Da arte com que trabalharmos o nosso pensamento dependem as nossas misérias ou as nossas glórias...

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Golpe de Vista Histórico


Os primeiros cristãos ~

   Foi à obrigação lógica de explicar a acção da alma sobre o invólucro físico que cederam os primeiros cristãos, acreditando na existência de uma substância mediadora. Aliás, não se compreende que o espírito seja puramente imaterial, porquanto, então, nenhum ponto de contacto teria com a matéria física e não poderia existir, desde que deixasse de estar individualizado num corpo terrestre.

   No conjunto das coisas, o indivíduo é sempre determinado pelas suas relações com outros seres; no espaço, pela forma corpórea; no tempo, pela memória.
   O grande apóstolo S. Paulo fala várias vezes de um corpo espiritual, imponderável, incorruptível, e Orígenes, em seus Comentários sobre o Novo Testamento, afirma que esse corpo, dotado de uma virtude plástica, acompanha a alma em todas as suas existências e em todas as suas peregrinações, para penetrar e enformar os corpos mais ou menos grosseiros e materiais que ela reveste e que lhe são necessários no exercício de suas diversas vidas.
   Eis aqui, segundo Pezzani, as opiniões de alguns Pais da Igreja sobre essa questão.
   Orígenes e os Pais alexandrinos, que sustentavam um a certeza, os outros a possibilidade de novas provas após a provação terrena, propunham a si mesmos a questão de saber qual o corpo que ressuscitaria no juízo final. Resolveram-na, atribuindo a ressurreição apenas ao corpo espiritual, como o fizeram S. Paulo e, mais tarde, o próprio Santo Agostinho, figurando como incorruptíveis, finos, ténues e soberanamente ágeis os corpos dos eleitos.
   Então, uma vez que esse corpo espiritual, companheiro inseparável da alma, representava, pela sua substância quintessenciada, todos os outros envoltórios grosseiros, que a alma pudera ter revestido temporariamente e que entregara ao apodrecimento e aos vermes nos mundos por onde passara; uma vez que esse corpo havia impregnado de sua energia todas as matérias para um uso limitado e transitório, o dogma da ressurreição da carne substancial recebia, dessa concepção sublime, brilhante confirmação. Concebido desse modo, o corpo espiritual representava todos os outros que somente mereciam o nome de corpo pela sua adjunção ao princípio vivificante da carne real, isto é, ao que os espíritas denominaram perispírito.
   Diz Tertuliano que os anjos têm um corpo que lhes é próprio e que, como lhes é possível transfigurá-lo em carne humana, eles podem, por um certo tempo, fazer-se visíveis aos homens e comunicar-se com estes visivelmente. Da mesma maneira fala S. Basílio. Se bem haja ele dito algures que os anjos carecem de corpo, no tratado que escreveu sobre o Espírito Santo, avança que os anjos se tornam visíveis pela espécie de corpo que possuem, aparecendo aos que de tal coisa são dignos.
   Nada há na criação, ensina Santo Hilário, que não seja corporal, quer se trate de coisas visíveis, quer de coisas invisíveis. As próprias almas, estejam ou não ligadas a um corpo, têm uma substância corpórea inerente à natureza delas, pela razão de que é necessário que toda coisa esteja nalguma coisa. Só Deus sendo incorpóreo, segundo S. Cirilo de Alexandria, só ele não pode estar circunscrito, enquanto que todas as criaturas o podem, ainda que seus corpos não se assemelhem aos nossos. Mesmo que os demónios sejam chamados animais aéreos, como lhes chama Apuleio, sê-lo-ão no sentido em que falava o grande bispo de Hipona, porque eles têm natureza corpórea, sendo uns e outros da mesma essência.
   S. Gregório, por seu lado, chama ao anjo um animal racional e S. Bernardo nos dirige estas palavras: “Unicamente a Deus atribuamos a imortalidade, bem como a imaterialidade, porquanto só a sua natureza não precisa, nem para si mesma, nem para outrem, do auxílio de um instrumento corpóreo”. Essa era também, de certo modo, a opinião do grande Ambrósio de Milão, que a expunha nestes termos:
   “Não imaginemos haja algum ser isento de matéria na sua composição, excepto, única e exclusivamente, a substância da adorável Trindade.” 
   O mestre das sentenças, Pedro Lombardo, deixava em aberto a questão; esposava, contudo, esta opinião de Santo Agostinho:
   “Os anjos devem ter um corpo, ao qual, entretanto, não se acham sujeitos, corpo que eles, ao contrário, governam, por lhes estar submetido, transformando-o e imprimindo-lhe as formas que lhe queiram dar, para torná-lo apropriado aos actos deles.”

