremos avançado mais! E isto seja qual for o lado para que vamos e em direcção seja a que ponto for a partir deste grão invisível que deixámos e que se chama Terra.

 É isto o espaço!

 O tempo, tal como o espaço, é uma palavra definida por si mesma; fazemos dele uma ideia mais correcta estabelecendo a sua relação com o todo infinito.

  O tempo é a sucessão das coisas; está ligado à eternidade da mesma maneira que estas coisas estão ligadas ao infinito: imaginemo-nos na origem do nosso mundo, nessa época primitiva quando a Terra não balouçava ainda sob o impulso divino; numa palavra, no início da Génesis. Aí, o tempo não saiu ainda do misterioso berço da natureza; e nada pode dizer em que era de séculos nós estamos, dado que o pêndulo dos séculos não está ainda em movimento.

  Mas silêncio! A primeira hora de uma Terra isolada soa na sineta eterna, o planeta situa-se no espaço e imediatamente passa a haver noite e manhã. Para lá da Terra, a eternidade permanece impassível e imóvel apesar de o tempo avançar para muitos outros mundos.

  Na Terra, o tempo substitui-a e durante uma série determinada de gerações, contar-se-ão os anos e os séculos.

 Transportemo-nos agora até ao último dia deste mundo, à hora em que, curvada ao peso da vetustez, a Terra se apagará do livro da vida para não voltar a aparecer: aqui a sucessão de acontecimentos pára; os movimentos terrestres que mediam o tempo interrompem-se e o tempo acaba com eles.

  Esta exposição simples das coisas naturais que dão origem ao tempo, o alimentam e deixam que se acabe, basta para mostrar que, vista do ponto onde nos devemos situar para os nossos estudos, o tempo é uma gota de água que cai da nuvem para o mar e cuja queda é calculada.

  Quantos os mundos na vasta extensão, outros tantos tempos diversos e incompatíveis. Fora dos mundos, só a eternidade substitui estas sucessões efémeras e preenche pacificamente com a sua luz imóvel a imensidão dos céus. Imensidão sem limites e eternidade sem limites são estas as duas grandes propriedades da natureza universal.

  O olho do observador que atravessa, sem nunca encontrar paragem, as incomensuráveis distâncias do espaço e o do geólogo que recua para além do limite das eras ou que desce às profundezas da eternidade hiante, onde um dia se perderão, agem de acordo, cada qual na sua via, para adquirir essa dupla noção de infinito: extensão e duração.

  Ora, mantendo essa ordem de ideias, ser-nos-á fácil conceber que não sendo o tempo mais do que a relação das coisas transitórias e dependendo unicamente das coisas que se medem, se, tomando os séculos terrestres por unidades, os acumularmos milhares sobre milhares para com eles formar um número colossal, este número nunca representaria mais que um ponto na eternidade; tal como os milhares de léguas juntos aos milhares de léguas não passam de um ponto na vastidão.

  Assim, por exemplo, estando os séculos fora da vida etérea da alma, poderíamos escrever um número tão comprido como o equador terrestre e supormo-nos mais velhos esse número de séculos, sem que na realidade a nossa alma conte um dia a mais; e acrescentando a esse número infindável de séculos uma série extensa como daqui ao Sol de números semelhantes, mais consideráveis ainda, e imaginando-nos a viver durante a prodigiosa sucessão de períodos seculares representados pela adição de tais números, quando chegássemos ao fim, o amontoado incompreensível de séculos a pesarem-nos sobre as nossas cabeças seria como se não existissem: à nossa frente permaneceria sempre a eternidade inteira.

  O tempo não passa de uma medida relativa da sucessão das coisas; a eternidade não é susceptível de qualquer medida do ponto de vista da duração; para ela, não há começo nem fim: para ela tudo é presente.

  Se séculos de séculos são menos que um segundo em relação à eternidade, o que será a duração da vida humana?

                                                                                                           Espírito Galileu
  A matéria

  À primeira abordagem, nada parece tão profundamente variado, tão essencialmente distinto como várias substâncias que compõem o mundo. Entre os objectos que a arte ou a natureza nos fazem todos os dias passar debaixo dos olhos, existem dois que revelam uma identidade perfeita ou somente uma paridade de composição? Que diferença do ponto de vista da solidez, da compressibilidade, do peso e das propriedades múltiplas dos corpos, entre os gases atmosféricos e o fio de ouro; entre a molécula aquosa da nuvem e a do mineral que forma o esqueleto ósseo do globo! Que diversidade entre o tecido químico das plantas variadas que decoram o reino vegetal e o dos representantes não menos numerosos da animalidade sobre a Terra!

  No entanto, podemos colocar como princípio absoluto que todas as substâncias conhecidas e desconhecidas, por muito diferentes que pareçam quer do ponto de vista da sua constituição intima, quer da relação da sua acção recíproca, não são, de facto, mais do que modos diversos sob os quais a matéria se apresenta; em quantas variedades se transformou sob a orientação das inúmeras forças que a governam.

  A química, cujos progressos foram tão rápidos desde a minha época, quando os seus próprios adeptos a relegaram ainda para o domínio secreto da magia, esta nova ciência que podemos com razão considerar filha do século observador e como unicamente baseada, muito mais solidamente que as suas irmãs mais velhas, no método experimental; a química, digo eu, usou bem os quatro elementos primitivos que os Antigos tinham consentido em reconhecer na natureza; mostrou que o elemento terrestre não é mais do que a combinação de substâncias diversas variadas ao infinito; que o ar e a água são igualmente decomponíveis e produto de um certo número de equivalentes do gás; que o fogo, longe de ser, também ele, um elemento principal, não passa de um estado da matéria resultante do movimento universal a que está submetida e de uma combustão sensível ou latente.

  Em contrapartida, encontrou um número considerável de princípios até então desconhecidos que lhe pareceram formar, pelas suas combinações determinadas, os diversos corpos que estudou e que agem simultaneamente consoante certas leis e em certas proporções, nos trabalhos executados no grande laboratório da natureza, a estes princípios deu o nome de corpos simples, indicando com isso que os considerava primitivos e não decomponíveis e que nenhuma operação, até hoje, os pode reduzir a partes relativamente mais simples que eles mesmos (ii).

