Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

domingo, 19 de janeiro de 2020

Deus na Natureza ~

~ a origem dos seres ~
(I de III)

  Será rebaixar a ideia de Deus, considerar o Universo como um gigantesco paralelo de uma obra única, cujas modalidades se manifestam sobre a forma de vários aspectos e cujos poderes se traduzem em forças particulares, distintas? A substância primitiva ocupa o espaço ilimitado. O plano divino está em que esta substância seja um dia condensada em mundos, nos quais a vida e a inteligência hajam de irradiar esplendores; A luz, o calor, a electricidade, o magnetismo, a atracção, o movimento sob modalidades desconhecidas percorrem, atravessam essa substância primordial, como o vento da Grécia, que, ao tempo de Pan, tocava as harpas eólias no âmbito da noite. Que mão empunha o arco e prenuncia o mais magnificente dos coros? Não pode a inteligência humana defini-lo. Escutemos, atentos, o longínquo concerto da Criação.

  No amanhecer da Natureza terrestre, já os sóis resplendiam, de há muito, na amplidão dos céus, a gravitarem harmónicos nas suas órbitas, sob a regência da mesma lei universal que ainda hoje os rege. Era o primeiro dia da Terra. Solidões oceânicas, tempestades ígneas, rupturas formidáveis de águas e nuvens viram chegar-lhes, ao fim, uma paz desconhecida. Raios de ouro atravessaram as nuvens; um céu azul tonalizou a atmosfera; um belo leito de púrpura se ofereceu ao Sol nesse dia. Então, já não eram dias e anos a contar, pois períodos imensos, incalculáveis, já lhe haviam coberto o berço. Os astros são jovens, ainda quando as miríades de gestação tenham sucumbido. As ilhas surgiram, então, do seio das ondas e a primeira verdura estendeu pelas praias o seu manto virginal. Muito tempo depois, dos galhos das vides rebentaram flores, de cujos lábios entreabertos se exalavam perfumes. Mais tarde, no bojo profundo das florestas repercutiu o canto das aves e os hóspedes fabulosos dos mares primitivos se cruzaram no reino ondulante. Sucessivamente, a Terra se dava aos espasmos da vida, animada pelo sopro imortal, vendo luzes e sombras perpassarem-lhe a face. Suponhamos, um momento, que a força orgânica, que hoje se transmite de geração a geração, tenha aparecido como uma resultante natural e inevitável das condições fecundas em que se encontrava a Terra quando soou a era da vida; suponhamos as primeiras células orgânicas diversamente constituídas, formando tipos primordiais distintos, ainda que simples, pobres, grosseiros, sejam as cepas de sucessivas variedades; suponhamos, enfim, que todas as espécies vegetais e animais, inclusive a humana, sejam o resultado de transformações lentas, operadas sob condições progressivas do planeta, e perguntemos em que, e como, pode essa teoria nulificar a necessidade de um criador e organizador imanente? Quem deu essas leis ao Universo? Quem organizou essa fecundidade? Quem imprimiu à Natureza essa tendência perpetuamente progressiva? Quem deu aos elementos materiais a faculdade de produzir ou de receber a vida? Quem concebeu a arquitectura desses corpos animados, desses edifícios maravilhosos, nos quais todos os órgãos tendem para um mesmo fim? Quem presidiu à conservação dos indivíduos e das espécies na trama inimitável dos tecidos, dos arcaboiços, dos mecanismos – pelo dom previdente do instinto, por todas as faculdades, enfim, que possuem respectivamente todos os seres vivos e cada qual de acordo com o seu papel no cenáculo do mundo? Numa palavra: – se a força vital é uma força da mesma natureza das forças moleculares, insistamos em perguntar: – quem é o seu autor? Seria por não haver este autor concebido tudo com as próprias mãos, que haveríeis de o negar?

  De boa fé, supondes que, se em lugar de escrever letra a letra, palavra a palavra, esta obra e enviá-la à Livraria Académica, que a confiou a um tipógrafo; o qual, por sua vez, a entregou ao paginador, que, por sua vez, a confiou aos contramestres e aprendizes, etc.; e depois, ainda me obrigou a corrigir as provas – sem falarmos da escolha do papel, do formato, do número de páginas, da encadernação, tudo enfim que representa a factura de um livro; – supondes, repito, que, depois de haver o livro passado por tantos trâmites, deixasse eu de ser o seu legítimo autor, bastando apenas querê-lo para que o plano instantaneamente se completasse? Acreditais que, por haver simplesmente coordenado certas regras, em virtude das quais a ideia expressa em tinta, papel, chumbo; – agentes inertes e cegos, actuados sob a minha vigilância constante – se materializou em parte, tão invisivelmente quanto me eclodiu do cérebro, me tenha destituído da legítima autoria desta obra? Por mim, senhores materialistas, ficaria muito satisfeito só com o poder evitar a revisão das provas, que, já o dizia Balzac, é o suplício infernal dos escritores. E se algum brincalhão de mau gosto apregoasse pelas ruas de Paris que o meu livro se fizera por si mesmo, eu haveria de rir à gargalháda e não deixaria de me interessar por tão precioso privilégio.

  Fosse-me permitido o paralelo entre o livro da Natureza e o meu e, creio que faria coisa assim como comparar uma boneca mecânica à Venus de Milo, viva, ou, então, as rodas do relógio apresentado a Carlos Magno pelo califa Harun al-Rashid, ao mecanismo do sistema universal.

  Todavia, não sereis vós quem há de elevar o meu trabalho às alturas da Criação natural. Se a boneca mais insignificante e o mecanismo mais tosco revelam a Voltaire a existência de um ou de vários fabricantes, a que se reduz a negação dos que recusam identificar um arquitecto na sublimada harmonia do edifício cósmico?

  Assim é que, seja qual for o círculo arbitrário, imaginado em torno da acção sensível do Criador e mediante o qual pretendamos limitar a sua presença, a ideia de Deus nos escapa, sempre, pela tangente, com singular subtileza. Essa propriedade particular da ideia do ser incriado manifesta-se em cada conclusão do nosso arrazoado!

  Disseram-nos que Darwin tinha sempre a seu lado um teólogo anglicano incumbido de ajeitar as coisas e manter em perpétuo acordo a consciência do naturalista eminente com as pretendidas consequências da sua teoria da selecção natural. De resto, o tradutor feminino da obra teve o cuidado de nos advertir que, “em vão, protesta o autor não ser o seu sistema em nada contrário à ideia de divindade”. Pelo que nos toca, é com íntima satisfação que aqui juntamos às nossas convicções pessoais as do autor da Origem das Espécies: “Não vejo em que possam as teorias expostas nesta obra melindrar os sentimentos religiosos de quem quer que seja. Por demonstrar quanto são inconscientes essas impressões, basta lembrar que a maior das descobertas humanas – a da lei de gravitação – foi hostilizada pelo próprio Leibnitz como subversiva da religião natural. Um notável autor sacro escreveu-me, em tempos, ter chegado gradativamente a convencer-se de que a criação divina das formas simples, originais, capazes de por si evoluírem e se transformarem em formas úteis, era a concepção mais justa e compatível com a majestade do Supremo Ser, do que presumir a necessidade de um novo acto criador, a fim de encher os vácuos causados pelo funcionamento das suas próprias leis. Autores eminentes mostram-se inteiramente satisfeitos com a hipótese da criação independente de cada espécie. A meu ver, o que conhecemos das leis impostas à matéria, pelo Criador, está mais de acordo com a formação e extinção dos seres presentes e passados por causas secundárias, semelhantes às que determinam o nascimento e a morte dos indivíduos. Quando encaro todos os seres não como criações especiais, mas como descendentes em linha directa de seres que viveram anteriormente aos depósitos do período Siluriano, eles me parecem enobrecidos.”

  Mais adiante, acrescenta o mesmo naturalista:

  “Que interesse nos desperta o espectáculo de uma praia coberta de vegetação, pássaros a cantar, insectos a esvoaçar, anelídeos ou larvas rastejando no solo húmido, ao pensarmos que todas essas formas elaboradas com tanto cuidado, paciência, habilidade e dependentes umas de outras por uma série de relações complicadas, foram todas produzidas por leis de uma contínua actividade em torno de nós! Essas leis, tomadas no seu mais lato sentido, enumeramo-las aqui: – de crescimento e reprodução; de hereditariedade, quase implícita nas precedentes; de variabilidade sob a acção directa ou indirecta das condições exteriores da vida, e do uso ou da falta de exercício dos órgãos; da multiplicação das espécies em sentido geométrico, a produzir a concorrência vital e a eleição natural e, daí, a divergência de caracteres e extinção das formas específicas.

  “É assim que, da guerra natural, da fome e da morte, resulta o mais admirável dos efeitos que possamos conceber: – a formação lenta dos seres superiores. No encarar a vida e as suas potências animando originariamente algumas ou uma única forma simples, ao influxo do Criador, também há grandeza. E enquanto o planeta seguiu descrevendo os seus círculos perpétuos, de acordo com as leis fixas da gravitação, formas inumeráveis, cada vez mais belas e maravilhosas, se desenvolveram e se desenvolverão, mediante uma evolução sem fim”. (*)

  Declarações interessantes que importa registar, para opô-las aos nossos materialistas.