- A escola neoplatónica

   A escola neoplatónica de Alexandria foi notável de mais de um ponto de vista. Tentou a fusão dos filósofos do Oriente com a dos gregos e, dos trabalhos de Proclo, Plotino, Porfírio, Jâmblico, ideias novas surgiram sobre grande número de questões. Sem dúvida, a esses pesquisadores se pode censurar uma tendência por demais excessiva para a misticidade; entretanto, mais do que quaisquer outros eles se aproximaram da verdade que hoje experimentalmente conhecemos.
   As vidas sucessivas e o perispírito faziam parte do ensino deles. Em Plotino, como em Platão, à separação da alma e do corpo se achava ligada a ideia da metempsicose, ou metensomatose (pluralidade das vidas corpóreas).
   “Perguntamos: qual é, nos animais, o princípio que os anima? Se é verdade, como dizem, que os corpos dos animais encerram almas humanas que pecaram, a parte dessas almas susceptível de separar-se não pertence intrinsecamente a tais corpos; assistindo-as, essa parte, a bem dizer, não lhes está presente. Neles, a sensação é comum à imagem da alma e ao corpo, mas, ao corpo, enquanto organizado e modelado pela imagem da alma. Quanto aos animais em cujos corpos não se haja introduzido uma alma humana, esses são engendrados por uma iluminação da alma universal.” 
   A passagem da alma humana pelos corpos dos seres inferiores é aqui apresentada sob forma dubitativa. Sabemos agora que nenhum recuo é possível na senda eterna do tornar-se, porquanto nenhum progresso seria real, se pudéssemos perder o que tenhamos adquirido pelo nosso esforço pessoal. A alma que chegou a vencer um vício, dele se libertou para sempre; é isso o que assegura a perfectibilidade do espírito e garante a felicidade futura para o ser que soube libertar-se das más paixões inerentes ao seu estado inferior. Plotino afirma claramente a reencarnação, isto é, a passagem da alma de um corpo humano para outros corpos.
   “É crença universalmente admitida que a alma comete faltas, que as expia, que sofre punição nos infernos e passa em seguida por novos corpos.
   Quando nos achamos na multiplicidade que o Universo encerra, somos punidos pelo nosso próprio desvio e pela sequência de uma sorte menos feliz.
   Os deuses dão a cada um a sorte que lhe convém, de harmonia com seus antecedentes, em suas sucessivas existências.” 
   Profundamente justo e verdadeiro é isto, porquanto, em nossas múltiplas vidas, defrontamos com dificuldades que temos de transpor, para chegarmos ao nosso melhoramento moral ou intelectual. Falso, porém, seria esse princípio, se o aplicássemos às condições sociais, porque, então, o rico teria merecido sê-lo e o pobre se acharia aqui em punição, o que é contrário ao que se observa quotidianamente, pois podemos comprovar que a virtude não constitui apanágio especial de nenhuma classe da sociedade.
   “Há, para a alma – diz Porfírio –, duas maneiras de ser em um corpo: verifica-se uma delas quando a alma, já se encontrando num corpo celeste, sofre uma metamorfose, isto é, quando passa de um corpo aéreo ou ígneo a um corpo terrestre, migração a que de ordinário se chama metensomatose, porque não se vê donde vem a alma; a outra maneira se verifica quando a alma passa do estado incorpóreo a um corpo, seja qual for, e entra assim, pela primeira vez, em comunhão com o corpo. As almas descem do mundo inteligível ao primeiro céu; aí, tomam um corpo (espiritual) e, em virtude mesmo desse corpo, passam para corpos terrestres, segundo se distanciam mais ou menos do mundo inteligível.”
Esta doutrina Porfírio desenvolveu-a longamente em sua Teoria dos Inteligíveis, onde assim se exprime:
   “Quando a alma sai do corpo sólido, não se separa do espírito que recebeu das esferas celestes.”
   A mesma idéia se nos depara nos escritos de Proclo, que chama a esse espírito o veículo da alma.
   De um estudo atento dessas doutrinas resulta que os neoplatónicos sentiram a necessidade de um invólucro subtil para a alma, em o qual se registam, se incorporam os estados do espírito. É, com efeito, indispensável que o espírito, através de suas vidas sucessivas, conserve os progressos que realizou, sem o que, a cada encarnação, ele se acharia como na primeira e recomeçaria perpetuamente a mesma vida.


GABRIEL DELANNE, A Alma é Imortal, Primeira parte A observação, Capítulo I Golpe de vista histórico – As crenças antigas, fragmento.
(imagem: Madonna with the Christ Child and Saint John the Baptist - 1863, pintura de William-Adolphe Bouguereau)

domingo, 25 de setembro de 2011

Silêncio que canta…


Uma tarde de verão, deixara eu as flóreas vertentes de Sainte-Adresse, deliciosa vila litorânea recortada em colinas, para galgar as grimpas do cabo Heve,
que ao

poente lhe demoram. Quando, de sua base contemplamos os cabeços desses penhascos, acreditamos estar vendo colossos de granito avermelhados pelo sol, quais gigantes imóveis que assistissem, petrificados, aos bramidos do oceano que vem morrer a seus pés.

No seu isolamento, esses maciços enormes e inacessíveis pelo lado do mar parecem talhados para dominar o soberbo panorama. A seu lado, fronteando o oceano, o homem sente-se tão insignificante que acaba perdendo de vista a própria existência e confundindo-se com a vida abstracta, que paira acima dos bramidos oceânicos.

Sempre a subir, cheguei ao plano superior, onde ficam os semáforos que avisam, longe, aos navios o movimento horário das vagas costeiras, onde os faróis se acendem à boca da noite, quais estrelas permanentes na amplidão das trevas.

O Sol, glorioso, ainda se pendurava rubro das nuvens incendidas, posto que já oculto para o Havre e para as planuras que bordam o estuário do Sena. Ao alto, o céu azul me coroava com a sua pureza. Em baixo, a mata, fervilhante de insectos, exalava em ondas o seu perfume.

Caminhei até à escarpa, ao fundo da qual se mostram os abismos. Do cairel da rocha em vertical, o olhar domina a imensidão dos mares, desdobrados à esquerda, de sueste a nordeste.

Mergulhando-o perpendicularmente, ele se perde na profundeza de massas verdes, rochedos e brenhas escuras – tapete rústico estendido a trezentos pés abaixo dos contrafortes dessa muralha.

