Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

terça-feira, 10 de maio de 2016

Deus na Natureza ~

A Força e a Matéria II – A Terra ~

  Os mesmos argumentos que tiramos do panorama do universo sideral e da inteligência da mecânica celeste, por demonstrar o ascendente da força sobre a matéria, podem colher ao exame dos corpos terrestres. Lá, era o hino do infinitamente grande; aqui, a minudência do infinitamente pequeno. A força rege identicamente os movimentos atómicos e as órbitas imensas das esferas siderais. Muda de objecto, muda de nome na classificação dos homens, mas não deixa de ser sempre a mesma força, isto é: a atracção universal. Chamam-lhe coesão, quando agrupa os átomos que constituem as moléculas e, gravitação, quando impulsiona os astros em torno do centro comum de sua gravidade. O nome humano não altera, porém, o facto físico.

  As moléculas, de constituição substancial, são formadas por uma reunião geométrica de átomos tomados entre os corpos em Química chamados simples. Cada molécula é um modelo de simetria e representa um tipo geométrico. Assim, por exemplo, a molécula de ácido sulfúrico mono-hidratado é um sólido geométrico, regular, um heptaedro de base quadrada, composto de 7 átomos SH2O4Os corpos simples, para formar os compostos, não se podem combinar senão em números proporcionais, determinados e invariáveis. Sabemos que se designam sob o nome de equivalentes os números que exprimem quantidades ponderáveis dos diversos corpos susceptíveis de entrarem, elas ou os seus múltiplos, nas combinações químicas e aí se substituírem mutuamente, para formar compostos quimicamente análogos.

  Cem partes de oxigénio, em peso, combinam-se, por exemplo, com 12,50 de hidrogénio, para formar a água. Esta será sempre, sempre composta nessa proporção e ninguém poderá, absolutamente, juntar à combinação da molécula de água uma partícula a mais de qualquer dos componentes. A água formada pela combustão de uma chama é, identicamente, a mesma das fontes e dos rios. Do mesmo modo, 100 partes de oxigénio se combinarão com 350 de ferro para formar o protóxido de ferro. Regras são essas, absolutas, às quais a matéria é forçada a obedecer. A Natureza tem horror ao acaso, tanto quanto ao vácuo, como se dizia outrora. E não só esses equivalentes representam numericamente todas as combinações de corpos com o oxigénio, como todas as desses corpos entre si; de modo que, no nosso exemplo, se o ferro se combinar com o hidrogénio, será sempre na proporção de 350 (equivalente do ferro) para 12,50 (equivalente do hidrogénio). De resto, todas essas combinações obedecem a regras geométricas e a cristalização dos corpos pode sempre ser levada a um dos seis tipos fundamentais: – o cubo, os dois prismas rectos, o rombóide e os dois prismas oblíquos.

  Para explicar não apenas as combinações, mas também todos os movimentos múltiplos que se operam nas transformações incessantes da matéria, nos fenómenos de contracção e dilatação, na manifestação das diversas propriedades dos corpos, admite-se que os átomos não se tocam, ainda nos corpos mais densos e mais sólidos, que estão isolados entre si e que, em razão de sua pequenez, os intervalos que os permeiam guardam a relatividade, proporcionalmente exacta, com os dos corpos celestes. Finalmente, assim como os corpos celestes se movem em torno uns dos outros, sem por isso deixarem de estar unidos num elo solidárioassim também os átomos oscilam em torno de sua respectiva posição, sem se afastarem dos limites regulados pela coesão ou pela afinidade molecular. Entre o mundo das estrelas e dos átomos não há diferença essencial. Engrossai esse cristal, essa simples molécula, suponde-a que desenvolvendo-se a ponto de atingir o volume do sistema planetário e mais – de uma nebulosa, e tereis um verdadeiro sistema, com as suas forças e movimentos. Se, ao contrário, supuserdes que o sistema planetário se contrai, que todas as distâncias se encurtam, que todos os corpos que o integram diminuem e chegam, finalmente, às proporções de um agregado químico, tereis regressado ao microcosmo. Além disso, as medidas expressivas do infinitamente grande, ou pequeno, estão em nós e não na Natureza, uma vez que tudo referimos a nós, como a um ponto de comparação. As noções de grandeza são puramente relativas.

  A Natureza não tem essa maneira de ver.

  Os fenómenos do calor, da luz, do som, do magnetismo, explicam-se por esta concepção dos movimentos atómicos. Sob a influência dessas forças exteriores, as moléculas se retraem ou se dilatam e modificam os seus movimentos, tal como fazem os mundos, precipitando o curso no periélio e retardando-o nas longínquas regiões do afélio. Quando, por um choque, produzimos vibrações num corpo sonoro, as suas moléculas agitam-se em cadência, seguindo o ritmo de sua harmonia. Ora, esses átomos são de uma pequenez inexprimível. Calculou-se que o número de átomos encerrados num minúsculo cubo de matéria orgânica do tamanho de uma cabeça de alfinete, deveria atingir a cifra inconcebível de oito sextilhões, isto é, 8 seguido de 21 zeros. Suposto quiséssemos proceder à contagem, na proporção de 1.000 por segundo, haveríamos de viver duzentos e cinquenta mil anos para completá-la!

  Não o vingaríamos, portanto. Mas, seja como for, a substância dos corpos é um pequeno mundo, um mundo analítico, no seio do qual o infinitamente pequeno é regulado por leis tão rigorosas quanto as do infinitamente grande, o sideral. Quando sabemos que uma polegada cúbica de trípole contém quarenta mil milhões de gálios fósseis; quando imaginamos que na classe dos infusórios o microscópio nos faculta distinguir vibriões cujo diâmetro não excede um milésimo de milímetro e que esses minúsculos seres se movem na água, ágeis, providos de aparelhos de locomoção, de músculos e de nervos; que se alimentam e possuem vasos de nutrição; que procuram, perseguem, combatem a presa nos abismos da gota de água, com velocidade e força comparáveis à de um cavalo a galope; quando consideramos, enfim, que esses pequeninos seres são providos de órgãos sensitivos, já nos não custa crer que as moléculas de gelatina e albumina, que os constituem, são de uma tenuidade inimaginável e que os átomos componentes se integram sem metáfora na nossa ideia do infinitamente pequeno. Ora, esses átomos não se alteram, são invariáveis e imutáveis; as moléculas dos corpos compostos em formação, das quais se encontram eles geometricamente associados, não mudam mais, ainda que passando de um ser para outro. Pela troca perpétua, operante em todos os seres da Natureza e que a todos os encadeia sob o império de uma comunhão substancial, pela comunicação permanente das coisas entre si, da atmosfera com as plantas e todos os seres que respiram, das plantas com os animais, da água com todas as substâncias organizadas, pela nutrição e assimilação que perpetuam a cadeia das existências, as moléculas entram nos corpos e deles saem, mudam de proprietário a cada instante, mas conservam essencialmente a sua natureza intrínseca. Reconhecemos, com os nossos adversários, que a molécula de ferro não varia, quer quando, incorporada ao meteorito, percorre o Universo, quer quando retine no trilho ou na roda do vagão, ou ainda quando, em glóbulo sanguíneo, reponta à fronte do poeta. Qualquer que seja, pois, o habitáculo transitório das moléculas, elas conservam a sua natureza e propriedades essenciais. Os átomos são os infinitamente pequenos, sempre separados entre si e, todavia, encadeados por essa mesma força invisível que retém as esferas nas suas órbitas. Toda a matéria, orgânica ou inorgânica (visto ser idêntica) obedece primacialmente a essa força. As suas mínimas partículas são como astros no espaço, atraem-se e repelem-se por seus respectivos movimentos. Sob o véu dessa matéria, que se nos afigura pesada e densa, devemos, portanto, lobrigar a “força”, que a avassala e rege o mineral, pesa os elementos, ordena as combinações, traça regras absolutas e, governando discricionariamente, faz dela uma escrava imbele, maleável e submissa às leis primígenas que consagram a estabilidade do mundo. É indubitável que os estados da matéria são regulados por leis. Já admirastes, alguma vez, os processos característicos da cristalização? Nunca examinastes ao microscópio a formação das estrelas de neve e das moléculas cristalinas de gelo? Nesse mundo invisível, como no universo visível, cada movimento, cada associação se efectua sob a direcção de uma lei. É sempre o mesmo ângulo, as mesmas linhas e sucessões. Jamais as leis humanas lograram obediência tão absolutamente passiva.

  Nunca geómetra algum construiu figura tão perfeita qual a que naturalmente reveste a mais insignificante molécula.

  As leis da Natureza regem o movimento dos átomos nos seres vivos, como nos inorgânicos: a mesma molécula passa sucessivamente do mineral ao vegetal e ao animal, neles incorporando-se segundo as leis que organizam todas as coisas.

  A molécula de ácido carbónico, a exalar-se do peito opresso do moribundo no seu leito de dor, vai incorporar-se à flor do jardim, à relva do prado, ao tronco da floresta. A molécula de oxigénio que se desprende dos últimos ramos do anoso carvalho vai incorporar-se ao cabelinho louro do recém-nascido, no seu berço de sonhos. Nada podemos mudar na composição dos corpos. Nada nasce, nada morre. Só a forma é perecível. Só a substância é imortal. Constituímo-nos da poeira dos antepassados, os mesmíssimos átomos e moléculas.

 Nada se cria, nada se perde.

 Uma vela que ardeu completamente deixa de existir para os olhos vulgares e nem por isso deixará de existir integralmente. Se lhe recolhêssemos as substâncias consumidas, reconstitui la-íamos com o seu peso anterior. Os átomos viajam de um a outro ser, guiados pelas forças naturais. O acaso não colhe nessas combinações e casamentos. E se nesta permuta perpétua dos elementos constitutivos de todos os corpos a Natura, bela e radiante, subsiste em sua grandeza, esta potência peculiar à Terra é unicamente devida à previdência e rigor das leis que organizam essas transmigrações e etapas atómicas, de guarnição em guarnição. Se a organização militar da França se atribui a um concelho inteligente, parece-nos que a organização química dos seres, aliás muito superior àquela, atesta um plano inteligente e um pensamento director.