 Pretendem estes que a doutrina da geração espontânea, sustentada pelo Sr. Pouchet e a da origem das espécies, amparada pelo Sr. Darwin, destroem, ambas, a ideia de Deus, e eis que, nem um nem o outro admite essa acusação e protestam contra a ilusão dos nossos adversários. Nisto, pois, como em tudo o mais, são eles logrados por uma falsa miragem. Consignemos, assim, como novos dados, este duplo e valioso facto. Em primeiro lugar, os materialistas não têm o direito de se apoiarem na geração espontânea para concluir pela não existência de Deus:

  1º – porque essa geração não está provada, e

  2º – porque, se o estivera, não acarretaria uma tal consequência.

  Em segundo lugar, não têm o direito de afectar ao seu ponto de vista o sistema do transformismo das espécies, já porque tal sistema não está provado, e já porque ele não afecta a questão dominante das origens da vida.

  Se estivesse provado que os vegetais e animais inferiores são formados por geração espontânea, no âmago da matéria inorgânica, haveria grandes probabilidades para crer que assim sucedesse e, com maioria de razão, com a origem das espécies. Os partidários das transformações específicas chegaram mesmo a apoiar-se na doutrina das gerações espontâneas para explicar a existência, ainda hoje, de inúmeras formas inferiores, apesar da tendência das espécies primitivas para se aperfeiçoarem. Por isso, admitem que a Criação não completou a sua tarefa e ainda hoje se encontra nesse intervalo. Era a opinião de Lamarck. Cumpre observar que o chefe do movimento actual não compartilha tais ideias e nem mesmo acredita na geração espontânea. “A selecção natural – diz Darwin – não afecta nenhuma lei necessária e universal de desenvolvimento e de progresso. Ela cogita, apenas, de toda e qualquer variação que se apresenta, quando vantajosa à espécie ou aos seus representantes. Tenho apenas necessidade de aqui dizer – declara ele mais à frente – que a Ciência no seu estado actual não admite, em geral, que seres vivos, ainda hoje, se elaborem no seio da matéria inorgânica.”

  Vale notar que não são os sábios, nem mesmo os experimentadores, que proclamam as doutrinas por nós combatidas e sim pretensos filósofos, que, apoderando-se dos estudos científicos daqueles, querem, a toda a força, tirar conclusões repudiadas pelos próprios cientistas. Temos o dever de lhes desmascarar o jogo e demonstrar com a confissão dos próprios experimentadores ilustres, que, se o sistema materialista se obstina ingenuamente a exibi-los em público, assentes no seu palco teatral, não passa isso de mero efeito fantasmagórico, pura ilusão óptica.

  Está neste caso um químico ilustre, o Sr. Frémy, que pensou ter notado corpos indecisos na fronteira dos dois reinos (corpos a que chamou semi-organizados) e foi por isso logo inculcado pelos doutrinaristas como porta-bandeira do materialismo para a hipótese da geração espontânea. Pois vejamos o que disse este químico no Instituto:

  “Precisarei dizer que recuso, sem hesitação, a ideia de geração espontânea, tomada no sentido da produção de um ser organizado, por mais simples que seja, com elementos que não possuem a força vital. A síntese química permite, sem dúvida, reproduzir grande número de princípios imediatos de origem vegetal ou animal, mas a organização opõe, a meu ver, uma barreira intransponível às reproduções sintéticas. Ao lado dos princípios imediatos, definidos, que a síntese pode formar, há outras substâncias menos estáveis que as precedentes, mas também muito mais complexas quanto à sua constituição e que podem ser designadas sob o título genérico de corpos semi-organizados.

  “Esses corpos apresentam-se em conexão com a organização, com a formação dos tecidos, com a produção dos fermentos e a putrefacção, quase no mesmo estado da semente ressequida, que leva anos e anos sem apresentar sinais de vegetação, para germinar logo que submetida às influências do ar, do calor e da humidade.

  “Eles podem, tal como a semente seca, manter-se em estado de imobilidade orgânica durante muito tempo, mas também podem sair desse estado à custa da própria substância, sob os elementos de organização, desde que as circunstâncias favoreçam o desenvolvimento orgânico.”

  Na actualidade não se pode, portanto, cientificamente, depor a favor nem contra a geração espontânea. Essa indecisão forçada está longe de esclarecer a questão da geração primitiva. O mistério permanece tão profundo como ao tempo de Pitágoras. Existem seres vivos na Terra, eis o facto. De onde vêm eles? Conhecemos astrólogos (ainda os há) que escreveram grandes calhamaços para demonstrar que esses seres nos chegaram de outros planetas, nas asas de qualquer cometa aventuroso, ou grudados nalgum bojudo aerólito. Conhecemos sonhadores que pretendem hajam os seres aflorado à superfície do orbe terrestre pela fecundação de eflúvios planetários e estelares. Isso, porém, é romantismo. De onde, pois, vêm os seres? Responder-nos-ão que sempre existiram? Essa maneira de esquivar-se à dificuldade teria contra si a agravante da falsidade, uma vez que as camadas geológicas nos apresentam, em fases regressivas, as épocas em que surgiram diferentes espécies. Se não existe ser orgânico algum sem filiação, quem formou o primeiro casal de cada espécie? A Bíblia responde que foi Deus. Perfeitamente, mas como? Por uma simples maravilha verbal? Mas, antes de tudo: – Deus fala? – objectam os gracejadores, lembrando-se de que o som não se propaga no vácuo... Um súbito efeito da vontade divina? Neste caso, de que forma? Os livros revelados nada têm de explícitos e podemos interpretá-los a favor da geração espontânea (em que pese aos senhores teólogos), tanto como em sentido contrário: “Deus diz: – Que a terra produza a erva tenra, contendo a semente e árvores que dêem fruto, cada qual da sua espécie, e que encerrem consigo a sua semente, a fim de proliferar sobre a terra. E assim se fez. A terra, portanto, produziu a erva contendo a semente de sua espécie, bem assim as árvores, com as suas sementes peculiares à espécie. E Deus viu que isso era bom.

  “E da noite da manhã surgiu o terceiro dia. Disse Deus, então: Que as águas produzam animais vivos que flutuem nelas, e aves que voem acima da terra e sob o firmamento do céu. E os abençoou, dizendo: Crescei e multiplicai, povoai as águas do mar e que as aves se multipliquem sobre a terra.

  “E da noite e da manhã surgiu o quinto dia. Deus disse, então: Que a terra produza animais vivos, cada qual na sua espécie, os domésticos, os répteis e as feras bravias. E assim foi feito”. (**)

  Aí temos o que muito se assemelha à geração espontânea. De resto, os Santos Padres professaram essa doutrina. Alexander von Humboldt achou muito curioso que Santo Agostinho, encarando o povoamento das ilhas, após o dilúvio, não se mostrasse muito longe de recorrer à hipótese de uma geração espontânea (Generatio aequivoca apontanea atst primaria). “Se os anjos ou os caçadores do continente – diz esse Pai da Igreja – não transportaram animais a essas ilhas afastadas, é forçoso admitir que o solo os tenha engendrado; mas, neste caso, pergunta-se: – por que encerrar na Arca animais de toda a espécie?” Dois séculos antes do bispo de Hipona, vamos encontrar no compêndio de Trogue Pompée, já estabelecida a propósito da dissecação primitiva do mundo antigo, do planalto asiático, analogia com a geração espontânea ou, seja, uma ligação semelhante à que se depara na teoria de Linnaeus, acerca do paraíso da Terra, com as investigações do século 18 sobre a Atlântida fabulosa.

  Quanto ao mais, sem que pese à energia dos seus discursos, estes Mirabeaus da tribuna positivista encontram-se, fundamentalmente, em ignorância e indecisão absolutas, no que concerne à origem da vida. Em vão lançam sobre o mistério o véu dos talvez; em vão se entretêm a imaginar mil metamorfoses

  Quando olhamos para o fundo do vaso, percebemos que o caldo não é tão claro quanto o supõem. De tempos a tempos, sem maior alarde, eles deixam perceber confissões que nos permitimos aqui glosar para edificação do auditório. “Enigma insolúvel – diz B. Cotta – que não podemos deixar de atribuir à potência imperscrutável de um Criador, eis o que se nos afigura sempre a origem da matéria, bem como o nascimento dos seres orgânicos.” Eis uma confissão digna de um espiritualista. Büchner, por outro lado, diz: – “É preciso atribuir à geração espontânea um papel mais importante nos tempos primitivos com relação aos actuais, visto não se poder negar que ela tenha engendrado, então, organismos mais perfeitos do que hoje.” E acrescenta logo: “Verdade é que nos faltam provas e mesmo conjecturas plausíveis dos pormenores desses espécimes, o que estamos longe de negar.” E, voltando à ideia dominante, declara imediatamente que – “seja qual for a nossa ignorância, devemos dizer convictamente que a criação orgânica pode e deve ter ocorrido sem intervenção de qualquer força exterior”.

  Karl Vogt, a exemplo dos pré-citados, reconhece que as forças físico-químicas conhecidas não bastam, só por si, para explicar a origem dos organismos. Todo o ser vivo, vegetal ou animal, tem a sua origem essencial na célula orgânica, ou ovo. Antes de tudo, havemos de admitir que essa origem essencial foi criada, sem sabermos como. Só depois dessa premissa admitida é que começam as demonstrações físico-químicas. “Se admitirmos que isso tivesse sucedido uma única vez – diz o autor das Lições sobre o Homem – mediante acção simultânea de factores diversos, que não conhecemos, é lícito concluir que houvesse podido formar-se uma célula orgânica a expensas dos elementos químicos, e torna-se evidente que a mais ligeira modificação devesse determinar imediata modificação no objecto produzido, isto é, na célula. Mas, como não podemos admitir que, sobre toda a superfície terrestre, as mesmas causas tenham actuado e ainda actuem nas mesmas condições e com a mesma energia, na criação da célula primitiva; e que, por outro lado, a criação orgânica haveria de estender-se por toda a Terra, conclui-se, necessariamente, que as primitivas células geradoras de organismos deviam ter aptidões de desenvolvimento diferentes.”