O gemido das vagas mal nos chega nestas alturas, nosso ouvido apenas percebe um rumor uniforme, que o vento gradua de intensidade. É um silêncio que canta, longe do mar.


CAMILLE FLAMMARION, Deus na Natureza, Tomo V – DEUS (2 de 4 fragmento)
(imagem: Adyll Água, pintura de Hans Zatzka 1859-1945)

sábado, 24 de setembro de 2011

A Terceira Revelação / os média

   45. A primeira revelação estava personificada em Moisés, a segunda em Cristo e a terceira não o está em nenhum indivíduo…/

   46. Sendo as duas primeiras revelações produto de um ensinamento pessoal, foram forçosamente localizadas.
Isso quer dizer que tiveram lugar num só ponto, à volta do qual a ideia se foi expandindo de uns para os outros; mas foram precisos muitos séculos para que atingissem os extremos do mundo, mesmo sem o invadirem por completo.

   A terceira tem isso de particular; não sendo personificada num indivíduo, produziu-se simultaneamente em milhares de pontos diferentes e todos se tornaram centros ou focos de irradiação. Ao multiplicarem-se estes centros, a sua radiação une-se a pouco e pouco, como os círculos formados por uma quantidade de pedras atiradas à água; de tal maneira que, em determinada altura, acabarão por cobrir a superfície total do globo.

   É esta uma das causas da rápida propagação da doutrina. Se tivesse surgido num só ponto, se tivesse sido obra exclusiva de um homem, teria formado uma seita à sua volta; mas meio século teria talvez decorrido antes de ter atingido os limites do país onde tivesse nascido, enquanto que assim, dez anos depois, tem rebentos implantados de um pólo ao outro.

   47. Esta circunstância, espantosa na história das doutrinas, confere a esta uma força excepcional e uma força de acção irresistível; com efeito, se a comprimirmos num ponto, num país, é materialmente impossível comprimi-la em todos os pontos, em todos os países. Por cada sítio onde seja reprimida, haverá mil ao lado onde florescerá.

   Ainda mais, se a extinguirmos num indivíduo, não podemos extingui-la nos Espíritos, que são dela a fonte. Ora, como os Espíritos estão em todo o lado e porque sempre existirão, se, por impossível, se conseguisse abafá-la em todo o globo, ela reapareceria algum tempo depois, porque assenta sobre um facto, facto esse que está na natureza, e não podemos suprimir as leis da natureza. É disto que se devem então convencer os que sonharam com a aniquilação do Espiritismo. (Revista Espírita, Fevereiro de 1865, p. 38: Perpetuidade do Espiritismo.)

   48. No entanto, estes centros disseminados deveriam permanecer ainda algum tempo isolados uns dos outros, confinados como alguns estão a países longínquos. Era necessário entre eles um traço de união que os colocasse em comunhão de pensamento com os seus irmãos de doutrina, ensinando-lhes o que se fazia noutros lugares.

   Este traço de união, que terá faltado ao Espiritismo na antiguidade, encontra-se nas publicações que chegam a todo o lado, que condensam numa forma única, concisa e metódica, os ensinamentos dados em todos os sítios sob múltiplas formas e em línguas diversas.

ALLAN KARDEC, A GÉNESE, Os Milagres e as Profecias Segundo o Espiritismo – Capítulo I, Natureza e Revelação Espírita 46. 47. e 48.
(imagem: Two Angels, pintura de Edgar Maxence)

domingo, 18 de setembro de 2011

~~Em torno da humildade~~

“Toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do Alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança.”
 – Tiago

(Tiago, 1:17.)

   Afinal, que possuímos que não devemos a Deus? A própria vida de que dispomos se reveste de tanta grandeza e de tanta complexidade, que só a loucura ou a ignorância não reconhecem a Divina Sabedoria em seus fundamentos.

   Para a consideração disso, basta que o homem reflicta no usufruto inegável de que se vale na mobilização dos bens que o felicitam no mundo.

   O corpo que lhe serve de transitória morada é uma doação dos Poderes Superiores, por intermédio do santuário genético das criaturas.

   Os familiares se lhe erigem como sendo apoios de empréstimo.

   A inteligência se lhe condiciona a determinados factores de expressão.

   O ar que respira é património de todos.

   As conquistas da ciência, sobre as quais baseia o progresso, são realizações correctas, mas provisórias, porquanto se ampliam consideravelmente, de século para século.

   Os seus elementos de trabalho são alteráveis de tempo a tempo.

   A saúde física é uma dádiva em regime de comodato.

   A fortuna é um depósito a título precário.

   A autoridade é uma delegação de competência, obviamente transferível.

   Os amigos são mutáveis, na troca incessante de posições, pela qual são frequentemente chamados a prestação de serviço, segundo os ditames que os princípios de aperfeiçoamento ou de evolução lhes indiquem.

   Os próprios adversários, a quem devemos preciosos avisos, são substituídos periodicamente.

   Os mais queridos objectos de uso pessoal passam de mão em mão.

   Em qualquer plano ou condição de existência, estamos subordinados à lei da renovação. À vista disso, sempre que nos vejamos inclinados a envaidecer-nos por alguma coisa, recordemos que nos achamos inelutavelmente ligados à Vida de Deus que, a benefício de nossa própria vida, ainda hoje tudo pode rearticular, refundir, refazer ou modificar.