  No entanto, o papel que a lei desempenha no Universo anda por aí relegado à categoria de fábula pelo autor da Resposta às Cartas de Liebig. Em sua opinião, o grande químico não tem motivos para dizer que foi a lei que tudo construiu. (i)

  A lei não passaria de uma ideia geral, induzida de caracteres sensíveis; e como se não encontra a lei senão depois das experiências, seguir-se-ia que ela na realidade não existe!

  “Enquanto acreditarem que a lei fez o mundo, em vez de a considerarem como resultante dele e por ele iluminando-se, a inteligência humana dormirá nas trevas e a ideia há de antepor-se à experiência.

  Para exilar da Natureza o espírito, particularmente o espírito geométrico, é preciso recusar à evidência o papel representado pelo número e obstinar-se a não ouvir a universal harmonia profusamente espalhada nas obras criadas. A harmonia não é tão-só a fraseologia musical escrita em partituras e executada por instrumentos humanos; não consiste apenas nessas obras-primas a justo título admiradas e afloradas nos belos dias de inspiração, dos cérebros dos Mozart e dos Beethoven. A harmonia enche o Universo com os seus acordes. Antes de tudo, diga-se, a música propriamente dita é, de si mesma e por inteiro, formada pelo número; cada som é uma série de vibrações em quantidade definida e as relações harmónicas dos sons não são mais do que relações numéricas. A gama é uma escala de cifras e os tons, maior e menor, são criados pelos números, assim como os acordes não passam, também eles, de uma combinação algébrica. Depois, como a provar a exclusiva soberania do número, vemos que todo o compositor há de obedecer ao compasso. Estas observações fundamentais, sugeridas pelo estudo do som, têm aplicação não menos valiosa no concernente à luz.

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(i) Chemische Briefe, página 32.


Camille Flammarion, Deus na Natureza – Primeira Parte, A Força e a Matéria II, A Terra 1 de 3, 14º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Jungle Tales_1895, pintura de James Jebusa Shannon)

sábado, 23 de abril de 2016

Diálogos de Kardec ~

§ VI – DOS MÉDIUNS

33. Médiuns são pessoas aptas a sentir a influência dos Espíritos e a transmitir os pensamentos destes.

Toda a pessoa que, num grau qualquer, experimente a influência dos Espíritos é, por esse simples facto, médium. Essa faculdade é inerente ao homem e, por conseguinte, não constitui privilégio exclusivo, donde se segue que poucos são os que não possuam um rudimento de tal faculdade. Pode, pois, dizer-se que toda a gente, mais ou menos, é médium. Contudo, segundo o uso, esse qualificativo só se aplica àqueles em quem a faculdade mediúnica se manifesta por efeitos ostensivos, de certa intensidade.

34. O fluido perispirítico é o agente de todos os fenómenos espíritas, que só se podem produzir pela acção recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito. O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansiva do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos; depende, portanto, do organismo e pode ser desenvolvida quando exista o princípio; não pode, porém, ser adquirida quando o princípio não exista. A predisposição mediúnica independe do sexo, da idade e do temperamento. Há médiuns em todas as categorias de indivíduos, desde a mais tenra idade, até a mais avançada.

35. As relações entre os Espíritos e os médiuns estabelecem-se por meio dos respectivos perispíritos, dependendo a facilidade dessas relações do grau de afinidade existente entre os dois fluidos. Alguns há que se combinam facilmente, enquanto outros se repelem, donde se segue que não basta ser médium para que uma pessoa se comunique indistintamente com todos os Espíritos. Há médiuns que só com certos Espíritos podem comunicar-se ou com Espíritos de certas categorias e, outros que não o podem a não ser pela transmissão do pensamento, sem qualquer manifestação exterior.

36. Por meio da combinação dos fluidos perispiríticos o Espírito, por assim dizer, se identifica com a pessoa que ele deseja influenciar; não só lhe transmite o seu pensamento, como também chega a exercer sobre ela uma influência física, fazê-la agir ou falar à sua vontade, obrigá-la a dizer o que ele queira, servir-se, numa palavra, dos órgãos do médium, como se seus próprios fossem. Pode, enfim, neutralizar a acção do próprio Espírito da pessoa influenciada e paralisar-lhe o livre-arbítrio. Os bons Espíritos se servem dessa influência para o bem, e os maus para o mal.

37. Podem os Espíritos manifestar-se de uma infinidade de maneiras, mas não o podem senão com a condição de encontrarem uma pessoa apta a receber e transmitir impressões deste ou daquele género, segundo as aptidões que possua. Ora, como não há nenhuma que possua no mesmo grau todas as aptidões, resulta que umas obtêm efeitos que a outras são impossíveis. Dessa diversidade de aptidões decorre que há diferentes espécies.

38. Nem sempre é necessária a intervenção da vontade do médiumO Espírito que quer manifestar-se procura o indivíduo apto a receber-lhe a impressão e dele se serve, muitas vezes a seu mau grado. Outras pessoas, ao contrário, conscientes de suas faculdades, podem provocar certas manifestações. Daí duas categorias de médiuns: médiuns inconscientes médiuns facultativos.

No caso dos primeiros, a iniciativa é dos Espíritos; no segundo, é dos médiuns.

39. Os médiuns facultativos só se encontram entre pessoas que têm conhecimento mais ou menos completo dos meios de comunicação com os Espíritos, o que lhes possibilita servir-se, por vontade própria, de suas faculdades; os médiuns inconscientesao contrário, existem entre as que nenhuma ideia fazem do Espiritismo, nem dos Espíritos, até mesmo entre as mais incrédulas e que servem de instrumento, sem o saberem e sem o quererem. Os fenómenos espíritas de todos os géneros podem operar-se por influência destes últimos, que sempre existiram, em todas as épocas e no meio de todos os povos. A ignorância e a credulidade lhes atribuíram um poder sobrenatural e, conforme os tempos e os lugares, fizeram deles santos, feiticeiros, loucos ou visionários. O Espiritismo mostra que com eles apenas se dá a manifestação espontânea de uma faculdade natural.

40. Entre as diferentes espécies de médiuns, distinguem-se principalmente: os de efeitos físicos; os sensitivos ou impressivos; os audientes, falantes, videntes, inspirados, sonambúlicos, curadores, escreventes ou psicógrafos. Aqui unicamente trataremos das espécies essenciais. (i)

(i) Para esclarecimentos completos, consulte-se O Livro dos Médiuns.

41. Médiuns de efeitos físicos – São os mais aptos, especialmente, à produção de fenómenos materiais, como o movimento de corpos inertes, os ruídos, a deslocação, o levantamento e a translação de objectos, etc. Estes fenómenos podem ser espontâneos ou provocados. Em todos os casos, exigem o concurso voluntário ou involuntário de médiuns dotados de faculdades especiais. Em geral, têm por agentes Espíritos de ordem inferior, uma vez que os espíritos elevados só se preocupam com comunicações inteligentes e instrutivas.

42. Médiuns sensitivos ou impressivos – Dá-se esta denominação às pessoas susceptíveis de pressentir a presença dos Espíritos, por impressão vaga, um como ligeiro atrito em todos os membros, facto que não logram explicar. Tal subtileza pode essa faculdade adquirir, que aquele que a possui reconhece, pela impressão que experimenta, não só a natureza, boa ou má, do Espírito que lhe está ao lado, mas também a sua individualidade, como o cego reconhece instintivamente a aproximação de tal ou tal pessoa. Um Espírito bom causa sempre uma impressão branda e agradável; a de um Espírito mau, ao contrário, é penosa, aflitiva e desagradável: há como que um cheiro de impureza.

43. Médiuns audientes – Esses ouvem os Espíritos; é, algumas vezes, como se escutassem uma voz interna que lhes ressoasse no foro íntimo; doutras vezes é uma voz exterior, clara e distinta, qual a de uma pessoa viva. Os médiuns audientes também podem conversar com os Espíritos. Quando se habituam a comunicar-se com certos Espíritos, eles os reconhecem imediatamente pelo som da voz. Aquele que não é médium audiente pode comunicar-se com um Espírito por via de um médium audiente que lhe transmite as palavras.

44. Médiuns falantes – Os médiuns audientes, que nada mais fazem do que transmitir o que ouvem, não são propriamente médiuns falantes, os quais, as mais das vezes, nada ouvem. Com eles, o Espírito actua sobre os órgãos da palavra, como actuam sobre a mão dos médiuns escreventes. Querendo comunicar-se, o Espírito se serve do órgão que acha mais maleável: de um, utiliza-se da mão, de outro da palavra, de um terceiro da audição. Em geral, o médium falante se exprime sem ter consciência do que diz e diz amiúde coisas inteiramente fora do âmbito de suas ideias habituais, de seus conhecimentos e, até, fora do alcance da sua inteligência. Não é raro verem-se pessoas iletradas e de inteligência vulgar expressar-se, em tais momentos, com verdadeira eloquência e tratar, com incontestável superioridade, de questões sobre as quais seriam incapazes de emitir, no estado ordinário, uma opinião.

Se bem esteja perfeitamente acordado quando exerce a sua faculdade, raro é que o médium falante guarde lembrança do que disse. Nem sempre, porém, é integral a sua passividade. Alguns há que têm intuição do que dizem, no próprio instante em que proferem as palavras.

Estas, no médium falante, são o instrumento de que se serve o Espírito com quem uma pessoa estranha pode entrar em comunicação, do mesmo modo que o pode fazer com o concurso de um médium audiente. Entre o médium falante e o médium audiente, há a diferença de que este fala voluntariamente para repetir o que ouve, ao passo que o outro fala involuntariamente.

45. Médiuns videntes – Dá-se esta qualificação às pessoas que, em estado normal e perfeitamente despertas, gozam da faculdade de ver os Espíritos. A possibilidade de vê-los em sonho resulta, sem contestação, de uma espécie de mediunidade, mas não são médiuns videntes, propriamente ditos. Expusemos a teoria deste fenómeno no capítulo: “Visões e Aparições” de O Livro dos Médiuns.