  Virchow não explica melhor a questão de origem. “Em certa fase de desenvolvimento da Terra – diz – sobrevieram condições anormais, sob as quais, entrando nas novas combinações, os elementos recebiam o movimento vital, donde as condições ordinárias se tornaram vitais.”

  Quanto a Charles Darwin, em vão temos rebuscado a sua opinião, mesmo quanto à origem das espécies. Contenta-se ele com o explicar a variabilidade possível dum certo número de tipos primitivos e, é uma nota no mínimo singular, que, em obra tão volumosa e opulenta sobre a origem dos seres, não se trate absolutamente dessa origem!

  O problema é obscuro: a distância do nada a alguma coisa é maior que de alguma coisa a tudo. Seja qual for o sistema a que se filiem as nossas crenças íntimas, espiritualistas ou materialistas, todos perseguimos o inexplicável mistério da vida. Porque não reconhecer com franqueza a nossa absoluta ignorância neste particular? E, contudo, essa ignorância deveria moderar um pouco o ardor negativista dos ateus, levando-os a tratar o enigma com menos arrogância. É de convir que, quando nos assoberba uma tal incerteza, ninguém pode cantar vitória. Quiséssemos voltar à questão e fácil nos seria pôr todas as vantagens do nosso lado; poderíamos impor Deus aos adversários, sem que eles pudessem subtrair-se ao seu domínio. Não demonstrando a Ciência que as afinidades da matéria possam criar a vida, o papel do Criador, aqui, fica íntegro como nos tempos de Adão e até dos pré-adamitas. E ainda que o demonstrasse, a origem e o entretenimento da vida deixam ver claramente a existência de uma força criadora, ou seja, por outras palavras, um Deus oculto.

  Tal, porém, é a força da nossa estratégica, que jamais queremos abusar de uma posição privilegiada e preferimos combater sempre em paridade de terreno e de armas. Contentamo-nos, assim, em insinuar apenas essa superioridade aos adversários, para sua edificação momentânea e baixando, logo a seguir, das alturas favoráveis ao triunfo, para voltar ao plano da organização da vida, sem nos prevalecermos dos argumentos oferecidos pelo problema dessa mesma vida. Ninguém dirá que, do ponto de vista singular da organização, a existência do Ser inteligente não esteja soberanamente demonstrada. Ainda mesmo que, em virtude de forças desconhecidas, pudesse a vida aflorar espontaneamente em dadas circunstâncias materiais e, ainda que os seres primários se tivessem formado de uma única célula primordial, gerada ao influxo de um conjunto de circunstâncias fortuitas; ainda assim, repetimos, a organização dos seres vivos seria uma prova irrefutável da soberania da força coordenada. Seria, sempre, em virtude de uma que tais leis superiores que a vida haveria de repontar e organizar-se, leis que não traduzem uma causa cega ou louca, mas causa que deve, no mínimo, saber o que faz. Assim, também, chegasse o homem a descobrir o nascimento espontâneo dos infusórios ou dos vermes intestinais, nem por isso teria criado esses ínfimos seres e sim, apenas, constatado que a Natureza opera à sua revelia, com poderes superiores aos seus e mediante processos que, a despeito de sua inteligência, lhe teriam custado séculos a descobrir (supondo que lá chegasse).

  Mas, finalmente, nem por isso a causa da razão divina restaria mais esclarecida.

/…
(*) Da Origem das Espécies. Últimas notas.
(**) Génese


Camille Flammarion, Deus na Natureza, Segunda Parte – 2/ A Origem dos Seres […] (1 de 3), 22º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales (Contos da Selva) 1895, pintura de James Jebusa Shannon)

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

o grande desconhecido ~


Os três corpos do homem ~

O problema dos corpos humanos tem longa e confusa tradição, baseada em revelações antigas e entremeada de superstições populares. Na tradição cristã firmou-se a teoria dos dois corpos referidos pelo Apóstolo Paulo na 1ª Epistola aos Coríntios: o corpo animal ou material e o corpo espiritual. Kardec pesquisou o assunto com a insistência e o rigor que o caracterizavam e chegou a conclusões objectivas de que o homem é dotado de três corpos, que são:

a) o corpo animal ou material mencionado por Paulo, que é o corpo orgânico sujeito à destruição pela morte;

b) o corpo espiritual referido por Paulo, que Kardec verificou ter uma constituição semi-material, com energias espirituais e materiais em mistura, destinado a ligar a alma ao corpo e a servir à ressurreição logo após a morte; esse corpo não está sujeito à morte material, mas à transformação após a morte para servir na ressurreição, e sujeito à destruição por abusos do espírito no plano espiritual inferior e às modificações exigidas por futura reencarnação, para se adaptar a novas formas e a novas determinações genésicas e hereditárias;

c) o corpo espiritual superior, desprovido de matéria, em que o espírito, livre daquele envoltório, vive a vida eterna de que falam as religiões; esse corpo é inacessível à nossa percepção, a não ser como uma centelha etérea, segundo a expressão Kardeciana; é o corpo natural do espírito no seu estado de pureza espiritual e só pode ser usado pelas entidades que atingiram a finalidade das reencarnações, deixando o plano da erraticidade.

A trindade humana, constituída de EspíritoPerispírito e Corpo, realiza assim a transformação de que trata o Apóstolo Paulo, atingindo a síntese suprema da evolução nos corpos inferiores. Dessa maneira, o corpo espiritual superior reflecte na sua estrutura angélica real e indestrutível:

a) A Trindade Universal de Deus, Espírito e Matéria;

b) A Trindade doutrinária de Ciência, Filosofia e Religião.

São essas as duas Trindades Superiores, referentes à concepção do Cosmos e à concepção da Doutrina Espírita.

Temos assim a comprovação, no mais alto plano da realidade espiritual, do princípio doutrinário enunciado em O Livro dos Espíritos: Tudo se encadeia no Universo.

Por outro lado, essa comprovação da eterna sequência das coisas e dos seres revela-nos a integração do Espiritismo na realidade cósmica, na correspondência perfeita da Realidade Total com a fragmentária realidade parcial das coisas finitas e dos seres perecíveis, que na verdade não perecem nunca, passando apenas pela lei universal da metamorfose, que a tudo impulsiona sem cessar nas linhas ascensionais da transcendência. Ela nos revela, também, a perenidade da Doutrina Espírita cujas marcas, segundo Kardec, são encontradas em todas as fases a-históricas e históricas da evolução terrena.

Esta concepção cósmica do Espiritismo, que ressalta dos textos de Kardec, como vimos, confirma a Doutrina das Ideias, de Platão, que nos apresenta o mundo fragmentário da matéria como reflexo estilhaçado da Realidade Superior, una e perfeita na Mente de Deus. Platão é o reflexo do pensamento de Sócrates, e Kardec considerou a ambos como precursores da Ideia Cristã. Na actualidade temos a mesma confirmação no rápido e espantoso desenvolvimento da Ciência terrena, que comprovou no nosso tempo a realidade do Espiritismo com a descoberta dos fenómenos paranormais, da plenitude do Universo (onde o nada não existe e o nada não é nada, segundo a expressão de Kardec), a existência das múltiplas dimensões da Realidade, na natureza subjectiva e portanto espiritual do homem na existência, a descoberta tecnológica do perispírito (corpo bioplásmico), a interpenetração dos mundos num mesmo espaço, o poder assombroso do pensamento, a possibilidade de invasão do Cosmos por naves e astronautas e assim por diante.

A luta contra a realidade, na defesa de ilusões teológicas e ideológicas, não cessou e até mesmo se acirrou. Recursos escusos do meio científico, do campo religioso e de certos Estados, cujas estruturas política e social repousam em pressupostos do século passado, são mobilizados contra essas conquistas, num desesperado anseio de diminuir-lhes o alcance e a significação. Na URSS e sua órbita a questão é de sufocar a qualquer custo todas as possibilidades científicas que se oponham ao materialismo de Estado. Nos Estados Unidos e outras potências ocidentais são os interesses políticos e eleitorais que se mobilizam na defesa dos interesses religiosos de igrejas e seitas retrógradas, apegadas a princípios arcaicos, envelhecidos de quatro a seis mil anos, para asfixiar ou minimizar as novas descobertas. Chega-se ao ponto, em instituições científicas ou para-científicas, de tentar encobrir a realidade do plasma físico, de que se compõe o corpo bioplásmico, com o frágil disfarce do efeito corona. Os valores falhados dos dogmas religiosos e os interesses materiais imediatos dos clérigos e dos seus rebanhos fanáticos são super-postos à verdade crua e ardente das pesquisas científicas, para salvaguarda das estruturas simoníacas das instituições religiosas, em que dormem à tripafórra os devoradores de dízimos estabelecidos pelos rabinos judeus no Templo de Jerusalém, numa civilização agrária e pastoril. A estrutura do Estado é também ameaçada pelo fantasma de matéria radiante do corpo bioplásmico, que afecta poderosos interesses criados, tradições invioláveis, a glória de messias e profetas que descobriram tábuas de ouro nas montanhas provando que o Cristo pregou em terras da América, semeando verdades mirabolantes para os apaches de cara pálida e os fogosos peles-vermelhas de penachos coloridos.