ESPÍRITO EMMANUEL, Ceifa de Luz – Em torno da humildade, psicografia de FRANCISCO CÂNDIDO XAVIER
(imagem: The Bird's Nest - 1860, pintura de Charles Joshua Chaplin)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

~~~Párias em Redenção~~~


1. O DUQUE DI BICCI DI M.
…/

   A enfermidade que vitimara o dono do palácio fora breve. Seu organismo, antes robusto, recusara-se a lutar, dominado que se encontrava pela insuportável saudade da esposa – espírito de rara e peregrina beleza, que viera ter à

Terra para alça-lo e aos seus a região superior da vida. Religiosa, fora Dona Ângela, antes tudo, piedosa, e suas mãos delicadas, raramente adereçadas de gemas, repartiam bênçãos aos que a buscavam, reservando também um dia por semana para visitar os pobres e enfermos, de alguns dos quais ela mesma cuidava, embora os servos que a seguiam nas suas romagens de misericórdia e socorro, conduzindo volumes com repasto e guloseimas, moedas e agasalhos, formassem um séquito prestimoso e dedicado.

   À sua chegada, enxugavam-se as lágrimas e a esperança refloria. Não foram poucos os que lhe receberam da bondade multiplicados pães e vestuários, unguentos e bálsamos. O médico e o sacerdote do palácio, por ordem sua, eram igualmente o esculápio e o pastor dos infelizes de todos aqueles sítios. As guerras contínuas ali haviam deixado várias gerações esfaimadas…

   Em torno do seu nome e da sua pessoa eram tecidos comentários elevados, quais grinaldas de luz, e os múltiplos beneficiários nela sabiam reconhecer a dama da caridade, a irmã da compaixão…

   O duque, a seu turno, rejubilava-se, apesar de, zeloso, preocupar-se com a sua guarda, nas excursões fora dos muros da propriedade.

   Pela estrada real, a Via Cassia, que conduzia de Siena a Florença, não eram poucos os bandoleiros em surtidas constantes, e as escaramuças contínuas com os salteadores exigiam que todos os senhores de terras mantivessem pequenos exércitos de mercenários, nos quais, no entanto, a abnegação e o dever estavam relacionados com o salário que o opositor lhes pudesse oferecer.

   Como o bem aureola e defende todo aquele que o esparze, jamais qualquer dificuldade obstara a nobre senhora de realizar o exercício santo do amor fraterno. Parecia que no ministério da Caridade suas forças se multiplicavam e os dons da alegria lhe refundiam ânimo e tranquilidade.

   Quando da extinção da “Casa Médici”, em 1737, que passara o poder do grão-ducado da Toscana a Francisco de Lorena, esposo de Maria Teresa da Áustria – Segunda Casa de Lorena –, a Senhora Ângela, ao invés de quebrantar o ânimo mais o aumentara, tornando-se o estimulo constante e o encorajamento do esposo, que resolvera reagir e preservar o património, evitando evadir-se da região, como ocorrera a outros membros da família.

   Antes da derrocada, todo o ducado readquirira com Cosme II o esplendor de outros tempos, embora o seu carácter fraco e pusilânime, sendo, pois, devedor de muitas das suas glórias de então à  tradicional família, descendente de Bonagiunta, o comerciante florentino que enriquecera nas transacções internacionais. De certo modo, o fausto e as extravagâncias de Cosme III, que sucedera, foram responsáveis pela decadência da Toscana, a vergonha e a quase miséria dele mesmo.

   Com a elevação moral da esposa e o seu carácter inquebrantável, o duque reconquistara, também, o prestígio em torno do nome, enquanto que, amado, prosseguia, nos domínios em que se erguia a vila palaciana, como um reduto remanescente de mentes esclarecidas dos dias idos, não porém, apaixonado.

   Desaparecida Ângela, as sombras da tristeza e do acabrunhamento desceram sobre o vetusto solar, cuja beleza somente se destacava através da alacridade infantil das três crianças, quando dos folguedos nos jardins ou nos corredores atapetados do majestoso edifício.

   A saudade e a melancolia, cultivadas, são também sementes venenosas que aniquilam a seiva da vida no seio em que se agasalham. Parasitas, nutrem-se matando. Assim, quando a enfermidade surpreendeu o duque di Bicci di M., as forças morais se recusaram a duelar e o corpo se permitiu deixar vencer.

   Especialmente convidado para as exéquias, o Bispo de Siena fez-se presente, acolitado por um séquito de ociosos, e o velório transformou-se em local em que sobressaíam o arrivismo e os seus sequazes, atendidos através de repasto abundante, tendo Lúcia no comando dos serviços, duramente vigiada por Girólamo, que maquinava planos sórdidos, e por Assunta, que se passava por sua amiga, enquanto os convidados se deixavam conduzir pelo vinho, consumindo os acepipes… A bulha era geral e o silêncio somente era feito pelo corpo desencarnado. As crianças adormeceram a custo, ajudadas por uma serva leal e da confiança de Lúcia. O solar mergulhava em dor, na alma de uns, e enchia de cobiça os espíritos infelizes de muitos.

   A longa madrugada começa a despertar sobre o burgo encharcado das chuvas contínuas, enquanto Girólamo, maquiavélico, encoraja os próprios programas inditosos.

   Enquanto Lúcia serve ao Bispo, que se locupleta em farta bandeja de doces e chá quente, Girólamo, se lhe acerca, simulando afectada gentileza, e da palestra incipiente, despropositada, sonda, maledicente, o ocioso religioso, quanto ao que consta sobre o testamento do tio.