São muito frequentes as aparições dos Espíritos às pessoas que os amaram, ou os conheceram na Terra. Conquanto os que costumam tê-las possam ser considerados médiuns videntes, esta denominação, em regra, só é dada aos que gozam, de modo mais ou menos permanente, da faculdade de ver quase que todos os Espíritos. Nesse número, há os que apenas vêem os Espíritos que são evocados e que eles conseguem descrever com minuciosa exactidão. Descrevem-lhes os gestos com todos os pormenores, os traços fisionómicos, o vestuário e até os sentimentos de que parecem animados. Há outros em quem essa faculdade revela carácter ainda mais geral: são os que vêem toda a população espírita ambiente a movimentar-se, como se tratasse, poder-se-ia dizer, de seus negócios. Esses médiuns nunca estão sós; cerca-os sempre uma sociedade a cuja escolha podem proceder, livremente, porquanto podem, pela acção da vontade própria, afastar os Espíritos que lhes não convenha ter próximos de si, ou atrair os que lhes são simpáticos.

46. Médiuns sonambúlicos – Pode considerar-se o sonambulismo como uma variedade da faculdade mediúnica ou, antes, são duas ordens de fenómenos que frequentemente se encontram ligados. O sonâmbulo age sob a influência do seu próprio Espírito; a sua própria alma é que, em momentos de emancipação, vê, ouve e percebe além dos limites dos sentidos. O que ele exprime haure-o de si mesmo; as suas ideias são, em geral, mais justas do que no estado normal, mais extensos os seus conhecimentos, porque livre se lhe encontra a alma. Em suma, ele vive antecipadamente a vida dos Espíritos. médium, ao contrário, é o instrumento de uma inteligência estranha; é passivo e o que diz não vem do seu próprio eu.

Em resumo: o sonâmbulo externa os seus próprios pensamentos e o médium exprime os de outrem. Mas, o Espírito que se comunica com um médium qualquer também pode comunicar-se com um sonambúlico. É até frequente o estado de emancipação da alma, durante o sonambulismo, tornar mais fácil essa comunicação. Muitos sonâmbulos vêem perfeitamente os Espíritos e os descrevem com tanta precisão, como os médiuns videntes; podem conversar com eles e transmitir-nos os seus pensamentos; se o que dizem está fora do âmbito de seus conhecimentos pessoais, é porque outros Espíritos lho sugerem.

47. Médiuns inspirados – Nestes médiuns, muito menos aparentes são do que nos outros os sinais exteriores da mediunidadeé toda intelectual e moral a acção que os Espíritos exercem sobre eles e se revela nas menores circunstâncias da vida, como nas maiores concepções. Sobretudo debaixo desse aspecto é que se pode dizer que todos são médiuns, porquanto ninguém há que não tenha Espíritos protectores e familiares a empregar todos os esforços para lhe sugerir salutares ideias. No inspirado, difícil muitas vezes se torna distinguir as ideias que lhe são próprias do que lhe é sugerido. A espontaneidade é principalmente o que caracteriza esta última.

Nos grandes trabalhos da inteligência é onde mais se evidencia a inspiração. Os homens de génio, de todas as categorias, artistas, sábios, literatos, oradores, são sem dúvida Espíritos adiantados, capazes, por si mesmos, de compreender e conhecer grandes coisas; ora, precisamente porque são considerados capazes, é que os Espíritos que visam à execução de certos trabalhos lhes sugerem as ideias necessárias, de sorte que na maioria dos casos eles são médiuns sem o saberem. Têm, contudo, vaga intuição de uma assistência estranha, porquanto aquele que apela para a inspiração nada mais faz do que uma evocação. Se não esperasse ser atendido, por que exclamaria, como tão amiúde sucede: Meu bom génio, vem em meu auxílio!

48. Médiuns de pressentimentos – Pessoas há que, em dadas circunstâncias, têm uma imprecisa intuição das coisas futuras. Essa intuição pode provir de uma espécie de dupla vista, que faculta se entrevejam as consequências das coisas presentes; mas, doutras vezes, resulta de comunicações ocultas, que fazem de tais pessoas uma variedade dos médiuns inspirados.

49. Médiuns proféticos – É igualmente uma variedade dos médiuns inspirados. Recebem, com a permissão de Deus e com mais precisão do que os médiuns de pressentimentos, a revelação das coisas futuras, de interesse geral, que eles recebem o encargo de tornar conhecidas aos homens, para lhes servir de ensinamento.

De certo modo, o pressentimento é dado à maioria dos homens, para uso pessoal deles; o dom de profecia, ao contrário, é excepcional e implica a ideia de uma missão na Terra.

Todavia, se há verdadeiros profetas, maior é o número dos falsos, que tomam os devaneios da sua imaginação como revelações, quando não são velhacos que por ambição se fazem passar como profetas.

O profeta verdadeiro é um homem de bem, inspirado por Deus; pode ser reconhecido pelas suas palavras e pelas suas acções. Não é possível que Deus se sirva da boca do mentiroso para ensinar a verdade. (O Livro dos Espíritos, nº 624.)

50. Médiuns escreventes ou psicógrafos – Essa denominação é dada às pessoas que escrevem sob a influência dos Espíritos. Assim como um Espírito pode actuar sobre os órgãos vocais de um médium falante e fazê-lo pronunciar palavras, também pode servir-se da sua mão para fazê-lo escrever. A mediunidade psicográfica apresenta três variedades bem distintas: os médiuns mecânicos, os intuitivos e os semi-mecânicos.

Com o médium mecânico, o Espírito lhe actua directamente sobre a mão, impulsionando-a. O que caracteriza este género de mediunidade é a inconsciência absoluta, por parte do médium, do que a sua mão escreve. O movimento desta independe da vontade do escrevente; movimenta-se sem interrupção, a despeito do médium, enquanto o Espírito tem alguma coisa a dizer e, pára desde que este último haja concluído.

Com o médium intuitivo, a transmissão do pensamento serve de intermediário o Espírito do médiumO outro Espírito, nesse caso, não actua sobre a mão para movê-la, actua sobre a alma, identificando-se com ela e imprimindo-lhe a sua vontade e as suas ideias. A alma recebe o pensamento do Espírito comunicante e o transcreve. Nesta situação, o médium escreve voluntariamente e tem consciência do que escreve, embora não grafe os seus próprios pensamentos.

Torna-se frequentemente difícil distinguir o pensamento do médium do que lhe é sugerido, o que leva muitos médiuns deste género a duvidar da sua faculdadePodem reconhecer-se os pensamentos sugeridos pelo facto de não serem nunca preconcebidos; eles surgem à proporção que o médium vai escrevendo e não raro são opostos à ideia que este previamente concebera. Podem mesmo estar fora dos conhecimentos e da capacidade do médium.

Há grande analogia entre a mediunidade intuitiva e a inspiração; a diferença consiste em que a primeira se restringe quase sempre a questões de actualidade e pode aplicar-se ao que esteja fora das capacidades intelectuais do médium; por intuição pode este último tratar de um assunto que lhe seja completamente estranho. A inspiração estende-se por um campo mais vasto e geralmente vem em auxílio das capacidades e das preocupações do Espírito encarnado. Os traços da mediunidade são, de regra, menos evidentes. O médium semi-mecânico, ou semi-intuitivo participa dos outros dois géneros. No médium puramente mecânico, o movimento da mão independe da sua vontade; no médium intuitivo, o movimento é voluntário e facultativo. O médium semi-mecânico sente na mão uma impulsão dada mau grado seu, mas ao mesmo tempo tem consciência do que escreve, à medida que as palavras se formam. Com o primeiro, o pensamento vem depois do acto de escrever; com o segundo, precede-o; com o terceiro, acompanha-o.

51. Não sendo o médium mais do que um instrumento que recebe e transmite o pensamento de um Espírito estranho, que obedece à impulsão mecânica que lhe é dada, nada há que ele não possa fazer fora do campo de seus conhecimentos, se possui a maleabilidade e a aptidão mediúnica necessárias. Assim é que há médiuns desenhadores, pintores, músicos, versejadores, embora estranhos às artes do desenho, da pintura, da música e da poesia; médiuns iletrados, que escrevem sem saber ler, nem escrever; médiuns polígrafos, que reproduzem escritas de diversos géneros e, algumas vezes, com perfeita exactidão, a que o Espírito tinha quando encarnado; médiuns poliglotas, que escrevem ou falam em línguas que lhes são desconhecidas, etc.

52. Médiuns curadores – Consiste a mediunidade desta espécie na faculdade que certas pessoas possuem de curar pelo simples contacto, pela imposição das mãos, pelo olhar, por um gesto, mesmo sem o concurso de qualquer medicamento. Semelhante faculdade incontestavelmente tem o seu princípio na força magnética; difere desta, entretanto, pela energia e instantaneidade da acção ao passo que as curas magnéticas exigem um tratamento metódico, mais ou menos longo. Todos os magnetizadores são mais ou menos aptos a curar, se sabem proceder convenientemente; dispõem da ciência que adquiriram. Nos médiuns curadores, a faculdade é espontânea e alguns a possuem sem nunca ter ouvido falar de magnetismo.

A faculdade de curar pela imposição das mãos deriva evidentemente de uma força excepcional de expansão, mas diversas causas concorrem para aumentá-la, entre as quais são de colocar-se, na primeira linha: a pureza dos sentimentos, o desinteresse, a benevolência, o desejo ardente de proporcionar alívio, a prece fervorosa e a confiança em Deus; numa palavra: todas as qualidades morais. A força magnética é puramente orgânica; pode, como a força muscular, ser partilha de toda gente, mesmo do homem perverso; mas, só o homem de bem se serve dela exclusivamente para o bem, sem ideias ocultas de interesse pessoal, nem de satisfação de orgulho ou de vaidade. Mais depurado, o seu fluido possui propriedades benfazejas e reparadoras, que não pode ter o do homem vicioso ou interesseiro.

Todo o efeito mediúnico, como já foi dito, resulta da combinação dos fluidos que emitem um Espírito e um médium. Pela sua conjugação esses fluidos adquirem propriedades novas, que separadamente não teriam, ou, pelo menos, não teriam no mesmo grau. A prece, que é uma verdadeira evocação, atrai os bons Espíritos sempre solícitos em secundar os esforços do homem bem-intencionado; o fluido benéfico dos primeiros se casa facilmente com o do segundo, ao passo que o do homem vicioso se junta ao dos maus Espíritos que o cercam.