  Mas onde as apreciações do homem param, até ajudados pelos seus sentidos artificiais mais impressionáveis, a obra da natureza continua; onde a pessoa vulgar toma a aparência pela realidade, onde o prático levanta o véu e distingue o início das coisas, o olho do que conseguiu captar o modo de acção da natureza só vê nos materiais que constituem o mundo a matéria cósmica primitiva, simples e una, diversificada em certas regiões na época do seu nascimento, dividida em corpos solidários durante a sua vida, materiais desmembrados um dia no receptáculo da vastidão pela sua decomposição.

  Há questões assim que nós mesmos, espíritos apaixonados pela ciência, gostaríamos de aprofundar e sobre as quais só poderíamos emitir opiniões pessoais mais ou menos conjecturadas; sobre estas questões calar-me-ei ou justificarei a minha maneira de ver; mas esta não faz parte desse número. Aos que então se sentissem tentados a ver nas minhas palavras unicamente uma teoria fortuita, direi: Abarcai, se possível, num olhar investigador, a multiplicidade de operações da natureza e reconhecereis que, se não admitirmos a unidade da matéria, é impossível explicar não direi unicamente os sóis e as esferas, mas, sem ir tão longe, a germinação de uma semente na Terra ou a produção de um insecto.

 Se observamos uma tal diversidade na matéria é porque as forças que presidiram às suas transformações, as condições em que se produziram, sendo em número ilimitado, as combinações variadas da matéria só podiam ser elas mesmas ilimitadas.

 Portanto, quer a substância que encaramos pertença aos fluidos propriamente ditos, quer dizer aos corpos imponderáveis, ou quer esteja revestida com os caracteres e as propriedades ordinárias da matéria, só há em todo o Universo uma única substância primitiva: o cosmo ou matéria cósmica dos uranógrafos.

                                                                                                          Espírito Galileu
/…

(*) Este capítulo foi textualmente extraído de uma série de comunicações ditadas à Sociedade Espírita de Paris, em 1862 e 1863, sob o título de Études Uranographiques e assinado Galileu; médium M. C. F. (N. do A.)
(ii) Os principais corpos simples são: entre os corpos não metálicos o oxigénio, o hidrogénio, o azoto, o cloro, o carbono, o fósforo, o enxofre, o iodo; entre os corpos metálicos: o ouro, a prata, a platina, o mercúrio, o chumbo, o estanho, o zinco, o ferro, o cobre, o arsénio, o sódio, o potássio, o cálcio, o alumínio, etc. (N. do A.)


ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo VI, Uranografia Geral, O espaço e o tempo, A matéria (de 1 a 7), 23º fragmento desta obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites).

domingo, 16 de agosto de 2020

o sentido da vida ~


Conclusões Práticas (II)

Quanto mais um homem se apega às suas ideias pessoais, aos seus caprichos, aos seus sistemas, mais se distancia dos outros, mais se afasta da vida. Quem não conhece esses temperamentos confinados, essas criaturas ranzinzas, cheias de “coisinhas”, que estão sempre de prevenção contra tudo e contra todos? Pois não são outra coisa senão indivíduos agarrados fortemente às raízes do barranco. Eles se defendem da vida e dos homens, querem viver a seu modo, fechados nos seus costumes. Quem quiser tirá-los para fora da cova mental e psíquica em que eles se meteram, por vontade própria, será considerado inimigo. No entanto, se os levarmos a um médico psiquiatra, este os considerará doentes, que de facto o são, e lhes receitará os meios necessários à libertação.

Na vida comum, fora desse terreno específico da patologia psíquica, nós também, quase todos, somos espíritos confinados, somos doentes, apegados à rotina de uma vida sem sentido, lutando contra as águas do rio da vida, que nos querem levar para a libertação. Se quisermos continuar nessa atitude, só poderemos aumentar os nossos sofrimentos e as nossas dores. A lição do Cristo se torna, pois, muito clara, diante dos ensinamentos espíritas. A vida não é fixa, não é sólida, não é estável. É fluente e mutável. Se quisermos salvar a nossa vida, fixando-nos nos nossos hábitos e nas nossas ideias, perdê-la-emos, porque o fluxo constante das coisas nos libertará de súbito; nos atirará para a frente, com ímpeto irresistível. Se, pelo contrário, concordamos em sacrificar a nossa vida por amor do Cristo, ou seja, trocar o nosso apego às pequeninas coisas da existência passageira pela compreensão das verdades eternas, por ele ensinadas; salvá-la-emos.

Compreendamos, pois, antes de tudo, a nossa verdadeira posição diante da vida, e procuremos nos adaptar a ela. Compreendamos que a vida é um fluxo, que temos de viver, não apegados aos nossos hábitos e sistemas, mas, pelo contrário, de mente aberta, de coração leve, prontos a caminhar para a frente. O próprio Espíritismo não é um sistema rígido. A sua natureza é dinâmica, progressiva. Quanto mais avançarem os tempos, quanto mais se acelerar a maturidade espiritual do homem, tanto mais se alargarão os conceitos espíritas, segundo a própria lição de Allan KardecVivamos também dessa maneira, se quisermos começar a viver uma vida espírita.

Depois de havermos tomado essa posição, devemos compreender que ela não representa desinteresse pela vida. Muito pelo contrário, temos de nos interessar vivamente por tudo o que nos rodeia. Pois então não aprendemos que todas as coisas fazem parte do plano geral da evolução, que todas elas representam, para nós, auxiliares do nosso próprio desenvolvimento? Desapegarmo-nos das coisas não quer dizer desprezá-las.

O grande espiritualista hindu, Ramakrishna, dizia aos seus discípulos que eles deviam viver como uma ama-de-leite. E explicava:

“A ama-de-leite, ao referir-se à casa dos seus patrões, diz: “a nossa casa”. Ela sabe, entretanto, que a sua casa está longe, numa aldeia distante, para a qual se dirigem os seus pensamentos. Ao referir-se ao filho dos patrões, que traz nos braços, dirá: “o meu Hari está muito travesso” ou “o meu Hari gosta disto ou daquilo”, e assim por diante. Não obstante, ela sabe que Hari não é seu. Aos que me procuram, digo-lhes que vivam uma vida de desapego, como essa ama-de-leite, que vivam desligados deste mundo, que vivam no mundo mas não sejam do mundo, e tenham ao mesmo tempo a mente dirigida a Deus, a casa celeste de onde todos viemos. Que implorem o amor de Deus, que os ajudará a viver assim.”