   Um tanto estimulado pelo capitoso vinho, ingerido em contínuas libações ao longo da noite, o sacerdote se refere à tutela que Lúcia exercerá sobre as crianças, com plenos poderes ao património, até que aquelas alcancem a maioridade. Encorajado pelo moço venal, comenta da sua estranheza quanto à atitude generosa do senhor em referência a uma jovem sem linhagem nem fortuna. Lamenta a situação do rapaz, que continuará sob mesada, a ser distribuída pela testamentária, sob fiscalização do poder público, e diz-se revoltado por a Igreja não ter sido aquinhoada, recordando-se, enfático, de que algumas décadas entes os religiosos eram prestigiados em toda a Toscana, graças à família…

   Lisonjeado o moço, o representante religioso adianta que se este fora herdeiro tudo, certamente, seria diverso.

   Girólamo, em febre, sorri, corado, inquieto, e medita.

   O ódio lhe desperta as paixões subalternas, o ciúme o enceguece e o desespero o asfixia.

   Mentalmente, tem o plano definido: não poderá falhar. Tudo concorre para o seu êxito. Tem mesmo a impressão de que conta com o conivente apoio do prelado ambicioso.

   Intimamente gargalha. Entre dentes, murmura: “Pagar-me-ás, fera peçonhenta e espoliadora! Pagar-me-eis, tu e o vil Senhor di Bicci di M. Não suporto quase esperar! Pagar-me-eis logo mais. Paciência! Espera, Girólamo. Acalma-te!”.

   Raia o dia nevoento e demorado. O calendário assinala: 22 de Dezembro de 1745.  


VICTOR HUGO, Espírito “PÁRIAS EM REDENÇÃO ” – LIVRO PRIMEIRO, 1. O DUQUE DI BICCI DI M. (fragmento 3 de 3) psicografia de DIVALDO PEREIRA FRANCO
(imagem: L’âme de la forêt _1898, pintura de Edgar Maxence)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

~~Acima de todas as crenças~~

I - As Religiões, A Doutrina Secreta

   Quando se lança um golpe de vista sobre o passado, quando se evoca a recordação das religiões desaparecidas, das crenças extintas, apodera-se de nós uma espécie de vertigem ante o aspecto das sinuosidades percorridas pelo pensamento humano. Lenta é sua marcha. Parece, a princípio, comprazer-se nas criptas sombrias da Índia, nos templos subterrâneos do Egipto, nas catacumbas de Roma, na meia-luz das catedrais; parece preferir os lugares escuros à atmosfera pesada das escolas, o silêncio dos claustros às claridades do céu, aos livres espaços, em uma palavra, ao estudo da Natureza.

   Um primeiro exame, uma comparação superficial das crenças e das superstições do passado conduz inevitavelmente à dúvida. Mas, levantando-se o véu exterior e brilhante que ocultava às massas os grandes mistérios, penetrando-se nos santuários da idéia religiosa, achamo-nos em presença de um facto de alcance considerável. As formas materiais, as cerimónias extravagantes dos cultos tinham por fim chocar a imaginação do povo. Por trás desses véus, as religiões antigas apareciam sob aspecto diverso, revestiam carácter grave e elevado, simultaneamente científico e filosófico. Seu ensino era duplo: exterior e público de um lado, interior e secreto de outro, e, neste último caso, reservado somente aos iniciados. Conseguiu-se, não há muito, reconstituir esse ensino secreto, após pacientes estudos e numerosas descobertas epigráficas.  Desde então, dissiparam-se a obscuridade e a confusão que reinavam nas questões religiosas; com a luz, fez-se a harmonia. Adquiriu-se a prova de que todos os ensinos religiosos do passado se ligam, porque, em sua base, se encontra uma só e mesma doutrina, transmitida de idade em idade a uma série ininterrupta de sábios e pensadores.

   Todas as grandes religiões tiveram duas faces, uma aparente, outra oculta. Está nesta o espírito, naquela a forma ou a letra. Debaixo do símbolo material, dissimula-se o sentido profundo. O Bramanismo, na Índia, o Hermetismo, no Egipto, o Politeísmo grego, o próprio Cristianismo, em sua origem, apresentam esse duplo aspecto. Julgá-las pela face exterior e vulgar é o mesmo que apreciar o valor moral de um homem pelos trajes. Para conhecê-las é preciso penetrar o pensamento íntimo que lhes inspira e motiva a existência; cumpre desprender do selo dos mitos e dogmas o princípio gerador que lhes comunica a força e a vida. Descobre-se, então, a doutrina única, superior, imutável, de que as religiões humanas não são mais que adaptações imperfeitas e transitórias, proporcionadas às necessidades dos tempos e dos meios.

   Em nossa época, muitos fazem uma concepção do Universo, uma idéia da verdade, absolutamente exterior e material. A ciência moderna, em suas investigações, tem-se limitado a acumular o maior número de factos e, depois, a deduzir daí as suas leis. Obteve, assim, maravilhosos resultados, porém, por tal preço, ficar-lhe-á sempre inacessível o conhecimento dos princípios superiores e das causas primitivas. As próprias causas secundárias escapam-lhe. O domínio invisível da vida é mais vasto do que aquele que é atingido pelos nossos sentidos: lá reinam essas causas de que somente vemos os efeitos.