O homem de bem, que não dispusesse da força fluídica, pouca coisa conseguiria fazer por si mesmo, só lhe restando apelar para a assistência dos Espíritos bons, pois quase nula seria a sua acção pessoal; uma grande força fluídica, aliada à maior soma possível de qualidades morais, pode operar, em matéria de curas, verdadeiros prodígios.

53. A acção fluídica, ao demais, é poderosamente secundada pela confiança do doente, e Deus quase sempre lhe recompensa a fé, concedendo-lhe o bom êxito.

54. Somente a superstição pode emprestar qualquer virtude a certas palavras e unicamente Espíritos ignorantes ou mentirosos podem alimentar semelhantes ideias, prescrevendo fórmulas. Pode, entretanto, acontecer que, para pessoas pouco esclarecidas e incapazes de compreender as coisas puramente espirituais, o uso de uma fórmula de prece ou de determinada prática contribua a lhes infundir confiança. Nesse caso, porém, não é na fórmula que está a eficácia e sim na fé que aumentou com a ideia ligada ao emprego da fórmula.

55. Não se devem confundir os médiuns curadores com os médiuns prescreventes, que são simples médiuns escreventes, cuja especialidade consiste em servirem mais facilmente de intérpretes aos Espíritos para as prescrições médicas; absolutamente mais não fazem que transmitir o pensamento do Espírito, sem exercerem, de si mesmos, nenhuma influência.

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ALLAN KARDEC, Obras Póstumas, Primeira Parte, Manifestações dos Espíritos, VI – DOS MÉDIUNS, 13º fragmento solto da obra.
(imagem de contextualização: Dança rebelde, 1965 – Óleo sobre tela, de Noêmia Guerra)

terça-feira, 12 de abril de 2016

agonia das religiões ~


agonia das Religiões |

As Religiões estão a morrer. Este é um dos factos marcantes do nosso tempo, mais precisamente do Século XX. O poder das Religiões já não é religioso, mas simplesmente económico, político e social. As igrejas esvaziam-se, os seminários fecham-se, a vocação sacerdotal desaparece, o clero de todas elas recorre no mundo inteiro aos mais variados expedientes para manter os seus rebanhos, fazendo-lhes concessões perigosas. Mas todos os expedientes se mostram incapazes de restabelecer o prestígio e o poder religiosos, servindo apenas de remendos de pano novo em roupa velha, segundo a expressão evangélica. Começam então a aparecer os sucedâneos, milhares de seitas forjadas por videntes e profetas da última hora, na maioria leigos que se apresentam como missionários, taumaturgos populares, místicos improvisados e de olhos mais voltados para os bens terrenos do que para os tesouros do Reino dos Céus.

Esses bastardos do espírito, que pululam por toda a parte, caracterizam o fenómeno sócio-cultural da morte das Religiões. O facto é bem conhecido dos que estudam a Sociologia da Cultura. Quando um sistema institucional se esvazia no tempo, tragado na voragem das mudanças culturais, os aproveitadores invadem os domínios abandonados e socorrem a seu modo os órfãos em desespero. As grandes revoluções políticas e sociais mostram-nos como as tiranetes do populacho assumem as funções dos nobres decaídos, substituindo a autoridade tradicional pelo mandonismo dos clãs ressuscitados. Podemos aplicar ao caso uma paródia da explicação metafísica do horror ao vácuo, dizendo que as sociedades têm horror ao caos e preenchem a falta de autoridade legítima (ou pelo menos legitimada) pelo autoritarismo dos sátrapas.

Esse evidente sintoma de agonia das instituições tradicionais está presente em toda a área religiosa do nosso tempo. É o carisma das fases de mudança. Não há dúvida, portanto, de que as Religiões agonizam. E o responsável por esse facto alarmante, como sempre, é a própria vítima, que, pela imprevisão, pelo abuso do poder, pelo apego às comodidades institucionais, se deixou levar na ilusão de sua indestrutibilidade. As próprias Religiões cavaram a sua ruína no desenrolar do processo histórico. Acomodadas na sua superioridade, confiantes no privilégio de sua origem e natureza sobrenaturais, recusaram-se a integrar-se na cultura natural, marginalizando-se a si mesmas. A evolução cultural alargou progressivamente o fosso entre a Cultura e a Religião, tornando irreversível a situação das instituições religiosas. Assim, dialecticamente, o conceito arbitrário do sobrenatural, que era o fundamento de sua segurança, tornou-se o motivo da sua decadência.

No Ocidente, os primeiros sinais da crise religiosa contemporânea surgiram em plena Idade Média, com o episódio trágico-romântico de Aberlardo, prenunciando a Idade da Razão. Essa nova fase, que se iniciou com o Renascimento, traria a revolução cartesiana, RousseauChaumette e o Culto da Razão na Revolução, e posteriormente Auguste Comte e a Religião da Humanidade. No ano da morte de Auguste Comte, em 1857, Denizard Rivail iniciaria em França o movimento da Fé Racional. Assim, a França, que centralizava o processo cultural no Mundo Moderno, apresenta uma sequência de tentativas para a integração da Religião no sistema cultural em desenvolvimento, sempre rejeitadas pela soberania eclesiástica apoiada no conceito do sobrenatural. Paralelamente aos movimentos renascentistas de França, desencadeou-se na Alemanha, no Século XVI, o movimento da Reforma, iniciado por Lutero.

No Oriente a reacção às religiões tradicionais foi mais lenta e tardia, menos precisa e definida, com menores consequências, que só se acentuaram no Século XIX. Nem por isso deixou de produzir efeitos que se intensificaram no decorrer desse século até ao presente sob influências ocidentais. Na Rússia, sob a inspiração francesa de Rousseau, Tolstói promoveu a revolução religiosa do Século XIX, na linha luterana de volta ao Cristianismo Primitivo, fazendo uma nova tradução dos Evangelhos em sentido místico-racional. Todos esses movimentos revelam a insatisfação cultural no tocante à soberania das Religiões, fundada no conceito do sobrenatural, que as mantinham desligadas do processo cultural. Ainda no Século XIX a obra de Renan, em França, assinalava a tendência do espírito francês, no plano da História do Cristianismo, no sentido de estabelecer a verdade sobre os primórdios da Religião dominante e retirá-la do campo suspeito do sobrenatural.

Temos, nesse esboço de um vasto panorama histórico, a visão objectiva dos processos que vinham preparando, desde os fins do milénio medieval, a derrocada das Religiões. No nosso século, o desenvolvimento acelerado das Ciências, a laicização do Estado e da Educação, a desagregação da família, a expansão cultural e a rápida modificação dos costumes e do sistema de vida pelo impacto da Tecnologia – abrangendo praticamente todo o mundo – fortaleceram a concepção pragmática e materialista, dando o golpe de misericórdia no sobrenatural e nos sistemas religiosos que nele se apoiam. A etiologia da decadência das Religiões torna-se palpável. Seria simples tolice querer negá-la.

Não obstante, o sentimento religioso do homem não foi aniquilado. Pelo contrário, ele subsiste e vem sendo considerado, particularmente nos países da área dominada pelo Marxismo, como um resíduo do passado que terá de desaparecer totalmente com o avanço irresistível da cultura. A própria URSS, que se desmandou em campanhas violentas contra a Religião, viu-se obrigada a fazer concessões significativas ao chamado ópio do povo. Nos Estados Unidos o Pragmatismo de William James e o Instrumentalismo de John Dewey temperaram a situação permitindo uma espécie de trégua na qual, segundo Rhine, as concepções antípodas do homem – a religiosa e a científica – podem encontrar-se ao pé do leito de um moribundo sem estardalhaço. Mas as atrocidades da II Guerra Mundial geraram na Alemanha um movimento de reforma radical das Teologias tradicionais, que se projectou nos Estados Unidos e vem penetrando subtilmente em toda a América, através de traduções de livros dos novos teólogos, que anunciam a morte de Deus e pregam a novidade do Cristianismo Ateu.

Os teólogos mais uma vez se enganam. A teoria da Morte de Deus, que eles procuram inutilmente explicar como um acontecimento actual, do nosso tempo, nunca se verificou nem pode verificar-se. Deus não é um ser nem é mortal, porque é o Ser Absoluto, o Bem, segundo Platão, a Ideia Suprema de que derivam todas as ideias e, portanto, todas as coisas e todos os seres. Os teólogos da chamada Teologia Radical da Morte de Deus e, os seus companheiros de outros ramos teológicos subsequentes, sofrem de um processo de alucinação por transferência. Quem está a morrer não é Deus, são eles mesmos e as suas Teologias, eles e as Religiões formalistas e dogmáticas.

A concepção nova de Deus, que nasce dos escombros da concepção antropomórfica do passado, é a de uma Inteligência Cósmica que preside a toda a realidade possível. Os cosmonautas soviéticos, depois de umas voltas à volta do grão de areia da Terra, declaram eufóricos que Deus não existe, pois não tiveram o prazer de encontrá-lo nos subúrbios microscópicos do nosso planeta. Fizeram como o estudante de Eça de Queiroz, em A Cidade, que, para provar a inexistência de Deus, tirou o seu relógio-patacão do bolso do colete, diante dos colegas, e deu o prazo de alguns minutos para que Deus o fulminasse. Como não foi fulminado, declarou que estava provada a inexistência de Deus e guardou o patacão no bolso. Essas piadas servem apenas para nos mostrar o estado de ignorância em que ainda nos encontramos; e para provar, isso sim, que estamos mortos na nossa estupidez diante da grandeza do Cosmos. Dizer que Deus morreu é como dizer que a vida se extinguiu. O facto de estarmos vivos e fazermos essa afirmação já prova o contrário.

Os teólogos radicais são tão radicais que não admitem a única explicação possível para a sua teoria da Morte de Deus. Essa explicação seria a de que o Deus convencional das religiões morreu, com a ideia hoje inaceitável. Mas eles opõem-se a isso e dão explicações que ninguém pode entender, pois só entendemos o que é racional. O problema é mais sério do que pensam os teólogos, que fazem piada dizendo colocar Cristo provisoriamente no lugar de Deus, do que resulta o Cristianismo Ateu, última novidade das Religiões no Século XX.