Colocado assim, em termos claros, o problema da atitude espírita, resta-nos vivê-la. A princípio, é natural; encontraremos grandes dificuldades. Mas pouco a pouco aprenderemos a olhar a vida e o mundo de um ponto de vista espírita. E então os acontecimentos que habitualmente nos surpreendiam, nos transtornavam e nos causavam dor e angústia, passarão a nos afectar levemente, como simples arrepios do vento na superfície de um lago. Encontraremos a paz da compreensão, a serenidade inalterável da exacta visão das coisas, em que dia a dia mais penetraremos.

Ainda me lembro da estranheza dos vizinhos, por ocasião da morte do nosso jovem e querido J.J., o cronista espírita do jornal O Tempo, cunhado do autor destas linhas, mais praticamente o seu filho, pois crescera em sua casa, órfão de mãe, desde tenra idade. Em casa, uma família de doze pessoas, inclusive quatro crianças, todos eram espíritas. Nenhum sinal de morte foi colocado nas portas ou janelas, nenhum grito de desespero se ouviu, nenhuma lamentação, nenhum semblante funéreo. A morte colhera-o de surpresa, aos vinte anos de idade, e o golpe caiu pesado e fundo sobre o coração de todos. Mas todos compreenderam que o jovem companheiro não havia morrido. Que simplesmente fora levado, antes de nós, pelas águas da vida, rumo ao destino supremo da evolução espiritual. Todos sentiam, mas, ao mesmo tempo, todos compreendiam. E ninguém tinha coragem de lamentar aquele que fora, pois sabia que ele não merecia essa lamentação. O meu filho, de sete anos e pouco, certa noite, na hora de dormir, com os olhinhos distantes, apenas nos disse: Como será o outro lado, não...? Ele tinha a certeza de que o tio havia passado para o outro lado, e que assim cumprira, pura e simplesmente, uma das leis da vida. O seu pensamento preocupava-se apenas com a novidade do facto e procurava descobrir como seria a situação do outro lado da vida.

Essa falta de aparência de sofrimento e de desolação, essa ausência do desespero, causou estranheza nos vizinhos. Nem todos deixaram perceber a sua estranheza, mas certo dia alguém não se conteve e falou a um dos nossos. Era uma pessoa que havia perdido um parente jovem e que jamais se consolara. Continuava a sofrer, a sentir horrivelmente a “perda irremediável”. E só então fomos capazes de compreender o quanto o Espiritismo nos tinha valido naquele momento cruciante, o quão fundo havia ele operado nas nossas almas.

Poucos dias depois, um médium amigo recebia, em Marília, a primeira comunicação do espírito. Recebemos um telegrama de confrades, comunicando-nos o facto, que a todos alvoroçou. Conhecíamos bem a mediunidade de Urbano de Assis Xavier, cirurgião dentista naquela cidade. Felizmente, o espírito havia pedido aos amigos presentes à reunião, os confrades Eurípedes Soares da Rocha, provedor do Hospital Espírita de Marília, Gabriel Ferreira, farmacêutico e ex-director do mesmo, e à senhora deste, que transmitissem ao médium o seu desejo de falar connosco. Urbano compreendeu a situação e, com sacrifício dos seus próprios interesses, viajou no dia seguinte para São Paulo. Em casa, todos reunidos, recebemos então a paga da nossa firmeza na convicção espírita. J.J. se manifestou, amparado por espíritos amigos, que também conhecíamos, identificando-se plenamente e dando-nos mais uma vez a confirmação da sobrevivência. Tínhamos, assim, a prova de que a nossa atitude estava certa, de que a nossa posição era exacta. E a vida continuou, como sempre, no seu eterno fluxo, na Terra e no espaço.

/…


José Herculano Pires, O Sentido da Vida / Conclusões Práticas (2 de 3), 15º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Platão e Aristóteles, pormenor d'A escola de Atenas de Rafael Sanzio, 1509)

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

O Homem e a Sociedade


Capítulo II
O Marxismo e O Espírito

  O marxismo, como gerador de um sentir materialista do homem e da vida, vem sendo combatido por teóricos religiosos pertencentes a várias confissões eclesiásticas, que procuram mostrar os seus erros a respeito da realidade humana e espiritual. Todo esse trabalho poderá ser louvável para os que necessitam de um conceito espiritual com que enfrentar as contingências sociais; mas, quando analisado com certa atenção, percebe-se que a sua finalidade é apenas uma defesa sectária.

  Dizem-nos que no marxismo se elabora um partidarismo da filosofiae que o filósofo deve amoldar a sua mentalidade aos interesses do partido. Mas, se bem considerarmos, vemos que acontece o mesmo, quase com as mesmas características, no campo religioso: forja-se um partidarismo eclesiástico, condicionado aos interesses espirituais do partido religioso, pondo-se de lado o sentido real da busca da verdade.

  Neste sentido, trava-se a luta entre duas concepções, ambas com o mesmo direito à análise e à discussão. O grau democrático, alcançado pelo desenvolvimento das ideias, permite-nos hoje cotejar o valor das doutrinas e até mesmo dos dogmas religiosos. Consequentemente, já não se trata de atacar particularmentemarxismo nem o materialismo dialéctico; o que agora interessa é saber positivamente onde se encontra a realidade do Espírito; se é que de facto se deseja superar o perigo representado pelo niilismo filosófico.

  Actualmente não se trata de atacar sistemas, mas de saber se eles são realmente falsos, e se as ideias que lhes contrapomos são reais e demonstráveis. Neste campo, a luta trava-se entre o Espírito e a Matéria. Para o espiritualismo religioso, é na existência do Espírito que se radica a legitimidade do cristianismo e das verdades escatológicas. Pois se a existência do Espírito fosse uma irrealidade, todo esse sistema religioso seria derrubado, colocando-se em primeiro plano o materialismo e o marxismo. A ideologia marxista afirma que a sua doutrina está fundada nas ciências, e que unicamente uma contraprova científica poderia obrigá-la a mudar de orientação. O espiritualismo religioso apresenta os seus dogmas, fazendo uso da fé, numa posição de absoluta insuficiência para contradizer as posições do critério científico.