   Na antiguidade tinham outra maneira de ver, e um proceder muito diferente. Os sábios do Oriente e da Grécia não desdenhavam observar a natureza exterior, porém era sobretudo no estudo da alma, de suas potências íntimas, que descobriam os princípios eternos. Para eles, a alma era como um livro em que se inscrevem, em caracteres misteriosos, todas as realidades e todas as leis. Pela concentração de suas faculdades, pelo estudo profundo e meditativo de si mesmos, elevaram-se até à Causa sem causa, até ao princípio de que derivam os seres e as coisas. As leis inatas da inteligência explicavam-lhes a harmonia e a ordem da Natureza, assim como o estudo da alma lhes dava a chave dos problemas da vida.

   A alma, acreditavam, colocada entre dois mundos, o visível e o oculto, o material e o espiritual, observando-os, penetrando em ambos, é o instrumento supremo do conhecimento. Conforme seu grau de adiantamento ou de pureza, reflecte, com maior ou menor intensidade, os raios do foco divino. A razão e a consciência não só guiam nossa apreciação e nossos actos, mas também são os mais seguros meios para adquirir-se e possuir-se a verdade.

   A tais pesquisas era consagrada a vida inteira dos iniciados. Não se limitavam, como em nossos dias, a preparar a mocidade com estudos prematuros, insuficientes, mal dirigidos, para as lutas e deveres da existência. Os adeptos eram escolhidos, preparados desde a infância para a carreira que deviam preencher e, depois, levados gradualmente aos píncaros intelectuais, de onde se pode dominar e julgar a vida. Os princípios da ciência secreta eram-lhes comunicados numa proporção relativa ao desenvolvimento das suas inteligências e qualidades morais. A iniciação era uma refundição completa do carácter, um acordar das faculdades latentes da alma. Somente quando tinha sabido extinguir em si o fogo das paixões, comprimir os desejos impuros, orientar os impulsos do seu ser para o Bem e para o Belo, é que o adepto participava dos grandes mistérios. Obtinha, então, certos poderes sobre a Natureza, e comunicava-se com as potências ocultas do Universo.

   Não deixam subsistir dúvida alguma sobre tal ponto os testemunhos da história a respeito de Apolônio de Tiana e de Simão, o Mago, bem como os factos, pretensamente miraculosos, levados a efeito por Moisés e pelo Cristo. Os iniciados conheciam os segredos das forças fluídicas e magnéticas. Este domínio, pouco familiar aos sábios dos nossos dias, a quem se afiguram inexplicáveis os fenómenos do sonambulismo e da sugestão, no meio dos quais se debatem impotentes em conciliá-los com teorias preconcebidas, esse domínio, a ciência oriental dos santuários havia explorado, e estava possuidora de todas as sua chaves. Nele encontramos meios de acção incompreensíveis para o vulgo, mas facilmente explicáveis pelos fenómenos do Espiritismo. Em suas experiências fisiológicas, a ciência contemporânia chegou ao pórtico deste mundo oculto conhecido dos antigos e regido por leis exactas. Ainda bem perto está o dia em que a força dos acontecimentos e o exemplo dos audaciosos constrangê-la-ão a tal. Reconhecerá, então, que nada há aí de sobrenatural, mas, ao contrário, uma face ignorada da Natureza, uma manifestação das forças subtis, um aspecto novo da vida que enche o infinito.

   Se do domínio dos factos passarmos ao dos princípios, teremos de esboçar desde logo as grandes linhas da doutrina secreta. Ao ver desta, a vida não é mais que a evolução, no tempo e no espaço, do espírito, única realidade permanente. A matéria é sua expressão inferior, sua forma variável. O Ser por excelência, fonte de todos os seres, é Deus, simultaniamente triplo e uno – essência, substância e vida – em que se resume todo o Universo. Daí o deísmo trinitário que, da Índia e do Egipto, passou, desfigurando-se, para a doutrina cristã. Esta, dos três elementos do ser, fez as pessoas. A alma humana, percela da grande alma, é imortal. Progride e sobe para o seu autor através de existências numerosas, alternativamente terrestres e espirituais, por um aperfeiçoamento contínuo. Em suas encarnações, constitui ela o homem, cuja natureza ternária – o corpo, o perispírito e a alma –, centros correspondentes da sensação, sentimento e conhecimento, torna-se um microcosmo ou pequeno mundo, imagem reduzida do macrocosmo ou Grande Todo. Eis por que podemos encontrar Deus no mais profundo do nosso ser, interrogando a nós mesmos na solidão, estudando e desenvolvendo as nossas faculdades latentes, a nossa razão e consciência. Tem duas faces a vida universal: a involução ou descida do Espírito à matéria para a criação individual, e a evolução ou ascensão gradual, na cadeia das existências, para a Unidade Divina.

   Prendia-se a esta filosofia um feixe inteiro de ciências: a Ciência dos Números ou Matemáticas Sagradas, a Teogonia, a Cosmogonia, a Psicologia e a Física. Nelas, os métodos indutivo e experimental combinavam-se e serviam-se reciprocamente de verificação, formando, assim, um todo imponente, um edifício de proporções harmónicas.

   Este ensino abria ao pensamento perspectivas suscetíveis de causarem vertigem aos espíritos mal preparados, e por isso era somente reservado aos fortes. Se, por verem o infinito, as almas débeis ficam perturbadas e desvairadas, as valentes fortificam-se e medram. É no conhecimento das leis superiores que estas vão beber a fé esclarecida, a confiança no futuro, a consolação na desgraça. Tal conhecimento produz benevolência para com os fracos, para com todos esses que se agitam ainda nos círculos inferiores da existência, vítimas das paixões e da ignorância; inspira tolerância para com todas as crenças. O iniciado sabia unir-se a todos e orar com todos. Honrava Brahma na Índia, Osíris em Mênfis, Júpiter na Olímpia, como pálidas imagens da Potência Suprema, directora das almas e dos mundos. É assim que a verdadeira religião se eleva acima de todas as crenças e a nenhuma maldiz.