Apesar de tudo isso, verifica-se que o que eles pretendem é colocar o problema da existência de Deus em termos mais acessíveis à razão. Essa pretensão coincide com os objectivos do pensamento francês, na sequência histórica mencionada acima. É pena que esses teólogos actuais não tenham a facilidade de expressão e a lucidez que caracterizam o pensamento francês. Se entre eles houvesse um teólogo gaulês, certamente lhes explicaria que o conceito celta de Deus devia satisfazê-los. Os celtas, que eram um povo monoteísta como os hebreus e viveram na Antiguidade, poderiam corrigir os teólogos actuais e dar lições de lógica às Religiões em agonia. Foram considerados bárbaros e sofreram na pele a barbárie dos civilizados romanos, mas Aristóteles afirmou que eles eram o único povo filósofo do mundo.

De todo o exposto parece evidente que a agonia actual das religiões nada tem a ver com a ReligiãoSim, porque a Religião é uma das características fundamentais da natureza humana. Parodiando a teoria aristotélica do animal político, podemos dizer que o homem é um animal religioso. A falsa teoria do espanto do mundo como origem da Religião, que até mesmo van der Leeuw ainda sustenta, não pode manter-se de pé diante da prova antropológica de que nunca existiu no mundo um povo ateu, desde os homens das cavernas até aos nossos dias. A ideia de Deus é inata no homem, como Descartes afirmou, depois de encontrá-la no fundo misterioso do cogito. É uma ideia evidente por si mesma e indispensável à compreensão de nós mesmos e do mundo.

Certas pessoas opiniáticas, muito ciosas de si mesmas, costumam dizer que Deus não existe porque ninguém pôde provar a sua existência. A própria Ciência ensina que a causa se prova pelo efeito. Basta-nos olhar uma flor ou um grão de areia para sabermos que Deus precisa existir, que existe necessariamente. O que não podemos aceitar é o Deus das religiões, porque esse Deus – ilógico e absurdo, como dizia Aristides Lobo – pertence a um passado remoto em que a humanidade necessitava dele. A essência da Religião constitui-se de apenas um núcleo e uma partícula, como o átomo de hidrogénio. O núcleo é a ideia de Deus e a partícula o sentimento religioso. A Religião verdadeira, que jamais agonizou e nunca morre, tem nesse átomo simples e puro a sua raiz simbólica.

Mas, para que a Religião possa desempenhar livremente o seu papel fundamental na evolução humana, é necessário que a reintegremos na Cultura Geral, como uma das suas áreas mais importantes. Para livrar o Conhecimento da dispersão produzida pelas especializações científicas, foi necessário criar-se a Filosofia da Ciência. Para livrar a Religião da pulverização sectária é indispensável libertá-la do formalismo dogmático, do profissionalismo religioso, do fanatismo igrejeiro. A agonia das religiões é determinada pela asfixia das estruturas antiquadas, do irracionalismo baseado no conceito do sobrenatural e da Revelação Divina. Os dois tipos de religião analisados por Bergson, o social e o individual, devem fundir-se na síntese da Religião do Homem, que ressalta historicamente das aspirações francesas e mereceu do poeta bengali Rabindranath Tagore um estudo lúcido e lírico. O Conhecimento é um todo, é global. A teoria e a prática são verso e reverso de um mesmo processo. O homo sapiens e o homo faber são uma e a mesma coisa: o homem. As especializações são simples formas de divisão do trabalho, de acordo com as diferenciações de tendências individuais. Ciência e Técnica, Filosofia e Moral, Metafísica e Religião são apenas divisões metodológicas do campo do Saber, formas disciplinares do pensamento e da acção.

A Era da Comunicação de Massas, que segundo McLuhan fez da Terra uma aldeia global, estourou o mundo chinês do passado, de muralhas e mandarinatos. A dicotomia kantiana, que negou a impossibilidade do conhecimento extra-sensorial, foi superada pelas conquistas físicas e psicológicas de hoje. O sobrenatural mudou de nome, é apenas o natural desconhecido que a investigação científica vai rapidamente integrando no Conhecimento Global da realidade una. Temos de adaptar-nos às condições novas e às novas dimensões do homem e do mundo. As próprias igrejas estão abrindo as portas dos conventos e dos mosteiros para não morrerem asfixiadas. As Ciências rompem com o passado, a Filosofia se livra dos sistemas para enfrentar com desenvoltura a problemática do pensamento, os tabus são esmigalhados pelo homem novo, os mestres e gurus se fazem discípulos da única fonte real de sabedoria que é a Natureza. O sacerdócio é uma espécie em extinção. Os teólogos foram confundidos por Deus, que não quis entregar-se nas suas mãos inábeis.

Se quisermos salvar a Religião, nesse maremoto das transformações que afligem os passadistas, façamos urgentemente a liquidação das religiões em agonia e mandemos os seus artigos de fé, os seus ícones e as suas medalhas para o Museu do Homem, como simples testemunhos de um tempo morto.

Tudo isto é aflitivo para os espíritos rotineiros e acomodatícios, como a mensagem cristã era escândalo para os judeus e espanto para gregos e romanos. Mas os espíritos flexíveis, corajosos, lúcidos, empenhados na busca da Verdade – essa relação directa do pensamento com o real – não se atemorizam, antes se rejubilam com a libertação do homem. Esta é a verdade flagrante do momento que vivemos: o homem liberta-se dos seus temores, da ilusão da sua fragilidade existencial, do confinamento planetário, do embuste e da hipocrisia, para viver a vida como ela é, na plenitude das suas potencialidades corporais e espirituais.

O homem emancipa-se e toma consciência da sua natureza cósmica. Diante dele está o futuro sem limites, a imortalidade dinâmica e demonstrável que se opõe ao conceito limitado da imortalidade estática e hipotética. A sua herança não é o pecado nem a morte, mas a vida em nova dimensão.

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José Herculano Pires, Agonia das Religiões / Capítulo 1 – Agonia das Religiões, 2º fragmento da obra.
(imagem de contextualização: Paraíso Perdido, estudo do Anjo, lápis e giz de Alexandre Cabanel)

quarta-feira, 6 de abril de 2016

O Espiritismo na Arte ~


Parte VII

A Música (Parte 2)
– A arte e a mediunidade
– O poder terapêutico da arte musical
(Agosto de 1922)

A música desperta na alma impressões de arte e de beleza que são a alegria e a recompensa dos espíritos puros, uma participação na vida divina nos seus encantos e nos seus êxtases.

A música, melhor que a palavra, representa o movimento, que é uma das leis da vida; eis por que a música é a própria voz do mundo superior.

Para exprimir os esplendores da obra universal é necessária a beleza suprema da forma. Dissemos que nem a poesia, nem a música suportam a mediocridade. No entanto, apesar da indigência estética do nosso tempo, é preciso reconhecer e louvar os esforços de alguns autores que, nas suas tentativas, se aproximaram do ápice e conseguiram realizar obras onde passa uma inspiração, uma radiação da beleza soberana. Pela ópera, notadamente, conseguiram mover a fibra dos entusiasmos generosos nas almas.

Isso porque, para gerar, para produzir obras geniais capazes de elevar as inteligências até aos pontos mais altos do pensamento, até ao ideal de beleza perfeita, é preciso, inicialmente, criar para si mesmo, edificar a sua própria personalidade e torná-la capaz de experimentar, de compreender os esplendores da vida superior e a eterna harmonia do mundo.

Que forças, que emanações, que consolações, que esperanças podemos passar a outras almas, se em nós mesmos temos apenas obscuridade, dúvida, incerteza e fraqueza? O que se poderia esperar de espíritos cépticos, fechados a todas as impressões elevadas, surdos a todas as vozes, a todos os ecos do Além?

A miséria estética da nossa época explica-se pela impotência da alma contemporânea em conceber uma fé esclarecida, uma concepção maior e mais elevada da beleza universal.

Por consequência, deve apreciar-se as excepções que se produzem e o entusiasmo de raros autores que se esforçam para conduzir a opinião em direcção às regiões do ideal.

Porém, à medida que um novo ideal desperta e os focos do espiritualismo se acendem sobre todos os pontos da Terra, veremos eclodir e desenvolver-se nas almas um reflexo mais poderoso dos esplendores da vida invisível, tal como a revelam os ensinamentos dos nossos amigos do Além. E isso será o sinal de uma floração de obras, o ponto de partida de uma era artística que suplantará em grandeza e em riqueza a obra dos séculos que a precederam.

Sem dúvida, o espectáculo do mundo terrestre e da vida humana, com os seus contrastes marcantes, oferece-nos uma variedade suficiente de quadros, de imagens, de cenas – amores e ódios, paixões e dores – para inspirar obras fortes, como as que o passado nos legou. Porém, que serão esses temas, por mais ricos que sejam, comparados ao imenso panorama que a revelação espírita e as suas descrições da vida dos espaços desenrola aos nossos olhos? Em que se transformam as peripécias de uma existência humana ao lado dos amplos horizontes do destino da alma na sua ascensão através do ciclo dos tempos e dos mundos? E as alegrias, as provações, as quedas, os reerguimentos, a descida no abismo e o bater de asas na luz, os holocaustos que são uma reparação, um resgate, as missões redentoras, a participação crescente na obra divina?

Quem contará as poderosas harmonias do Universo, harpa gigantesca vibrando sob o pensamento de Deus, o canto dos mundos, o ritmo eterno que embala a génese dos astros e das humanidades! Ou a lenta elaboração, a dolorosa gestação da consciência por meio de estágios inferiores, a trabalhosa construção de uma individualidade, de um ser moral! Quem narrará a conquista da vida, sempre mais ampla, mais plena, mais serena, mais iluminada pelos raios de luz do alto; a caminhada de cume em cume buscando obter a felicidade, o poder e o puro amor!

Esses importantes temas estão ao alcance de todos. Em todo o poeta, artista, escritor, existem insuspeitáveis germes de mediunidade e que apenas pedem para eclodir; por eles o obreiro do pensamento entra em relação com a fonte inesgotável e recebe a sua parte de revelação. Essa revelação de estética apropriada à sua natureza, ao seu género de talento, ele tem por missão exprimi-la sob formas que farão penetrar na alma das multidões uma vibração das forças divinas, uma radiação do foco eterno.