Este quadro grotesco da realidade mundial no nosso tempo não precisa de pinceladas à Van Gogh para torná-lo mais forte e impressionante. Basta a sua realidade nua para mostrar a rede de mentiras em que caímos no passado, com as falsas culturas religiosas que, nascida das entranhas do paganismo ingénuo, da idolatria supersticiosa e do fabulário mitológico, se revigorou nas estruturas sócio-económicas do profissionalismo religioso.

As mesmas forças que se opuseram, de maneira agressiva e violenta, ao desenvolvimento das pesquisas científicas no Renascimento, continuam a agir, agora de maneira mais subtil e por isso mais profunda, mais penetrante e ameaçadora, contra o avanço e desenvolvimento da Ciência no nosso tempo. Claro que essa batalha inglória será vencida pela simples evidência da realidade, que nunca pediu nem pede licença aos homens para aparecer e impor-se. Mas essas forças retrógradas conseguem retardar a libertação do homem, num mundo em que a maioria absoluta da população não tem possibilidade de penetrar nos segredos da Ciência, nem tempo disponível para tentar essa façanha, permanecendo à margem da cultura do século e por isso mesmo obrigada a contentar-se com as crenças e superstições de um passado remoto.

A constituição semi-material do perispírito, segundo Kardec, foi confirmada pela descoberta russa de que o corpo bioplásmico é formado de plasma físico. Para os russos, isso seria uma prova favorável à ideologia do Estado, mas a prova seguinte, de que esse corpo sobrevive à morte do corpo, escapando às possibilidades tecnológicas de sua captação visual ou fotográfica, incidiu na condenação materialista, por atentar contra o dogma do homem-pó. É essa a mais espantosa contradição do nosso século. A própria potência que enviou à órbita da Terra o primeiro Sputnik e tanto exalta o poder do homem, negando a existência de Deus, nega ao homem e à sua personalidade, a sua inteligência criadora, o direito que a Ciência concede a todas as coisas e seres: o da continuidade de após o acidente natural da morte. Tudo morre e renasce, menos o homem, a mais complexa e perfeita organização psico-biológica, com o mais poderoso cérebro e a mais penetrante das mentes.

A ojeriza (*) materialista é contra a teoria da sobrevivência individual. Tudo morre e renasce, segundo eles, revertendo-se ao pó para novas elaborações ocasionais. Os valores espirituais ficam na dependência exclusiva dos caprichos de algum alquimista medieval que nunca morreu. Não obstante, sustentam a teoria da evolução contínua, incessante e criadora, que o homem pode controlar. Há tantas contradições nas doutrinas religiosas do mundo, quanto nas doutrinas materialistas. Por isso, onde uma delas domina, os cientistas e pensadores sinceros e objectivos, que buscam a realidade, experimentam no nosso século as mesmas discriminações, condenações e expurgos. A realidade da sobrevivência individual do homem, provada na Universidade de Kirov, deslumbrou os seus descobridores e revelou as possibilidades inesperadas que pode abrir para a evolução terrena, mas os comissários do povo, agindo contra a vontade generalizada de um povo de intensa e profunda tradição espiritual, rejeitaram a descoberta em nome do povo. Mas a verdade é que a explosão mediúnica no mundo não pede licença a comissários, nem a padres, pastores ou cientistas para continuar a existir.

A luta do homem para vencer a sua esquizofrenia, restabelecendo a unidade do espírito perante a realidade material do mundo, vem das selvas aos nossos dias. A razão humana, servida pela experiência, venceu os conflitos do caos aparente da Natureza e estabeleceu as conexões necessárias entre não física e a realidade física para dominar o caos. Todas as filosofias e todas as ciências se desenvolvem nesse sentido, mas o chamado Materialismo Científico ergueu a sua barreira, juntamente com a barreira teológica – ambas formadas de dogmáticas exclusivistas – para impedir a ferro e fogo que o homem alcance o real. Hoje, para que a verdade se estabeleça na cultura humana, é necessário que o Espiritualismo formalista e o Materialismo Científico se neguem a si mesmos, revertendo-se na síntese hegeliana de uma cultura objectiva e aberta.

Ernst Cassirer, no seu ensaio sobre A Tragédia, da Cultura, cujo desenvolvimento superou a capacidade humana de dominá-la, esqueceu-se deste problema fundamental que Kardec já havia colocado há mais de um século. A grande tragédia cultural do nosso tempo não é o acúmulo cada vez maior de conhecimentos e a atomização das especialidades, mas a impossibilidade material de vencer as barreiras dogmáticas, cada vez mais reforçadas pelos interesses criados nos dois campos dogmáticos.

Os três corpos do homem têm funções gerais e específicas, desdobrando-se em planos sucessivos de manifestação, a partir do contexto humano. Vejamo-los nesse encadeamento em que eles parecem um foguete espacial, indo da Terra ao Infinito, no abandono sucessivo dos estágios inferiores:

a) o corpo material é o que define, na concepção terrena, o que geralmente se considera como a condição humana. Provindo da evolução animal, Paulo teve razão em chamá-lo corpo animal. Todo o seu sistema psico-biológico é a resultante do processo evolutivo terreno. Todos os seus instrumentos de captação da realidade funcionam em ritmo de estímulo e resposta. A sua razão constitui-se de categorias formadas na experiência. Não obstante, o seu espírito supera esse condicionamento através de percepções extra-sensoriais, de intuições imediatas e globais de um conjunto gestáltico que vai arrancando-o do imediatismo vivencial para lançá-lo no plano existencial consciente. A organização animal do corpo é mantida e dominada pelo espírito, onde razão e consciência se desenvolvem paralelamente. A evolução de um homem verifica-se pelo desenvolvimento da razão e da consciência num plano superior de critério cada vez mais espiritualizado. O homem se liberta de suas raízes animais e prepara-se para a transcendência. Frederic Myers, psicólogo inglês dos fins do século passado, considera que o inconsciente humano é uma segunda consciência, a que chama de subliminar. Enquanto a consciência subliminar detém as faculdades necessárias à vida terrena, a consciência supra-liminar auxilia aquela, através de emersão de ideias, sensações profundas e intuições, a desenvolver-se no plano extra-sensorial. É da consciência supra-liminar que provêm as captações extra-sensoriais. É nela que encontramos a fonte da genialidade e dos fenómenos paranormais. Essa consciência pertence ao perispírito.

b) O perispírito, corpo espiritual ou corpo bioplásmico, possui, na sua estrutura extremamente dinâmica, os centros de força que organizam o corpo material. É o modelo energético previsto com grande antecedência por Claude Bernard. Os pesquisadores russos compararam esse corpo, visto através das câmaras Kirlian de fotografia paranormal, em conjugação com o telescópio electrónico de alta potência, a um pedaço de céu intensamente estrelado. Esse é o corpo da ressurreição espiritual do homem, dotado de todos os recursos necessários para a vida depois da morte. Esse corpo de plasma físico e plasma espiritual vai perdendo os seus elementos materiais na vida espiritual, na proporção exacta da evolução do espírito. Nas pesquisas russas verificou-se que, na produção de fenómenos mediúnicos de movimentação de objectos sem contacto, levitação e transporte, o elemento empregado é o plasma, o que confirma as pesquisas de Richet e de Notzing sobre o ectoplasma. Essa é uma das razões por que esses fenómenos só são produzidos por Espíritos inferiores, que Kardec comparou a carregadores do espaço ao serviço de entidades superiores. Os exames de porções de ectoplasma em laboratório revelam apenas a constituição física do mesmo. O elemento mais importante e vital do ectoplasma é a energia espiritual, que não permanece nas porções colhidas pelos pesquisadores. Nesse corpo, segundo os pesquisadores russos, as condições de doença e saúde e a previsão de doenças nas plantas, nos animais e no homem são feitas com grande precisão através das variações de cores do plasma e um sistema de sinais coloridos ainda em estudo.

c) O corpo espiritual superior destina-se à vida nos planos mais elevados do Mundo Espiritual. Não se pode considerá-lo como um instrumento de comunicação, pois constitui-se do próprio espírito na sua exterioridade natural. Kardec assinala que esses Espíritos Puros não têm mais nada com a matéria, nem a matéria os afecta. Mas como têm forma e são criaturas humanas elevadas ao máximo grau da perfeição espiritual que os homens podem atingir, o seu corpo é de luz. Na verdade, não dispomos de palavras nem de ideias para imaginá-los ou descrevê-los. No seu plano superior não veríamos nem sentiríamos nada. No tocante a eles, a pesquisa de Kardec reduziu-se a diálogos com os seus instrutores. Por outro lado, socorreu-se da lógica, como sempre fez, para dar as informações que encontramos na Escala Espírita.

Kardec considera esses Espíritos Puros como os Ministros de Deus, através dos quais a administração de toda a Realidade Cósmica se processa em todos os sentidos. Quando nos conhecermos a nós mesmos, segundo a recomendação do Oráculo de Delfos a Sócrates, poderemos imaginar o que são essas criaturas e como vivem e agem no Inefável, segundo a concepção pitagórica. Antes disso, é inútil nos esforçarmos para defini-las. Só com o desenvolvimento de toda a nossa perfectibilidade possível, como queria Kant, conseguiremos obter os parâmetros capazes de nos dar uma pálida visão dessa vida superior. Kant referia-se à perfectibilidade possível na vida terrena. Acima desta existem os planos espirituais progressivos e, depois deles, o plano da Angelitude, que é precisamente o dos Espíritos Puros.