  Como se sabe, o marxismo funda-se na ciência experimental. Sobre essa base estabeleceu as suas conclusões materialistas, referentes à origem da vida, opondo-se assim tanto ao idealismo como à religião. Mas o que não devemos esquecer é que esta concepção marxista se baseia também na falta de provas positivas acerca do mundo sobrenatural, sobre o qual repousam a ideia de Deus e do Espírito.

  Se o marxismo repele a espiritualidade do homem e da história, não o faz por ódio a essa ideia, já que o pensador marxista possui, sem nenhuma dúvida, uma faculdade intelectual tão esclarecida e elevada como a do idealista e do religioso. Consideramos que a repulsa do marxismo às ideias religiosas decorre da falta de provas que pudessem apresentar, tanto o idealismo como a Igreja. Por isso, a escola espírita admite que a cessação da contenda entre o espiritualismo e o materialismo se dará com o reconhecimento e a admissão do fenómeno metapsíquicomediúnico, único fundamento real que obrigará as correntes materialistas a reconhecerem como verdadeira a existência imortal do Espírito.

  Mas a Igreja, e com ela o sistema idealista clássico, repelem o conceito espírita da realidade; a primeira, por considerar o espiritismo como uma causa do demónio, e o segundo, por sustentar um critério nebuloso e ambíguo a respeito da espiritualidade do homem. Não obstante, o curso que vão seguindo as questões morais obrigam cada vez mais o pensamento filosófico a recorrer à realidade espiritual, apresentada pelo espiritismo, como o último recurso contra o avanço triunfal do conceito materialista da vida.

  Como dizíamos, o marxismo repele toda a ideologia espiritualista por considerar que ela submete o homem económica e socialmente, afundando-o na ignorância e na superstição. Por isso, sustenta que o espiritualismo, além de ser uma irrealidade, tem servido para apoiar os regimes reaccionários e conservadores e, nunca a liberdade e o direito das classes sem recursos.

  Se o realismo marxista não for superado por um realismo espiritual que ultrapasse os seus limites, a consciência materialista continuará a impor-se e serão vãos os protestos dos idealistas e religiosos. As realidades espirituais, se de facto existem, deverão ser expostas ao homem moderno com a mesma objectividade que caracteriza os fenómenos físicos e sociais. Defender ideologias abstractas é unicamente falar ou escrever em favor do partido político ou religioso a que se pertence. Se os espiritualistas querem demonstrar a existência de Deus e da imortalidade da alma, deverão abandonar o método dogmático. Agora, são os factos que devem falar em favor da vida espiritual do homem. Entretanto, prefere-se defender o dogma e o partido, esquecendo-se de que o homem está acima dos interesses de seitas e de grupos.

  Chegamos, porém, a uma situação em que o ser humano tem grande necessidade de conhecer a verdade acerca da sua natureza teológica. Aspira, mais do que nunca, apegar-se a ela, para sobreviver ao desolador desastre espiritual da espécie. As doutrinas idealistas e religiosas deverão responder-lhe com verdade e, não com dogmas, já que o homem vale mais do que o partido e a igreja. Por isso, a verdade espiritual, assente sobre os factos, é a única que poderá defendê-lo do perigo social que o rodeia.

  É necessário considerar que o homem não deve morrer sem que lhe sejam ensinadas as verdades espirituais autênticas; não deverá ausentar-se deste mundo aceitando verdades que, depois da morte, lhe aparecerão como erros, conservados apenas para a defesa de sistemas religiosos e sociais dominantes.

  Não obstante, enquanto as instituições civis e religiosas permanecem quietas, o progresso e a evolução fazem girar a roda do mundo, para sensibilizá-lo desde os fundamentos. Enquanto as organizações religiosas aparentam estabilidade e segurança, a revolução espiritual está a acontecer no âmago das almas. E esta revolução subjectiva é a que promoverá a derrocada dessas organizações, que zelam somente pelos privilégios e os seus interesses materiais. Acreditamos que o grito angustioso da alma humana, nos tempos actuais, merece o mais fraternal dos auxílios. Consideramos que o homem merece agora o nosso respeito, mais do que em nenhum outro período da história.

  Aqueles que dividiram o mundo em classes, sectores e partidos, deveriam abandonar a sua atitude dogmática e lembrar que a humanidade está no direito de conhecer a verdade espiritual, ainda que essa verdade possa afectar as instituições religiosas, já incapazes de oferecer provas sobre o destino escatológico do homem.

  O marxismo é uma rebelião contra os erros de toda a ordem; não é somente uma força de carácter político: ele se dirige a todo o sistema espiritual existente, cansado de admitir as suas erradas doutrinas, cujo único fim é manter nas trevas o pensamento humano. Assim, se a Igreja, e com ela o antigo espiritualismo desejam opor-se ao marxismo, deverão fazê-lo por meio dos factos, demonstrando que o metafísico e o sobrenatural existem, que são realidade. Mas, infelizmente, essas instituições carecem do equipamento necessário, com o qual deveriam sobrepor-se ao conceito materialista do marxismo. Continuam opondo-se ao espiritismo, o que prova que não buscam a salvação espiritual do homem, mas unicamente sobreviver, empregando para isso a força que lhe concedem os Estados materialistas.

/...


Humberto MariottiO Homem e a Sociedade numa Nova Civilização, Do Materialismo Histórico a uma Dialéctica do Espírito, 1ª PARTE, O NÚMENO ESPIRITUAL NOS FENÓMENOS SOCIAIS, Capítulo II, O MARXISMO E O ESPÍRITO, 3º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Alrededores de la ciudad paranóico-crítica: tarde al borde de la historia europea (detalhe)1936, Salvador Dali)

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Deus na Natureza ~


~ a 
origem dos seres ~
(II de III)

 Dado o mistério que envolve ainda a origem da vida na Terra, não há ninguém com autoridade para declarar proscrita a acção do Criador. Suponhamos que os primeiros seres nascessem no estado de animalidade rudimentar e que as variedades sucessivas fossem como que a árvore das espécies hoje tão distintas; ou que os primeiros pais de cada família tivessem despertado à voz de comando de um grande mágico e, teremos, que estas conjecturas não afectam, de todo, a base da Teologia natural, do que se admitíssemos que essas espécies aqui aportassem trazidas de outros mundos nas asas de qualquer mensageiro celeste. Quanto à formação ou transformação das espécies, não é por sua vez melhor conhecida que a origem da vida, qual o confessa Charles Lyell: “O que sabemos da Paleontologia (i) não é nada em comparação com o que falta aprender.”