É na comunhão frequente e consciente com o mundo dos espíritos que os génios do futuro irão haurir os elementos das suas obras. Presentemente a penetração dos segredos da sua dupla vida vem oferecer ao homem a ajuda e os esclarecimentos que as religiões enfraquecidas não poderiam mais lhe proporcionar. Em todos os âmbitos, a ideia espírita vai fecundar o pensamento que trabalha.

O canto e a música, na sua íntima união, podem produzir a mais alta impressão. Quando a música é sustentada por nobres palavras, a harmonia musical pode elevar as almas até às regiões celestes. É o que acontece na música religiosa, no canto sacro.

O cântico produz uma dilatação salutar da alma, uma emissão fluídica que facilita a acção das potências invisíveis. Não há cerimónia religiosa verdadeiramente eficaz e completa sem o cântico. Quando a voz pura das crianças e dos jovens ressoa sob as abóbadas dos templos, dela se desprende como que uma sensação de suavidade angélica.

Porém, unida a palavras imorais, a música não é mais que um instrumento de perversão, um veículo de deformidade que precipita a alma na baixa sensualidade e é uma das causas da corrupção dos costumes na nossa época.

O fenómeno sonoro desenvolve-se de círculos em círculos, de esferas em esferas e dilata-se até ao infinito. Ele conduz a alma, nas suas grandes ondas, sempre mais longe, sempre mais alto no mundo do ideal e nela desperta sensações tão delicadas quanto profundas, que a dispõem às alegrias e aos êxtases da vida superior.

O seu poder misterioso e soberano estende-se sobre todos os seres, sobre toda a natureza. Efectivamente, a lei das vibrações harmónicas rege toda a vida universal, todas as formas de arte, todas as criações do pensamento. Ela introduz equilíbrio e ritmo em todas as coisas. Ela influi até na saúde física pela sua acção sobre os fluidos humanos. Sabe-se que Saul (i), nas suas crises nervosas, mandava chamar Davi, que, com os sons de sua harpa, acalmava a irritação do monarca. Em todos os tempos, e ainda nos nossos dias, a arte musical tem sido aplicada à terapêutica e, com resultados positivos. Poderíamos multiplicar os exemplos.

A harpa, com os seus sons eólicos (ii), dissipa as nossas inquietações, acalma as nossas dores e embala deliciosamente as nossas almas. Os nossos pais, os celtas (iii), consideravam-na como um elemento indispensável à vida intelectual. Realmente, o código de Hoël diz que “Há três coisas inalienáveis em um homem livre: o livro, a harpa e a espada.”

O maior dos bardos, Taliesin, (iv) desapareceu misteriosamente; porém, durante muito tempo a sua harpa foi vista flutuar sobre as águas do lago encantado. E os ecos da floresta de Broceliande (v) ainda ressoam, em certas horas, vibrações enfraquecidas da harpa de Merlin.

Os nossos pais viam na música o ensino estético por excelência, o mais seguro meio de elevar o pensamento até às sublimes alturas onde reside o génio inspirador. A harpa desempenha um importante papel nas evocações dos recintos sagrados e nas relações dos celtas com a multidão de invisíveis.

A voz humana também tem, quando é verdadeiramente bela, entonações de uma maleabilidade e de uma variedade que a tornam superior a todos os instrumentos. Melhor ainda do que eles, a voz pode exprimir todos os estados da alma, todas as sensações da alegria e da dor, desde o apelo de amor até as inflexões mais trágicas do desespero. Eis por que a introdução dos coros na música orquestral e na sinfonia enriqueceram a arte de um elemento de encanto e de beleza.

– Grandes compositores e a faculdade mediúnica
– A obra de Beethoven, de Berlioz e de Wagner

Quase todos os célebres compositores possuem faculdades mediúnicas que lhes possibilitam receber as inspirações do Além, que lhes permitem traduzir, sob a forma do seu próprio talento, as grandiosas concepções da eterna harmonia. Entre esses compositores, os mais notáveis parecem-nos ser Beethoven, Berlioz e Wagner (vi).

Beethoven deve ser considerado como o verdadeiro criador da sinfonia e, da sua frase melódica, pela sua amplitude e a sua beleza, representa a acção musical completa. Sob esse ponto de vista, o seu espírito domina e dominará por muito tempo ainda a música moderna. Diz-se que, recentemente, ele ditou a certo médium um hino espírita, destinado às sessões de evocação e, que em breve será publicado.

Berlioz também foi um sinfonista de grande envergadura; entre os compositores franceses, não há outro que seja mais difícil para se imitar devido ao seu vigoroso talento e à sua prodigiosa virtuosidade. Nessa música ardente, apaixonada, pitoresca, a intenção e a execução se combinam; ela possui o relevo e a força da região alpestre (vii), onde o autor nasceu. Ela exprime alternadamente o esplendor dos cumes e o horror dos abismos. Nela se encontra a voz das torrentes, os murmúrios da floresta, todas as harmonias da montanha na sua unidade e na sua variedade surpreendentes.

Nunca esquecerei a profunda impressão que me produziu a primeira audição de A Danação de Fausto. Eu tinha quase 20 anos e isso foi para mim, graças à sinfonia, a revelação de um mundo desconhecido, surpreendente em riquezas e maravilhas. Berlioz foi demasiado genial para ser bem compreendido pelos seus contemporâneos; como quase todos os inovadores, só depois da sua morte é que o público começou a apreciar o seu talento lírico.

Quanto a Richard Wagner, a sua obra colossal é totalmente impregnada de uma espiritualidade densa e difícil de suportar, que roça o materialismo, como todo o génio alemão. Porém, às vezes, dessa massa um pouco confusa, muitas vezes até vulgar e banal, brotam notas (viii) musicais que atingem os mais altos cumes.

Wagner retira muito dos seus predecessores, mas torna seu o que deles retira e, reveste-o de uma vida original e pessoal.

Infelizmente, nele a essência permanece inferior à forma e sob esse aspecto faltam à sua obra equilíbrio e precisão. As suas imagens e os seus temas são terrestres; quando quer povoar o espaço ele o faz sempre com deuses de máscaras trágicas e bastante humanas, por criaturas semimateriais, com capacetes e armadas, que cavalgam sobre nuvens em busca de batalhas sanguinolentas. Apenas duas das suas obras são excepções: Tristão e Isolda e Parsifal, inspiradas nas lendas célticas e cristãs.

A sua música, no seu conjunto, permanece sensual e não mantém o espírito nas altas regiões do sonho e da beleza. Isto porque Richard Wagner trabalhou somente para o teatro e, na ópera, como já dissemos, a música está encadeada à palavra e nisso, às vezes, se encontra uma causa de fraqueza e de inferioridade. Nesse género lírico, para produzir uma impressão mais forte, é preciso que a forma e o pensamento se equilibrem, se completem e continuem equivalentes. A forma majestosa associada a um pensamento muito pobre logo desaparece e não deixa mais que uma impressão superficial, uma vaga lembrança.

Ainda assim, apesar dos seus defeitos e das suas lacunas, a obra de Wagner tem o seu lugar marcado entre as grandes criações musicais. Ela mostra-nos mais uma vez que a arte é de todos os tempos, de todos os países e não tem pátria.

No entanto, na música, como em todas as coisas, a França revelou-se um país de equilíbrio: o bom gosto, a clareza, a avaliação são, para nós, as qualidades essenciais da arte.

Entre os gorjeios melodiosos, os arrulhos quase femininos da música italiana e as viris e possantes sonoridades da música alemã, a música fraterna coloca-se no centro e une as duas escolas opostas numa síntese feita de graciosidade, de força e de beleza.

As obras de Beethoven, Berlioz e Wagner parecem resumir a mais alta inspiração musical do nosso tempo. O futuro, porém, verá surgir outros homens, mais conscientes do mundo invisível que nos cerca, melhor dotados das faculdades mestras que permitem entrar em comunicação com esse mundo. Eles dotarão a humanidade de tesouros de arte e de poesia, dos quais não poderíamos mensurar desde agora a riqueza, a extensão e, que se tornarão para ela uma fonte inesgotável de alegria, de verdade, de beleza.

O pensamento e a inteligência são provenientes da mesma harmonia universal que a música e, é por isso que a música, sozinha, pode exprimir o que o pensamento e a inteligência concebem de mais elevado e mais sublime. Porque as vibrações sonoras, em si mesmas, são apenas uma manifestação da vida universal. Eis por que a musica desperta um eco nos recônditos da alma e nela reanima como que uma vaga lembrança dos céus profundos onde ela nasceu, onde ela viveu, onde ela reviverá!

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(i) Ver em I Samuel, 16: 14 a 23. (N.T.)
(ii) Sons eólicos: diz-se dos sons emitidos pela chamada harpa eólica. (Vide nota nº 53) (N.T.)
(iii) Celtas: conjunto de povos de língua indo-européia, individualizados por volta do segundo milénio e que ocuparam uma grande parte da Europa central. Habitando o sudoeste da Alemanha, os celtas se viram impelidos para a Gália, para a Espanha, para as Ilhas Britânicas, para o Vale do Pó, até que os romanos (séc. II a.C. – séc. I d.C.) destruíram o poder céltico, subsistindo apenas os reinos da Irlanda. Dinamismo, esquematização, triunfo da curva e de entrelaçados transfigurando o real são os maiores traços da sua arte, bem como a ornamentação das armas, a fabricação de moedas e a estatuária religiosa. Foi na Bretanha, no País de Gales e na Irlanda que o tipo e a língua célticas mais se conservaram. (N.T., segundo o Dictionnaire Le Petit Larousse - 2003.)
(iv) Bardo: entre os celtas, poeta, orador inspirado. Podemos compará-lo aos profetas do Oriente e a esses grandes predestinados sobre quem passa o sopro do invisível. Taliésin foi o autor de O Canto do Mundo. (N.T., segundo Léon Denis, em O Génio Céltico e o Mundo Invisível, 1ª parte, cap. III, Edições Léon Denis.)
(v) Broceliande: vasta floresta da Bretanha, antiga província da França, hoje floresta de Paimpont, localizada em Ille et Vilaine, e onde as lendas gaulesas fizeram viver Merlim ou Myrddhin, o Mágico. A fada Viviana, abusando das suas lições, encerrou-o num círculo mágico, de onde ele não pôde mais sair. (N.T. segundo o Dicionário Lello Universal, volumes I e III.)
(vi) Richard Wagner: compositor alemão (Leipzig, 1813 - Veneza, 1883). Autor de O Holandês Errante, ou O Navio Fantasma, Lohengrin, Os Mestres-cantores de Nuremberg, O Anel de Nibelungo, Tristão e Isolda, Parsifal. Génio de rara inspiração, modificou a concepção tradicional da ópera para vincular estreitamente a música à poesia e à dança e, obter um todo harmónico. Ele mesmo escrevia os libretos das suas músicas, inspirando-se, quase sempre, nas lendas nacionais da Alemanha. (N.T., segundo o Dicionário Lello Universal, volume III.)
(vii) Alpestre: referente aos Alpes, sistema montanhoso da Europa ocidental e meridional; alpino. (N.T.)
(viii) No original francês lê-se fusées musicales. Porém, a palavra fusée, substantivo feminino, significa: o fio enrolado no fuso, foguete de pólvora, fuso de relógio e fusa, um dos sinais gráficos com os quais se escreve uma música na pauta musical, daí o acréscimo do termo musicales. Na nossa tradução, optamos por usar a expressão notas musicais em lugar de fusas musicais. (N.T.)