Não podemos atrever-nos a solucionar esse problema, cujos dados nos escapam. Há questões que não podem ser tratadas no nosso estágio evolutivo. Mas já é importante possuirmos algumas informações provindas de entidades que passaram pelos testes rigorosos de Kardec. O Espírito Puro é para nós uma abstracção, como abstracção também é a Matemática, de que nos servimos para medir e pesar o mundo. O que precisamos evitar, no estudo dos corpos do homem, é o fascínio da imaginação, que costuma levar-nos além de toda a realidade possível.

Várias instituições espiritualistas do mundo criaram complicadas teorias sobre os corpos do homem, chegando a dar-lhes o número atordoante e cabalístico dos véus de Isis. No próprio movimento espírita, que devia aprofundar o conhecimento da sua própria doutrina, ainda tão mal conhecida e pior compreendida, pretensos mestres introduziram conceitos estranhos sobre esse problema. Kardec negou-se a estas fascinações do maravilhoso, lutou para afastar da mente humana os resíduos mágicos do passado, dando à Doutrina Espírita a clareza positiva da Ciência, sempre apoiado na razão e na pesquisa. O seu esquema tríplice dos corpos do homem é uma síntese luminosa de todos os esforços da Humanidade para compreender essa questão de importância fundamental. Não podemos deixar-nos levar pela vaidade ingénua e fátua de aparecer como sábios perante as multidões incultas, vangloriando-nos como pavões do colorido fictício da nossa plumagem. O Espiritismo busca a verdade pura, que é sempre simples, pois não necessita de visagens para impor-se às mentes perquiridoras e sensatas. Deixemos de caudas brilhantes fascinando os imaturos e tratemos de amadurecer no exame objectivo da realidade acessível ao nosso conhecimento imediato. Aprendamos a distinguir a pureza lógica do Espiritismo das fábulas religiosas e espiritualistas que se cevam, através dos milénios, no gosto do homem pelo maravilhoso. Não há maravilha maior do que a da Obra de Deus na sua realidade pura. Qual o fabulário mitológico que pode sobrepor-se ao mistério e à beleza de um só microscópico sistema solar atómico ou de uma folha verdejante de relva brotando entre as pedras da calçada? O tempo das figurações simbólicas já passou, para a Humanidade Terrena, como a dos Contos da Carochinha já passou para as crianças de hoje. Elas mesmas, as crianças, exigem a verdade das coisas naturais em substituição às fantasias imaginosas do passado. Os espíritas não têm o direito de menosprezar as lições do Espírito de Verdade, ministradas por Kardec, em favor de mentiras ridículas que vão buscar poeira de civilizações mortas, cujo próprio desaparecimento atesta que se esgotaram no tempo. Tenhamos a humildade de nos contentar com os nossos três corpos, ao invés de buscarmos em ruínas milenares os corpos das múmias faraónicas soterradas na areia. Estudemos o nosso passado de ilusões e atrocidades para nos corrigirmos no presente, mas não tentemos colocá-lo acima da realidade límpida e positiva que o Espiritismo nos proporciona.

/…
(*) Sentimento de má vontade, aversão, antipatia gerado pela intuição, por uma percepção, um ressentimento.


José Herculano Pires, Curso Dinâmico de Espiritismo, XIV – Os três corpos do homem, 14º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Somos as aves de fogo por sobre os campos celestes, acrílico de Costa Brites)

domingo, 29 de dezembro de 2019

agonia das religiões ~


A Dúvida e A Certeza

A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão. Quando o pensamento se lança na busca de um objecto e depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto Empírico a dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a condição primeira da busca da verdade, considerando-a como uma suspensão do juízo para se verificar se ele está certo ou errado. Para John Dewey a dúvida nasce de uma situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que iniciou a filosofia moderna com a prática da dúvida metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades ao pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram por condená-la como de origem diabólica. A frase de Tertulianocredo quia absurdum (creio mesmo que absurdo) teve um curso longo no combate às heresias. Como os dogmas eram considerados de origem divina, pontos fundamentais da revelação feita por Deus aos homens, estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os dogmas fossem aparentemente absurdos.

Ainda hoje, essa posição é, comum em numerosas seitas e religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a sabedoria humana é loucura para Deus, como Paulo afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controlo das manifestações mediúnicas e do estudo dos princípios doutrinários. Tendo mostrado que os espíritos são criaturas humanas desencarnadas, libertas do corpo material pela morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar ainda opiniões erradas que defendiam na Terra, aconselha a análise constante e o exame atencioso das manifestações, que devem ser rejeitadas quando revelarem conceitos absurdos.

A crítica torna-se, assim, elemento básico da filosofia e da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida por pessoas que tenham condições de cultura e bom senso para criticar. Descartes afirmou que o bom senso é a coisa mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o emprego do bom senso depende da boa orientação do entendimento. Kardec dá, em toda a sua obra, instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e aconselha a consulta, em casos de dificuldade, de pessoas reconhecidamente capazes de resolver problemas com lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo pode ser apreciado e discutido em termos de bom senso ou boa razão. Descartes aconselhava a se evitarem dois elementos perigosos ao raciocínio, que são o preconceito e a precipitação. Kardec acrescenta a necessidade de vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas cultas ou incultas a se considerarem capazes de reformulações doutrinárias com base apenas nas suas opiniões pessoais.

Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles, como regra para a aceitação de revelações espirituais, não o fez no sentido aristotélico do termo, mas no sentido espiritual, com o nome de consenso universal. A aplicação desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou da opinião das gentes como verdade, mas apenas a coincidência de manifestações mediúnicas sobre os mesmo tema, para médiuns diversos, desconhecidos entre si, em locais diversos e ao mesmo tempo. É esse um meio de controlo a ser usado sob as condições de verificação racional do tema e de confronto do mesmo com os conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura geral. Levantou, assim, uma barreira à autoridade individual de um médium isolado que, por mais famoso e seguro que tenha sido nas suas actividades, nem por isso está livre de se deixar empolgar por ideias erróneas. De um critério de verdade que era evidentemente de natureza opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente válida para facilitar o uso do bom senso pelos espíritas.

A necessidade de certeza na orientação do conhecimento, num mundo em que tudo se passa no plano das relações, exige um critério científico de avaliação dos dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-a ao controlo da razão, Kardec não violentou a intenção dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o estimularam nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena atingira a maturidade suficiente para se libertar do ciclo de revelações pessoais e locais, dadas sempre de maneira mística, através de um mestre, profeta ou Messias, numa determinada região e a um determinado povo. A última dessas revelações havia sido a do Cristo, que apesar de pessoal e local já se abria ostensivamente para a universalidade, escandalizando os judeus apegados a um sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova de sua evolução; as civilizações isoladas deviam fundir-se através de processos mais amplos e eficientes de comunicação; o mundo greco-romano chegava ao fim objectivado pelo seu desenvolvimento; um longo e doloroso processo de fusão das suas conquistas no campo do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade deveria iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade Média, segundo a concepção de Dilthey. Essa fusão resultaria na Idade da Razão com o Renascimento, preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da Tecnologia, que levaria o mundo a um progresso cada vez mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia nirvânica as grandes civilizações orientais e obrigando-as a seguir os padrões ocidentais. Era necessário que a passividade mística, fosse substituída pela actividade racional, na luta dos homens em busca da compreensão de suas próprias responsabilidades, na direcção da vida humana.

Cumprida essa programação, a Terra já estava, em pleno século XIX, em condições de receber as luzes renovadoras de uma doutrina de unificação espiritual, capaz de guiá-la aos objectivos mais elevados da sua integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo, com as crises ameaçadoras de uma fase de transição acelerada, e portanto violenta, perguntam se não estamos errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo. Realmente, a Terra não parece ainda preparada para o salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos notar, ao longo da História, que a técnica divina parece apoiar-se num princípio de tensão-máxima para nos fazer avançar. A preguiça humana, a tendência à acomodação, o apego à vida como ela é, só podem ser removidos por meios compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado contra os vendilhões que o transformam em mercado, que não pensam em Deus mas apenas no dinheiro. Só pelo impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para encontrar a vida em abundância de que Jesus falou. Os anos, os séculos, os milénios passam rápido na direcção da eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não nos forçassem a buscar com maior rapidez os objectivos reais da nossa existência.

Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso não converteu o Espiritismo numa nova religião estática, segundo o conceito de Bergson, mas ligou-o a todos os campos da cultura para que possa agir como uma religião dinâmica, aquela religião em espírito e verdade de que Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão nenhuma para que a religião continue como um departamento estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos, marginalizada no campo cultural em favor de interesses sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e deve integrar-se nela em plenitude. Os seus princípios não podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, o Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que agora está sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das ciências da matéria. Chegámos tarde à complementação do fiat da criação, mas estamos agora no momento em que o espírito se liga à matéria no campo das concepções humanas.

certeza, no nosso mundo, nunca pode ser absoluta. É também relativa, mas corresponde ao máximo possível de exactidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo do conhecimento. Não poderíamos ficar no terreno das hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos tão graves como a origem do homem, a sua natureza íntima e o seu destino no sistema cósmico. Kardec, à maneira de Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento religioso. Os fenómenos espíritas, como ele mesmo observou, estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a sua capacidade científica, relutou a princípio – pois duvidara da veracidade desses fenómenos – mas acabou aceitando o convite para assistir a uma experimentação. Ali constatou a realidade, mas não aceitou a sua interpretação espiritual. Procurou explicar a chamada dança das mesas como possível efeito de forças conhecidas: a electricidade, a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante. Mas não ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. O seu encontro com as meninas da família Boudin, uma de 14 e a outra de 16 anos, médiuns excelentes, permitiu-lhe uma série de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu todo o texto de “O Livro dos Espíritos”. Pelas mãos dessas duas jovens nasceu o Espiritismo. E renasceu Allan Kardec, o druida das Gálias antigas, para substituir o Prof. Denizard Rivail (o seu nome verdadeiro) o discípulo emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no desenvolvimento da sua Pedagogia Filantrópica. Dali por diante, durante 15 anos, as pesquisas prosseguiram, 12 anos na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, por ele fundada e dirigida. Nesse período de 15 anos Kardec elaborou os cinco volumes da Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à doutrina, um manual de introdução à prática mediúnica, numerosos artigos para a imprensa e os doze volumes da Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada volume.

Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações em Obras Póstumas. E a sua conduta de pesquisador foi louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do século, que discordava das conclusões de Kardec mas reconheceu, no seu Tratado de metapsíquica, o valor do homem que iniciara as Ciências Psíquicas na França e no Mundo. Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica da sobrevivência do homem à morte corporal. Richet fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenómenos espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos comprovariam a sua descoberta mas não ficariam no meio do caminho. Avançariam como Crookes, Notzing, Zollner, Ochorowicz, Geley, Osty, Aksakov, até à certeza final de Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da imortalidade. Dali em diante, os que pretendiam reduzir o homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar – até mesmo nas religiões – contra a maior e mais fecunda certeza científica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram todas as ciências do paranormal, até a Parapsicologia contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda continuam, nos nossos dias, diante da evidência fulminante das últimas descobertas científicas – físicas, biológicas, psicológicas e astronáuticas –, a insuflar com as suas bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida anti-metódica. Fingem não perceber que esse fantasma é um balão furado com o pavio queimado.

A superação da dúvida no Espiritismo não se fez através dos métodos subjectivos da meditação religiosa e do êxtase místico, mas do método científico de pesquisa. Foi o que Richet reconheceu e louvou em Kardec, como se vê logo no início do seu Tratado de Metapsíquica. Integrado na tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI, com a revolução cientifica de Bacon e Descartes, Allan Kardec encarou o problema espiritual de maneira objectiva e, numa posição tipicamente existencial, criou o método apropriado à pesquisa dos fenómenos espíritas. Ao contrario do que alegam até hoje os seus contraditores, demonstrou de maneira exaustiva que os fenómenos espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário para a confrontação dos resultados experimentais, como os grandes cientistas da época iriam comprovar logo em seguida e como as pesquisas parapsicológicas actuais uma vez mais comprovaram e demonstraram.

Essa subversão metodológica no campo do conhecimento espiritual, até então submetido aos princípios da fé, despertou violenta reacção que ainda hoje não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-se a Deus através da indução lógica, desprezando os processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar o espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade, sustentando que a alma nada mais era do que o espírito que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicação da Génese que incluía a criação do homem por Deus como um facto natural, dialecticamente explicável. A morte perdia o aspecto misterioso alimentado pelas religiões, os videntes e profetas eram considerados como criaturas em que uma faculdade humana natural, a mediunidade, se havia desenvolvido de maneira mais intensa.

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações místicas – levaram Kardec à descoberta científica da natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente o levaram, foi dada posteriormente pelas pesquisas científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações materiais, por cientistas modernos que alargam a dimensão das Ciências. É assim que a dúvida sobre a continuidade da vida, após a morte, foi vencida pela certeza no campo das investigações espíritas. As religiões que ignorarem este facto culminante da evolução humana na Terra acabarão asfixiadas, por falta do oxigénio da verdade, nos seus círculos estreitos de fanatismo e exclusivismo. Não há somente crise nas religiões, há sinais evidentes de agonia.

/…


José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 9 – Dúvida e Certeza, 10º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

sábado, 14 de dezembro de 2019

~ em torno do mestre


Conversão ~

"Em verdade vos digo que se não vos converterdes e não vos fizerdes como crianças, de modo algum entrareis no reino de Deus." 
(Mateus, 18:3.)

Jesus, dirigindo as palavras supracitadas aos seus apóstolos, fazia-lhes ver da necessidade em que eles se encontravam de se converterem.

Mas, então, não seriam convertidos todos aqueles que acompanhavam o Mestre, ouvindo-lhe os ensinamentos, edificando-se nas suas exemplificações brilhantes? Não seriam convertidos todos aqueles que foram escolhidos pelo mesmo Jesus para seus colaboradores? Este caso merece ser ponderado. Dele ressalta uma edificante lição, digna do nosso maior acatamento.

Converter-se não importa tão-só abraçar este ou aquele credo religioso, nem tão-pouco em se filiar a esta ou àquela igreja, aceitando determinado corpo de doutrina qualquer. O incrédulo pode tornar-se crente sem que se verifique com isso um caso de conversão.

Converter significa transformar. Onde não há transformação, não há conversão. Quanto mais acentuada for a transformação, tanto mais positiva será a conversão. Se essa transformação for tão grande, ao ponto de se não reconhecer o objecto primitivo, podemos afirmar que se trata de um verdadeiro caso de conversão.

Na natureza, transformar quer dizer melhorar. "Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"; isto é, tudo sobe, tudo levita. Crescei e multiplicai — sentença aplicada à criação dos seres — tem sentido espiritual que não deve ser desprezado. "Para a frente e para o alto — tal é a legenda inscrita em cada átomo do Universo."

A conversão é um fenómeno vital de transformação constante para melhor. Tal fenómeno realiza-se tanto no plano físico quanto no moral, Os reinos da Natureza entrelaçam-se em movimento ascensional de contínuas transformações. O espírito progride, melhora e se aperfeiçoa através de ininterrupta série de conversões.

Saulo transforma-se em Paulo, Simão em Pedro, Magdala em Maria. O carácter destas personagens sofreu tal modificação que se tornaram o oposto do que eram. O fanatismo perigoso de Saulo, a fraqueza perniciosa de Simão e a voluptuosidade desenfreada de Magdala converteram-se na tolerância e no sacrifício de Paulo, na firmeza heróica de Pedro e na espiritualidade angélica de Maria. Tais são os tipos genuínos de convertidos.

Conversão importa também em valorização. Objecto convertido é objecto valorizado. O escultor toma um bloco de pedra bruta, um tronco tosco ou mesmo um punhado de argila e converte-os em belas estátuas onde refulgem os primores da arte. É incalculável o valor que o estatuário imprime, por efeito de conversão, àqueles materiais obscuros.

Qual o cálculo possível entre o valor do calcário, antes e depois de ser a Vénus de Milo ou o Discóbolo? E os gramas de tinta antes e depois de serem convertidos em quadros de Miguel Ângelo ou de Velásquez? Entretanto, um exame químico demonstrará tratar-se da mesma substância.

O mesmo acontece com o homem, antes e depois da sua conversão. O carácter se forma e consolida através da obra da conversão, obra que uma vez iniciada jamais deixa de prosseguir o seu curso eficiente de embelezamento e de valorização. O homem velho vai sendo absorvido pelo homem novo: é o renascimento espiritual que se opera.

De tal sorte, é possível voltar ao estado de inocência primitiva, conforme disse Jesus: "Se não vos converterdes, e não vos fizerdes como crianças, não entrareis no reino de Deus." A inocência revela-se sob dois aspectos distintos: a ignorância do mal e, a vitória do bem. A primeira forma é o estado da criança; a segunda representa a condição do justo.

A criança é inocente, porque desconhece o pecado; o justo é inocente, porque adquiriu a virtude. A inocência da criança é fruto da insipiência. A inocência do santo é filha da sabedoria.

Esta permanece, aquela passa. A transição de uma, para a outra espécie de inocência, é a maravilha da conversão. Sem conversão, portanto, ninguém logrará o reino de Deus.


Coragem moral ~

Um dos requisitos exigidos por Jesus, como condição indispensável àqueles que pretendessem seguir-lhe as pegadas, é a coragem moral.

Eu vos envio, disse ele aos discípulos, como ovelhas no meio de lobos. Esta frase é bastante eloquente e, por si só, define muito bem a posição dos cristãos na sociedade do século.

"Sereis entregues aos tribunais por minha causa. Suportareis perseguições, açoites e prisão. Haverá delações entre os próprios irmãos. Atraireis o ódio de todos. A vossa vida correrá risco iminente a cada instante.

"Todavia, não temais, pois até os cabelos de vossas cabeças estão contados. Nenhum receio deveis ter dos homens, cujo poder não vai além do seu corpo. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos. Portanto, nada de temores: o que vos digo à puridade proclamai-o dos eirados. Nada há encoberto que não seja descoberto; nada há oculto que se não venha a saber. Por isso, aquele que me confessar diante dos homens, eu o confessarei diante de meu Pai celestial; e o que me negar diante dos homens, eu o negarei perante meu Pai que está nos céus."

Tais expressões são de clareza meridiana. Para ser cristão, é preciso coragem, ânimo forte, atitude varonil. "Seja o teu falar: sim, sim; não, não". (Mateus, 5:37.) Não há lugar para composturas dúbias, indecisas, oscilantes. O crente em Cristo deve possuir convicção inabalável, têmpera rija, carácter positivo e franco.

Entre as virtudes, não há incompatibilidades. A mansuetude, a cordura e a humildade são predicados que podem (e devem) coexistir com a energia, com a intrepidez, com a varonilidade. Deus é infinitamente misericordioso e, ao mesmo tempo, é infinitamente justo.

O carácter do cristão há de ser forjado de aço de Toledo e de ouro do Transvaal. Assim disse Amado Nervo"Ouro sobre aço sejam a tua vontade e a tua conduta. Sobre o aço do teu pensamento há de luzir o arabesco de ouro das formas puras e gentis. Ouro e aço será a tua vida, serão os teus propósitos, serão os teus actos."