  Examinemos, agora, com este geólogo eminente (ii), quais os principais caracteres da teoria de Lanck e de Geoffroy Saint-Hilaire acerca da progressão e transformação das espécies. Os homens superficiais facilmente imaginam que a Ciência está organizada com regras absolutas e nenhuma dificuldade encontra na sua marcha ascendente. Nada menos exacto. Nem mesmo as grandes definições têm carácter absoluto. Os zoólogos, por exemplo, não se entendem sobre os vocábulos, espécie e raça. Sucedeu o que Lamarck predissera – disse Lyell –: quanto mais se multiplicam as novas formas, menos nos capacitamos de precisar o que seja uma variedade, ou uma espécie. De facto, zoólogos e botânicos se vêem, não só mais embaraçados que nunca para definir a espécie, como também para certificar se ela realmente existe na Natureza, ou se não passa de simples abstracção da inteligência humana. Pretendem uns que ela seja constante dentro de certos limites de variabilidade, restritos e intransponíveis; querem-na outros susceptível de modificações indefinidas e ilimitadas. Desde os tempos de Linnaeus até ao começo deste século, acreditava-se definir suficientemente a espécie, dizendo:

  “A espécie compõe-se de indivíduos semelhantes e reproduzindo-se de seres a eles semelhantes”.

 Lamarck, tendo reconhecido uma grande quantidade de espécies fósseis, das quais umas eram idênticas a espécies vivas, enquanto que outras não passavam de variedades, aditou o factor tempo à definição de espécie, assim formulando: “Compõe-se a espécie de indivíduos inteiramente semelhantes entre si e reproduzindo-se por seres semelhantes, desde que as condições de vida não experimentem alterações capazes de lhes variar os hábitos, caracteres e formas.” Finalmente, chega ele a concluir que, dos animais e plantas contemporâneas, nem um exemplar existe da criação primordial, sendo todos derivados de formas preexistentes, as quais, depois de se terem reproduzido, por séculos sem conta, seres semelhantes, teriam, finalmente, experimentado variações graduais e consequentes a mudanças de clima e do reino animal, adaptando-se às novas circunstâncias. Alguns, entretanto, com o correr dos tempos se afastaram tanto do tipo original, que mereciam ser agora considerados novas espécies.

  Em apoio dessa opinião apresenta o contraste das plantas agrestes com as cultivadas, dos animais selvagens com os domésticos, a lembrar como e quanto se lhes modificam gradualmente a cor, a forma, a estrutura, os caracteres fisiológicos e até os instintos, em presença de novos inimigos e sob a influência da alimentação e do regime de vida diferentes.

  Lamarck sustenta, não somente que as espécies foram constantemente submetidas a alterações, passando de um a outro período, mas, também, que houvesse um progresso constante do mundo orgânico, desde os primitivos aos tempos modernos, dos seres mais simples aos mais complexos, dos mais baixos aos mais altos instintos, e, finalmente, da mais rudimentar inteligência às maiores expressões do racionalismo humano. Para ele, o aperfeiçoamento teria sido moroso e constante, a própria raça humana ter-se-ia, enfim, desgalhado do grupo de mamíferos organicamente mais evoluídos. Um professor da Universidade de Cambridge (i) deu-nos um resumo conciso e racional desta teoria (iii).

  “Encontramos nos antigos depósitos da crosta terrestre – diz ele – o traço de uma progressão na organização das formas viventes, sucessivas. Podemos notar, por exemplo, a ausência de mamíferos nos grupos mais antigos e as suas raras aparições nos grupos secundários mais recentes. Animais de sangue quente (em grande parte de géneros desconhecidos) encontram-se bastante espalhados em todas as velhas camadas terciárias e abundam (frequentemente com formas genéricas conhecidas) nas partes superiores da mesma série; e, por fim, temos que a aparição do homem na superfície do solo é um facto recente.”

  Esse desenvolvimento histórico, das formas e funções da vida orgânica em períodos sucessivos, parece-nos indiciar uma evolução gradativa da energia criadora, a manifestar-se por uma tendência progressiva para o tipo mais elevado da organização animal.

  Hugh Miller (iv) também nota o facto extraordinário de ser a ordem adoptada por Cuvier, no seu Reino Animal – a que coloca as quatro classes de vertebrados segundo as suas relações mútuas e categóricas – a mesma ordem cronológica que apresentavam. O cérebro, cujo volume em relação ao da medula está na razão de dois para um, é o do peixe, que foi o primeiro a aparecer. Sucedeu-lhe o que apresenta a relação média de dois e meio por um, ou seja, o réptil. Em seguida, vem a relação de três por um, que é a das aves; a média de quatro por um, peculiar aos mamíferos. Por fim, o último, um cérebro cuja relação média é de vinte e três por um, o cérebro do homem, que raciocina e calcula.

  O cérebro poderia não ser mais que uma florescência da espinal medula. – Nas espécies inferiores (rãs por exemplo) a faculdade de sentir pertence à medula, quanto ao cérebro. Sem dúvida, podem fazer-se sérias objecções à doutrina da progressividade, mostrando algumas plantas e animais menos perfeitos e surgidos posteriormente a espécies mais perfeitas, tais como o embrião monocotiledóneo e os vegetais endógenos, depois do embrião monocotiledóneo e dos vegetais exógenos (o das coníferas de caule glanduloso), bem como a perfeição das mais antigas criptogâmicas, o movimento retrogressivo dos répteis, o aparecimento da boa (jibóia) depois do iguanodonte, etc. Exemplos não faltam, mas, persuadidos de que essa teoria não alcança a nossa tese da presença de “Deus na Natureza”, contudo, simpatizando com ela, em si mesma, nós a sustentaremos. Consideramo-la com Lyell, não apenas útil mas, no estado actual da Ciência, como hipótese indispensável, que, embora destinada a sofrer de futuro muitas e grandes modificações, jamais poderá ser absolutamente aniquilada.