   O ensino dos santuários produziu homens realmente prodigiosos pela elevação de vistas e pelo valor das obras realizadas, uma elite de pensadores e de homens de acção, cujos nomes se encontram em todas as páginas da História. Daí saíram os grandes reformadores, os fundadores de religiões, os ardentes propagandistas: Krishna, Zoroastro, Hermes, Moisés, Pitágoras, Platão e Jesus; todos os que têm posto ao alcance das multidões as verdades sublimes que fazem sua superioridade. Lançaram aos ventos a semente que fecunda as almas, promulgaram a lei moral, imutável, sempre e em toda parte semelhante a si mesma. Mas, não souberam os discípulos guardar intacta a herança dos mestres. Mortos estes, os seus ensinos ficaram desnaturados e desfigurados por alterações sucessivas. A mediocridade dos homens não era apta a perceber as coisas do espírito e bem depressa as religiões perderam a sua simplicidade e pureza primitivas. As verdades que tinham sido ensinadas foram sufocadas sob os pormenores de uma interpretação grosseira e material. Abusou-se dos símbolos para chocar a imaginação dos crentes e, muito breve, a idéia máter ficou sepultada e esquecida sob eles. A verdade é comparável às gotas de chuva que oscilam na extremidade de um ramo. Enquanto aí ficam suspensas, brilham como puros diamantes aos raios do Sol; desde, porém, que tocam o chão, confundem-se com todas as impurezas. O que nos vem de cima mancha-se ao contacto terrestre. Até mesmo ao seio dos templos levou o homem as suas concupiscências e misérias morais. Por isso, em cada religião, o erro, este apanágio da Terra, mistura-se com a verdade, este bem dos céus.

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LÉON DENIS in Depois da Morte, Primeira Parte Crenças e Negações
(1 de 2 fragmento).
(imagem: Michelangelo in His Studio Visited by Pope Julius II, pintura de Alexandre Cabanel - 1859)

sábado, 3 de setembro de 2011

Aos corações escolhidos

  
 O budismo penetrou na China e lhe assimilou as antigas crenças. Continuou as relações estabelecidas com os mortos.
   Aqui está um exemplo dessas evocações e da aparência que toma a alma para se tornar visível a olhos mortais.
   O Sr. Estanislau Julien, que traduziu do chinês a história de Hiuen-Thsang, que viveu pelo ano 650 da nossa era, narra assim a aparição do Buda, devida a uma prece daquela santa personagem.
   “Tendo penetrado na caverna onde, animado de fé profunda, vivera o grande iniciador, Hiuen-Thsang se acusou de seus pecados, com o coração transbordante de sinceridade. Recitou devotamente suas preces, prosternando-se a cada estrofe. Depois de fazer uma centena dessas reverências, viu surgir uma claridade na parede oriental da caverna.
   Tomado de alegria e de dor, recomeçou ele as suas saudações reverentes e viu brilhar e apagar-se qual relâmpago uma luz do tamanho de uma salva. Então, num transporte de júbilo e amor, jurou que não deixaria aquele sítio sem ter visto a sombra augusta do Buda. Continuou a prestar-lhe suas homenagens e, ao cabo de duzentas saudações, teve de súbito inundada de luz toda a gruta e o Buda, em deslumbrante brancura, apareceu, desenhando-se-lhe majestosamente a figura sobre a muralha. Ofuscante fulgor iluminava os contornos da sua face divina. Hiuen-Thsang contemplou em êxtase, durante largo tempo, o objecto sublime e incomparável de sua admiração. Prosternou-se respeitosamente, celebrou os louvores do Buda e espalhou flores e perfumes, depois do que a luz se extinguiu. O brâmane que o acompanhara ficou tão encantado quanto maravilhado daquele espectáculo. “Mestre – disse ele –, sem a sinceridade da tua fé e o fervor dos teus votos, não terias presenciado tal prodígio.”
   Essa aparição lembra a transfiguração de Jesus, quando se prostraram Moisés e Elias. Os Espíritos superiores têm um corpo de esplendor incomparável, por isso que a sua substância fluídica é mais luminosa do que as mais rápidas vibrações do éter, como poderemos verificar pelo que se segue.

A Pérsia

   No antigo Irã, depara-se com uma concepção toda especial acerca da alma. Zoroastro pode reivindicar a paternidade da invenção do que hoje é chamado o eu superior, a consciência subliminal e, doutro ponto de vista, a paternidade da teoria dos anjos guardiães.
   É conhecida a doutrina do grande legislador: abaixo do Ser Incriado, eterno, existem duas emanações opostas, tendo cada uma sua missão determinada: Ormuzd tem o encargo de criar e conservar o mundo; Arimã o de combater Ormuzd e destruir o mundo, se puder. Há, igualmente, dois génios celestes, emanados do Eterno, para ajudar a Ormuzd no trabalho da criação; mas, há também uma série de Espíritos, de “génios”, de ferúers, pelos quais pode o homem crer que tem em si algo de divino. O ferúer, inevitável para cada ser, dotado de inteligência, era, ao mesmo tempo, um inspirador e um vigia: inspirador, por insuflar o pensamento de Ormuzd no cérebro do homem; vigia, por ser guardião da criatura amada do deus. Parece que os ferúers imateriais existiam, por vontade divina, antes da criação do homem e que cada um deles sabia, de antemão, qual o corpo humano que lhe era destinado.