Abulia, indiferença e marasmo não são expressões de bondade. "Não és frio, nem quente; por isso, quero vomitar-te de minha boca." Passividade não é virtude. Entre o bem e o mal, a verdade e a impostura, a justiça e a iniquidade não há lugar para acomodações, nem para neutralidade. O cristão define-se sempre em tais conjunturas, confessando o seu Mestre. "Ninguém pode servir a dois senhores." Que relação pode haver entre Jesus e Baal? Dobrar os joelhos diante de todos os tronos, só porque são tronos; curvar-se perante todos os Césares, só porque são Césares; afazer-se às tiranias e às opressões, anuir directa ou indirectamente às tranquibérnias e vilezas da época; pactuar, enfim, com a injustiça de qualquer maneira e por quaisquer motivos, é negar a Jesus-Cristo no cenáculo social. "Não sejais escravos dos homens, nem das paixões; não sejais, igualmente, nem parasitas, nem bajuladores, nem mendigos" — disse o grande educador Hilário Ribeiro num dos seus excelentes livros didácticos. Não se triunfa na vida, sem ânimo viril. É a covardia moral que faz o homem escravizar-se a outros homens; que o faz escravo de vícios repugnantes e de paixões vis e soezes. É ainda por pusilanimidade e covardia que o homem bajula, mendiga e se torna parasita.

Sem boa dose de coragem (quase ia dizendo de audácia), o homem não cumpre o dever e menos ainda consegue sair-se airosamente das emergências difíceis da vida. O suicídio, seja por este ou por aquele motivo, é sempre um acto de covardia moral. A sentinela valorosa jamais abandona o posto que lhe foi confiado.

Os altos problemas da Vida, consubstanciados na sentença evangélica — Sede perfeitos como vosso Pai celestial é perfeito — requerem ânimo forte e vontade irredutível para serem solucionados. Não é fugindo aos perigos e às dificuldades que o homem há de vencê-las; é enfrentando-as.

coragem moral é a primeira virtude do homem de fé. Cumpre, porém, não confundir a verdadeira coragem com as caricaturas de coragem, que se ostentam por toda a parte. Estas são burlescas e vulgares, aquela é rara e cheia de nobreza. A coragem não consiste em atitudes violentas e belicosas. Nada tem de comum com a temeridade. É serena e íntima. Não se ostenta em bracejos, ou gesticulações espectaculosas, nem em vozeios e frases ameaçadoras e ofensivas. Revela-se antes em suportar, dó que em repelir a ofensa recebida. Energia não significa agressividade. Ser franco não é ser ferino, nem, sequer, contundente.

Quanto maior é a coragem, tanto mais calmo age o indivíduo. A consciência do valor próprio, aliada à fé no Supremo Poder, fez o homem tolerante e sofrido, paciente e tranquilo. Tal foi a atitude invariável de Jesus diante das conjunturas mais embaraçosas de sua vida terrena. Suportou todas as injúrias, todas as humilhações e iniquidades que lhe foram infligidas, conservando imaculada e intangível a pureza do alto ideal por que se bateu até ao extremo sacrifício.

Tal é a coragem de que precisam revestir-se os seus discípulos de hoje, como souberam fazer os discípulos do passado.

Saulo, antes de ser Paulo, não denotou coragem nenhuma perseguindo, aprisionando e consentindo no assassínio dos primeiros adeptos do Cristianismo nascente.

Saulo tinha às suas ordens gendarmes municiados; as altas autoridades civis e eclesiásticas lhe conferiam poderes discricionários. Os perseguidos eram párias sociais, sem protecção, pobres e desarmados. A atitude de Saulo era daquelas que confirmam o velho brocardo: Quer conhecer o vilão? Ponha-lhe nas mãos o bastão.

Após o célebre dia de Damasco, em que Saulo se transformou em Paulo, a vilania daquele se converteu na coragem moral deste. De algoz, passou a ser vítima. A seu turno perseguido, tendo agora contra si as armas e o rancor das autoridades detentoras do poder; correndo os maiores riscos, suportando prisões e açoites, afrontando a morte a cada momento, Paulo caminha intrépido e destemido, na defesa da causa santa da justiça e da liberdade personificadas no credo de Jesus.

O extraordinário Apóstolo das gentes oferece-nos, em si mesmo, exemplos da falsa e da legítima coragem, antes e depois da conversão.

Convertamo-nos, pois, nós os espíritas, os neo-cristãos, como se converteu Paulo.

Provemos em nós mesmos, com a transformação radical de nosso carácter, a eficiência e o poder de Jesus-Cristo, como redentor da Humanidade, como libertador do homem, mediante o exemplo de coragem moral que nos legou como herança preciosíssima.

/...

"Aos que comigo crêem e sentem as revelações do Céu, comprazendo-se na sua doce e encantadora magia, dedico esta obra."
                                                                                 Pedro de Camargo “Vinícius”


Pedro de Camargo “Vinícius” (i)Em torno do Mestre, Primeira Parte / Seixos e Gravetos; Conversão / Coragem moral, 7º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Jesus em casa de Marta e Maria, óleo sobre tela (1654-1655), pintura de Johannes Vermeer)

domingo, 1 de dezembro de 2019

Hippolyte Léon Denisard Rivail


Sr. Home
(primeiro artigo)

Os fenómenos realizados pelo Sr. Home produziram tanta sensação como vieram confirmar os maravilhosos relatos chegados do outro lado do mar, a cuja veracidade se ligava uma certa desconfiança. Mostrou-nos ele que, colocando de lado a maior margem possível devida ao exagero, ainda ficava o bastante para atestar a realidade dos factos que se cumpriam fora de todas as leis conhecidas.

Tem-se falado do Sr. Home e, de diversas maneiras; pensamos que seria exigir demais, que toda a gente lhe fosse simpática, uns por espírito de sistema, outros por ignorância. Queremos até admitir, nestes últimos, uma opinião conscienciosa, visto que por si mesmos não puderam constatar os factos; mas se, em tal caso, é permitida a dúvida, uma hostilidade sistemática e apaixonada é sempre inconveniente. Em toda a relação de causa, julgar o que não se conhece é falta de lógica e, difamar sem provas é esquecer as conveniências. Façamos por um momento, abstracção da intervenção dos Espíritos ao ponto de não vermos nos factos relatados, senão apenas simples fenómenos físicos; merecendo tanto mais atenção quanto mais estranhos forem. Então, explicai-os como quiserdes, mas não os contesteis a priori, se não quiserdes que ponham em dúvida o vosso julgamento. O que deve espantar, o que nos parece ainda mais anormal que os próprios fenómenos em questão, é ver esses mesmos que debateram, sem cessar, contra a oposição de certos núcleos académicos, com relação às ideias novas que continuamente lhes são propostas – e isso em termos pouco comedidos – os dissabores experimentados pelos autores das mais importantes descobertas, como FultonJenner e Galileu, que citam a todo o momento, eles próprios caírem em erro semelhante, logo eles que dizem e, com razão, que até há poucos anos atrás teria passado por insensato quem tivesse falado em corresponder-se de um extremo ao outro da Terra em alguns segundos. Se acreditam no progresso, do qual se dizem apóstolos, que sejam, pois, coerentes consigo mesmos e não atraiam para si a censura que dirigem aos outros, negando o que não compreendem.

Voltemos ao Sr. Home. Chegado a Paris no mês de Outubro de 1855, encontrou-se, desde o início, envolvido no mundo mais elevado, circunstância que deveria ter imposto mais circunspecção no julgamento que lhe fazem, porque, quanto mais elevado e esclarecido é esse mundo, menor é a suspeita de se deixar benevolamente enganar por um aventureiro. Esta mesma posição suscitou comentários. Pergunta-se quem é o Sr. Home. Para viver aqui, para fazer viagens dispendiosas, diz-se, seria necessário ter fortuna. Se não a tem, deve ser sustentado por pessoa poderosa. Sobre este tema se levantou um sem-número de suposições, cada uma mais ridícula que a outra. O que não se disse de sua irmã, que ele foi buscar há cerca de um ano! Comentou-se que era uma médium mais poderosa que ele; que ambos deveriam realizar prodígios de fazer empalidecer os de Moisés. Várias vezes nos fizeram perguntas a esse respeito; eis a nossa resposta.

Vindo à França, o Sr. Home não se dirigiu ao público em geral; ele não gosta, nem procura a publicidade. Se tivesse vindo com propósitos especulativos, teria corrido o país, lançando mão de propaganda em seu auxílio; teria procurado todas as ocasiões para se promover, enquanto as evita; teria estabelecido um preço para as suas manifestações, contudo, ele nada pede a ninguém. Malgrado a sua reputação, o Sr. Home não é, pois, de forma alguma, o que se pode chamar de um homem do mundo; a sua vida privada pertence-lhe exclusivamente. Uma vez que nada pede, ninguém tem o direito de indagar como vive, sem cometer uma indiscrição. É mantido por pessoas poderosas? Isso não nos diz respeito; tudo quanto podemos dizer é que, nesta sociedade de elite ele conquistou amizades verdadeiras e fez amigos devotados, ao passo que, com um prestidigitador, a gente paga, diverte-se e ponto final. Não vemos, pois, no Sr. Home, mais que o seguinte: um homem dotado de uma faculdade notável. O estudo desta faculdade é tudo quanto nos interessa e tudo quanto deve interessar a quem quer que não seja movido apenas pela curiosidade. Sobre ele a História ainda não abriu o livro dos seus segredos; até lá ele pertence à Ciência. Quanto à sua irmã, eis a verdade: É uma menina de onze anos, que ele trouxe a Paris para a sua educação, de que está encarregada ilustre pessoa. Sabe apenas em que consiste a faculdade do irmão. É bem simples, como se vê, muito prosaico para os amantes do maravilhoso.