  Sem dúvida, poderão julgar paradoxal que os mais firmes sustentáculos da transmutação (Darwin e Hooker, por exemplo) guardem singular reserva quanto à progressão e, que os maiores apologistas desta combatam, não raro com veemência, a transmutação. Não poderão ser verdadeiras e conciliarem-se essas duas teorias? Uma e a outra representam-nos em definitivo os tipos de vertebrados a elevarem-se gradualmente no curso das idades, a partir do peixe, a mais simples forma, para os mamíferos placentários, até chegar ao último elo da série, aos mamíferos antropóides e, enfim, ao homem. Este último grau afigura-se, portanto, nesta hipótese, uma parte integrante da mesma série contínua de actos desenvolvidos, anel da mesma cadeia, coroamento da obra, por isso que entra na mesma e única série das manifestações da potência criadora.

  Passemos agora à teoria da origem das espécies por meio da selecção natural.

  Esta teoria apresenta-nos grosso modo a acção da Natureza, observada na criação e educação dos animais domésticos. Sabem os criadores de animais que é possível, ao fim de algumas gerações, obter uma nova classe de rebanhos, de chifre curto ou sem chifre, desde que tenham escolhido reprodutores de cornos menos desenvolvidos. Dizem, então, que é assim que opera a Natureza, alterando no curso das eras as condições da vida, os traços geográficos de um país, o seu clima, a associação de animais e plantas e, por consequência, a alimentação e os inimigos de uma espécie e o seu “modus vivendi”. E assim se vão elegendo certas variedades mais bem adaptáveis à nova ordem das coisas. Desse modo, podem as novas raças suplantar, muitas vezes, o tipo original de sua ascendência.

  Lamarck opinou que o pescoço longo da girafa procede de uma longa série de esforços para colher o alimento de árvores cada vez mais altas. Darwin e Wallace limitam-se a conjecturar que, na intercorrência de alguma calamidade sobreviveram os espécimes de pescoço comprido, por lhes ser possível pastarem em sítios inacessíveis aos outros.

 Graças a ligeiras modificações, multiplicadas no curso de milhares de gerações e à transmissão, por hereditariedade, das aquisições novas, supõe-se uma divergência cada vez maior do tipo primitivo, até resultar numa nova espécie, ou num novo género, se mais longo o tempo decorrido. O autor dessa explicação fisiológica da origem das espécies, Sr. Charles Darwin, expõe ele próprio (v), como se segue, os factos gerais em que se baseia.

 Na domesticidade, constata-se uma grande variabilidade, que parece devida ao facto de ser o sistema reprodutor muitíssimo sensível às mudanças de condições de vida, deixando de reproduzir exactamente a forma matriz. A variabilidade das formas específicas é governada por um certo número de leis muito complexas, tais como a utilização ou a falta de exercício dos órgãos e a acção directa das condições físicas da vida. As nossas espécies domésticas sofreram modificações profundas, que se transmitiram por hereditariedade, durante períodos muito longos. Assim, também, enquanto se mantiverem as mesmas condições de vida por períodos longos, poderemos admitir possa manter-se e transmitir-se uma modificação já adquirida durante uma série quase infinita de graus genealógicos. Por outro lado, está provado que a variabilidade, uma vez começando a manifestar-se, não cessa totalmente de operar, uma vez que novas variedades ainda se verificam, de tempos a tempos, entre as nossas espécies domésticas mais antigas.

 Não é, porém, o homem que produz a variabilidade. Ele apenas expõe, e muitas vezes sem desígnios, os seres orgânicos a novas condições de vida. Então, a Natureza, agindo sobre o organismo, produz variações. Podemos escolher, então, essas variedades e as acumular na direcção que nos aprouver. Assim, adaptamos animais ou plantas às nossas conveniências e até aos nossos caprichos. Tal resultado pode ser obtido sistematicamente e mesmo sem objectivo preconcebido, qualquer, bastando que, sem propósito de alterar a raça, se conservem de preferência os indivíduos que, num dado tempo, lhe são os mais úteis. Certo é que se podem transformar os caracteres de uma espécie escolhendo-se de cada geração sucessiva as diferenças individuais; e esse processo selectivo foi o agente principal de produção das raças domésticas, mais distintas e mais úteis. Os princípios que actuaram com tanta eficácia, no estado de domesticidade, podem, igualmente, operar no estado de natureza. A conservação das raças e dos indivíduos favorecidos na luta perpétuamente renovada pelo meio ambiente, é factor poderosíssimo e, sempre activo, de selecção natural.

  A concorrência vital é uma consequência necessária da multiplicação, em razão geométrica mais ou menos elevada, de todos os seres organizados. A rapidez dessa progressão está provada não só pelo cálculo, como pela pronta multiplicação de muitos animais e plantas durante uma série de estações particulares, ou quando se aclimatavam em novas regiões. O número dos indivíduos que nascem excede sempre o dos que podem viver.

  Um grão na balança pode determinar a variedade que deve crescer e a que tenha de diminuir. Como os indivíduos da mesma espécie são os que mais concorrem entre si, em todos os sentidos, a luta torna-se para eles, em regra, mais severa. Ela é-o quase tanto entre as variedades da mesma espécie e, grave, ainda, entre as espécies do mesmo género. Mas a luta também pode existir, muitas vezes, entre seres muito afastados na escala da Natureza. A mais leve vantagem adquirida por um indivíduo, em qualquer idade ou estação, sobre o seu concorrente, ou uma melhor adaptação ao meio físico ambiente, o mais insignificante aperfeiçoamento, enfim, fará pender o prato da balança.

  Vantagens aparentemente medíocres podem acarretar essa variação crescente. Entre animais de sexos distintos, diz o naturalista, haverá guerra, as mais das vezes entre machos, para posse da fêmea. Os indivíduos mais vigorosos e os que lutaram com maior êxito contra as condições físicas ambientais, hão de deixar uma progenitura mais numerosa. Mas, o seu êxito também dependerá, muitas vezes, dos meios de defesa de que disponham, ou da sua mesma beleza e, ainda neste caso, a mínima vantagem lhes granjeará a vitória.

 Uma vez admitida a variabilidade, bem como a existência de um poderoso agente sempre pronto a funcionar, chegaremos a concluir, facilmente, que variações algo úteis ao indivíduo nas suas relações vitais possam ser conservadas, transmitidas e acumuladas? Se o homem pode, com paciência, escolher as variações que lhe sejam mais úteis, porque deixaria a Natureza de escolher as variações proveitosas aos seus produtos sujeitos a condições mutáveis da existência? Que limites poderíamos atribuir a esse poder, quando ele opera mediante períodos longos e escruta, rigorosamente, a estrutura, toda a organização e os hábitos de cada criatura, por favorecer o prestável e rejeitar o inútil? Parece não haver nenhum limite a esse poder, cujo efeito é a adaptação lenta e admirável de toda a forma às mais complexas relações da vida.