LÉON DENIS, O Espiritismo na Arte, Parte VII A Música (Parte 2) – A arte e a mediunidade – O poder terapêutico da arte musical – Grandes compositores e a faculdade mediúnica – A obra de Beethoven, de Berlioz e de Wagner25º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: Mona Lisa 1503-1507 – Louvre, pintura de Leonardo da Vinci)

sexta-feira, 25 de março de 2016

Da sombra do dogma à luz da razão ~


Natureza da Revelação Espírita (XI)

  Não existe nenhuma ciência que tenha saído de todas as peças do cérebro de um homem; todas, sem excepção, são o produto de observações sucessivas, apoiando-se sobre as observações anteriores como sobre um ponto conhecido para se chegar ao desconhecido. 

  Foi assim que os Espíritos procederam para o Espiritismo; é por isso que o seu ensino é gradual; só abordam as questões à medida que os princípios sobre os quais se devem apoiar forem estando suficientemente elaborados e a opinião for estando madura para os assimilar. É até notável que, de todas as vezes que os centros particulares quiseram abordar as questões prematuramente, só obtiveram respostas contraditórias ou inconclusivas. Quando, pelo contrário, o momento favorável chegou, o ensinamento generalizou-se e unificou-se na quase universalidade dos centros.

 Há no entanto entre o andamento do Espiritismo e o das ciências uma diferença capital, que reside no facto destas só terem atingido o ponto a que chegaram após longos intervalos, enquanto ao Espiritismo bastaram alguns anos, se não para atingir o ponto culminante, pelo menos para recolher uma quantidade de observações suficientemente grande para constituir uma doutrina, isto deve-se ao número incontável de Espíritos que, por vontade de Deus, se manifestaram simultaneamente, trazendo cada um deles o contingente dos seus conhecimentos. Daqui resultou que todas as partes da doutrina, em vez de serem elaboradas sucessivamente durante vários séculos, foram-no quase simultaneamente em alguns anos e bastou juntá-las para formar um todo.

 Deus quis que assim fosse, primeiro para que o edifício chegasse mais rapidamente ao cume; em segundo lugar, para que se pudesse, por comparação, ter um controlo por assim dizer imediato e permanente na universalidade do ensino, não tendo cada uma das partes valor e autoridade a não ser através da sua ligação ao conjunto, devendo todas harmonizarem-se, encontrarem o seu lugar na arrumação geral e chegar cada uma a seu tempo.

 Não confiando a um só Espírito o cuidado da promulgação da doutrina, Deus quis além disso que o mais pequeno bem, assim como o maior, entre os Espíritos como entre os homens, levasse a sua pedra ao edifício, a fim de estabelecer entre eles um laço de solidariedade cooperativa que faltou a todas as doutrinas saídas de uma única fonte.

 Por outro lado, cada espírito, tal como cada homem, só possuindo uma soma limitada de conhecimentos, não conseguiria tratar individualmente ex professo as inúmeras questões que o Espiritismo aborda; eis também porque a doutrina, para preencher os objectivos do Criador, não podia ser obra nem de um só Espírito, nem de um só médium; só podia sair dos trabalhos colectivos controlados uns pelos outros. (i)

 Uma última característica da revelação espírita, e que resulta das próprias condições em que é feita, é que, apoiando-se nos factos, ela é e não pode deixar de ser essencialmente progressiva, tal como todas as ciências de observação. Pela sua essência, estabelece uma aliança com a ciência que, sendo a exposição das leis da natureza numa certa ordem de factos, não pode ser contrária à vontade de Deus, autor dessas leis. As descobertas da ciência glorificam Deus em vez de o diminuírem: só destroem o que os homens edificaram sobre as falsas ideias que criaram de Deus.

 Portanto, o Espiritismo estabelece unicamente como princípio absoluto o que é demonstrado com evidência ou que ressalta logicamente da observação. Tocando em todos os ramos da economia social a que dá o apoio das suas próprias descobertas, assimilará sempre todas as doutrinas progressistas, sejam de que ordem forem, atingida a ordem de verdades práticas e libertadas do domínio da utopia, sem o que se suicidaria; deixando de ser o que é; mentiria à sua origem e ao seu objectivo providencial. O Espiritismo, avançando com o progresso, nunca se excederá porque, se novas descobertas lhe demonstrarem que está errado num ponto, modificar-se-á nesse ponto; se uma nona verdade se revela, aceita-a. (ii)

 Qual a utilidade da doutrina moral dos Espíritos, já que não é mais do que a de Cristo? Tem o homem necessidade de uma revelação e não pode encontrar em si mesmo tudo o que lhe é necessário para se governar?

 Do ponto de vista moral, Deus forneceu sem dúvida ao homem um guia na sua consciência que lhe diz: «Não faças aos outros o que não queres que te façam.» A moral natural está certamente inscrita no coração dos homens, mas saberão todos lê-la? Não terão nunca ignorado os seus sábios preceitos? Que fizeram eles da moral de Cristo? Como a praticam esses mesmos que a ensinam? Não se tornou ela letra morta, uma bela teoria, boa para os outros mas não para si mesmo? Censuraríeis um pai por repetir dez vezes, cem vezes, as mesmas indicações aos filhos se eles não as aproveitassem? Por que faria Deus menos que um pai de família? Por que haveria de enviar, de tempos a tempos, mensageiros especiais para o meio dos homens, encarregados de os chamar às suas obrigações e de os recolocar no bom caminho quando se afastam dele, abrindo os olhos da inteligência aos que os fecharam, tal como os homens mais evoluídos enviam missionários para junto dos indígenas e dos bárbaros?

 Os Espíritos não ensinam outra moral que não a de Cristo por não haver nenhuma melhor. Mas então, para que servem os seus ensinamentos, uma vez que apenas dizem o que já sabemos? Poderíamos dizer o mesmo da moral de Cristo que foi ensinada quinhentos anos antes dele por Sócrates e Platão e em termos quase idênticos; de todos os moralistas que repetem a mesma coisa em todos os tons e em todas as formas. Pois bem, os Espíritos vêm muito simplesmente aumentar o número de moralistas, com a diferença que, manifestando-se por todo o lado, fazem-se entender na cabana tão bem como no palácio, tanto pelos ignorantes como pelas pessoas instruídas.

  O que o ensino dos Espíritos acrescenta à moral de Cristo é o conhecimento dos princípios que põem em contacto os mortos e os vivos, que completam as noções vagas que tinha dado da alma, do seu passado e do seu futuro e que sancionam a sua doutrina com as leis da mesma natureza. Com a ajuda do novo saber trazido pelo Espiritismo e pelos Espíritos, o homem compreende a solidariedade que une todos os seres; a caridade e a fraternidade tornam-se uma necessidade social; faz por convicção o que não fazia por obrigação e fá-lo melhor.

 Quando os homens praticarem a moral de Cristo, só então poderão dizer que já não precisam de moralistas encarnados ou não encarnados; mas então, também Deus não lhes enviará mais nenhum.

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(i) Ver, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, a Introdução e, na Revista Espírita, edição de Abril de 1864, a p. 90: Autoridade da Doutrina Espírita; Controlo Universal dos Ensinamentos dos Espíritos. (N. do A.)
(ii) Perante declarações tão claras e tão categóricas como as que estão contidas neste capítulo, caem todas as alegações de tendência para o absoluto e para a autocracia dos princípios, todas as falsas assimilações que pessoas preconceituosas ou mal informadas atribuem à doutrina. De resto, estas declarações não são novas; já as repetimos suficientes vezes nos nossos artigos para que não fique alguma dúvida a este respeito. Estabelecem-nos além disso o nosso verdadeiro papel, o único que ambicionamos: o de trabalhadores. (N. do A.)