Agora, por que teria o Sr. Home vindo à França? Certamente não foi para procurar fortuna, como acabámos de provar. Para conhecer o país? Mas ele não o percorre; pouco sai e não tem absolutamente hábitos de turista. O motivo patente é o conselho dos médicos, que acreditam ser o ar da Europa necessário à sua saúde, mas os factos mais naturais são por vezes providenciais. Pensamos, pois, que, se veio aqui é porque deveria vir. A França, ainda em dúvida no que diz respeito às manifestações espíritas, necessitava que lhe fosse aplicado um grande golpe; foi o Sr. Home que recebeu essa missão e, quanto mais alto for o golpe, maior será a sua repercussão. A posição, o crédito, as luzes dos que o acolheram e que foram convencidos pela evidência dos factos, abalaram as convicções de uma multidão de pessoas, mesmo entre aquelas que não puderam ser testemunhas oculares. A presença do Sr. Home terá sido, portanto, um poderoso auxiliar para a propagação das ideias espíritas; se não convenceu a todos, espalhou sementes que frutificarão tanto mais quanto mais se multiplicarem os próprios médiuns. Como já dissemos alhures, essa faculdade não constitui um privilégio exclusivo; existe em estado latente e em diversos graus entre muita gente, não aguardando senão a ocasião para se desenvolver; o princípio está em nós, por efeito próprio da nossa organização; está na Natureza; dele todos temos o gérmen, não estando longe o dia em que veremos os médiuns surgirem em todos os pontos, no nosso meio, nas nossas famílias, tanto entre os pobres como entre os ricos, a fim de que a verdade seja de todos conhecida, pois, segundo nos anunciaram, trata-se de uma nova era, de uma nova fase que começa para a Humanidade. A evidência e a vulgarização dos fenómenos espíritas imprimirão um novo curso às ideias morais, como aconteceu com o vapor com relação à indústria.

Se a vida privada do Sr. Home deve estar fechada às investigações de uma indiscreta curiosidade, há certos detalhes que podem, com toda a razão, interessar ao público e, que são de utilidade para a apreciação dos factos.

Sr. Daniel Dunglas Home nasceu perto de Edimburgo no dia 15 de Março de 1833. Tem, pois, hoje 24 anos. Descende de uma antiga e nobre família dos Dunglas da Escócia, outrora soberana. É um rapaz de estatura mediana, louro, cuja fisionomia melancólica nada tem de excêntrica; é de compleição muito delicada, de maneiras simples e suaves, de carácter afável e benevolente, sobre o qual o contacto com os poderosos não gerou arrogância nem ostentação. Dotado de excessiva modéstia, jamais fez alarde da sua maravilhosa faculdade, nunca fala de si e se, numa expansão de intimidade, conta coisas pessoais, é com simplicidade que o faz e jamais com a ênfase própria das pessoas com as quais a malevolência procura compará-lo. Diversos factos íntimos, do nosso conhecimento pessoal, provam os seus sentimentos nobres e uma grande elevação de alma; nós o constatamos com tanto maior prazer quanto se conhece a influência das disposições morais sobre a natureza das manifestações.

Os fenómenos dos quais o Sr. Home é instrumento involuntário por vezes têm sido contados por amigos muito zelosos com um entusiasmo exagerado, do qual se apoderou a malevolência. Tais como são, não necessitam de amplificação, mais nociva do que a útil à causa. Sendo o nosso fim o estudo sério de tudo quanto se liga à ciência espírita, fechar-nos-emos na estrita realidade dos factos por nós próprios constatados ou por testemunhas oculares mais dignas de fé. Podemos, assim, comentá-los com a certeza de não estar raciocinando sobre coisas fantásticas.

Sr. Home é um médium do género dos que produzem manifestações ostensivas, sem, por isso, excluir as comunicações inteligentes; contudo, as suas predisposições naturais lhe dão para as primeiras uma aptidão mais especial. Sob a sua influência, ouvem-se os mais estranhos ruídos, o ar se agita, os corpos sólidos se movem, levantam-se, transportam-se de um lugar ao outro no espaço, instrumentos de música produzem sons melodiosos, seres do mundo extra-corpóreo aparecem, falam, escrevem e, frequentemente, nos abraçam até causar dor. Na presença de testemunhas oculares, muitas vezes ele mesmo se viu elevado no ar, sem qualquer apoio e a vários metros de altura.

Do que nos foi ensinado sobre a classe dos Espíritos que em geral produzem este tipo de manifestações, não se deve concluir que o Sr. Home esteja em contacto somente com a classe ínfima do mundo espírita. O seu carácter, bem como as qualidades morais que o distinguem, devem, ao contrário, granjear-lhe a simpatia dos Espíritos superiores; para estes últimos, ele não passa de um instrumento destinado a abrir os olhos dos cegos de maneira enérgica, sem que, para isso, seja privado das comunicações de ordem mais elevada. É uma missão que aceitou, missão que não está isenta de tribulações nem de perigos, mas que cumpre com resignação e perseverança, sob a égide do Espírito de sua mãe, seu verdadeiro anjo-da-guarda.

A causa das manifestações do Sr. Home lhe é inata; a sua alma, que parece prender-se ao corpo apenas por fracos liames, tem mais afinidade com o mundo dos Espíritos que com o mundo corpóreo; eis por que se desprende sem esforço, entrando mais facilmente que os outros em comunicação com os seres invisíveis. Essa faculdade revelou-se-lhe desde a mais tenra infância. Com a idade de seis meses, o seu berço balançava sozinho, na ausência da ama de leite e, mudava de lugar. Nos seus primeiros anos ele era tão débil que mal podia suster-se; sentado num tapete, os brinquedos que não podia apanhar deslocavam-se por si mesmos e vinham pôr-se ao alcance das suas mãos. Aos três anos teve as suas primeiras visões, não lhes conservando, porém, a lembrança. Tinha nove anos quando a sua família se fixou nos Estados Unidos; ali, os mesmos fenómenos continuaram com intensidade crescente, à medida que avançava em idade, embora a sua reputação como médium não se tenha estabelecido senão em 1850, época em que as manifestações espíritas começaram a popularizar-se naquele país. Em 1854 foi à Itália, por razões de saúde, como dissemos; surpreendeu Florença e Roma com verdadeiros prodígios. Convertido à fé católica nesta última cidade, viu-se obrigado a romper relações com o mundo dos Espíritos. Com efeito, durante um ano, o seu poder oculto pareceu tê-lo abandonado; mas, como esse poder está acima de sua vontade, terminado esse tempo, conforme lhe anunciara o Espírito de sua mãe, as manifestações reapareceram com nova energia. A sua missão estava traçada; deveria distinguir-se entre aqueles que a Providência escolheu para revelar-nos, por meio de sinais patentes, o poder que domina todas as grandezas humanas.

Se o Sr. Home, como o pretendem certas pessoas que julgam sem ter visto, fosse apenas um hábil prestidigitador, sem dúvida teria sempre à sua disposição, na sua sacola, algumas peças com que pudesse simular as suas mágicas, ao passo que não é senhor de produzi-las à vontade. Ser-lhe-ia impossível dar sessões regulares, pois muitas vezes, justamente no momento em que tivesse necessidade da sua faculdade, esta lhe faltaria. Algumas vezes os fenómenos se manifestam espontaneamente, no momento em que menos se espera, enquanto que, noutras, é incapaz de os provocar, circunstância pouco favorável a quem quisesse fazer exibições a horas certas. O facto seguinte, tomado entre mil, é disto uma prova. Havia mais de quinze dias que o Sr. Home não tinha obtido nenhuma manifestação, quando, almoçando em casa de um dos seus amigos, com mais duas ou três pessoas do seu conhecimento, de repente se ouviram golpes nas paredes, nos móveis e no tecto. Parece que voltaram, disse ele. Nesse momento o Sr. Home estava sentado num canapé com um amigo. Um doméstico trazia uma bandeja de chá e preparava-se para colocá-la sobre a mesa, situada no meio do salão; embora bastante pesada, a mesa se elevou subitamente, destacando-se do solo a uma altura de 20 a 30 centímetros, como se tivesse sido atraída pela bandeja. Apavorado, o criado deixou-a escapar e a mesa, de um pulo, lançou-se em direcção ao canapé, vindo a cair diante do Sr. Home e do seu amigo, sem que nada do que estava em cima se tivesse desarrumado. Este facto não é, absolutamente, o mais curioso dentre aqueles que temos para relatar, mas apresenta essa particularidade digna de nota: a de ter-se produzido espontaneamente, sem provocação, num círculo íntimo, do qual nenhum dos assistentes, cem vezes testemunhas de factos semelhantes, necessitava de novas provas; e, seguramente, não era caso para o Sr. Home exibir as suas habilidades, se habilidades existem.

No próximo artigo citaremos outras manifestações.

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Allan Kardec (i), aliás, Hippolyte Léon Denisard Rivail, Sr. Home, primeiro artigo, Jornal de Estudos Psicológicos, Paris, Fevereiro de 1858, 6º fragmento da Revista objecto do presente título desta publicação.
(imagem de contextualização: Daniel Dunglas Home, o médium de efeitos físicos mais célebre de sempre)