 Cada espécie, dada a progressão geométrica de reprodução que lhe é peculiar, tende a aumentar desordenadamente e, multiplicando-se os descendentes modificados de cada espécie, tanto mais quanto se diversificam, nos hábitos e na estrutura, a lei de selecção natural apresenta, por sua vez, uma tendência constante para conservar os descendentes mais divergentes, de qualquer espécie.

 Daí se segue que, durante o curso perseverante de sucessivas modificações, as mais leves diferenças características das variedades de uma espécie tendem a aumentar e atingir as grandes diferenças que caracterizam espécies do mesmo género. Variedades novas e mais perfeitas suplantarão e exterminarão inevitavelmente as mais antigas, as menos perfeitas e intermediárias, e, daí, tornarem-se as espécies mais bem determinadas e mais distintas.

  Pode objectar-se que no presente ninguém percebe tais mudanças.

  O teórico responde, porém, que, operando a selecção natural somente por acúmulo de variações favoráveis, leves e sucessivas, não pode produzir grandes alterações instantâneas. Ela opera a passos lentos e curtos. Essa lei natural não existiria, sem dúvida, se cada espécie tivesse sido criada independentemente.

  O testemunho geológico apoia a teoria da descendência modificada. As espécies novas apareceram lentamente e por intervalos sucessivos no cenário do mundo e, a soma das mudanças efectuadas em tempos iguais é muito diferente nos diversos grupos. A extinção de espécies e de grupos inteiros de espécies, que representou papel tão importante na história do mundo orgânico, é uma série quase inevitável do princípio de selecção natural, pois as formas antigas devem ser suplantadas por novas formas mais perfeitas. Nem as espécies isoladas, nem os grupos de espécies podem reaparecer, uma vez interrompida a cadeia das gerações regulares. A extensão gradual das formas dominantes e a lenta modificação dos seus descendentes concorrem, depois de tantos intervalos de tempo transcorrido, para fazer supor que as formas da vida tivessem mudado simultaneamente no mundo inteiro. O carácter intermediário dos fósseis de cada formação, comparados aos de formação inferiores e superiores, explica-se muito simplesmente pela posição média que eles ocupam na cadeia geológica. O grande facto constatado, de pertencerem todos os seres extintos ao mesmo sistema dos actuais, integrando-se nos mesmos grupos, ou nos grupos intermediários, atesta o parentesco e a descendência originais.

  O autor invoca também em seu apoio a importância única dos caracteres embriológicos, observando que as afinidades reais dos seres organizados são devidas à hereditariedade e comunidade de origem. O sistema natural é uma árvore genealógica cujos lineamentos precisamos descobrir com o auxílio de caracteres mais permanentes, por leve que seja a sua importância vital.

  Não despreza ele, tampouco, a analogia. A disposição dos ossos é análoga na mão do homem, na asa do morcego, na membrana natatória da tartaruga e na perna do cavalo; o mesmo número de vértebras forma o pescoço da girafa e do elefante. Estes e outros factos semelhantes explicam-se por si mesmos na teoria da descendência lenta e sucessivamente modificada. A identidade de plano da asa e da perna do morcego, que, no entanto, servem a fins tão diferentes; mandíbulas e patas de caranguejo, pétalas, estame e pistilo de uma flor, explicam-se do mesmo modo pela modificação gradual de órgãos outrora semelhantes aos primitivos antepassados de cada classe.

  A falta de exercício, às vezes auxiliada pela selecção natural, tende, amiúde, a reduzir as proporções de um órgão, que a mudança de hábitos ou as condições de vida pouco a pouco tornaram inútil.

  Dessarte, é fácil conceber a existência de órgãos rudimentares.

  Pode, enfim, perguntar-se até onde se estende a doutrina da modificação das espécies.

 Todos os membros de uma classe podem ser religados em conjunto, pelos laços de afinidade e igualmente classificados, em virtude dos mesmos princípios, por grupos subordinados a outros grupos. Darwin não pode duvidar que a teoria da descendência não abranja todos os membros de uma classe. Ele pensa, até, que todo o reino animal descende de quatro ou cinco tipos primitivos, pelo menos e, o reino vegetal de um número igual ou mesmo inferior.

  A analogia – acrescenta –, levá-lo-ia um pouco mais longe, isto é, à crença de que todas as plantas e animais descendem de um protótipo único; mas, que a analogia pode ser um guia enganador. No mínimo, a verdade é que todos os seres vivos têm muitos atributos comuns: composição química, estrutura celular, leis de crescimento e faculdade de serem afectados por influências nocivas.

  Em todos os seres organizados, tanto quanto podemos julgar pelos conhecimentos actuais, a vesícula germinativa é uma só. De sorte que, cada indivíduo organizado parte de uma mesma origem.

  Mesmo que consideremos as duas principais divisões do mundo orgânico, ou sejam os reinos vegetal e animal, vemos que certas formas inferiores apresentam caracteres intermédios assaz pronunciados, ao ponto de divergirem os naturalistas na sua respectiva classificação. O professor Cl. Gray notou que “os esporos de muitas algas inferiores poderiam vangloriar-se de ter possuído, de início, os caracteres da animalidade, passando depois a uma vida vegetal equívoca”. Assim, partindo do princípio da selecção natural com divergência de caracteres, torna-se crível que animais e plantas tenham de algum modo derivado de uma forma intermediária. Importa admitir também que, quantos seres lograram viver até hoje, podem descender de uma forma primordial e única. Tal consequência porém, funda-se principalmente na analogia e pouco importa seja ou não aceite. Outro tanto não se dá com as grandes classes, tais como os articulados, os vertebrados, etc., pois aí é nas leis da Homologia e da Embriologia que o autor vai encontrar provas muito especiais de uma descendência única (vi).

  Tal a teoria de Darwin, exposta por ele mesmo.