ALLAN KARDEC, A GÉNESE – Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo, Capítulo I NATUREZA DA REVELAÇÃO ESPÍRITA números de 54 a 56 (XI), 13º fragmento da obra. Tradução portuguesa de Maria Manuel Tinoco, Editores Livros de Vida.
(imagem de contextualização: Diógenes e os pássaros de pedra, pintura em acrílico de Costa Brites)

segunda-feira, 14 de março de 2016

Inquietações Primaveris ~


os amantes | da morte

A teoria psico-fisiológica de que a dor é o exagero do prazer, tem a sua confirmação social, na existência universal, das comunidades dos amantes da morte. Desde todos os tempos, essas comunidades, se desenvolvem no seio ambivalente das religiões, onde se nutrem dos desesperos e das angústias, dos sacrifícios, das autoflagelações, dos cilícios e dos conformismos piedosos, torturando-se para as delícias do Paraíso. A ambivalência dessa situação, é evidente. Desejam e temem o prazer na Terra, onde tudo passa depressa, e escapam do impasse pela porta das promessas divinas que lhes oferecem o prazer eterno. Jogam na lotaria do Além a fortuna da saúde e as moedas doiradas da alegria, cobrindo-se de cinzas e farrapos, como faziam os judeus antigos, ou mergulhando na sujeira, no desinteresse pela comodidade e limpeza, como o faziam os frades penitentes, para morrerem com cheiro a santidade. O fedor da sujeira garantiria a participação nos banquetes da Eternidade. Os frades dos conventos isolados, dos desertos, permaneciam analfabetos para não caírem nas armadilhas do Diabo, cheias de petiscos intelectuais perigosos. As mais perigosas dessas privações sagradas eram benéficas, pois, trocando os prazeres carnais pelos prazeres ideais do outro mundo, desencadeavam nas criaturas ingénuas os delírios do misticismo lúbrico, evitados pelos espíritos de íncubos e súcubos, activíssimos na idade Média. Deus entregava os seus servos interesseiros e egoístas às tentações fatais desses demónios insaciáveis. Mas a lição não produziu efeitos, a não ser à dos expedientes da hipocrisia, com que os mais espertos conseguiam passar por santos prematuros, cujos deslizes ocasionais eram cobertos, piedosamente, por taxas escusas de indulgência. Até mesmo o Apóstolo Paulo, vibrante e culto, mas arcando com o peso do remorso pelas perseguições aos cristãos e pela lapidação de Estêvão, recomendava aos cristãos que não se casassem e aos casados que não praticassem relações sexuais. Mas bem cedo teve de recriminar os santos da Igreja de Corinto, que se tornavam piores do que os pecadores pagãos. Como ainda não havia a pílula anticoncepcional, cresciam os chifres do Diabo nas comunidades dos santos e algumas santas apareciam engravidadas. O culto da nudez, como estado de graça, proveniente do Éden, ainda nos tempos medievais, precisou ser reprimido por medidas enérgicas. Até hoje perduram no mundo cristão os resíduos desses tempos, em que os servos de Deus desobedeciam à lei bíblica; do multiplicai-vos, que não trazia nenhuma recomendação matrimonial, como se vê na Bíblia.

Os amantes da morte foram sempre muito práticos no trato com a vida. O celibato dos padres e das freiras foi sempre furado por medidas de excepção e até mesmo pela criação de taxas especiais de licença, como no caso referido por Aldous Huxley em Os Demónios de Ludan. No esforço para sufocar a vida em favor da morte, as igrejas sempre fracassaram e fracassarão, a menos que Deus permita a produção em massa da nova bomba de Neutrões, para poupar-se ao terrorismo de um novo dilúvio.

Jesus não violou as leis naturais criadas por Deus; aumentou o vinho que alegrava as Bodas de Caná, livrou a mulher adúltera da sanha feroz dos seus lapidadores, não escolheu celibatários para seus discípulos, aceitou Pedro com a família, como seu apóstolo, recebeu Madalena como discípula e foi a ela que apareceu na ressurreição. Apesar de tudo isso, o fermento velho dos rabinos, do Templo, ainda hoje leveda massas impuras no meio cristão. O Espiritismo não se organizou em igreja para evitar os prejuízos dessa hipocrisia contrária à lei de amor do Evangelho. Mesmo assim, aparecem ainda agora no meio espírita os pregadores da santidade hipócrita. São pregadores angélicos que semeiam essas ideias na ingenuidade pretensiosa das massas espíritas, talvez interessados nos chifres do Diabo ou no restabelecimento dos costumes de Sodoma, tão fartamente restabelecidos no nosso tempo. É inacreditável que isso possa acontecer no meio espírita, contrariando os princípios racionais e científicos da doutrina. Mas tudo pode acontecer, num período de transição como este, que estamos vivendo. Espíritas dizendo-se abstémios, de mãos postas e olhos voltados para o Além, tentando negar a sua condição humana para alcançar o Céu, é o que de mais ridículo e absurdo se possa imaginar. As funções normais da espécie, não podem ser suprimidas num organismo humano, sem causar desequilíbrios perigosos. A função sexual não tem por objecto o gozo sensual, mas a reprodução da espécie. Não obstante, o prazer sexual natural, na ligação normal e afectiva de duas criaturas que se amam, é também importante elemento de equilíbrio orgânico, psicofísico. A condenação do sexo é estúpida manifestação de hipocrisia. Os que tentam agora introduzi-la no meio espírita, só podem ser indivíduos frustrados ou, lamentavelmente desviados das suas funções normais. Esses indivíduos servem aos desequilíbrios dos espíritos vampirescos que se banqueteiam nos vícios inconfessáveis das criaturas humanas por eles subjugadas.

Recentemente tivemos a oportunidade de ver e ouvir, num programa de televisão, em que falavam representantes de várias religiões, um representante de uma casa espírita, declarar que precisamos sofrer intensamente na Terra, para chegarmos aos planos espirituais superiores. Era um amante da morte, e respondendo à pergunta do apresentador: “Como o senhor deseja passar para o outro lado?” disse: “Definhando bem lentamente no leito.” As palavras foram acompanhadas de uma gesticulação padresca e uma expressão fisionómica de delírio imbecil. Uma triste amostra de falta de conhecimento espírita e de tendência masoquista delirante. Aquele pobre homem aprendera o Espiritismo às avessas e sonhava com a morte, pelo definhamento, como se agradasse a Deus a tortura diabólica de uma morte nessas condições de miserabilidade total. Que Deus seria esse, algum Moloch acostumado a alimentar-se de crianças vivas assadas nas suas brasas? E que imagem da doutrina apresentava esse homem aos telespectadores? Seria um dos anjos da casa por ele representada que lhe sugerira essa demonstração de mentalidade masoquista?

Nem mesmo um frade trapaceiro, com cheiro a santidade, trazido como múmia egípcia, da era faraónica, faria com tanta perfeição a mais deturpada e triste figura de um masoquista delirante. O pobre homem parecia saborear, em êxtase, as delícias do seu definhamento no leito, à espera do Paraíso. O masoquista é um esquizofrénico de sensibilidade invertida. A esquizofrenia afasta-o da realidade imediata e envolve-o no delírio dos prazeres futuros que ele transforma em satisfações subjectivas no processo das transposições alienantes. Naquele breve instante de televisão, sob as luzes das lâmpadas atordoantes, o pobre homem sentia-se definhar diante das câmaras e do mundo, na plenitude dos gozos da morte lenta, inversão espasmódica de sensações ancestrais arquivadas no mundo mágico do inconsciente. Era doloroso vê-lo assim, naquela bem-aventurança da frustração.

A dor, o sofrimento e a morte não têm, na concepção espírita, esse sentido delirante que ele lhes dava. Pelo contrário, tudo no Espiritismo se define como articulações do processo único e universal da evolução. E esta não é milagrosa ou sobrenatural, pois é o desenvolvimento das potencialidades das coisas e dos seres no desenrolar histórico, no plano temporal, como no caso da Razão em Hegel. Tudo é teleológico, tem uma finalidade que se entrosa na engrenagem espantosa da teleologia universal. A dor – dizia Léon Denis – é a lei de equilíbrio e de educação. Nessa concepção não há lugar para a dor punitiva, castigo divino ou maldição. A dor é o efeito intrínseco das actividades evolutivas, como o prazer. Por isso a dor e o prazer, são verso e reverso de determinada acção, do ser na existência.

Da mesma maneira, a morte, sendo o limite extremo do processo existencial, liga-se a todo o processo vivencial do desenvolvimento humano. A lei de unidade encadeia a realidade, na direcção única do ser, do que resulta que o espírito, na sua expressão humana superior, reflecte a unidade total do cosmos na sua unidade ôntica. Deus cria e sustenta o real, mas os seres trabalham para si mesmos e para os outros, na facticidade de cada um e de todos. O Cosmos é a Colmeia geral em que cada abelha tem a sua missão, a tarefa vital e espiritual específica e entrosada no programa da espécie ou da raça. A consciência, trás em si, o esquema geral do Sistema, desde o esboço inconsciente dos planos inferiores, até ao desenho nítido e cada vez mais vivo, dos planos super-postos, entrosados e interpenetrados, segundo a visão das hipóstases, de Plotino. Por isso podemos abranger, no nosso microcosmos individual, como ideia geral, imanente em nós, toda a complexidade infinita do Sistema. Dessa maneira, somos também responsáveis pela Criação e, sofremos as consequências das nossas actividades conscienciais, vitais e existenciais, bem como as materiais, sem que nenhuma autoridade externa nos condene ou nos aprove. Assim compreendida, a realidade, podemos também compreender a total liberdade do ser, como decorrência natural da sua responsabilidade total. Somos aquilo que fazemos em nós e por nós no lugar que nos compete.

A morte marca o limite da tarefa que nos foi confiada e, nos transfere para o plano de avaliação de nós mesmos e, do que fizemos. O renascimento resulta desse balanço final, de uma existência e, nos prepara para a seguinte. Os méritos e os deméritos, de tudo quanto fizermos, são exclusivamente nossos, pois o objectivo do Todo é a formação de todos e de cada um, para as actividades futuras no desenvolvimento de toda a perfectibilidade possível, em tudo, em todos e no Todo.

As preparações religiosas para a morte e, os sacramentos extremos, não oferecem ao homem, os dados necessários à compreensão de todo esse processo. Simplesmente reforçam, no espírito do moribundo, as vagas esperanças do perdão e das terríveis ameaças do castigo. Os familiares, podem orar pelos que participam, mas nunca sabem para onde partiram e o que realmente acontece nessa viagem misteriosa. A Educação para a Morte é um curso de bem viver para bem morrer, com plena consciência do sentido e da significação da morte e da sua importância para a vida. Os amantes da morte, não a conhecem, como não conhecem os mortos, dos quais só vêem os cadáveres. A Espiritualidade actual, do mundo, é uma a-espiritualidade, como a definiu Kierkeggard. Se não tratarmos da Educação para a morte, não sairemos do círculo vicioso em que entramos, sem ter vivido.

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José Herculano Pires, Educação para a Morte, 16 – Os Amantes da Morte, 21º fragmento desta obra.
(imagem de contextualização: O caranguejo, pintura de William-Adolphe Bouguereau)