   A missão desse ferúer consistia em combater os maus génios produzidos por Arimã, em conservar a humanidade.
   Após a morte, o ferúer se conserva unido “à alma e à inteligência”, para sofrer um julgamento, receber a sua recompensa ou o seu castigo. Todo homem, todo Ized (génio celeste) e o próprio Ormuzd tinham o seu ferúer, o seu frawaski, que por eles velava, que se devotava à sua conservação.
   De certas passagens do Avestá se há podido deduzir que, depois da morte do homem, o ferúer voltava ao céu, para desfrutar aí de um poder independente, mais ou menos extenso, conforme fora mais ou menos pura e virtuosa a criatura que lhe estivera confiada. De todo independente do corpo humano e da alma humana, o ferúer é um génio imaterial, responsável e imortal. Todo ser teve ou terá o seu ferúer. Em tudo o que existe, há um ferúer certo, isto é, alguma coisa de divino. O Avestá invoca o ferúer dos santos, do fogo, da assembléia dos sacerdotes, de Ormuzd, dos amschaspands (anjos celestes), dos izeds, da “palavra excelente”, dos “seres puros”, da água, da terra, das árvores, dos rebanhos, do tourogérmen, de Zoroastro, “em quem, primeiro, Ormuzd pensou, a quem instruiu pelo ouvido e ao qual formou com grandeza, em meio das províncias do Irã”.
   Na Judéia, os hebreus, ao tempo de Moisés, desconheciam inteiramente qualquer ideia de alma.  Foi preciso o cativeiro de Babilónia, para que esse povo bebesse, entre os seus vencedores, a ideia da imortalidade, ao mesmo tempo que a da verdadeira composição do homem. Os cabalistas, intérpretes do esoterismo judeu, chamam Nephesh ao corpo fluídico do Princípio pensante.

A Grécia

   Os gregos, desde a mais alta antiguidade, estiveram na posse da verdade sobre o mundo espiritual. Em Homero, é frequente os moribundos profetizarem e a alma de Pátroclo vem visitar Aquiles na sua tenda.
   “Segundo a doutrina da maioria dos filósofos gregos, cada homem tem por guia um demónio particular (eles davam o nome de daimon aos Espíritos), que lhe personifica a individualidade moral.” 
   A generalidade dos humanos era guiada por Espíritos vulgares; os doutos mereciam visitados por Espíritos superiores (Id.). Thales, que viveu seis séculos e meio antes da nossa era, ensinava, tal qual na China, que o Universo era povoado de demónios e de génios, testemunhas secretas das nossas acções, mesmo dos nossos pensamentos, sendo também nossos guias espirituais.  Até, desse artigo, fazia um dos pontos capitais da sua moral, confessando que nada havia mais próprio a inspirar a cada homem a necessidade de exercer sobre si mesmo essa espécie de vigilância a que Pitágoras mais tarde chamou o sal da vida.
   Epimênides, contemporâneo de Sólon, era guiado pelos Espíritos e frequentemente recebia inspirações divinas. Sustentava fortemente o dogma da metempsicose e, para convencer o povo, dizia que ressuscitara muitas vezes e que, particularmente, fora Éaco.
   Sócrates   e, sobretudo, Platão, como achassem excessivamente grande a distância entre Deus e o homem, enchiam-na de Espíritos, considerando-os génios tutelares dos povos e dos indivíduos e os inspiradores dos oráculos. A alma preexistia ao corpo e chegava ao mundo dotada do conhecimento das ideias eternas. Semelhante à criança, que no dia seguinte há esquecido as coisas da véspera, esse conhecimento ficava nela amodorrado, pela sua união com o corpo, para despertar pouco a pouco, com o tempo, o trabalho, o uso da razão e dos sentidos. Aprender era lembrar-se; morrer era voltar ao ponto de partida e tornar ao primitivo estado: de felicidade, para os bons; de sofrimento, para os maus.
   Cada alma possui um demónio, um Espírito familiar, que a inspira, com ela se comunica, lhe fala à consciência e a adverte do que tem que fazer ou que evitar. Firmemente convencido de que, por intermédio desses Espíritos, uma comunicação podia estabelecer-se entre o mundo dos vivos e os a quem chamamos mortos, Sócrates tinha um demónio, um Espírito familiar, que constantemente lhe falava e o guiava em todas as circunstâncias.
   “Sim – diz Lamartine – ele é inspirado, segundo o afirma e repete. Por que nos negaríamos a crer na palavra do homem que dava a vida por amor da verdade? Haverá muitos testemunhos que tenham o valor da palavra de Sócrates prestes a morrer? Sim, ele era inspirado... A verdade e a sabedoria não emanam de nós; descem do céu aos corações escolhidos, que Deus suscita, de acordo com as necessidades do tempo.” 
   O claro génio dos gregos percebeu a necessidade de um intermediário entre a alma e o corpo. Para explicar a união da alma imaterial com o corpo terrestre, os filósofos da Hélade reconheceram a existência de uma substância mista, designada pelo nome de Ochema, que lhe servia de envoltório e que os oráculos denominavam o veículo leve, o corpo luminoso, o carro subtil. Falando daquilo que move a matéria, diz Hipócrates que o movimento é devido a uma força imortal, ignis, a que dá o nome de enormon, ou corpo fluídico.

GABRIEL DELANNE, A Alma é Imortal, Primeira parte A observação, Capítulo I Golpe de vista histórico – As crenças antigas (fragmento 1 de 3).
(imagem: Tête Divine, pintura de Edgard Maxence - 1907)