  Se, enfim, a nossa legítima curiosidade se atreve a aplicar essa teoria à nossa própria espécie, logo percebemos, num misto de admiração e tristeza, que talvez descendamos dum exemplar de símio desaparecido. Indubitavelmente, a nossa dignidade se sente ofendida diante da só possibilidade de uma tal jerarquiamas, se observarmos a Natureza, sem ideias preconcebidas, não parece que façamos excepção à lei geral? Muitos de nós preferem descender de um Adão degenerado, antes que de um macaco aperfeiçoado. E contudo, a Natureza não nos consultou a respeito.

  Pelo que nos toca, nunca dedicamos escassas horas ao estudo da Embriologia, que não ficássemos muito impressionados com as suas abscônditas revelações. Jamais pudemos comparar embriões, em fases diferentes, que não víssemos neles um vestígio rudimentar das fases correspondentes, pelas quais a nossa humanidade haveria de ter passado em tempos anteriores.

  Os vertebrados superiores revestem, sucessivamente, como no estado de esboço, os principais caracteres das quatro grandes classes do entroncamento, sem contudo passarem pelas formas dos outros troncos zoológicos. Desde o começo de sua existência secreta, a célula germinativa manifesta um sistema de desenvolvimento característico, sem tomar a forma do verme articulado, do molusco, ou do radiário. Sem dúvida, esta sucessão representa uma imagem das fases que, no curso das idades, a mesma classe de animais atravessou sucessivamente, avançando na escala dos seres. Quem já deixou de se surpreender com a semelhança que o embrião humano oferece, sucessivamente, com o do peixe, do réptil e da ave? A hora presente não seria, pois, o espelho de um passado longínquo?

  Não se ousa encarar de frente essa origem e, contudo, a questão é deveras importante para merecer um ímpeto de coragem. Examinemos, pois, sob o seu aspecto geral, a posição do homem na sua natureza terrena. Ao terminar este capítulo sobre a origem dos seres, esta perspectiva continuará a mostrar-nos um governo intelectual na marcha ascendente da Criação.

   A hipótese zoológica que encara o homem como descendente de uma raça símia, antropóide, não é imoral nem anti-espiritualista. Os que a abraçaram nestes últimos tempos não o fizeram com o propósito de hostilizar o Cristianismo e por professarem doutrinas pagãs. Muito ao contrário, fizeram-no a despeito de grandes prevenções, favoráveis à superioridade dos nossos primitivos ancestrais, de quem deveriam considerar-se descendentes abastardados. De resto, não compreenderíamos como sábios dignos desse nome pudessem afagar o prazer pueril de fazer graça com o Cristianismo. Pensamos que a Ciência deve ventilar os seus problemas sem se ocupar, de modo algum, com artigos de fé.

  Declaremos, antes de tudo, que a primeira característica do homem é a sua inteligência. Portanto, o seu lugar filosófico não se enquadra nas classificações da História Natural. Pela sua perfectibilidade, que se poderá atribuir à linguagem, pela inteligência racional, pelas suas faculdades espirituais, em suma, o homem domina toda a Natureza terrestre. O seu espírito não incide nos domínios do escalpelo. O seu valor não se afere pelo corpo, pelo esqueleto, pelo fígado ou pelos rins, mas, pelo seu carácter intelectual. Descenda, pois, de uma ou de outra fonte o nosso corpo, isso em nada nos afecta a alma. O mundo da inteligência não é o mundo da matéria. Não somos menores por isso, nem menos puros. Somente por estreiteza de espírito é que interferimos na filosofia psicológica imaginários temores, suscitados pela ciência zoológica. Se o nosso berço terrestre tivesse sido a manjedoura do estábulo rústico, qual o de Jesus de Nazaré, nem por isso a nossa vida e a nossa missão seriam menos santas e altaneiras. A superioridade está nas nossas faculdades intelectuais.

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(ii) Charles Lyell – The Antiquity of Man... A ancianidade do homem provada pela Geologia e anotações sobre a origem das espécies, por variação.
(iii) Professor Sedgwick – Discurse on the Studies of the University of Cambridge, 1850.
(iv) Edinburgh – Footprints of the Creator, 1849.
(v) On the Origine of Species by the mean of natural selection.
(vi) O tradutor francês de Darwin adverte, a propósito da unidade dos centros de criação específica, que seria extremamente rigorosa a acepção do termo “paternidade” única, por um só indivíduo, ou casal único. “Mais incrível, ainda, supor que toda a forma primordial, o antepassado comum e arquétipo absoluto da criação viva não tivesse sido representado senão por um único indivíduo. De onde teria provindo esse indivíduo único? Seria preciso, depois de eliminar tantos milagres, deixar que subsistisse um? Se um tal indivíduo existiu, ele só podia ser o planeta. Nada impede admitir tenha tido esta matriz universal, numa de suas fases existenciais, o poder de elaborar a vida. Mas, um só ponto da sua superfície teria auferido o privilégio de produzir germes? Ou deveremos crer lhe tivessem estes desabrochado do seu seio? Todas as analogias levam antes a supor a Terra fecunda em toda a sua superfície; que o seu invólucro aquoso fosse o primeiro laboratório e que inumerável fosse a produção dos germes, sem dúvida semelhantes. Células germinativas, nadando esparsas, em cachos ou em filamentos, nas águas, uma cristalização orgânica e nada mais. Evidentemente, um tipo, uma forma, uma espécie única, mas não um só indivíduo, do qual se formassem sucessivamente todos os organismos. Se se admitir a simplicidade desses germes primitivos, reconhece-se que as possibilidades de desenvolvimento deveriam apresentar-se entre um número considerável de seres. Em virtude do grande número de esboços orgânicos, o aperfeiçoamento sucessivo da organização seguindo um certo número de séries típicas, paralelas ou mais ou menos divergentes, nada há de surpreendente ao princípio vital repousando em estado latente em cada germe. As leis gerais da vida seriam em primeiro lugar fixadas, nesta hipótese discutível, segundo as condições físicas peculiares do nosso planeta, ao mesmo tempo que começasse a divergência dos tipos necessariamente adaptados à diversidade pouco profunda dessas condições. À medida que as raças se tivessem fixado e aperfeiçoado, teriam diminuído de número, ao mesmo tempo em que cada qual visse diminuir os seus representantes. A posteridade crescente de um certo número de árvores primitivas deveria, sucessivamente, tomar o lugar das raças que sucumbiam na luta universal, por efeito da inferioridade orgânica relativa.


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (II de III), 23º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)